Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1511/10.5TBTNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
COIMA
REGIME
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 01/25/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 66º E 75º, DO REGIME GERAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES E COIMAS, APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 433/82, DE 27/10
Sumário: As normas dos art.ºs 66º (parte final) e 75º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, não enfermam de inconstitucionalidade material.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. Por decisão da Inspecção – Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território de 18.06.2010, foi a arguida “W..., Lda”, melhor identificada nos autos, condenada pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 20º, nº 1 e 24º, nº 1, alínea d) do D. Lei nº 196/2003, de 23 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo D. Lei nº 64/2008, de 8 de Abril, conjugado com a alínea b) do nº 4 do artigo 22º da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 89/2009, de 31 de Agosto, na coima de € 38.500,00 [trinta e oito mil e quinhentos euros] e na sanção acessória de interdição do exercício de actividades de operação de tratamento de VFV que dependam de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública, pelo período máximo de dois anos, conforme disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 30º da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 89/2009, de 31 de Agosto e, ainda, “a remover … as causas da infracção, ou seja a remoção de todos os VFV existentes e armazenados no local sito na Rua … … e reconstituir a situação anterior à mesma …”[cf. fls. 116 a 153].

2. Inconformada, a arguida impugnou judicialmente a decisão.

3. Recebido o recurso – que correu termos, sob o n.º 1511/10.5TBTNV, no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas -, realizado o julgamento, por sentença de 08.06.2011, foi proferida a seguinte decisão:
“Nestes termos e pelo exposto decide-se:
A. Condenar a RECORRENTE pela prática da contra ordenação muito grave prevista e punida pelos artigos 20º, nº 1 e 24º, nº 1, alínea d) do DL 196/2003, de 23.08, na redacção do DL 64/2008, de 08.04 e pelos artigos 22º, nº 4, alínea b) da Lei 50/2006, de 29.08, na redacção da Lei 89/2009, de 31.08, na coima de € 38,500 (trinta e oito mil e quinhentos euros).
B. Absolver a RECORRENTE da sanção acessória de interdição do exercício de actividades de operação de tratamento de VFV que dependam de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública, pelo período máximo de dois anos, prevista pelos artigos 30º, nº 1, alínea b), 31º, nº 2 e 32º da Lei 50/2006, de 29.08, na redacção da Lei nº 89/2009, de 31.08.
C. Condenar a RECORRENTE na sanção acessória de remoção de todos os VFV existentes e armazenados nas suas instalações sitas na Rua … Torres Novas, no prazo máximo de 30 dias, devendo, após decurso do referido prazo, e em 15 dias úteis, comprovar nos autos a reposição da situação anterior à prática da infracção e a entrega dos resíduos em gestor devidamente autorizado para respectiva valorização ou eliminação (artigo 30º, nº 1, alínea j) Lei 50/2006, na redacção da Lei 89/2009, de 31 de Agosto).
…”

4. Uma vez mais inconformada recorre a arguida, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. A falta de documentação dos actos da audiência leva a que estejamos perante uma nulidade insanável do processo, devendo o julgamento ser repetido.
2. A não se considerar assim, a falta de documentação dos actos da audiência supostamente autorizada pela lei (art. 66.º, DL 433/82), assim como a proibição de recurso da matéria de facto (art. 75º), afrontam os princípios constitucionais do processo equitativo e do direito de defesa do arguido (arts. 20º - 4, 32º - 10, Const.), padecendo aquelas normas de inconstitucionalidade material.
3. A decisão judicial sofre de contradição insanável da fundamentação, como se diz na alegação, além de ser insuficiente para a decisão a matéria de facto apurada e dada como provada já que se ignora quem retirou peças de veículos, que peças, e quando, sendo que também a fundamentação de direito da decisão é insuficiente, (art. 410º - 2, C.P. Penal, ex vi art. 41º, DL 433/82).
4. Do nº 2 dos factos dados como provados consta que se verificou que a recorrente procedia à venda de peças usadas de veículos automóveis a clientes e, bem assim, à remoção e reutilização de peças de veículos que tinha e teve parqueados nas suas instalações, deve salientar-se desde logo que a M.ma Juiz, por certo, interpretou mal as pretensas declarações de algumas testemunhas da arguida, nomeadamente de B... de quem diz que admitiu que se um cliente quisesse uma peça pequena que não tivesse disponível, e tal peça estivesse num dos veículos que estavam a aguardar o abate a retiraria.
5. Contudo tal resposta tem uma condicionante “Se”, e a questão foi colocada no plano de hipótese académica, pelo que não quer dizer que tal tenha sucedido. Acresce que o processo Penal não se coaduna com “ses”, com hipóteses, mas sim com factos concretos, assim jamais poderia ter sido utilizada tal motivação para fundamentar o facto nº 2 dos factos dados como provados.
6. Acresce que A... negou que se fizessem operações de desmantelamento nas instalações da arguida, uma vez que o seu empregado (B...) não tem ordens para tal, já se fizeram sim mas antes desta legislação que regula agora a matéria (portanto 2002).
7. Mais de se dirá que o tribunal utilizou ainda como fundamentação o depoimento de duas testemunhas (C... e D... – guardas da GNR), que realizaram conjuntamente a operação de fiscalização às instalações da arguida, depoimentos em tudo contraditórios como aliás se vê na Motivação da decisão.
8. Ora diz a motivação da sentença de que ora se recorre que o primeiro (C...) “declarou que apesar de nas instalações da recorrente não existir maquinaria própria para o desmantelamento de veículos a recorrente dedica-se à retirada de peças de veículos usados, em fim de vida, que se destinariam ao abate. No local estavam parqueados diversos veículos, mais de 20, aos quais faltavam peças e que se encontravam impossibilitados de circular. Questionado sobre se as peças que faltavam poderiam ser de veículos acidentados refere que uns sim outros não e que pelo aspecto alguns já se encontravam ali há bastante tempo. Declarou o também que viu serem retiradas peças do motor de uma viatura, parte do depoimento que não foi corroborada pelo militar D... que acompanhou igualmente a fiscalização, e que o responsável confirmou que as peças que se encontravam nas instalações da recorrente eram retiradas daqueles veículos (o que igualmente não foi corroborado pela testemunha D...).
9. Pelo que jamais com base nesta motivação poderia o tribunal a quo dar como provado que “No dia 26 de Agosto de 2008, pelas 16.00h, nas instalações da recorrente W… Lda, sitas na Rua … , Torres Novas, área desta comarca a equipa de protecção da Natureza do Destacamento Territorial de Torres Novas da Guarda Nacional Republicana, realizou uma operação de fiscalização e que Verificou-se que a recorrente procedia à venda de peças usadas de veículos automóveis a clientes e bem assim à remoção e reutilização de peças de veículos que tinha e teve parqueados nas suas instalações”.
10. Mais à frente a fls. 4 da sentença e no capítulo da Motivação refere o Tribunal a quo que “considerando igualmente as fotografias juntas aos autos das quais resulta a existência de diversos veículos parqueados nas instalações da recorrente, aos quais faltam manifestamente peças e que contrariamente ao afirmado por B..., alguns daqueles veículos não estão ali parqueados desde os tempos em que faziam desmantelamento, ou seja considerando que a legislação sobre a matéria entrou em vigor em Agosto de 2003, por regras de experiência comum e normalidade, deu o tribunal como provado que a recorrente se dedica efectivamente ao desmantelamento de VFV” A que regras de experiência comum e normalidade se refere o tribunal a quo? Às de um Concelho (Torres Novas) onde as Sucatas ou Sucateiros à beira da Estrada são e sempre foram às dezenas?
11. Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para a decisão proferida pelo tribunal a quo. Senão vejamos: O ponto 2 daquela matéria refere que “a recorrente procedia à venda de peças usadas de veículos automóveis a clientes e bem assim à remoção e reutilização de peças de veículos que tinha e teve parqueados nas suas instalações”
12. Quanto à remoção e reutilização de peças de veículos que tinha e teve parqueados nas suas instalações, como se pode utilizar tal facto por si só para concluir pela prática da contra – ordenação pela arguida se os factos dados como provados não identificam sequer quais as supostas peças que foram retiradas dos veículos, ou quando é que tais peças supostamente foram retiradas, de que veículos é que tais peças forma retiradas, quem é que as estava a retirar? Estes factos são essenciais para que se possa concluir pela prática da contra – ordenação.
13. Mais numa contra-ordenação praticada por pessoa colectiva importa aferir quem de facto praticou os actos, uma vez que a pessoa colectiva é apenas uma representação jurídica. Será que uma pessoa colectiva pode ser condenada por factos praticados pelo seu funcionário com o seu desconhecimento?
14. Tanto o acima exposto é importante que na motivação da decisão se tentam refutar factos alegados pela arguida, tais como o facto de os veículos aos quais faltam algumas peças já ali se encontrarem há muitos anos, desde a data em que não existia legislação que proibisse desmantelamento, 2002.
15. Mais se no dia em que foi feita a inspecção um dos guardas da GNR diz que viu serem retiradas peças de veículos ou outro nega que assim fosse, parece que está instalada a dúvida. A não se saber ao certo em que data supostamente ocorreram os factos como se pode concluir pela prática da contra-ordenação. Apurar data dos factos é essencial em processo penal e contra-ordenacional, quanto mais não seja para apurar prazos de precrição.
16. Refere ainda o ponto 5 dos factos dados como provados que “que ao efectuar operações de desmantelamento de veículo sem fim de vida sem assegurar a previa obtenção de licenciamento necessário a recorrente podia e devia ter previsto que incorreria em responsabilidade contra-ordenacional, não tendo agido com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz”. Como é que é possível assim concluir se nos factos dados como provados não consta quem é que eventualmente, o que não se admite, retirava as peças dos veículos?
17. Aliás o representante legal da arguida A... disse como consta da motivação da decisão que “que nas suas instalações não se realizam operações de desmantelamento uma vez que o seu empregado não tem ordens para tal” E se o funcionário retirasse uma peça de um veículo (hipótese académica) sem o conhecimento do legal representante da pessoa colectiva, poderia esta ser condenada pela pratica da contra – ordenação? Como se pode assim concluir por negligência se nem se sabe, porque não foi dado como provado, quem foi de facto o agente?
18. Com efeito, têm-se entendido que a responsabilidade das pessoas colectivas fica excluída se se demonstrar que o agente actuou contra ordens ou instruções expressas.
19. Também a fundamentação de direito se revela insuficiente para a decisão.
20. Ora, se o tribunal deu como provado o desmantelamento, sendo este operação de remoção e separação dos componentes VFV, não invocou como chegou a tal conclusão, não referiu no entanto em sede de sentença/fundamentação que tais operações tivessem em vista, como fim a despoluição, a reutilização, valorização ou eliminação dos materiais que constituem o VFV. Ou seja, do texto da decisão recorrida não resulta qualquer referência ao desmantelamento de veículo em fim de vida, com vista a qualquer das operações previstas em tal conceito, tal como estatui o art. 2 do decreto-lei 64/2008 de 8 de Abril. Ora, não resultando do texto da decisão tal referência imposta pelo dispositivo legal em cima referido, não poderia o Tribunal a quo dar como provado que o arguido procedia ao desmantelamento de veículos em fim de vida.

Nestes termos e nos melhores de direito, devem as presentes conclusões proceder e por via disso deve o recurso obter provimento, revogando-se a sentença recorrida, tudo com as legais consequências.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

1.ª A sociedade arguida “W..., Lda.” vem recorrer, apenas da matéria de direito, da sentença proferida nos autos a 08/06/2011, que a condenou na coima de €38.500,00 e ainda na sanção acessória de remoção de todos os VFV (veículos em fim de vida) existentes e armazenados nas suas instalações, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, elencada e melhor descrita na douta sentença ora recorrida, a fls. 308 – 316.
2.ª O Tribunal a quo não reduziu a escrito a prova produzida em sede de audiência de julgamento, nem procedeu à sua gravação, em obediência ao estatuído no art. 66º do RGCOC, o qual remete para o art. 13º do DL nº 17/91 de 10.01, onde é regulada a audiência de julgamento das transgressões e contravenções.
3.ª Todavia e sufragando-se o entendimento perfilhado por António de Oliveira Mendes, José dos Santos Cabral e António Beça Pereira, deverá excluir-se a aplicabilidade dos nºs 1 a 4 deste preceito legal, na medida em que a mesma é colocada em causa pelo disposto nos arts. 62º - 1, 66º, in fine, e 69º, do RGCO.
4.ª Quanto à aplicação dos nºs 3 e 4 daquele art. 13º, assim como do art. 363º do CPP, a mesma é afastada pela expressão do art. 66º - “não havendo lugar a redução da prova a escrito”, bem como ao que dispõe o art. 75º do RGCOC, que limita o âmbito do recurso a matéria de direito.
5.ª Não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade das normas dos arts. 66º e 75º do RGCOC, designadamente por as garantias de defesa do arguido se encontrarem acauteladas, em primeira linha, nas garantias oferecidas pela lei no processo perante a autoridade administrativa e, depois, na possibilidade da 2ª instância poder anular a decisão recorrida, quando se verifique algum dos vícios do art. 410º - 2 – 3 do CPP.
6.ª O M. Juiz a quo procedeu a uma criteriosa, minuciosa e, a nosso ver, correcta análise da prova produzida em audiência, destacando os elementos que fundaram a sua convicção.
7.ª Também a fundamentação de direito se mostra equilibrada e acertada, tendo-se analisado o conceito de veículo em fim de vida, bem como o que significa a sua operação de desmantelamento.
8.ª A sentença recorrida encontra-se exaustivamente fundamentada, não se encontra ferida de qualquer nulidade processual e não merece qualquer censura, pelo que deve ser integralmente mantida.

Termos em que, se V. Ex.ªs julgarem improcedente o recurso, com as legais consequências e adequada tributação, farão a habitual justiça.

6. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal – [cf. fls. 377].

7. Na Relação, o Ilustre Procurador – Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 385/386, no qual, aderindo à posição sustentada pelo Ministério Público em 1.ª instância, se pronuncia no sentido da improcedência do recurso.

8. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP não foi apresentada resposta.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em análise, suscita a recorrente:

- A nulidade resultante da não documentação da prova produzida em audiência de julgamento;
- A inconstitucionalidade material das normas contidas nos artigos 66º e 75º, nº 1 do RGCOC;
- Os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, bem assim, da contradição insanável da fundamentação e, ainda, o que denomina pela “insuficiência da fundamentação de direito”.

2. A decisão recorrida

Em sede de factos provados ficou a constar da sentença recorrida:

Com relevância para a decisão a proferir resultou demonstrada a seguinte factualidade:

1. No dia 26 de Agosto de 2008, pelas 16.00 horas, nas instalações da recorrente W…, Lda, sitas na Rua … , Torres Novas, área desta comarca a Equipa de Protecção da Natureza do Destacamento Territorial de Torres Novas da Guarda Nacional Republicana, realizou uma operação de fiscalização.
2. Verificou-se que a recorrente procedia à venda de peças usadas de veículos automóveis a clientes e, bem assim, à remoção e reutilização de peças de veículos que tinha e teve parqueados nas suas instalações.
3. Os veículos parqueados nas instalações da recorrente são veículos destinados ao abate.
4. A recorrente não tem licença para realizar operações de desmantelamento de veículos em fim de vida.
5. Ao efectuar operações de desmantelamento de veículos em fim de vida sem assegurar a prévia obtenção do licenciamento necessário a recorrente podia e devia ter previsto que incorreria em responsabilidade contra – ordenacional, não tendo agido com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
6. Em 2007 a recorrente obteve um lucro tributável de € 2.363,48, e um volume de negócios de € 29.253,38.
7. Em 2010 a recorrente obteve um lucro tributável de € 1.235,73, e um volume de negócios de € 48.209,87.

No que concerne aos factos não provados ficou consignado:

Não resultou demonstrado que:

1. Os veículos parqueados nas instalações da recorrente não sejam veículos em fim de vida.

Quanto à fundamentação da matéria de facto, mostra-se exarado:

Para formação da sua convicção ponderou o Tribunal a documentação junta aos autos a saber o auto de fls. 5 e fotografias anexas, documentos de fls. 44 e ss. e 296 e ss e bem assim o depoimento prestado em audiência pelas testemunhas inquiridas nos moldes que a seguir se descreve.
C..., militar que procedeu à fiscalização declarou que apesar de nas instalações da recorrente não existir qualquer maquinaria própria para o desmantelamento de veículos, a recorrente dedica-se à retirada de peças de veículos usados, em fim de vida, que se destinariam ao abate. No local estavam parqueados diversos veículos, mais de 20, aos quais faltavam peças e que se encontravam impossibilitados de circular. Questionado sobre se as peças que faltavam poderiam ser de os veículos terem sido acidentados refere que uns sim outros não e que pelo aspecto, alguns veículos já se encontravam nas instalações na recorrente há bastante tempo.
Declarou também que viu serem retiradas peças do motor de uma viatura, parte do depoimento que não foi corroborada pelo militar D... que acompanhou igualmente a fiscalização, e que o responsável confirmou que as peças que se encontravam nas instalações da recorrente eram retiradas daqueles veículos 8º que igualmente não foi corroborado pela testemunha D...).
B..., empregado da recorrente, refere que a mesma se dedica apenas à venda de peças usadas que são adquiridas no estrangeiro outras de carros que vêm para abate, os quais vão para os respectivos centros, em especial para o … , e que depois de desmantelados ficam em peças que são adquiridas pela recorrente. Admitiu que se um cliente quisesse uma peça pequena que não tivesse disponível, e tal peça estivesse num dos veículos que estavam a aguardar o abate a retiraria.
Mais referiu que o transporte dos veículos para o centro de abate é feito por estas entidades.
Que a recorrente já efectuou operações de desmantelamento mas antes da legislação sobre tal matéria ter entrado em vigor.
A..., legal representante da recorrente declarou igualmente que nas suas instalações não se realizam operações de desmantelamento, uma vez que o empregado não tem ordens para tal, e que tais operações já se efectuaram, mas antes da legislação que regula tal matéria. Que os veículos em fim de vida que estão nas instalações são encaminhados para centros de abate, em espacial o … .
F..., legal representante da sociedade … SA, declarou que apenas recebeu um carregamento de sucata em nome da recorrente, em 2010, e que como cliente de peças resultantes do desmantelamento não possui qualquer registo em nome da recorrente.
Explicou que muitas vezes os fornecedores de veículos em fim de vida (adiante VFV), podem não ficar registados por o veículo ser apresentado em nome do proprietário do carro em nome de quem é emitido o certificado de destruição.
Ora, em face do depoimento isento, sereno e credível de F..., resulta descredibilizado o depoimento de B... e de A... na parte em que declararam que as peças são adquiridas aos centros de abate, em especial aos … . Na verdade, embora se possa admitir que o centro de abate não tem registos de entrega de VFV em nome da recorrente por tais entradas ficarem registadas em nome dos proprietários, a verdade é que B... disse que o transporte dos veículos é feito pelos centros de abate, e F... foi peremptória ao afirmar que não tem qualquer registo de transporte em nome da recorrente, apenas uma entrada, em 2010, e que a recorrente não é cliente de peças. Não é pois credível que uma sociedade comercial, que se orienta para o lucro adquira peças ao centro de abate em nome de outras pessoas inviabilizando assim a possibilidade na competente declaração de IVA deduzir o IVA pago.
É certo que foi dito que algumas peças são adquiridas no estrangeiro, mas a verdade é que também foi dito que muitas das peças são precisamente resultado de compra aos centros de abate, que o centro mais usado é o … , mas já não resultou comprovado que alguma vez a recorrente tenha adquirido qualquer peça àquele centro.
Assim, e considerando igualmente as fotografias juntas aos autos, das quais resulta a existência de diversos veículos parqueados nas instalações da recorrente, aos quais faltam manifestamente peças e que contrariamente ao afirmado por B..., alguns daqueles veículos não estão ali parqueados desde os tempos em que faziam desmantelamento, ou seja, considerando que a legislação sobre a matéria entrou em vigor em Agosto de 2003, há 5 anos (data da realização da fiscalização), por regras de experiência comum e normalidade, deu o Tribunal como provado que a recorrente se dedica, efectivamente, ao desmantelamento de VFV.
Para tal conclusão é irrelevante se a recorrente tem ou não a maquinaria adequada a tal, nomeadamente à descontaminação dos líquidos, por exemplo, posto que para a retirada de peças avulsas de VFV não é necessária qualquer maquinaria e ainda assim tal actividade é considerada desmantelamento.
Resultou igualmente demonstrado que, contrariamente ao alegado pela recorrente, os veículos parqueados nas suas instalações são VFV posto que quer pelos militares autuantes quer pela testemunha B... e pelo legal representante da recorrente foi afirmado que tais veículos não estavam em condições de circular destinando-se ao abate, sendo irrelevante que tenham ou não documentos. Aliás, B..., F... firmaram que um VFV só pode ser dado para abate, nos competentes centros, com toda a documentação do veículo e respectivo proprietário para que, em face da mesma, se proceda ao desmantelamento e à emissão do certificado de destruição com o qual o proprietário junto das finanças se desonera da obrigação de liquidação do competente imposto de circulação, pelo que o facto de terem documentos e estarem sujeitos a imposto de circulação não impede que sejam considerados VFV.

3. Apreciando

a.

Insurge-se a recorrente contra a não documentação da prova produzida em audiência de julgamento, arguindo, em consequência, a nulidade prevista no artigo 363º do CPP, que diz, subsidiariamente aplicável.

Importa, pois, chamar à colação os artigos 66º e 75º, nº 1 do RGCO, que dispõem, respectivamente, Salvo disposição em contrário, a audiência em 1.ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito e Se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
A propósito do dito artigo 66º escrevem António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral O presente normativo remete para o artigo 13.º do Decreto-Lei 17/91 de 10 de Janeiro, que regula a audiência de julgamento das transgressões e contravenções.
Perfilhamos o entendimento de que a aplicabilidade dos n.º 1, 2, 3 e 4 daquele artigo 13 é colocada em causa pelo disposto nos artigos 62.º, n.º 1, 69.º e parte final do presente artigo 66.º.

Da expressão “não havendo lugar à redução da prova a escrito” utilizada na norma anotada resulta que não se aplicam os n.º 3 e n.º 4 do citado artigo 13.º, nem o artigo 363.º do Código de Processo Penal, o que, aliás, está de acordo com o disposto no artigo 75.º.
Conclui-se por esta forma que, do artigo 13.º do Decreto – Lei 17/91, aplicam-se, apenas, os n.ºs 5 a 7 …[cf. “Notas ao Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, 3.ª Edição, Almedina, pág. 241].
No mesmo sentido pronuncia-se António Beça Pereira, acrescentando que A expressão não havendo lugar à redução da prova a escrito deve ser (actualmente) entendida como também não permitindo a gravação da audiência. A proibição de gravar a audiência ou de reduzir a escrito a prova está conforme o disposto no artigo 75.º, que estabelece que, em sede de recurso, a 2.ª instância apenas conhece da matéria de direito. – [cf. “Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, 7.ª Edição, Almedina, pág. 142/143].

Face às disposições normativas supra enunciadas, das quais resulta, sem margem para dúvida, não haver lugar à redução a escrito da prova e, logo, à gravação dos actos da audiência, impõe-se concluir no sentido de não se verificar a arguida nulidade.

b.

Invoca, ainda, a recorrente enfermarem de inconstitucionalidade material as normas dos artigos 66º e 75º, nº 1 do RGCOC, na medida em que constituiriam afronta aos direitos de defesa e a um processo equitativo (due processo of law) contrariando, como tal, os artigos 20º, nº 4 e 30º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa.

A propósito do n.º 10 do citado artigo 30º da CRP escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros O nº 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas[cf. “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 363].
É claro que a recorrente não põe em causa que tenha sido ouvida no decurso do processo, fazendo, antes, entroncar as ditas inconstitucionalidades na circunstância de, em processo de natureza contra - ordenacional, o legislador vedar, em princípio – e na vertente da impugnação “alargada” - o recurso da matéria de facto.
Nisto residiria, pois, o assinalado vício.
Ora, sobre a inconstitucionalidade, agora, suscitada já por diversas vezes se pronunciou o Tribunal Constitucional.
Assim, no acórdão do TC n.º 50/99, a propósito, ficou consignado: … o registo da prova produzida em audiência, vedado pelo artigo 66º do DL 433/82, não releva em si, mas enquanto meio que permite ou facilita o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso; mas, não impugnada a constitucionalidade da norma que apenas confere ao tribunal da 2ª instância poderes de revista, o juízo de constitucionalidade relativo ao artigo 66º do DL nº 433/82 terá de cingir-se à norma em causa em confronto com as regras constitucionais apontadas pelo recorrente, sem qualquer relacionamento valorativo com a inerente limitação que o seu conteúdo perceptivo implica em matéria de reapreciação da matéria de facto.
É que se eventualmente o tribunal entendesse que a proibição de registo da prova infringia as garantias de defesa do arguido isso só teria utilidade se viesse a declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 75º nº 1 do DL nº 433/82, o que lhe é vedado pelo princípio do pedido.
Admite-se que o recorrente pretendesse impugnar a constitucionalidade da norma em tal perspectiva; simplesmente teria que integrar essa norma num complexo que abrangesse, expressamente, o artigo 75º n.º 1 do DL nº 433/82, o que não fez.
Na dimensão que, por força da limitação do pedido, o tribunal terá de considerar, a norma ínsita no artigo 66º (parte final) do DL nº 433/82 não viola o artigo 32º nºs 1 e 8 da CRP, na versão de 89, ou do mesmo artigo nºs. 1 a 10, na redacção de 97.
Reduzida ao seu valor em si, não se vê como o não registo da prova produzida em audiência, no processo de contra – ordenação, viole qualquer garantia de defesa do arguido constitucionalmente tutelada….
Trata-se, na verdade, de uma opção legítima do legislador ordinário ajustada
ao princípio da celeridade e à natureza do ilícito em causa, sem quebra dos direitos de defesa do arguido.
Registar ou não a prova produzida é, em si mesmo e no confronto com os direitos de defesa do arguido em audiência, irrelevante; o juízo que o julgador de 1.ª instância faça, em matéria de facto, sobre essa prova não se determina por princípios diversos consoante a prova é ou não registada.
Daí que o próprio recorrente só aponte para uma suposta inconstitucionalidade da norma enquanto esta impede o controle da prova por outro grau de jurisdição, o que – vimos já – é vedado por outra norma (a do artigo 75º nº 1 do DL nº 433/82) cuja (des)conformidade constitucional não poderá ser apreciada por este Tribunal.
Em suma, pois, a norma ínsita na parte final do artigo 66º do DL n.º 433/82 não viola o artigo 32º nºs 1 e 8 da CRP, na versão de 89, ou do mesmo artigo nºs. 1 e 10, na redacção de 97.”

Isto dito, não se vendo no artigo 66º do RGCOC, de per si, qualquer afronta quer ao direito de defesa quer ao direito a um processo equitativo, vejamos, então, a problemática no confronto com o nº 1 do artigo 75º,
Também a tal respeito o acórdão do Tribunal Constitucional nº 73/2007 não deixa margem para dúvida enquanto refere: Pelo que tange à norma que se extrairá dos artigos 66º e 75º (recte, do nº 1 do artº 75º) do aludido Regime Geral (que prescrevem, respectivamente, que salvo disposição em contrário, a audiência em 1.ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito e que se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões), …., a acoimada intentou suscitar uma questão de enfermidade constitucional da norma que se retira da conjugação daqueles preceitos, norma essa segundo a qual a prova produzida em audiência no recurso de impugnação da decisão administrativa impositora de coima não é reduzida a escrito e que, salvas as excepções previstas naquele Regime Geral, os tribunais das relações, nos recursos interpostos das sentenças exaradas no recurso das citadas decisões administrativas, só conhece da matéria de direito.
Sendo este o problema que é colocado ao Tribunal no recurso em presença, apresenta-se o mesmo como manifestamente infundado.
Na realidade, não esquecendo a jurisprudência deste Tribunal que, a respeito da garantia do asseguramento de um segundo grau de jurisdição em matéria criminal, tem sido seguida, e que é espelhada exemplificativamente no aresto ora recorrido …, o que se não pode escamotear é que a sentença a proferir pelo tribunal de 1ª instância em processos do jaez do presente é de considerar como uma decisão a proferir já em grau de reapreciação – justamente porque se trata de um recurso que incidiu sobre a decisão que aplicou a coima -, representando, assim, o recurso dessa sentença para o tribunal da relação uma segunda reapreciação da matéria.
Ora, é destituída de razão a argumentação de que, em casos como o presente – em que já houve recurso para o tribunal comum da decisão administrativa impositora de coima -, a Constituição impõe que a prova a produzir em audiência perante esse tribunal tenha de ser reduzida a escrito, com vista a que a matéria de facto seja, uma vez mais, reapreciada, desta feita pelo tribunal da relação.
Um tal entendimento conduziria a que se considerasse que o Diploma Básico exige um segundo grau de apreciação, por via recursiva, da matéria de facto o que, como se disse, nunca foi – antes pelo contrário – sustentado por este Tribunal.
Em idêntico sentido pronunciam-se Jorge Miranda e Rui de Medeiros ao deixar consignado: É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria das acções) aos diversos “patamares” de recurso (Acórdãos n.ºs 72/99 e 431/02). Por maioria de razão, a Constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites ou ad infinitum (Acórdão nº 125/98) [cf. ob. cit., pág. 200].
Resulta, assim, do que se deixou consignado, assegurado que se mostra em processo contra-ordenacional um duplo grau de jurisdição, com o tribunal da 1.ª instância a funcionar como instância recursiva, que a intervenção, em princípio, da 2.ª instância como tribunal de revista, não colide quer com o direito de defesa quer com o direito a um processo equitativo, ambos com assento constitucional.

Conclui-se, pois, por não se verificarem as invocadas inconstitucionalidades.

c.

Pese embora a limitação no conhecimento do recurso, decorrente do n.º 1 do artigo 75º do RGCOC, o certo é que, para nós, não merece contestação, mesmo nesta sede, a possibilidade de sindicar a matéria de facto à luz dos vícios contemplados no nº 2 do artigo 410º do CPP, subsidiariamente aplicável – [cf. v.g. os acórdãos do TRC de 18.02.2004 [CJ, Ano XXIX, T. I, pág. 51], TRE de 13.06.2006 [proc. nº 242/06, ITIJ, Base Documental], TRP de 18.05.2005, à data disponível em www.trp.pt].

Naturalmente, ciente de que assim é, vem a recorrente expressamente invocar os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e da contradição insanável da fundamentação – cf. artigo 410º, nº 2, alíneas a) e b) do CPP.
Não ignorará, por certo, tratarem-se de vícios, aliás de conhecimento oficioso, os quais, nos termos da própria lei, tem de dimanar da complexidade global da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à mesma sejam externos – [cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal, III, 2009, pág. 334], constituindo, pois, “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – [cf. acórdão do STJ de 07.12.2005, CJ, ASTJ, T. III, pág. 224].
Ocorre o vício da alínea a) do nº 2 do sobredito preceito legal quando se detecta uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou …” – [cf. Simas Santos e Leal – Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 6.ª edição, 2007, Editora Rei dos Livros, pág. 69].
Por outro lado, nas palavras dos mesmos autores, há contradição insanável da fundamentação “quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada …” – [cf. ob. cit., pág. 71].
Não obstante a configuração reservada aos ditos vícios, a recorrente “envereda por um caminho” que mais não sugere do que a tentativa de contornar a impossibilidade legal de proceder à impugnação “ampla” da matéria de facto.
Assim é quando faz apelo ao que foram as declarações de A..., enquanto negou os factos – a realização de operações de desmantelamento -, aduzindo não ter o seu empregado ordens para tal; à interpretação errada por parte do julgador do depoimento de Rui de Freitas, ao ter admitido que se um cliente quisesse uma peça pequena que não tivesse disponível e a mesma estivesse num dos veículos que estavam a aguardar o abate a retiraria; ao que teriam sido os depoimentos, “apelidados” de “contraditórios” das testemunhas C... e D..., da GNR; à circunstância de o tribunal a quo se ter socorrido das regras da experiência comum para concluir no sentido de que se dedicava efectivamente ao desmantelamento de VFV.
Em suma, no mínimo, assiste-se a um desígnio que se traduz na sobreposição da sua convicção àquela que resulta ter sido a do julgador, perante a prova produzida.
Mas, não resultando da fundamentação haver ocorrido uma apreciação ilógica, incoerente, destituída de razoabilidade, pelo contrário, sendo suficientemente apreensível o percurso, que se afigura lógico, presente na apreciação da prova, não decorrendo do mesmo que hajam sido retiradas conclusões ilógicas, é bom de ver que não ocorre o vício da contradição da fundamentação e muito menos insanável.
Não pode, pois, a recorrente retirar, descontextualizando, segmentos da fundamentação – que, naturalmente, traduz, apenas, uma súmula sintética com vista a dar a conhecer o processo de convicção do tribunal –, a qual tem de ser vista no seu todo, para concluir pelo aludido vício.
Concretizando: O que é que tem de contraditório o julgador se ter socorrido, fazendo fé, do depoimento da testemunha C..., aliás o agente autuante - conforme o auto de noticia de fls. 5, o qual juntamente com as fotografias anexas foi considerado na fundamentação –, também na parte em que não foi corroborado pelo agente D... para formar a sua convicção?
Para além de nada de contraditório se detectar entre tal circunstância, sempre se dirá que “não corroborar”não significa “contrariar”.
Por outro lado, resulta evidente da fundamentação, apreciada no seu conjunto, que não subsistiu qualquer dúvida, razoável, no espírito do julgador, no sentido de dar como provados os factos, que a recorrente visa questionar, sendo certo que, também, a este tribunal não se afigura que, responsavelmente, devesse, a mesma, ter-se instalado.
Donde, ao invés do que pretende fazer crer, nenhum espaço se vislumbra para a aplicação do princípio in dubio pro reo, cuja violação, apenas, ocorreria se perante a fundamentação resultasse, por forma mais do que evidente, que o tribunal perante uma dúvida, patentemente insuperável, havia decidido contra a arguida, o que manifestamente não ocorre, nem, no contexto da decisão, o facto de as identificadas partes do depoimento do agente autuante não terem sido corroboradas pela testemunha D... é idóneo a produzir o preconizado efeito.
Prosseguindo: Onde é que reside a contradição insanável na reprodução da passagem do depoimento da testemunha B..., enquanto admitiu que se um cliente quisesse uma peça que não estivesse disponível a retiraria?
Não tem a prova de ser apreciada/ponderada na sua globalidade?
Ainda que a dita passagem do testemunho tivesse surgido, como refere a recorrente – o que não podemos ter por certo –, na sequência de uma “hipótese académica” no conjunto com os demais meios de prova não podia ser valorada? Não constituiria a mesma sintoma de que, afinal, não estava ausente do universo da recorrida, condutas como aquelas por que veio a ser punida?
Fazemos a justiça de não duvidar estar a recorrente ciente de que, com relativa frequência, é através de meios indirectos que se impõe a prova, como decorrência lógica, de determinados factos!
O que é que tem de contraditório o julgador, socorrendo-se, além do mais, das fotografias – bem elucidativas, aliás – e das regras da experiência comum, ter concluído no sentido de que, atento o lapso de tempo já decorrido sobre a data da entrada em vigor da “nova” legislação concernente ao desmantelamento de VFV – 5 anos à data da realização da fiscalização a que se reporta o auto de fls. 5 dos autos -, não ser credível o depoimento da testemunha B... enquanto referiu que os ditos veículos se encontravam parqueados no local desde o tempo em que faziam [legalmente] desmantelamentos?
Com o devido respeito, nada! O contrário é que se revelaria destituído de razoabilidade.

Numa outra frente, surge a alegação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, sobre cujo recorte processual já tivemos oportunidade de nos pronunciar.
É, assim, nesta sede que a recorrente questiona: Quando é que tais peças foram retiradas dos veículos? De que veículos? Que peças? Por quem? – para, de seguida, rematar no sentido de não conter a sentença, a necessária, resposta.
Curiosamente, ou talvez não – dada a, compreensível, alteração da estratégia de defesa, por parte da recorrente, bastando, para, assim, concluir comparar o teor das conclusões de recurso apresentadas aquando da impugnação judicial [cf. fls. 187/197] com as, ora, em apreciação – constituem, em parte substancial, questões nunca antes, por si, colocadas.
Iniciando pelo fim, posto que revela a recorrente não desconhecer o regime da responsabilidade das pessoas colectivas ou equiparadas, sobre que versa o artigo 7º do RGCOC e, bem assim o artigo 8º da Lei n.º 50/2006, de 29.08 - quer na redacção inicial quer na redacção introduzida pela Lei nº 89/2009, de 31.08 - dir-se-á que para a exclusão da responsabilidade contra-ordenacional da pessoa colectiva não basta que os seus trabalhadores não tenham ordem para proceder de determinada maneira, impondo-se, antes, demonstrar que os mesmos actuaram contra ordens ou instruções expressas por si determinadas.
A propósito, recorda-se o Parecer do Conselho Consultivo da PGR nº 10/94, de 07.07.1994, enquanto conclui: 2.ª: A responsabilidade criminal ou por contra-ordenações que, nos últimos decénio, o legislador nacional vem imputando às pessoas colectivas em domínios, tais como, os de natureza fiscal (aduaneira ou não), cambial ou de circulação de capitais, económica ou de saúde pública, assenta numa fundamentação essencialmente pragmática de combate a esses tipos de criminalidade, em abandono progressivo do brocardo societas delinquere non poteste … 4.ª: Fica, porém, excluída essa responsabilidade se se demonstrar que o agente actuou contra ordens ou instruções expressas da pessoa colectiva ou que actuou exclusivamente no seu próprio interesse ….
Pelo que, não constando dos factos provados – nem se detectando, perante a fundamentação que devesse constar - a factualidade susceptível de conduzir à exclusão da responsabilidade da recorrente, sucumbe a sua pretensão, sendo, pois, irrelevante saber qual ou quais dos seus trabalhadores executava o desmantelamento dos VFV.
Da mesma forma que, no contexto da decisão, se mostra destituído de relevância a identificação dos concretos veículos objecto de desmantelamento, “tarefa”, até pela reiteração da actividade, impossível de levar a efeito.
Assistindo razão à recorrente quando refere a relevância da data dos factos, mormente para aferir da prescrição, o certo é que não foi a mesma condenada por uma “pluralidade” de contra-ordenações de idêntica natureza, mas, antes, apenas, por uma resultante de “actividade” ainda em curso no próprio dia da acção de fiscalização que esteve origem dos presentes autos, conforme, inequivocamente, decorre dos pontos 1. e 2. dos factos provados.
Quanto à alegada ausência de identificação das concretas peças dos veículos, carece, a mesma, de fundamento porquanto se colhe da matéria de facto provada que a arguida procedia, além do mais, “à remoção e reutilização de peças de veículos que tinha e teve parqueados nas suas instalações”, veículos, esses, “destinados ao abate”, não possuindo a mesma “licença para realizar operações de desmantelamento de veículos em fim de vida”, o que fazia.
Embora a contra-gosto da recorrente, são estes os factos! Os quais, no confronto com as normas aplicáveis – e estamos já a abordar a última questão suscitada, com o devido respeito, impropriamente denominada de “insuficiência da fundamentação de direito”-, designadamente com o artigo 2º do D.L. nº 196/2003, de 23.08, na redacção do D.L. nº 64/2008, de 08.04, não deixam dúvida de se tratar de “peças”/componentes removidos de VFV destinados à reutilização, e é quanto basta para a imputação objectiva da conduta, sem necessidade – de concretização impossível – de identificar as concretas “peças” que foram sendo objecto de remoção com vista a tal desiderato.

Conclui-se, pois, por não ocorrer, quer o vício da contradição insanável da fundamentação, quer o vício da insuficiência para a decisão dos factos provados, bem como por se mostrar, correctamente, efectuada a subsunção dos factos ao direito aplicável.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Fixa-se a taxa de justiça em 4 [quatro] Ucs a cargo da recorrente.



Maria José Nogueira (Relatora)

Isabel Valongo