Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
747/11.6TBTNV-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REVOGAÇÃO
DOLO
BENEFICIÁRIO
INSOLVENTE
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 239º E 245º DO CIRE.
Sumário: I – A exoneração do passivo restante tem por fundamento final proporcionar ao devedor um fresh start, ou uma nova oportunidade, de modo a que, liberto do passivo que o vinculava, se reabilite economicamente e se reintegre, plenamente na vida económica.

II - A revogação da exoneração com fundamento com fundamento na violação, pelo insolvente, durante o período da cessão, de qualquer obrigação a que esteja vinculado – maxime da obrigação de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – exige, cumulativamente, uma conduta dolosa desse devedor – embora seja admissível qualquer modalidade de dolo – e um prejuízo relevante para satisfação dos credores da insolvência.

II - A relevância do prejuízo para os credores da insolvência da violação dolosa, pelo insolvente, da sua obrigação de entrega do rendimento disponível, deve aferir-se pelo quantum do valor desse rendimento e do não cumprimento daquele prestação, pelo valor global dos débitos do insolvente, pela natureza dos créditos e pela qualidade dos credores insatisfeitos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Por decisão de 18 de Outubro de 2011, proferida no processo que, sob o nº 747/11, corre termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, na qual foi declarada a insolvência de A… e de F… – que indicaram como seus cinco maiores credores a Caixa Geral de Depósitos SA, o Banco B…, SA, C…, D…, SA e G…, SA, com créditos nos valores de € 144.779,00, 12.057,00, 9.705,92 e 7.580,81, respectivamente - deferiu-se a estes liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinou-se que nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir seja cedido ao fiduciário – cargo para o qual se nomeou a Sra. Administrador da Insolvência - declarou-se que, durante o período da cessão os insolventes ficam obrigados a cumprir as obrigações constantes do nº 4 do artº 239 do CIRE, sob pena de ser revogada a concessão da exoneração do passivo, e excluiu-se do rendimento disponível para pagamento aos credores por parte do fiduciário a quantia mensal de € 750,00 para cada um dos insolventes.

Todavia, por despacho de 24 de Maio de 2013, por se verificar que os insolventes, F… e A…, auferiam apenas a remuneração mensal de € 695,00 e de € 91,14, respectivamente, decidiu-se que o valor da parte excluída do rendimento auferido pelos insolventes que estará disponível para os credores por parte do fiduciário durante o período de exoneração do passiva seja de € 550,00 para o primeiro e de € 500,00 para a segunda.

Por despacho de 11 de Novembro de 2013, com fundamento em que no despacho que definiu a parte do rendimento dos insolventes a excluir do seu rendimento que será afecto aos seus credores se ponderaram devidamente os elementos indicados por estes no requerimento de 21 de Outubro de 2013, designadamente a composição do seu agregado familiar e ainda as suas eventuais despesas, a que os mesmos fazem menção no seu requerimento, indeferiu-se o pedido dos insolventes para ser alterado o despacho que definiu a parte do seu rendimento disponível excluída daquela que irá ser utilizada pela pagamento aos seus credores, designadamente para aumentar a parte excluída do rendimento do insolvente para o valor de € 655,00, manteve-se nos seus preciso termos o despacho que definiu a parte excluída para a eles ser afecta, do rendimento disponível para ser entregue aos credores dos insolventes, e ordenou-se a notificação da Sra. fiduciária para esclarecer se os insolventes estão a cumprir o plano de exoneração do passivo, entregando-lhe o rendimento disponível para ser afecto aos credores dos mesmos.

Por requerimento de 21 de Novembro de 2013, a Sra. Fiduciária esclareceu que os insolventes não estão a cumprir o plano de exoneração do passivo, com a entrega do rendimento disponível.

Ouvidos os insolventes, o Sr. Juiz de Direito, com fundamento na violação dolosa, por aqueles, desde Julho de 2013, durante cerca de 5 meses, da sua obrigação de entregar ao fiduciário a parte do seu rendimento que se destinava à cessão e à entrega aos credores, comportamento que prejudicou estes de forma relevante – revogou a exoneração do passivo que foi concedido aos insolventes.

É, precisamente, esta decisão que os insolventes impugnam no recurso ordinário de apelação, no qual pedem a sua revogação.

Os recorrentes encerraram a sua alegação com estas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos que relevam para a apreciação do recurso são os relativos ao conteúdo do despacho inicial de exoneração do passivo restante, ao valor do rendimento disponível aos insolventes que se considera cedido, à omissão, por aqueles, da obrigação de entrega desse rendimento e ao conteúdo do requerimento que produziram, documentados no relatório e nas conclusões do recurso.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo do recurso pode ser limitado, pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição ou, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC)[1].

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação dos recorrentes, a questão concreta controversa que importa resolver é só uma: a de saber se a decisão que revogou a exoneração do passivo restante concedida aos insolventes deve ou não ser revogada.

A resolução deste problema vincula ao exame, ainda que breve, do fundamento final do instituto da exoneração do passivo restante e dos pressupostos da sua revogação.

3.2. Fundamento final da exoneração do passivo restante.

De forma deliberadamente simplificadora, pode dizer-se que a exoneração do passivo restante se resolve na liberação definitiva do devedor insolvente do passivo que não seja integramente satisfeito no processo de insolvência – com excepção do que emirja de créditos alimentares, de créditos de indemnização por factos ilícitos dolosos, por multas, coimas ou outras sanções pecuniárias fundadas devidas por crime ou contra-ordenaçao ou de créditos tributários – ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento (artºs 235 e 245 nºs 1 e 2, a) a d) do CIRE).

A exoneração constitui, efectivamente, um facto extintivo de todos os créditos – com a excepção já apontada - sobre a insolvência que, no momento em que é concedida, i.e., no momento em que é proferido o despacho correspondente, ainda não se mostrem satisfeitos (artº 245 nº 1 do CIRE).

Numa rara unanimidade de pontos de vista, o legislador, a doutrina e a jurisprudência, são acordes, em vista do universo subjectivo do instituto – as pessoas físicas ou singulares - quanto ao seu fundamento final: proporcionar ao devedor um fresh start, ou uma nova oportunidade, de modo a que, liberto do passivo que o vinculava, se reabilite economicamente e se reintegre, plenamente na vida económica[2].

Simplesmente, esse fundamento final conflitua com um outro fim do processo de insolvência: a satisfação dos credores do insolvente (artº 1, 1ª parte, do CIRE).

O processo de insolvência é, ao menos de certo modo, uma execução colectiva ou universal.

Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março).

Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artº 10 nºs 4 e 5 do NCPC).

No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

A exoneração do passivo restante libera o devedor insolvente – não dos créditos sobre a insolvência, como diz a lei – mas dos seus débitos. Mas essa liberação é obtida à custa da insatisfação, no todo ou em parte, daqueles créditos, que, para se conseguir aquela liberação, se extinguem.

Na verdade, não havendo motivo para o indeferimento in limine do pedido de exoneração do passivo restante – i.e., do passivo constituído pelos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento – o juiz da insolvência profere um despacho inicial determinando que, durante os cinco anos posteriores àquele encerramento, o rendimento disponível do devedor se considera cedido ao um órgão específico da exoneração do passivo restante – o fiduciário – com vista ao pagamento das custas do processo de insolvência, dos reembolsos do dispêndio do Cofre Geral dos Tribunais[3] com as remunerações e as despesas do administrador e do fiduciário, da remuneração vencida e das despesas deste último, e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência (artºs 235 e 241 a) a c) do CIRE).

Esgotado o prazo da cessão, profere-se, enfim, decisão a conceder ou a recusar a exoneração (artº 244 nº 1 do CIRE).

Realmente, sobre o pedido de exoneração recai um despacho do juiz da insolvência, no qual aprecia, com recurso a um juízo de prognose, assente na convicção que forme sobre a capacidade devedor para cumprir as exigências legais, a vantagem ou desvantagem em permitir ao devedor a sua submissão ao procedimento de exoneração[4].

Esse despacho inicial, tem, portanto, por único objecto, a aferição da existência de condições mínimas para o pedido de exoneração do passivo restante ser apreciado pela assembleia de credores, condições que se destinam a decidir se ao devedor deve ser dada uma oportunidade de submeter a uma espécie de período de prova, que, uma vez terminado, pode resultar na exoneração do passivo restante (artºs 239, 244 e 245 do CIRE).

Dito doutro modo: o não indeferimento in limine do pedido de exoneração do passivo restante não significa que essa exoneração seja concedida; significa apenas que há condições para proferir o despacho inicial em que se determina o início do prazo de cinco anos – designado por período de cessão – durante o qual o rendimento disponível do devedor se considera cedido a uma entidade, denominada fiduciário, e só findo esse prazo é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante (artºs 239 nº 2 e 244 nº 1 do CIRE)[5].

O rendimento disponível do devedor objecto de cessão[6] ao fiduciário é integrado por todos os rendimentos que, naquele período, advenham, por qualquer título, ao devedor (artº 239 nº 3, corpo, do CIRE).

Exclui-se, porém, do rendimento disponível, que se considera cedido àquele órgão particular da exoneração do passivo, o que seja razoavelmente necessário, designadamente para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, que, contudo, não deve exceder, salvo decisão fundamentada em contrário do juiz da insolvência, três vezes o salário mínimo nacional (artº 239 nº 3 b), i) do CIRE). A fixação, no despacho inicial, do rendimento disponível não é imodificável, já que, mesmo depois do seu proferimento – e mesmo depois do seu trânsito em julgado – o juiz pode excluir desse rendimento, a requerimento do insolvente, do que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas do devedor (artº 239 nº 3, iii), do CIRE).

Como esta Relação sublinhou já, a concessão do benefício da exoneração deve assentar num juízo não desvalioso relativamente ao devedor quanto às circunstâncias em que ocorreu a colocação dele na situação de insolvência, estando, por isso, subjacente ao instituto, e designadamente à al. e) do artº 238 do CIRE, uma cláusula implícita de merecimento da exoneração[7].

Cláusula implícita de merecimento que se mantém durante todo o período da de cessão, dado que a exoneração pode ser revogada também pelas mesmas razões que tornam lícita o indeferimento in limine do pedido – com excepção da intempestividade da sua dedução – e ainda com fundamento na violação, dolosa, pelos insolventes, durante aquele mesmo período, das suas obrigações, com prejuízo relevante para a satisfação dos credores da insolvência (artº 248 nº 1 do CIRE).

Uma das obrigações a que o insolvente fica adstrito em consequência do despacho inicial da exoneração é a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando a receba, a parte dos seus rendimentos objecto da cessão (artº 239 nº 4 c) do CIRE). Obrigação que se compreende por si, se se tiver presente que esse será o único meio de satisfação dos créditos da insolvência, dado que, durante o período da cessão, não se admite a agressão por via executiva do património do insolvente com vista à satisfação daqueles créditos (artº 242 nº 1 do CPC).

A concessão da exoneração do passivo restante é, pois, revogável, designadamente com fundamento na violação, pelos insolventes, daquela obrigação pecuniária de dare.

Resta saber, porém, que requisitos se devem exigir para que a revogação seja admitida.

3.3. Pressupostos da sua revogação da exoneração.

Nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido exoneração releva como causa de revogação do benefício: a lei é terminante em exigir, de um aspecto, que se trate de um prevaricação dolosa e, cumulativamente, de outro, que tenha prejudicado, de forma relevante, a satisfação dos credores da insolvência. A doutrina adiciona a estes dois requisitos um terceiro: o da existência de um nexo causal entre a conduta dolosa do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos[8].

Embora se conceba, sem dificuldade, que a violação dos deveres do insolvente – v.g., o de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – possa resultar da inobservância de um dever de cuidado, a verdade é que lei não se contenta, para tornar lícita a revogação da exoneração, com a negligência: exige o dolo. Em contrapartida, na ausência de qualquer distinguo, é relevante qualquer modalidade de dolo.

O dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo. O insolvente actua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está adstrito durante o período da cessão, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o insolvente actua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não directamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possua a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito. O dolo é intenção – mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta.

Além disso, o insolvente só actua dolosamente quando se decida pela actuação contrária ao direito. Se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo directo; se essa violação não é directamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.

A violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há-de provocar um resultado: a afectação relevante da satisfação dos créditos da insolvência. Não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (artºs 243 b) e 246 nº 1, in fine, do CIRE). Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante.

A relevância desse prejuízo deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério quantitativo, portanto, em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência[9]. Mas a essa aferição não deve ser estranha a natureza do crédito e a qualidade do credor. Na verdade, na valoração da relevância do prejuízo, não há-de ser indiferente, a par do quantum da insatisfação dos credores da insolvência, o facto de o crédito insatisfeito ter, por exemplo, natureza laboral e por titular um trabalhador, ou de se tratar de uma entidade de reconhecida – ou presumida - solvabilidade económica, como, por exemplo, uma instituição bancária ou um segurador, em que os custos do incumprimento são uma variável tomada em linha de conta na estrutura dos preços oferecidos no mercado.

A isto pode obtemperar-se que a avaliação da relevância do dano a partir do valor do rendimento disponível cedido e do seu cotejo com o valor dos créditos – e da qualidade destes e do respectivo credor – terá como consequência, sempre que o rendimento cedido seja diminuto, em termos absolutos, ou por comparação com o valor dos créditos sobre a insolvência, a atribuição à obrigação de entrega imediata do rendimento disponível ao fiduciário de uma natureza puramente semântica, já que a sua violação, por mais intenso que seja o dolo do devedor, nunca seria susceptível de fundamentar – por falta de preenchimento do requisito do prejuízo relevante – a revogação da exoneração. Dito por outras palavras: se o valor diminuto do rendimento objecto da obrigação de dare que vincula o exonerado impedir, em caso de violação da obrigação de entrega, a revogação da exoneração, o despacho inicial redunda, logo, de certo modo, verdadeira e materialmente, numa concessão dessa mesma exoneração. Desde que, nesta hipótese, o insolvente sempre estará subtraído à revogação da exoneração – por ausência do preenchimento do requisito da relevância do dano - o cumprimento ou não cumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível será de todo indiferente; quer cumpra quer não – ainda que com dolo grave – sempre estará excluída a revogação da exoneração e a consequente reconstituição dos créditos extintos (artº 246 nº 4 do CIRE). Mas isto só será assim, por regra, no tocante a actos de incumprimento esporádicos ou isolados, dado que, no caso de não cumprimento reiterado, sem a alegação de um motivo justificante, a acumulação do débito – dado o arco temporal de duração do período da cessão – acabará por redundar em dano relevante para os credores do insolvente, de todo incompatível com a cláusula de merecimento que se entende subjazer à concessão da exoneração.

Mas aquela consequência corresponde inteiramente à lógica da exigência da relevância do prejuízo e pode explicar-se por uma ideia ou princípio de proporcionalidade – que possui um claro fundamento constitucional e é, por isso, transversal a toda a ordem jurídica - e que encontra, mesmo no plano estrito do direito privado, inúmeras concretizações, de que são meros exemplos, entre muitos outros, a recusa ao credor do direito potestativo de resolução do contrato com base numa falta leve ou insignificante do devedor[10], o apelo ao abuso do direito, sempre que se verifique uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respectivo sujeito passivo ou para terceiros, portanto, em que é patente um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas[11] ou o princípio da proporcionalidade da penhora (artº 18 nº 2 da Constituição da República Portuguesa).

A gravidade das consequências para o devedor da revogação da exoneração – com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência, só detida pelo prazo ordinário da prescrição – impõem, por aplicação de um princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela revogação só possa fundamentar-se numa conduta dolosa do devedor que seja causa de um dano relevante pata os seus credores, objectivamente imputável àquela conduta.

O pensamento da lei é, assim, em traços largos, este: o comprometimento da finalidade da exoneração do passivo restante – a concessão ao devedor insolvente de um fresh start, de uma nova oportunidade, a reabilitação económica do devedor e a sua reintegração plena na vida económica, liberto das grilhetas do passivo que sobre ele pesava - só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que o insolvente está vinculado durante o período da cessão, cause aos credores um dano relevante, grave ou significante.

Este viaticum é suficiente para resolver a questão concreta objecto do recurso.

3.5. Concretização.

Na espécie do recurso, o despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, proferido no dia 18 de Outubro de 2011 deferiu liminarmente o pedido correspondente dos insolventes e excluiu do rendimento disponível que se considerou cedido ao fiduciário, relativamente a cada um dos insolventes, a quantia mensal de € 750,00, e vincularam-se expressamente aqueles à obrigação de entregar ao fiduciário o seu rendimento disponível.

Simplesmente, se se pensar que o valor da remuneração mensal dos insolventes, F… e A… era de € 695,00 e de € 91,14, respectivamente, o valor da exclusão redundava, na prática, na ausência de qualquer rendimento disponível e, evidentemente, na inexistência da obrigação de entrega correspondente.

Em face disso, em 24 de Maio de 2013 modificou-se o valor da exclusão do rendimento disponível que se considerava cedido para € 550,00 para o insolvente F… e de € 500,00 para a insolvente A… Tendo em conta a remuneração auferida por e outro, o novo valor da exclusão do rendimento disponível tem como consequência a vinculação do insolvente F… à obrigação de entrega ao fiduciário da quantia de € 145,00 e a permanência da desvinculação da insolvente A… a qualquer obrigação de entrega, dado que o valor excluído do rendimento disponível é manifestamente superior ao da sua remuneração.

Neste contexto, carece, de todo, de sentido, discutir relativamente à insolvente A…, a violação da apontada obrigação de entrega, dado que, pelas razões apontadas, esta não está vinculada à realização da prestação correspondente.

O processo garante irrecusavelmente, porém, que o insolvente F… não cumpriu aquela obrigação de entrega durante 4 meses, acumulando, por via desse incumprimento, um débito de € 580.00.

Concorda-se com a decisão reclamada quando conclui pelo carácter doloso da violação, por aquele insolvente, da obrigação de entrega do rendimento disponível a que – enquanto esse valor não sofrer modificação – está vinculado. De harmonia com regras de experiência e critérios sociais, julga-se irrecusável que aquele insolvente conhecia sabia, representou correctamente ou tinha consciência da sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível e do não cumprimento dessa obrigação: a verificação do momento intelectual do dolo é, assim, irrecusável. E o mesmo sucede como o elemento volitivo desse mesmo dolo já que é patente a verificação, no caso de uma vontade dirigida a esse não cumprimento. Assim, mesmo que se conceda que aquele não cumprimento não foi o verdadeiro fim da conduta do apelante – e, portanto, que o dolo não é directo – tem-se por certo, a presença, no caso de um dolo necessário ou de segundo grau: o não cumprimento surge, não como pressuposto ou grau intermédio para alcançar a finalidade da conduta – mas como sua consequência necessária, no preciso sentido de consequência inevitável, se bem que lateral relativamente ao fim da conduta: o não cumprimento da obrigação e entrega do rendimento disponível cedido ultrapassou a mera representação dessa consequência como possível, para se ter como certa ou pelo menos altamente provável. O insolvente ao afectar os seus recursos a despesas do agregado alegadamente inadiáveis, não pode deixar de representar como certa ou altamente provável – em face da exiguidade e da inelasticidade das suas receitas – o não cumprimento da obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível que se considera cedido.

Mas já não se acompanha a decisão impugnada no tocante á conclusão de que a violação dolosa desta última obrigação prejudicou de forma relevante a satisfação dos credores - relevância cuja demonstração aquela decisão, aliás, não objectiva. Decerto que o incumprimento daquela obrigação causa aqueles credores um prejuízo. Mas este dano, se se tiver em conta o valor do rendimento que se considera cedido, o montante da quantia não entregue e o valor global dos créditos sobre a insolvência, e a qualidade dos credores afectados – não suporta a qualificação de relevante. E como só um prejuízo significante ou grave – aferido pelos critérios apontados – justifica a revogação da exoneração, e um tal pressuposto não se considera preenchido no caso, cumpre dar razão aos apelantes – e revogar a decisão impugnada.

De resto, sempre se imporia essa revogação no tocante à insolvente A… dado que esta, pelas razões apontadas, não estava vinculada a qualquer obrigação de entrega.

Síntese recapitulativa:

a) A exoneração do passivo restante tem por fundamento final proporcionar ao devedor um fresh start, ou uma nova oportunidade, de modo a que, liberto do passivo que o vinculava, se reabilite economicamente e se reintegre, plenamente na vida económica;

b) A revogação da exoneração com fundamento com fundamento na violação, pelo insolvente, durante o período da cessão, de qualquer obrigação a que esteja vinculado – maxime da obrigação de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – exige, cumulativamente, uma conduta dolosa desse devedor – embora seja admissível qualquer modalidade de dolo – e um prejuízo relevante para satisfação dos credores da insolvência;

c) A relevância do prejuízo para os credores da insolvência da violação dolosa, pelo insolvente, da sua obrigação de entrega do rendimento disponível, deve aferir-se pelo quantum do valor desse rendimento e do não cumprimento daquele prestação, pelo valor global dos débitos do insolvente, pela natureza dos créditos e pela qualidade dos credores insatisfeitos.

As custas deste recurso devem ser suportadas pela massa insolvente. Porém, para efeitos de custas, o processo de insolvência compreende o incidente de exoneração do passivo restante, incluindo, portanto, as deste recurso (artº 303 do CIRE).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão impugnada.

Não há lugar a tributação autónoma.

14.06.03

Henrique Antunes - Relator

Regina Rosa

Artur Dias


[1] Dado que a oposição à execução foi deduzida em data anterior a 1 de Setembro de 2103, não lhe é aplicável o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (artº 6 nº 4).
[2] Ponto 45 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março – que aprovou o CIRE - Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, págs. 102 a 103 e, v.g. Acs. da RC de 17.02.08, www.dgsi.pt. Note-se, todavia, que o CIRE não acolheu o modelo fresh start ou da nova oportunidade, em toda a sua pureza. Cfr., sobre o ponto, Maria M. Leitão Marques e Catarina Frade, Regular o Sobreendividamento, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Ministério da Justiça, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Coimbra Editora, 2004, pág. 94.
[3] Entretanto substituído pelo Instituto de Gestão Financeira e Infraestruturas da Justiça IP.
[4] Assunção Cristas, “Exoneração do devedor pelo passivo restante”, Revista Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, Setembro de 2005, pág. 168, e Ac. do STJ de 19.04.12, www.dgsi.pt.
[5] Luís A. Carvalho Fernandes, “A exoneração do passivo restante na insolvência de pessoas singulares no direito português” Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Iuris, Lisboa, 2009, pág. 287.
[6] Discute-se, na doutrina, se o caso é, verdadeiramente, de cessão que tem por objecto créditos futuros, ou antes, uma simples promessa de entrega de ganhos gerados pelo devedor, no momento em que o sejam. No primeiro sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, “A exoneração do passivo restante na insolvência de pessoas singulares, in, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Estudos sobre a Insolvência, Quid Iuris, Lisboa, 2009, págs. 294 e 295, e Pestana de Vasconcelos, A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 247; no segundo, Luís M. T. de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 2ª edição, Almedina, 2005, pág. 210, e A. Raposo Subtil, Matos Esteves, Maria José Esteves e Luís M. Martins, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Vida Económica, pág. 313.
[7] Ac. de 04.10.11. No mesmo sentido, o Ac. da RG de 21.05.13, www.dgsi.pt. O Ac. do STJ de 19.04.12 – www.dgsi.pt - fala, a este propósito, no pressuposto ético que está na base da medida.
[8] L. M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª edição, 2012, Almedina, Coimbra, pág. 163.
[9] Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Volume II, Quid Iuris, Lisboa, 2006, pág. 209.
[10] João Carlos Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, págs. 129 e 130.
[11] Ac. da RP de 03.02.81, BMJ nº 304, pág. 469.