Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1506/10.9T2OVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INJUNÇÃO
REQUERIMENTO
TÍTULO EXECUTIVO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE OVAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 7º E 14º DO D. L. Nº 269/98, DE 1/09; 46º, AL. D) E 816º DO CPC
Sumário: 1. O requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória (arts. 7º e 14º do DL nº 269/98 de 1/9) insere-se na categoria dos títulos executivos do art.46 d) CPC (“documentos a que por disposição especial seja atribuída força executiva”), sendo qualificado como “título judicial impróprio”, por se tratar de um título de “formação judicial”, sem intervenção jurisdicional, logo um título distinto da sentença.

2. A norma do art. 814º, nº2 do CPC (na redacção do DL nº 226/2008), ao restringir os meios de oposição e limitar o direito de defesa, é materialmente inconstitucional, por violação do art. 20º da CRP.

3. À execução baseada em requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória pode o executado opor os fundamentos do art.816º do CPC (sistema não restritivo).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1. - A exequente – P… - Construções S.A - instaurou ( 30/4/2010 ) na Comarca de Baixo Vouga acção executiva, para pagamento de quantia certa, contra a executada – A...

            Com fundamento no título executivo (requerimento de injunção, com fórmula executória) pediu o pagamento da quantia de € 734.815,25.

            No requerimento de injunção (entrado em 18/3/2009), alegou o seguinte:

            A requerente é uma sociedade que se dedica à construção civil e obras públicas e a requerida uma associação que tem por objectivo a promoção de actividades com vista ao ensino, investigação e difusão de conhecimentos;

            No exercício da sua actividade, a requerente, no âmbito de um contrato de empreitada celebrado, entre ambas, em 28/6/2001, prestou diversos serviços de execução de obras de construção para acabamento da Escola …, de que a requerida é proprietária;

            A requente, após os trabalhos, enviou à requerida diversas facturas, que não pagou;

            Foi acordada a taxa de juros de 6,5% ao ano, em caso de mora.

            Reclamou o pagamento de € 549.390,45 (capital), € 133.983,67 (juros desde 6/3/2005) e € 456,00 (taxa de justiça).

            Em 12/5/2009 o Secretário de Justiça apôs a fórmula executória.

            1.2. – A executada deduziu (17/3/2011) oposição à execução, alegando, em resumo:

            A exequente não podia lançar mão do procedimento de injunção, nos termos do art.7º, nº1 do DL nº 32/2003, de 29/6, porque a relação negocial não configura “transacção comercial”, contrariamente ao referido no requerimento de injunção, visto que a executada, não sendo uma “empresa”, está antes incluída na categoria de “consumidora”.

            O Balcão Nacional de Injunções carecia de competência para tramitar o procedimento, o qual é nulo, bem como a fórmula executória aposta no requerimento, o que implica a nulidade do próprio título executivo.

            O processo de injunção e a fórmula executória aposta não têm natureza jurisdicional, violando os arts. 814, nº2 CPC, 20 e 202 da CRP.

            Acresce não se mostrar correctamente efectuada a liquidação dos juros.

            Concluiu pedindo a procedência da oposição e a declaração:

            - De inconstitucionalidade do disposto no nº2 do art.814 CPC;

            - Que a exequente não dispõe de título executivo, por nulidade do mesmo (e da aposição da fórmula executória), bem como do processo de injunção;

            - A incorrecção e ininteligibilidade da liquidação dos juros vencidos e vincendos e consequente nulidade, nessa parte, do requerimento inicial de injunção;

            - A extinção da execução, sem qualquer pagamento à exequente.

            1.3. – Por despacho de 13/4/2011 (fls.42 e segs.) indeferiu-se liminarmente a oposição por manifesta improcedência.

            Argumentou-se, em síntese:

            Quando a execução tem como título requerimento de injunção a que tenha sido aposta fórmula executória, apenas podem ser alegados como fundamentos de oposição à execução os especificados no art. 814 nº1 CPC (por força do aditamento do nº2 pelo DL nº 226/2008 de 20/11, aplicável aos processos iniciados após 31/3/2009), relevando a data da instauração da acção executiva, e não a da apresentação do procedimento de injunção.

            Notificado o requerido no procedimento de injunção, nos termos do art.13 do regime anexo ao DL nº 269/98 de 1/9 e não tendo apresentado oposição, já não pode discutir na execução a relação subjacente, com excepção dos factos extintivos e modificativos da obrigação que sejam posteriores à aposição da fórmula executória e de provem por documento (art.814 nº1 g) CPC).

            Não é inconstitucional o nº2 do art.814 CPC porque ao requerido foi dada a possibilidade de apresentar a sua defesa, provocando a transformação do procedimento de injunção em acção declarativa especial.

            O conceito de “transacção comercial“ é utilizado em sentido amplo, abrangendo qualquer transacção entre empresas privadas em geral e entidades públicas, independente de terem ou não fins lucrativos.

            1.4. - Inconformada, a executada recorreu de apelação (fls.46 e segs.), com as seguintes conclusões:

...

            Não houve resposta.


II - FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso:

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, são as seguintes:

            (1ª) A nulidade do procedimento de injunção e inexistência do título (a natureza da relação subjacente);

(2ª) Se não tendo deduzida oposição à injunção pode a executada discutir na execução a relação subjacente e com que fundamentos (a inconstitucionalidade do art.814 nº2 do CPC).

Porque a execução foi instaurada em 30/4/2010, aplica-se a nova reforma da acção executiva introduzida pelo DL nº 226/2008, de 20/11, que entrou em vigor em 31/3/2009.

            2.2. – O mérito do recurso:

            O procedimento de injunção visa conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento a que se refere o art.1º do DL nº 269/98 de 1/9, redacção do DL nº 107/2005, de 1/7 (de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação ) ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas no DL nº 32/2003, de 17/2.

A injunção aplica-se às “transacções comerciais”, independentemente do valor, conforme dispõe o art. 7 nº1 do DL nº 32/2003, de 17/2 – “o atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida”.

            Por sua vez, o art. 3, alínea a) do DL nº 32/2003 define o conceito de “transacção comercial”, como “qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração”.

            Tem-se entendido que, tanto o conceito de “transacção comercial”, como de “empresa”, enunciados no art. 3, alíneas a) e b) do DL nº 32/2003, estão empregues em sentido amplo (cf., por ex., Ac RP de 12/12/2010 ( proc. nº 382410/09), Ac RL de 30/6/2011 ( proc. nº 154563/10 ), disponíveis em www dgsi.pt ).

            No mesmo sentido, SALVADOR DA COSTA para quem os sujeitos das transacções comerciais englobam “as empresas privadas em geral, as pessoas colectivas públicas e os profissionais liberais” (A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª ed., pág.156).

            Neste contexto, a empreitada celebrada entre a exequente (empreiteira) e a executada (comitente) é havida como “transacção comercial”, sendo ambas consideradas “empresas”, tanto assim que a executada A…, proprietária da Escola …, tem como objecto social o ensino profissional (cf. estatutos de fls.29 e segs.).

            Por isso estava a exequente legitimada a socorrer-se do procedimento de injunção, a fim de obter o respectivo título executivo, que se apresenta válido.

            Que título executivo?

            O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume uma função delimitadora (por ele se determinam o fim e os limites, objectivos e subjectivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade (art.46 CPC).

            São títulos executivos “os documentos a que por disposição especial seja atribuída força executiva” (art.46 d) CPC), e nesta categoria se insere o requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória (arts.7º e 14 do DL nº 269/98 de 1/9).

A doutrina classifica-o como “título judicial impróprio”, por se tratar de um título de “formação judicial” (art.52 nº2 e 3 CPC), mas sem intervenção jurisdicional, logo um título distinto da sentença (cf., por ex., LEBRE DE FREITAS, Acção Executiva, 5ª ed., pág.64, TEIXEIRA DE SOUSA, A Reforma da Acção Executiva, pág.69) ou como “título extrajudicial especial atípico “ (SALVADOR DA COSTA, loc. cit., pág.150).

À execução baseada em título judicial impróprio admite-se a um sistema amplo de oposição, podendo invocar-se, para além dos fundamentos especificados para as sentenças, quaisquer outros que seriam lícito deduzirem-se como defesa no processo de declaração (cf., por ex., CASTRO MENDES, Acção Executiva, pág. 59, LEBRE DE FREITAS, “O Silêncio do Terceiro Devedor”, ROA, 2002 II, pág.402).

Antes da entrada em vigor do DL nº 226/2008, de 8/3 (aplicável aos processos iniciados após 31/3/2009), a orientação jurisprudencial prevalecente era no sentido de que a oposição à execução fundada em requerimento de injunção podia basear-se não apenas nos fundamentos do art. 814 CPC, mas em todos os que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração (cf., por ex., Ac RC de 5/5/2009 (proc. nº 930/08), Ac RC de 9/1/2010 (proc. nº 391/08), disponíveis em www dgsi.pt).

O DL nº 226/2008, de 8/3, aditou o nº2 ao art. 814 CPC – “ O disposto do número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, à oposição à execução fundada em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta a fórmula executória, desde que o procedimento de formação desse título admita oposição do requerido”.

            Verifica-se, portanto, que, para efeitos do modelo de oposição à execução, a lei equipara a injunção (fórmula executória) à sentença.

            Há quem sustente que esta equiparação é conforme à constituição, pelo que a oposição à execução só pode basear-se nos fundamentos previstos no nº1 do art.814 CPC (sistema restritivo), sem que ocorra inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito e tutela judicial efectiva (art.20 CRP) (cf. por ex., Ac RG de 25/2/2001 (proc. nº 6710/09), Ac RP de 15/3/2011 (proc. nº 26/10), em www dgsi.pt).

            Entendemos, porém, que norma do art.814, nº2 CPC (na redacção do DL nº 226/2008), ao restringir os meios de oposição e limitar o direito de defesa, é materialmente inconstitucional, por violação do art. 20 da CRP, conforme decidiu o Ac TC nº 283/2011 de 7/6/2011 (publicado no DR 2ª Série de 19/7/2011), para cuja argumentação se remete.

            Na verdade, aí se acolheu a posição decidida no Ac nº 658/2006 (DR 2ª Série de 9/1/2006), no âmbito da legislação anterior ao DL nº 226/2008, ao “julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa ínsito no direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no art.20º da Constituição, a norma do art.14º do Regime anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, na interpretação segundo a qual, na execução baseada em título que resulta da oposição da fórmula executória a um requerimento de injunção, o executado apenas pode fundar a sua oposição na alegação e prova que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, o qual se tem por demonstrado”.

            Como aqui se justificou:

“(…)

            “ Mas, seja como for, a falta de oposição e a consequente aposição da fórmula executória ao requerimento de injunção não têm o condão de transformar a natureza (não sentencional) do título, tornando desnecessária, em sede de oposição à execução, a prova do direito invocado, deixando ao executado apenas a alegação e prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente.

            “ Tendo presente, por um lado, que a demonstração do direito do exequente não tem o mesmo grau de certeza relativamente a todos os títulos executivos, reconhecendo-se que o título executivo que resulte da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção demonstra a aparência do direito substancial do exequente, mas não uma sua existência considerada certa, e, por outro lado, que a actividade do secretário judicial não representa qualquer forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor de obrigação pecuniária, há que evitar a “indefesa” do executado, entendendo-se por “indefesa” a privação ou limitação do direito de defesa do executado que se opõe à execução perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.

“Nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, se uma limitação interfere com um direito, restringindo-o, necessário se torna encontrar na própria Constituição fundamentação para a limitação do direito em causa como que esta se limite “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – não podendo, por outro lado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, “diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.

“No caso, a possibilidade de se introduzir limites ao princípio da proibição de “indefesa”, ínsito na garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, existe apenas na medida necessária à salvaguarda do interesse geral de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, «de forma célere e simplificada», de um título executivo” (9.º § do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro), assim se alcançando o justo equilíbrio entre esse interesse e o interesse do executado de, em sede de oposição à execução, se defender através dos mecanismos previstos na parte final do n.º 1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil (correspondente hoje ao artigo 816.º, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março)”.

Recusada a aplicação do art.814 nº2 do CPC, por invalidade constitucional, conclui-se que a executada pode deduzir todos os meios de defesa (art.816 CPC). É que o requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória não contém o reconhecimento de um direito, não foi objecto de apreciação jurisdicional, nem assume efeito de caso julgado ou preclusivo.

Como a oposição à execução não se revela “ manifestamente improcedente” (art.817 nº1 c) CPC), não havia justificação para o indeferimento liminar, impondo-se a revogação do despacho recorrido.

2.3. - Síntese Conclusiva:

1. O requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória (arts. 7º e 14º do DL nº 269/98 de 1/9) insere-se na categoria dos títulos executivos do art.46 d) CPC (“documentos a que por disposição especial seja atribuída força executiva”), sendo qualificado como “título judicial impróprio”, por se tratar de um título de “formação judicial”, sem intervenção jurisdicional, logo um título distinto da sentença.

2. A norma do art. 814 nº2 CPC (na redacção do DL nº 226/2008), ao restringir os meios de oposição e limitar o direito de defesa, é materialmente inconstitucional, por violação do art. 20 da CRP.

3. À execução baseada em requerimento de injunção a que foi aposta a fórmula executória, pode o executado opor os fundamentos do art.816 do CPC (sistema não restritivo).


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material, da norma do nº2 do art. 814 CPC, na redacção dada pelo DL nº 226/2008, de 8/3, por violação do art.20 da CRP.

2)

            Julgar a apelação procedente e revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro a admitir liminarmente a oposição.

3)

            Custas pela parte vencida a final.

           


Jorge Arcanjo (Relator)

Isaías Pádua

Teles Pereira