Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
449/20.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DE MÉRITO
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Processo no Tribunal Recurso: Juízo Central Cível de Leiria do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 595.º, N.º 1, AL. B), E 596.º, N.º 1, DO CPCIV.
Sumário: I – Existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes quanto à questão a decidir, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e de reunirem provas com vista ao acolhimento de uma dessas soluções plausíveis de direito.
II – Embora o juiz se considere habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão, segundo outras soluções plausíveis de direito, deve aquele abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 449/20.2T8LRA
(Juízo Central Cível de Leiria - Juiz 4)



Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. Relatório

J..., S.A.., com sede na ..., ... ..., intentou a presente ação declarativa que segue termos sob a forma de processo comum contra M..., LDA., com sede na Rua ..., n. º8, ..., ... ....
Formulou os seguintes pedidos:
«a) Declarar a resolução do Contrato de Fornecimento por culpa exclusiva da Ré;
b) Condenar a Ré a indemnizar a Autora, no montante de 250.000,00 € (duzentos e cinquenta mil euros), a título de cláusula penal pelo incumprimento do contrato;
c) Condenar a Ré pagar à Autora juros de mora calculados desde a data da resolução contratual ou, subsidiariamente, caso se entenda de outro modo, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;
d) Condenar a Ré ao pagamento do montante devido a título de honorários suportados pela Autora com a sua Advogada a final, pelos serviços jurídicos prestados no âmbito do presente processo, relegando-se para liquidação em execução de sentença, a concretização da extensão desse prejuízo causado pela Ré à Autora com a sua atuação, nos termos e para os efeitos dos citados artigos 569º do Código Civil e 556º, n.º 1, alínea b) e 609º, n.º 2 do Código de Processo Civil.»
Para alicerçar essas suas pretensões, invocou, em muita apertada síntese, a outorga, entre si e a ré, de um contrato de fornecimento de argilas, que esta não cumpriu, tendo recusado satisfazer uma encomenda de 28.12.2018 e uma outra posterior, pelo que visa a resolução do contrato e o pagamento da indemnização nele prevista.
A ré foi devidamente citada e apresentou contestação, na qual, também aqui muito em síntese, alegou, nomeadamente, que, desde 2012, a autora deixou de lhe fazer quaisquer encomendas, pelo que, em face do desinteresse desta, a informara que considerava o contrato resolvido, o que foi por ela tacitamente aceite. Defendeu inexistir fundamento para a peticionada condenação no pagamento de indemnização, sendo que a pretensão da autora, nessa parte, sempre traduzirá um manifesto abuso de direito.
A autora exerceu o contraditório acerca da defesa apresentada pela ré, designadamente e para o que ora importa, alegando, vagamente, que nunca deixou de encomendar mercadoria.
Em sede de audiência prévia, a autora foi convidada a discriminar as concretas encomendas que endereçou à ré, no decurso do ano de 2012 e nos anos seguintes.
Respondeu a esse convite especificando duas encomendas que fez em 2012 e alegando, genericamente, que, nos anos restantes, manteve o interesse nas argilas contratadas, mas “não lhe foi possível aceitar fornecimentos” face à não conformidade das argilas que a ré detinha com aquelas que foram contratadas.
Julgada a causa pelo Juízo Central Cível ..., foi proferida a seguinte decisão final:
Na decorrência de todo o exposto e ao abrigo dos normativos legais citados, julga-se parcialmente procedente a ação, reconhecendo-se a resolução do contrato que autora e ré denominaram de contrato de fornecimento, acima melhor identificado em sede de factos provados e, no mais, julga-se a ação improcedente, absolvendo-se a ré dos restantes pedidos formulados pela autora.
*
Custas pela autora.
*
Notifique e registe.
***
...
(na data certificada supra)”

A Autora, J..., S.A., não se conformando com tal decisão, interpõe o seu recurso para este Tribunal, alinhavando, assim, as suas conclusões:
(…).
A Ré, M..., Ld.ª, apresenta as suas contra-alegações, assim concluindo:
(…).

2. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções da apelante, cumpre apreciar a seguinte questão:
1.Os autos fornecem, desde já, material suficiente para se decidir em sede de despacho saneador?
O Juízo Central Cível ..., em decisão proferida em sede de despacho saneador, entendeu que sim, louvando-se “os factos acima consignados são bastantes para o conhecimento da mencionada exceção e, consequentemente, para a prolação de decisão de mérito, julga-se inexistirem factos não provados essenciais a consignar (ou seja, entende-se que os factos que remanescem controvertidos são irrelevantes para aquela decisão, atentos os fundamentos que infra melhor se tentarão precisar)”.
Escreve: “No caso dos autos, do contrato outorgado entre autora e ré emergia – aqui em suma e na parte que aqui diretamente importa -, para a primeira, a obrigação de adquirir anualmente determinados produtos à segunda – para o que, obviamente, carecia de os encomendar, no momento e quantidades que tivesse por oportunos – e para esta a obrigação de os fornecer, nos termos contratualizados.
Ora, sabe-se que a autora, entre 2013 – inclusive – e final do ano de 2018, não endereçou à ré qualquer concreta encomenda.
Em finais de 2018, pretendeu que a ré, em início do ano seguinte, lhe efetuasse determinados fornecimentos e, como esta se recusou a fazê-lo, pretende uma indemnização, nomeadamente, nos termos da cláusula contratual mencionada sob o nº11 dos factos provados.
Independentemente de saber os motivos que estiveram na base da omissão de encomendas e fornecimentos, durante mais de cinco anos – em relação ao que são divergentes e, portanto, controvertidas as versões das partes -, a questão que se coloca, na atual fase processual e perante os factos que já aqui são incontrovertidos, é a de saber se, mesmo que o contrato não estivesse, ainda, resolvido tacitamente, perante a recusa da ré em efetuar fornecimentos de produtos em 2019, assiste à autora o direito de ser indemnizada como consequência dessa recusa ou se o exercício desse direito – mesmo que exista - consubstancia abuso de direito por parte da autora”.
Ora, salvo o devido respeito, entendemos que os autos ainda não fornecem todos os elementos necessários, para uma decisão conscienciosa e justa.
Senão vejamos:
A 1.ª instância fixa, assim, a sua matéria de facto:
1. Autora e Ré são sociedades comerciais que se dedicam, entre outras atividades, à extração, seleção e fornecimento de matérias-primas para a indústria de cerâmica, vidro e construção.
2. Em 4 de março de 2008, Autora e Ré celebraram entre si um acordo que denominaram de contrato de fornecimento (conforme documento nº1 junto com a petição inicial).
3. Nos termos do número 1 da cláusula primeira do referido contrato, a Ré obrigou-se a fornecer anualmente à Autora as seguintes quantidades e espécies de argila (barro), com as especificações constantes das amostras-padrão:
a) 12.500 toneladas de M-3;
b) 10.000 toneladas de COP-PI;
c) 10.000 toneladas de COP:
d) 5.000 toneladas de BM-11;
e) 2.500 toneladas de BM-1;
f) 10.000 toneladas de Caulino MEK.
4. Sob a alínea b), do nº1, da cláusula quarta do contrato, de Fornecimento, a Ré obrigou-se a manter em stock as quantidades necessárias a satisfazer as encomendas que lhe fossem solicitadas pela Autora.
5. Em 28 de dezembro de 2018, no âmbito da execução do contrato em causa, a Autora enviou à Ré um email com a encomenda de diversas argilas a fornecer no mês de janeiro de 2019, mais precisamente:
a) 1.000 toneladas de M-3;
b) 1.000 toneladas de COP;
c) 500 toneladas de BM-11;
d) 300 toneladas de BM-1;
e) 800 toneladas de COP-PI.
(conforme documento nº2 junto com a petição inicia).
6. Em resposta, a Ré enviou à Autora uma carta, datada de 28.12.2018, na qual refere que o contrato de fornecimento em causa “há muito mesmo deixou de ser utilizado pois cessaram os fornecimentos.
Assim vimos pela presente confirmar que consideramos o mesmo sem qualquer efeito com todas as consequências”.
(Conforme documento nº3 junto com a petição inicial).
7. A cláusula quinta do mencionado contrato previu a validade do mesmo por um período de 8 anos, renovando-se automaticamente por sucessivos períodos de cinco anos, caso nenhuma das partes o denunciasse, por escrito, com a antecedência mínima de um ano.
8. Através de carta registada datada de 02.09.2019, recebida pela Ré em 10.09.2019, a Autora efetuou encomenda das seguintes argilas:
a) 1.500 toneladas de COP-PI;
b) 1.000 toneladas de Caulino MEK;
c) 2.500 toneladas de M-3;
d) 500 toneladas de BM-11.
9. Por carta datada de 19.09.2019 e recebida pela Autora em 23.09.2019, a Ré reiterou a posição anteriormente assumida, no sentido de considerar existir “situação de rescisão do contrato”, referindo-se ao facto de o último fornecimento solicitado ter ocorrido em 2012 e dizendo que a encomenda em causa não seria por ela considerada.
(Conforme documento nº7 junto com a petição inicial).
10. Após o ano de 2012, a Autora não endereçou à Ré qualquer concreta encomenda, nem esta lhe fez qualquer fornecimento, no âmbito do aludido contrato.
11. Sob o nº2 da cláusula sexta do aludido contrato de fornecimento foi acordado que: “No caso de incumprimento do presente contrato por qualquer uma das partes contraentes, a parte não faltosa, sem prejuízo do recurso à acima mencionada execução específica, terá ainda direito a uma indemnização do valor de 250.000,00€, a qual deverá ser satisfeita pela parte faltosa.”
Como é sabido, o despacho saneador - artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código do Processo Civil - destina-se a (…) b) – Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Como elucida o Professor Anselmo de Castro, verificada a condição expressa na norma, ou seja, “(..) a de não haver necessidade de prova ou de mais provas, e uma vez que a causa possa terminar por decisão de fundo, não poderá o juiz abster-se de conhecer do pedido” - Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, pp. 254.
Enquadram-se na previsão da norma as situações em que toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento; quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos para apreciar a pretensão do autor ou a exceção deduzida pelo réu; quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.
Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos e que, de acordo com as diversas soluções plausíveis, mostram algum relevo para a decisão cumpre atender ao critério do art.º 596º nº 1 CPC, ou seja, deve orientar a decisão segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito – Sobre a questão, ler Abrantes Geraldes/ Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição revista e ampliada, Almedina, 2000, pág. 138 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, - CPC anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração.
Aí se escreve, que “apesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas”.
(…) A antecipação do conhecimento do mérito pressupõe que independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente da mesma favorecer uma ou outra das partes.
Tal acontecerá quando:
a) toda a matéria esteja provada por confissão expressa ou tácita ou por acordo ou por documentos (…)
b) quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com a soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum a as condições de procedência da ação, torna-se inútil a sua prova e por conseguinte inútil o prosseguimento da ação para a audiência final; mutatis mutandi quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão” .
A jurisprudência vem entendendo que será prematuro, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador quando a decisão apenas assenta numa das possíveis soluções da questão de direito. Existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes, no que respeita à questão em apreço, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e bem assim reunir no processo os necessários elementos para que possa ser acolhida uma ou outra das soluções plausíveis de direito - O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito; apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertido com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa.
Como o entendeu, por ex. o Acórdão deste Tribunal de 08.07.2021 - Processo n.º 668/20.1T8GRD.C1/ Relator Fonte Ramos, disponível em www.dgsi.pt - : “O despacho saneador destina-se a: a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (art.º 595º, n.º 1 do CPC). Na hipótese prevista na alínea b), o despacho fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença (n.º 3, 2ª parte).
Contudo, a decisão de mérito, ainda que parcial, só deve ter lugar quando haja uma muito razoável margem de segurança quanto à solução a proferir, pois de outro modo o aparente ganho de economia processual pode resultar, pela via da revogação da decisão em recurso, em perda real na duração do processo”.
Assim sendo, a decisão do processo na fase do saneador-sentença só poderá suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência - veja-se a titulo de exemplo, os acórdãos da Relação ..., de 4.2.2019- “Apesar do juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas, impedindo o conhecimento do mérito em sede de despacho saneador.”
Vejamos então, devassando o articulado pelas partes, se a 1.ª instância poderia, desde já, proferir a sua decisão final.
A Autora intentou contra a Ré a presente acção, alegando em suma, que em 2008 celebrou com a Ré um contrato de fornecimento de argilas, contrato esse que a Ré não cumpriu, uma vez que em Dezembro de 2018, a A. encomendou diversas argilas a fornecer em Janeiro de 2019, mas a Ré ao invés de fornecer as argilas solicitadas, enviou uma carta à A. referindo que o contrato tinha deixado de ser utilizado uma vez que há muito tempo tinham cessado os fornecimentos, pelo que considerava a encomenda sem efeito. Mais alegou que em Setembro de 2019 voltou a fazer nova encomenda e a Ré voltou a responder em moldes semelhantes, pelo que pretende a declaração e resolução do contrato em causa e a condenação da Ré numa indemnização no valor de 250.000€, conforme previsto no contrato de fornecimento.
A Ré por seu turno contestou e alegou, em suma, que desde 2012 que a A. deixou de efetuar qualquer pedido ou encomenda, e que perante o desinteresse desta informou-a que considerava o contrato resolvido, o que foi por ela tacitamente aceite, pelo que não existia fundamento para a condenação da Ré ao pagamento do valor da indemnização que peticiona e que a pretensão da A. nesta parte, se traduzia num manifesto abuso de direito.
A A. respondeu à contestação apresentada pela Ré, resposta essa através da qual respondeu à exceção deduzida, alegando nunca ter deixado de encomendar mercadoria, sem que, no entanto, concretizasse as encomendas.
Formulado convite de aperfeiçoamento, nomeadamente especificando se as concretas encomendas a que se pretendeu referir sob o artigo 13º do seu articulado, ou seja, que efetuou à ré no decurso do ano de 2012 e seguintes, que foram ou não satisfeitas, nos moldes em que estavam contratualmente previstas, veio a Autora, alegar/concretizar:
“Durante o ano de 2012, pese embora a Autora mantivesse interesse no fornecimento das espécies e quantidades anuais acordadas no contrato, tendo-as encomendado, a Ré já não possuía nem COP-PI, nem COP, nem caulino MEK para fornecer; e das restantes foram apenas fornecidos:
- 1544,91 TN, de Argilas BM-1; - 54,18 TN, de Argilas M-3;
Durante o ano de 2013, nenhum material foi fornecido por parte da Ré, pese embora a Autora tenha mantido interesse nas argilas contratualizadas e encomendado o fornecimento de Argila M3, na quantidade 12.500 TN, pois era a única argila da Ré que se podia misturar com outras da Autora, de molde a produzir produto aceitável para venda.
Não foi possível aceitar fornecimentos nos anos seguintes das argilas contratadas, face à não conformidade das argilas em questão e à ausência de exploração de novas argilas da mesma espécie por parte da Ré, ainda que durante anos se tivessem efectuado análises aquelas espécies de argilas que a Ré possuía e se recebessem fornecimentos de outras argilas de género diferente para tentar colmatar a ausência do produto acordado”.
Factos estes, importantes para definir o (in)cumprimento contratual e a utilização (ou não) do instituto do abuso de direito, que a Ré impugna, mantendo todo o alegado em sede de contestação. Até porque, como alega a apelante, “a Autora não estava em condições de dizer concretamente que tipo de encomendas efectuou, até porque estas encomendas eram feitas verbalmente e não tinha a Autora forma de concretizar em termos de datas as encomendas que realizou. O que a Autora podia afirmar e concretizar eram os fornecimentos que haviam sido efectuados pois tinha acesso à facturação (documentação com data). Por esse facto referiu em sede de aperfeiçoamento que sempre manteve interesse nos fornecimentos e que não pôde aceitar os fornecimentos prestados pela Ré, face à desconformidade das argilas. No entanto referiu que as relações comerciais se mantiveram, recebendo da Ré argilas de espécie diferente para tentar colmatar a ausência do produto acordado. Mais referiu a Autora que aguardava que a Ré explorasse dos seus terrenos as argilas da mesma espécie (…) Todos estes factos poderiam facilmente ter sido comprovados em sede de audiência de discussão e julgamento com recurso à prova testemunhal, por confronto com a prova documental já junta aos Autos”.
Mais, “O tribunal não pode pronunciar-se no despacho saneador sobre a excepção antes de se pronunciar sobre a pretensão, ou seja, não pode considerar a acção improcedente com base na excepção peremptória antes de reconhecer a existência do direito alegado pelo autor (…) o tribunal não pode justificar o julgamento de procedência da excepção com o argumento de que não interessa analisar a pretensão do autor, porque, ainda que esta viesse a ser reconhecida, a acção sempre haveria de improceder com fundamento na excepção”.
Por isso, com todo o respeito pela julgadora da 1.ª instância, o Juízo Central Cível ajuizou mal ao enveredar pela decisão da questão de abuso de direito na fase de saneamento, visto resultar do confronto da posição das partes que há factos controvertidos relevantes para essa apreciação de mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
Suscitada tal questão em recurso, tem de revogar-se o saneador-sentença absolutório, por, à luz do disposto no art.º 595.º, n.º 1, al. ª b), não poder conhecer-se imediatamente do mérito da causa – o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total dos pedidos deduzidos.

As conclusões (sumário):
(…).

4.Decisão
Na procedência do recurso, concordando-se com a apelação, revogamos a decisão recorrida e , em consequência, determinamos o prosseguimento dos autos, nos termos da norma do artigo 596.º e sgs. do Código do Processo Civil.

Custas a cargo da apelada,
Coimbra, 5 de Abril de 2022
(José Avelino Gonçalves - Relator)
(Arlindo Oliveira - 1.º adjunto)
(Emídio Francisco Santos – 2.º adjunto)