Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
118/14.2TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
IMPROCEDÊNCIA
BENS
DÍVIDA
ÓNUS DA PROVA
DEVEDOR
TERCEIRO
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - PENACOVA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 611º DO CÓD. CIVIL
Sumário: Nos termos do art. 611º do Cód. Civil impende sobre o devedor ou terceiro interessado na manutenção do acto o ónus de alegação e prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.

Este ónus não se satisfaz a mera alegação de que se é titular de um “vasto património”, que não passa de um juízo conclusivo que nada esclarece; o devedor deve identificar os bens, com os elementos necessários, para o tribunal possa concluir pela existência no seu património de bens de valor igual ou superior ao montante das dívidas.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


         

            A... , SA, intentou acção declarativa com processo comum contra B.... , divorciada, e filhos C.... e D... , todos residentes na Rua (...) , Penacova, pedindo:

            a) Que se declare nula, por simulada, a doação dos imóveis identificados nos artigos 11º e 13º da petição e, consequentemente, cancelado o registo de aquisição dos prédios a favor dos RR;

            b) Não sendo declarada a nulidade do acto, deverá a doação ser declarada ineficaz em relação à Autora, podendo os imóveis identificados em 11º e 13º serem penhoradas até integral satisfação do crédito da Autora.

            Alegou para tanto e em síntese, ter no exercício da sua actividade creditícia, celebrado com a Ré B... e F..., seu marido à data, um contrato de abertura de conta e concedeu-lhes crédito, sob a forma de descoberto, na referida conta e celebrou com F... , na sua qualidade de empresário em nome individual, um contrato de subscrição e utilização de cartão de crédito, associado à já referida conta. Este contrato de subscrição e utilização de cartão de crédito foi garantido por fiança prestada por F... e B... , 1ª Ré. As obrigações assumidas não foram cumpridas e, em 02/04/2014, a A. instaurou execução para pagamento de quantia certa contra B... e F... , pelo valor de € 18.428,10. Por escritura pública datada de 27/04/2009, a 1ª R., doou aos 2ºe 3º RR. o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 833 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penacova sob o nº 1580 e doou ao seu filho C... , o prédio rústico inscrito na respectiva matriz sob o artigo 5918 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penacova sob o nº 4114, aquisições estas registada a favor dos 2º e 3º RR. na competente Conservatória do Registo Predial. Para além dos imóveis acima descritos, não possui a 1ª R. quaisquer outros bens, móveis ou imóveis, de valor suficiente para garantia do crédito da A.. Requer, então, que seja declarada ser declarada nula, por simulada, a doação dos imóveis identificados e, consequentemente, cancelado o registo de aquisição do prédio urbano a favor dos 2º e 3º RR. e do prédio rústico a favor do 2º R. ou, caso não seja declarada a nulidade do acto em causa, deverá ser declarado ineficaz, em relação à A., podendo os imóveis identificados, ser objecto de penhora e posterior venda judicial até integral satisfação do crédito da Autora.

            Os RR apresentaram contestação,  impugnando o valor da dívida, que  à data de 02/04/2014, ascendia de € 8.416,41 (+ juros desde 31/08/2009) e não ao valor indicado na petição, negando ainda o carácter fraudulento do negócio impugnado, e ausência de fundamento  da acção por a Ré ser proprietária, ou herdeira, de bens, mais que suficientes para garantirem o crédito da Autora. Concluem pela improcedência da acção ou, caso assim não se entenda, ser apenas declarada a nulidade e ineficácia da doação do prédio rústico melhor identificado no artº 13º da petição inicial.


///

             Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a acção, declarando “a ineficácia em relação à Autora das doações identificadas nos pontos 7 e 9 da matéria de facto, ordenando-se a restituição desses bens ao património da Ré B... , na medida do necessário à satisfação do crédito da Autora, podendo esta executar todos ou qualquer deles como se tivessem retomado ao património da 1ª Ré, satisfazendo o seu crédito à custa dos mesmos.”

            Inconformada, apelou a 1ª Ré terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

            1ª. O douto Tribunal a quo sustenta a sua douta decisão em dois argumentos essenciais, que se reconduzem aos requisitos de procedência da Impugnação Pauliana plasmados nos artigos 610.º e 611.º do Código Civil: por um lado, na anterioridade do crédito da Recorrente em relação às doações efectuadas; por outro lado, na inexistência de outros bens penhoráveis passiveis de satisfazer o crédito da Recorrida.

           

            2ª. No que respeita a este segundo requisito, entende a Recorrente que a prova feita aponta justamente no sentido inverso, isto é, que não só havia outros bens penhoráveis para além dos bens doados, como esses (outros) bens eram de valor suficiente para garantir o crédito da aqui Recorrida.

            3ª. É que, antes de mais, importa sublinhar que sendo o ex-marido da Recorrente também executado na Ação Executiva que esteve na génese da presente Impugnação Pauliana, na análise do aludido requisito deveria também ter-se tido em conta o património de que o ex-marido da Recorrente ainda é proprietário, e não apenas o património de que aqui Recorrente ainda é titular, como parece decorrer da fundamentação da douta sentença recorrida.

            4ª.  Depois e se da prova produzida em Audiência algo ficou provado, é que tanto a aqui Recorrente, como o co-executado F... são, de facto, para além dos imóveis que foram doados, ainda proprietários de outro património, e de outro património que, no seu conjunto, é de valor igual ou superior ao crédito da aqui Recorrida, no valor de € 18.428,10, aliás, como já o eram em 02/04/2009, quando, para cobrança desse crédito, foi instaurada a Execução.

            5ª. No caso da aqui Recorrente  ela é (como já era à data da Execução) proprietária dos bens que o próprio douto Tribunal recorrido admitiu no Ponto 14 dos factos assentes, consubstanciado em “(…) duas viaturas (…) assim como todo o demais património mobiliário que, aquando do divórcio, lhe foi adjudicado na respectiva Partilha (…)”.

            6ª. Mas para além disso, e como resulta dos depoimentos que foram prestados em sede de Audiência Final pelas Testemunhas F... ,   G... e H... é ainda proprietária de todo o conjunto de imóveis que integram a massa da Herança aberta por óbito do seu pai I... , entre os quais se contam um prédio urbano sito em Oliveira do Mondego, Penacova, bem como vários prédios rústicos.

            7ª. Já no que respeita ao seu ex-marido e co-executado  ele é (como já era aquando da Execução) ainda titular de um quinhão hereditário na Herança aberta por óbito da sua mãe K... , Herança essa que integra no seu perímetro não só uma casa de habitação sita no lugar de Carvalhal de Mançores, Penacova, mas também um conjunto de 10 (dez) prédios rústicos, como claramente resulta, quer dos depoimentos prestados em sede de Audiência pelas referidas Testemunhas  quer dos documentos que foram juntos aos autos e, em especial, das cadernetas prediais que foram anexas à Contestação como Doc. 5.

            8ª. E se no caso das viaturas e demais património mobiliário que foi adjudicado na Partilha à Recorrente, é o próprio Tribunal a quo quem reconhece que o valor desse património, no seu conjunto, ascende a mais de € 11.118,00 (onze mil cento e dezoito euros) [Cfr. Ponto 14 dos factos assentes].

            9ª.  Já no que respeita aos quinhões hereditários que os co-obrigados são titulares em cada uma das ditas Heranças, aquilo que a prova produzida veio revelar, e de forma cabal, é que, só em relação às ditas casas, a aqui Recorrente é (como já era à data da Execução) ainda titular de um quinhão hereditário no valor de € 3.375,00, ao passo que o seu ex-marido e co-executado é (como já era à data da Execução) ainda titular de um quinhão hereditário no valor de € 1.125,00, tudo no valor de (€ 3.375,00 + € 1.125,00) € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros).

            10ª. Pois que, se existe algo que ficou claro no decurso do Julgamento, nomeadamente pelas declarações aí prestadas de forma espontânea e credível pelas Testemunhas ouvidas é que essas casas de Carvalhal de Mançores e de Oliveira do Mondego, valem, respetivamente, pelo menos, € 18.000,00 e € 36.000,00, e que esse património deve ser partilhado, no caso da aqui Recorrente, por ela, pela mãe e por mais 3 (três) irmãos, e, no caso do seu ex-marido, por este, pelo pai, e por mais 5 (cinco) irmãos, um deles entretanto falecido.

             11ª. Mas como ficou provado, mormente pelas declarações prestadas de forma espontânea e desinteressada pelas ditas Testemunhas ambas as Heranças são ainda integradas por vários prédios rústicos.

            12ª. E a verdade é que, pelo menos no que respeita aos prédios rústicos que integram a Herança aberta por óbito da mãe do co-executado aquilo que se logrou provar, tendo em conta os depoimentos prestados por essas mesmas Testemunhas foi que todos esses imóveis são prédios de grandes dimensões, arborizados e/ou com viabilidade construtiva, e portanto, são prédios que, atendendo à sua área, à sua constituição e/ou à sua viabilidade construtiva, são prédios que têm, em termos de mercado, um valor comercial muito superior ao valor patrimonial tributário que consta das respetivas cadernetas prediais.

            13ª. Pelo que, mesmo que nenhuma prova tivesse sido feita quanto ao concreto valor de todos e cada um dos prédios rústicos que integram cada uma das ditas Heranças, até com recurso às regras da experiência comum era inevitável concluir, atendendo à área, à constituição e/ou à viabilidade construtiva desses imóveis, que os co-obrigados, em cada um desses acervos hereditários, sempre seriam (como já eram à data da Execução) ainda titulares de quinhões hereditários que, no seu cômputo, seriam seguramente de valor superior a € 2.810,10 (dois mil oitocentos e dez euros e dez cêntimos).

            14ª. E, por conseguinte, ainda seriam detentores na sua esfera jurídica, para além dos imóveis que foram objeto de doação, de bens que, no seu conjunto, são de valor bastante superior aos € 18.428,10 em que se computa o crédito da aqui Recorrida.

            15ª. Assim e em face da prova produzida, é inequívoco que o douto Tribunal recorrido não andou apenas mal ao vir concluir pela inexistência de mais qualquer outro património para além dos bens doados, outro património esse que se provou existir e não se resumir apenas às viaturas e aos demais bens móveis que foram adjudicados à Recorrente na Partilha.

            16ª. Em face da prova produzida, andou igualmente mal ao vir concluir que, para além dos bens doados, no património dos co-obrigados não existiam (outros) bens de valor suficiente para satisfazer o crédito da aqui Recorrida.

            17ª. Não se podendo sequer admitir, em face da prova testemunhal produzida em sede de Julgamento, assim como dos documentos juntos aos autos, aquilo que vem dito na página 8 da douta sentença recorrida, onde se justifica o facto de não se ter dado como provado “que a 1.ª Ré e o seu ex-marido fossem proprietários de património suficiente para pagamento da quantia em dívida à A., por via dos quinhões hereditários que possuem por morte dos seus progenitores, por nenhuma prova documental ter sido junta aos autos que comprovasse o falecimento dos respectivos progenitores, nem dos bens que compõem as respectivas heranças”.

            18ª. Pelo que, quer ao dar como provada a factualidade vertida para o Ponto 11 dos factos assentes, quer ao dar como não provada a factualidade referida nos itens segundo, terceiro e quarto dos factos não provados, é firme convicção da Recorrente que houve por parte do douto Tribunal a quo um manifesto erro na apreciação da prova produzida nos autos e, concomitantemente, na subsequente aplicação do Direito.

            19ª. Padecendo, por isso, a douta sentença recorrida, dos vícios a que se reportam os artigos 639.º n.º 2, alínea b), e 640.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.

            20ª. Na verdade e mesmo admitido que, em 02/04/2014, aquando da propositura da Execução, o crédito da aqui Recorrida importava nos ditos € 18.428,10, e não nos € 8.416,41 que a aqui Recorrente referiu na sua Contestação, aquilo que a prova produzida veio revelar foi, com todo o respeito, justamente o inverso do que ali se decidiu, isto é, foi que não obstante as doações efectuadas, na esfera jurídica dos coobrigados ainda assim existiam (como ainda hoje existem), bens penhoráveis de valor igual ou superior ao valor daquele crédito.

            21ª. E assim sendo é notório que, mesmo sendo o crédito da Recorrida anterior as doações efectuadas, em face do disposto nos artigos 610.º e 611.º do Código Civil, nenhuma razão fática ou jurídica havia para se vir deferir a presente Impugnação Pauliana e, nessa medida, para se vir julgar ineficaz, em relação à Recorrida, as doações efetuadas.

            22ª. Já que, como resulta desses normativos, independentemente do crédito ser anterior ou posterior ao ato, um dos requisitos de procedência da Impugnação Pauliana consiste, justamente, no facto do ato em causa vir tornar impossível ao credor obter a satisfação integral do seu crédito, ou vir agravar essa impossibilidade (Cfr. alínea b), do artigo 610.º do Código Civil).

            23ª. O que não é nitidamente o caso dos autos, uma vez que, tendo a Recorrente feito prova da existência e suficiência desse outro património, é evidente que a doação efectuada, nem impossibilitou o credor de obter a satisfação do seu crédito, nem, por conseguinte, veio agravar essa impossibilidade.

            24ª. Já que, como resulta desses normativos, independentemente do crédito ser anterior ou posterior ao ato, um dos requisitos de procedência da Impugnação Pauliana consiste, justamente, no facto do ato em causa vir tornar impossível ao credor obter a satisfação integral do seu crédito, ou vir agravar essa impossibilidade (Cfr. alínea b), do artigo 610.º do Código Civil).

            25ª. O que não é nitidamente o caso dos autos, uma vez que, tendo a Recorrente feito prova da existência e suficiência desse outro património, é evidente que a doação efectuada, nem impossibilitou o credor de obter a satisfação do seu crédito, nem, por conseguinte, veio agravar essa impossibilidade.

            26ª.  Daí que, ao decidir pela procedência da presente Impugnação Pauliana, tenha o douto Tribunal a quo não apenas violado o disposto na alínea b) do artigo 610.º do Código Civil, e o disposto no artigo 611.º desse mesmo Código, mas também o disposto nos artigos 413.º e 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, que o obrigavam a tomar em consideração e a analisar criticamente todas as provas produzidas.

            Pede que se profira acórdão que, revogando a sentença, mantenha a validade e a eficácia das doações, bem como a validade dos registos efectuados; se assim não se entender, que se determine a baixa dos autos à 1ª instância para que o tribunal a quo aprecie criticamente a prova e profira nova sentença.

            Contra alegou a Recorrida, pugnando pela improcedência do recurso e a confirmação da sentença.


///

            Fundamentação.

            A sentença deu como provados os seguintes factos:

            1. No exercício da sua actividade creditícia, a A. celebrou com a R. B... , e F... , seu marido à data, um contrato de abertura de conta, formalizado por documento particular datado de 24/02/2002.

            2. E atenta a relação de confiança que a A. depositava nos clientes, concedeu-lhes crédito, sob a forma de descoberto, na referida conta à ordem, com o número (...) , domiciliada numa Agência da A... , S.A..

            3. Ainda no exercício da sua actividade creditícia, a A. celebrou com F... , na sua qualidade de empresário em nome individual (ENI), um contrato de subscrição e utilização de cartão de crédito A... WORKS, associado à já referida conta nº 0..., titulada por si e pela 1ª R., formalizado por documento particular datado de 14/01/2008.

            4. O contrato de subscrição e utilização de cartão de crédito A... WORKS foi garantido por fiança prestada por F... e B... Alves, 1ª Ré, tendo-se constituído fiadores solidários e principais pagadores de todas e quaisquer quantias que viessem a ser devidas à A. no âmbito do contrato.

            5. As obrigações assumidas não foram cumpridas, na operação identificada em 1., pelos titulares da conta, e na operação identificada em 3., nem pelo subscritor do cartão nem pelos fiadores.

            6. A A., perante o incumprimento relativo aos contratos identificados, em 02/04/2014, instaurou execução para pagamento de quantia certa contra B... , 1ª R., e F... , que correu termos no Tribunal Judicial de Penacova, com o nº 112/14.3TBPCV, pelo valor de € 18.428,10.

            7. Por escritura pública datada de 27/04/2009, a 1ª R., doou aos 2ºe 3º RR., seus filhos, o seguinte imóvel: - Prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, um andar, sótão e logradouro, sito no lugar e freguesia de Oliveira do Mondego, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 833 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penacova sob o nº 1580.

            8. Aquisição esta registada a favor dos 2º e 3º RR. na competente Conservatória do Registo Predial pela Ap. 6574 2009/05/04.

            9. Tendo ainda nessa data doado ao seu filho C... , 2º R., o seguinte imóvel: - Prédio rústico composto de terra de semeadura com oliveiras, laranjeiras e videiras, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 5918 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penacova sob o nº 4114.

            10. Aquisição esta registada a favor do 2º R. na competente Conservatória do Registo Predial pela Ap. 5101 de 2009/05/13.

            11. Para além dos imóveis acima descritos, não possui a 1ª R. outros bens de valor suficiente para garantia do crédito da A..

            12. Não obstante a doação, a 1ª R. continua a utilizar os imóveis em causa, continuando o prédio urbano a ser a sua casa de morada de família, aí residindo com os 2º e 3º RR..

            13. A conta bancária associada ao contrato referido em 1. (na circunstância, a conta de Depósitos à Ordem nº (...) ), era exactamente a mesma em que, até Novembro de 2011, eram creditados os valores referentes à utilização do cartão “ A... WORKS”, assim como os valores debitados para cobrança dessas mesmas utilizações.

            14. Para além do vencimento que aufere do exercício das suas funções de “empregada de limpeza”, no montante de € 490,55, a aqui 1ª R. é ainda proprietária de um conjunto de bens, entre os quais se contam duas viaturas, no montante total de € 6.500,00, assim como todo o demais património mobiliário que, aquando do divórcio, lhe foi adjudicado na respectiva Partilha, no montante total de € 4.618,00, valores calculados a 15/04/2009.

            15. O prédio urbano objecto da doação, tendo sido adquirido e edificado com recurso a crédito bancário, para garantia desse empréstimo, encontra-se onerado com uma Hipoteca a favor do banco BPI, a quem a aqui 1ª R., por conta desse mesmo mútuo, devia, a 10/01/2014, mais de € 64.000.00.

            16. Pese embora a aqui 1ª R. também fosse titular da conta DO nº (...) , a mesma nunca fez qualquer utilização dessa conta e muito menos alguma vez teve a posse ou fez qualquer utilização do cartão de crédito a ela associado (ou seja, o referido cartão “ A... WORKS”).

            17. Tal conta bancária, sendo a conta que o seu então marido F... usava para o exercício da sua actividade profissional, era e sempre foi usada e controlada única e exclusivamente por este.

            18. Da mesma forma, o cartão de crédito em causa, tendo sido entregue ao seu ex-marido para seu uso profissional, sempre foi ele quem teve a sua posse, assim como sempre foi ele quem única e exclusivamente o utilizou.


///

            O direito.

            É objecto de recurso a sentença que, julgando verificados todos os requisitos da impugnação pauliana (artigos 610º e ss do CCIvil),  declarou a ineficácia em relação à Autora das doações de dois imóveis que a 1ª Ré fez aos seus filhos, 2º e 3º RR.

            A Recorrente começa por impugnar a matéria de facto da sentença, concretamente o facto dado como provado no nº11 e os julgados não provados enunciados nos itens 2º, 3º e 4º dos factos não provados.

             Recordemos então o que ali se julgou provado e não provado.

            No ponto nº11 deu-se como provado que “para além dos imóveis acima descritos, não possui a 1ª Ré outros bens de valor suficiente para garantia do crédito da A.”

           

            E foi dado como não provado:

            2º. Que a aqui 1ª Ré é (como era à data da execução) ainda titular de todo um outro vasto património que, sendo penhorável e propriedade sua, é susceptível de garantir o pagamento da aludida quantia em dívida;

            3ª. Que tendo o pai da aqui 1ª Ré (o Sr. I... ) falecido no pretérito dia 30/03/1979, da herança deste faz parte um vasto acervo hereditário, que é constituído por vários bens imóveis, entre os quais se conta uma casa de habitação que, até à data, ainda não foi objecto de divisão e partilha entre os vários herdeiros.

            4ª. Que tendo a mãe do ex-marido da 1ª Ré (Srª.K...) falecido no dia 25/01/2008, a massa da herança desta era também integrada por todo um vasto conjunto de bens imóveis, os quais, também eles, ainda não foram objecto de divisão e partilha entre os respectivos herdeiros.

            Pretende que se alterem para não provado e provado, respectivamente, o facto do nº11 da sentença e os itens 2º, 3º e 4º dos não provados, indicando para o efeito os depoimentos do seu ex-marido e também executado F... , a sua ex-cunhada J... e de H... , que em parte transcreve, como lhe permite o nº2 alínea a) do art. 640º do CPCivil.

            Lidas as transcrições destes depoimentos e o teor dos factos ditos não provados, é nossa convicção que a 1ª instância decidiu correctamente.

            O facto do item 2º é meramente conclusivo, como é afirmação de que a Ré é titular de um “vasto património”, que nada nos diz quanto à existência de bens no património da Ré, susceptíveis de penhora. O que a Ré carecia de provar é que é proprietária de outros bens imóveis para além dos que foram objecto das doações, identificando-os, de forma a permitir ao tribunal aferir da robustez do seu património e da sua aptidão para garantirem o crédito da Autora. Prova que não fez, como já não fizera a prévia alegação.

            No que tange aos itens 3º e 4º eles sofrem do mesmo mal (insuficiência de concretização dos bens que integram o “vasto património”), para além de se referirem a bens que integram as heranças do pai e da ex-sogra da Recorrente ainda não partilhadas, não integrando pois o património da Recorrente.

            Improcede consequentemente este primeiro fundamento do recurso, mantendo-se intacta a matéria de facto da sentença.


///

            A impugnação pauliana consiste, como se sabe, no meio posto à disposição dos credores contra actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e que não sejam de natureza pessoal.

            Os requisitos gerais da impugnação pauliana são, como enunciados no art.610º do Código Civil:   a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.

            A tais requisitos acresce, quando de acto oneroso se trate, a exigência de que o devedor e o terceiro adquirente tenham agido de má fé, que consiste na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé (art. 612º, nºs 1 e 2).

            Em termos de ónus de alegação e prova, o art. 611º é claro: incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.

            Expostos estes princípios, aceites pacificamente pela doutrina e jurisprudência (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, I, pag. 625 e sgs, 4ª edição, e na jurisprudência, entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 3.4.2000, BMJ, 497, p.315), vejamos o caso dos autos.

            A sentença julgou verificados todos os apontados requisitos, a saber: ser a Autora titular de um crédito sobre a Ré; ser o crédito anterior às doações impugnadas; e ter resultado daqueles actos a insuficiência de bens no património da Ré  para garantirem o pagamento da dívida à Autora.

            Como se vê das conclusões do recurso a Recorrente limita a sua discordância à verificação deste último requisito, insistindo que mesmo após as doações continua a ser titular de património suficiente para garantir o pagamento da dívida da Autora, por o valor dos mesmos ser “bastante superior” aos €18.428,00 em dívida à A.

           

           

            Ora, não basta alegar que se é titular de “um vasto património”.

            O art. 611º, ao fazer recair sobre o devedor, ou no terceiro interessado na manutenção do acto, o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas, obriga aquele a identificar os bens que integram o seu património, com os elementos necessários, de modo que o tribunal possa concluir pela  existência de “bens penhoráveis de igual ou maior valor”. Feita essa prova, a impugnação pauliana improcederá, por não provado um dos seus requisitos gerais: ter resultado do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral  do seu  crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.          

            No caso, é manifesto que a Recorrente não fez  prova da suficiência do seu património, não cumprindo esse ónus a alegação, não comprovada como bem referiu a sentença recorrida, da existência de bens nas heranças abertas por óbito de seu pai e da mãe do seu ex-marido, pois além de não integrarem o seu património, desconhece-se o seu valor,  além de existirem outros herdeiros que concorrem à herança (cf. conclusão 10ª).

            A alegação de que a sentença violou as disposições dos arts. 639º, nº2, b) e 640º, nº1 do CPC (19ª conclusão), só pode resultar de um lapso da Recorrente por tais disposições se referirem aos ónus a observar na formulação das conclusões do recurso e na impugnação da matéria de facto, não sendo vícios da sentença.

            Ao observar as disposições legais pertinentes, sentença recorrida não merece reparo, improcedendo assim todas as conclusões da Recorrente.

            Decisão.

            Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a sentença.

            Custas pela Recorrente.

                                                                               Coimbra, 14.03.2017

           

                                                                                    (Ferreira Lopes)

                                                                                    (Freitas Neto)

                                                                                    (Carlos Barreira)