Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PEDRO MARTINS | ||
Descritores: | EMBARGOS DE TERCEIRO VENDA JUDICIAL POSSE | ||
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Data do Acordão: | 05/31/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | MARINHA GARNDE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | AGRAVO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.824, 879, 1260, 1263, 1264, 1265, 1290 CC | ||
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Sumário: | Com a venda judicial, o direito de propriedade e a posse transferem-se para o comprador, passando o vendedor/executado, se continuar na posse da coisa, a ser um possuidor precário, em nome alheio, não podendo invocar a posse para a usucapião, sem provar a posterior inversão do título da posse. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:
A (…) requereu execução contra J (…). Fundamenta a pretensão executiva em letra de câmbio, emitida em 03/05/2007, com vencimento em 03/08/2007, na importância de 30.000€, aceite pelo executado; nomeou à penhora o prédio inscrito na matriz sob os artigos (...) (urbano) e (...) (rústico) e descrito na conservatória do registo predial de (...) sob o nº (...)/20080603; a penhora foi efectivada e registada. M A (…) e mulher, M E (…) vieram então deduzir os presentes embargos, dizendo que pese embora a propriedade do prédio penhorado esteja inscrita a favor do executado, a verdade é que são eles, embargantes, os seus donos e legítimos possuidores, tendo-o adquirido por compra nos anos de 1975 e 1976. Antes da outorga das escrituras públicas de compra e venda foram investidos na sua posse pelos vendedores e neles construíram a sua casa de habitação e anexos. Em 29/07/1986, no âmbito da execução intentada contra os ora embargantes, o executado, que era amigo íntimo deles, arrematou o prédio em causa a pedido destes, para evitar que o mesmo fosse arrematado por qualquer interessado, já que era a casa onde viviam com a respectiva família. Foram os ora embargantes (ali executados) que entregaram ao arrematante (aqui executado) as quantias por ele alegadamente suportadas com a arrematação. Acordando, então, arrematante e ora embargantes, que aquele nunca usaria o título (auto de arrematação) para inscrever o direito a seu favor. Os embargantes, por diversos motivos, continuaram durante alguns anos em situação de ameaça de insolvência, razão pela qual mantiveram o sobredito prédio na detenção jurídica aparente do ora executado e, assim, a salvo dos seus credores; não oferecendo o executado, aparentemente, qualquer perigo de ver penhorado o seu património. Porém, sem que disso se tenham apercebido, o executado viu rapidamente esgotado o seu património, e sem que nada o fizesse prever, ele, ou alguém a seu mando, em 23/03/2005, quase 20 anos depois da referida arrematação, procedeu à inscrição da propriedade do prédio a seu favor. Sucede que os embargantes nunca, por um instante, desde a sua aquisição, deixaram de habitar a sobredita casa, de cultivar o seu quintal, de usar os jardins a seu bel prazer, de fazer obras de conservação, mesmo depois de 29/07/1986, data da arrematação feita à sua exclusiva custa, dando-lhe a configuração física que hoje tem, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de serem seus donos; o que conduz à sua aquisição originária, por usucapião. Dizem mais: ainda que, por força do art. 1264 do CC, se considere transferida, pela venda judicial, a posse sobre o imóvel, ficando os embargantes meros detentores do imóvel, em nenhum momento o executado obstaculizou ou contestou os actos de posse dos embargantes sobre o prédio em questão, nem mesmo após ter promovido o registo do mesmo a seu favor. Assim, a entender-se que os embargantes foram convertidos em meros detentores (art. 1264 do CC), eles, logo após a venda, inverteram tal animus. Concluem pedindo que seja reconhecido e declarado que são os embargantes os únicos e exclu-sivos donos e possuidores do prédio misto penhorado nos autos de execu-ção; e, consequentemente, que seja ordenado o levantamento da penhora so-bre ele incidente (ap. nº 22 de 2008/06/03) e o cancelamento da respectiva inscrição; que seja ordenado o cancelamento da inscrição da propriedade de tal prédio a favor do executado (ap. nº 22 de 2005/03/23). Procedeu-se à inquirição de testemunhas, nos termos e para os efeitos previstos no art. 354º do CPC e os embargos foram admitidos e determinada a suspensão da execução quanto ao imóvel penhorado. O exequente contestou, impugnando, dizendo, em suma, que o prédio penhorado é pertença do executado, tendo-lhe sido adjudicado em processo de execução, pagando o seu preço, com dinheiro seu; porém, na ocasião foi seduzido por um amigo comum dos embargantes e executado, para consentir que aqueles ficassem algum tempo a viver na casa vendida; o executado vivia então em Macau, onde permaneceu até 1982, e era proprie-tário de um boa fortuna; regressado a Portugal, esses valores foram-se degradando, restando-lhe agora um património imobiliário ainda valioso, mas vivendo com grandes dificuldades financeiras; os embargantes têm ocupado o prédio em causa por mero favor, gentileza e tolerância do executado, que desde há muitos anos lhes vem solicitando que encontrem soluções para as suas vidas e lhe entreguem o bem que é seu; nunca os embargantes se assumiram como donos do prédio, e sempre, ao longo destes anos, foram dizendo que um dia haveriam de negociar a sua compra ao executado; durante estes anos, os embargantes limitaram-se a zelar e manter o prédio em causa, sendo essa uma das exigências que o executado lhes impôs para a cedência, e se algumas obras nele realizaram, elas não são visíveis. Conclui pela improcedência dos embargos. Notificado, o executado não contestou. (utilizou-se, até aqui, no essencial, quase todo o relatório da sentença recorrida, apenas se acrescentando mais algumas linhas, em itálico, na síntese da petição de embargos) Depois do julgamento foi proferida sentença, julgando os embar-gos procedentes e, em consequência, ordenando o levantamento da penho-ra realizada em 03/06/2008, incidente sobre o bem imóvel penhorado; declarando-se que os embargantes adquiriram, por usucapião, o prédio em causa e ordenando-se o cancelamento das inscrições correspondentes à ap. 22 de 2008/06/03 e ap. 22 de 2005/03/23. O exequente interpôs recurso da sentença – para que seja substituí-da por outra que decida pela improcedência dos embargos - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: Nem os embargantes nem o executado contra-alegaram. * Questões que importa solucionar: os efeitos da venda judicial de 1986 na posse dos embargantes, na base da qual está a usucapião invocada e que levou à procedência dos embargos. * Factos provados: * A sentença começa por falar na defesa da posse, nos embargos de terceiro, nas alterações sofridas por este tipo de processo, na caracterização de terceiro e de direito incompatível com a penhora e na legitimidade para a dedução dos embargos, depois sintetiza a fundamentação deduzida pelos embargantes, repete os factos que foram dados como provados, diz que os embargantes alicerçam a sua pretensão nos descritos actos de posse, e, assim, na aquisição do prédio por via da usucapião, fala na figura jurídica da usucapião e na posse e nas várias qualificações desta, nos conflitos de presunções da titularidade do direito, decorrentes do registo e da posse e diz que é a presunção decorrente desta que prevalece, fala ainda nos períodos necessários da posse para a usucapião, diz que para a usucapião apenas serve a posse e não a mera detenção e, por fim, conclui (em síntese): A posição do embargante é contra isto, como resulta das conclusões do seu recurso, transcritas acima. * Sistematizada a matéria de facto, a situação é esta: A posição do embargante, sintetizada, é a seguinte: A e B eram donos, mas em 1986 o prédio foi vendido a C. Deixaram de ser donos. Para o passarem a ser de novo, tinham de o ter readquirido. O único modo de aquisição que está em causa é a usucapião e esta não se pode ter verificado porque não consta dos factos provados que A e B tenham voltado a estar na posse em nome próprio do prédio. A sentença segue o caminho oposto: A e B nunca deixaram de ser possuidores; como iniciaram a posse em 1974, passaram a ser donos do prédio por usucapião. * A construção apresentada pelo exequente/recorrente é que é a correcta: Com a venda feita pelo tribunal (venda forçada em nome de A e B, que eram então executados), A e B perdem, como perderiam se a venda tivesse sido feita directamente por eles, o direito de propriedade e a posse sobre o prédio. É certo que, caso estivesse – mas não está, porque o que é alegado é uma venda simulada e não uma dupla alienação - em causa algum conflito entre um primeiro adqui-rente não registado e o adquirente em venda judicial registado, se poria a questão do con-ceito de terceiros para efeitos de registo, nos quais alguns inserem os compradores em venda executiva – assim, por exemplo, Antunes Varela, na anotação ao ac. do STJ de 03/06/1992, publicada na RLJ nº. 3838 (ano 127), pág. 19, nota 2 (“o vendedor é o próprio executado, embora se trate de uma venda realizada coercivamente, no interesse dos seus credores, por via judicial” [daí que, explica, nos casos de vendas em processos executivos, nem sequer seja necessário ampliar o conceito de terceiros para efeitos de registo predial]. No mesmo sentido, vejam-se todos os autores citados por Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Junho de 2010, por exemplo, na nota 1499, págs. 379/380. Note-se que o AUJ 3/99 não põe em causa esta conclusão, pois que, como esta autora refere, “embora a fórmula adoptada seja a do conceito restrito, na fundamentação o STJ inclui o adquirente em venda judicial no conceito de terceiro” (por exemplo, pág. 359). Existem, entretanto, acórdãos do STJ em sentido contrário, e neste último sentido vai a autora acabada de citar, que expressamente, na conclusão 15 do seu trabalho, esclarece: “defendemos que o art. 5º/4 do CRP, no momento actual, por razões de segurança jurídica, deve ser interpretado, de acordo com a vontade do legislador, englobando, apenas, o conceito restrito de terceiro, que exclui o credor penhorante e o adquirente na venda executiva.” (pág. 921). Com essa venda, o direito de propriedade e a posse transferem-se para C [arts. 879/a), 824/1 e 1264/1, todos do CC]. A e B, mesmo que se continuem a considerar como proprietários (e a ser como tal considerados por terceiros), deixaram de o ser e, quanto à posse, passaram a ser legal-mente possuidores em nome alheio. Para voltarem a ser possuidores em no-me próprio (e para desse modo se poderem aproveitar, mais tarde, da usuca-pião: art. 1290 do CC), teriam que inverter o título da posse [art. 1263/d) do CC] e isso exige um acto de oposição contra o comprador [art. 1265 do CC] para quem tinha passado a posse e por isso em nome do qual a tinham passado a possuir (precariamente). Como não há sequer fumos desse acto de inversão do título da posse, não se pode dizer que A e B tenham estado na posse (em nome pró-prio) do prédio a partir da venda de 1986. E a posse em que tenham estado até 1986 é irrelevante porque cortada pela venda. Logo, não podiam ter adquirido por usucapião (que pressupõe a posse) depois de 1986. E antes de 1986 a questão não tem qualquer relevo, pois que com a venda se trans-feriram os direitos que tivessem. A sentença recorrida está nitidamente influenciada por uma cons-trução factual alegada por A e B, construção que foi dada como não pro-vada no despacho que fixou a matéria de facto. Essa versão era a de que o C era um testa de ferro deles, isto é, que só formalmente é que foi C que com-prou o prédio em 1986 já que o dinheiro que C utilizou era de A e B. Foram eles, A e B, que de facto fizeram a compra em 1986, por interposta pessoa (o C). Só esta construção é que pode justificar a desconsideração, pela sentença, dos efeitos da venda judicial ocorrida em 1986 sobre a posse dos embargantes. Estes, devido ao acordo com o arrematante, nunca teriam perdido a posse. Mas, não havendo sinais de tal acordo na matéria de facto dada como provada, esta solução não tem suporte. Eles, com a venda, perderam a posse que tinham. Para poderem dizer que não tinha perdido a posse, eles tinham que ter provado o tal conluio com o arrematante. Mas não o conseguiram provar. A perda da posse em nome próprio é, pois, uma consequência inelutável dos factos provados, apesar do animus com que os embargantes tenham continuado a actuar. * Aliás, diga-se agora, os embargantes nem sequer podiam ter alegado o conluio com o arrematante: sendo eles os vendedores e sendo o arrematante o comprador tal conluio traduz-se numa interposição fictícia de pessoas, ou seja, uma simulação relativa objectiva, que teria sido concertada entre A e B e C com a intenção de prejudicar os credores de A e B (arts. 240 e 241/1 do CC). Ora, as simulações são inoponíveis, pelos simuladores, a terceiros de boa fé, como é o caso de D (exequente)… (art. 243 do CC). Como lembra Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, vol.II, 2ª ed., Lex, 1996, pág. 251), os simuladores não podem invocar contra terceiros de boa fé a sua própria torpeza; ninguém deve ser admitido a prevalecer-se da sua própria má fé. Assim, a questão nem sequer tinha relevo. * Mais ainda: a sentença ora invoca uma posse não titulada, ora invoca uma posse titulada. Esta dupla fundamentação, contraditória, tam-bém demonstra o equívoco da sentença: - a posse não titulada só pode ter a ver com o tal acordo, alegado mas não provado, que levou à compra simulada de 1986 (na versão dos embargantes). Mas então não se trata da posse que vem desde 1974 (com a ocupação), ou desde 1975/76 (com as compras dessas datas), mas de uma posse que a sentença não diz – porque não podia dizer, por não haver dados para o efeito - quando se iniciou; - a posse titulada, baseada nas escrituras, é a posse dos embargantes que vem das compras de 1975/1976. Mas como é que se pode basear a usucapião numa posse relativa a um direito adquirido em 1975/76 e vendido em 1986, se não se prova a simulação desta última venda? * Por fim, note-se que: 1. No caso não existem dois negócios ou dois factos jurídicos dos quais decorresse um conflito entre um primeiro adquirente não registado e um segundo adquirente registado, pelo que não há que invocar quaisquer normas registais que contradigam o princípio da consensualidade, isto é, de que o contrato de compra e venda transfere o direito de propriedade no momento da conclusão do contrato (apenas por último, e porque já se pronuncia sobre a questão depois da nova obrigatoriedade de registar os factos sujeitos a registo, veja-se o estudo de José Alberto Vieira quanto ao impacto desta alteração sobre a aquisição de direitos reais sobre coisas imóveis e a segurança no comércio jurídico imobiliário, nos Estudos em Homenagem a Sérvulo Correia, ed. da FDUL, Coimbra Editora, 2010, vol. III, págs. 93 a 112, especialmente págs. 95 a 104; no mesmo sentido, vai Maria Clara Sottomayor, na nota de actualização do seu trabalho, págs. 931 a 934). 2. E que, porque a aquisição do prédio pelo executado foi registada, também não se coloca a questão da distinção entre os efeitos de uma trans-ferência da propriedade inter partes e erga omnes (Antunes Varela, na anota-ção referida acima – mas agora na pág. 382 do nº. 3837 - defende que a consti-tuição ou a transferência de direitos reais, perante terceiros, apenas se verifica a partir da data do registo – a questão é desenvolvida na tese de doutoramento de Maria Clara Sottomayor já referida acima, por exemplo, nas págs. 183 a 195, na nota 771 onde cita outra anotação de Antunes Varela no mesmo sentido, e nas págs. 221 a 230, onde a autora assume posição contrária, no sentido do entendimento maioritário). * Pelo que, como se vê, procedem os argumentos do recorrente. * Os embargantes poderiam agora vir dizer: nós alegámos também a inversão do título da posse depois da venda (diz isto respeito à matéria acrescentada no relatório relativamente à petição de embargos, como foi assinalado acima); tal não foi tomado em consideração na decisão que fixou a matéria de facto, nem na sentença recorrida; mas devia ter sido tomada em conside-ração. Quanto a isto diga-se: os embargantes poderiam ter dito isto (reque-rendo a ampliação do recurso – art. 684-A do CPC), mas não o disseram, e logo por aqui a questão não teria interesse. Por outro lado, eles de facto não alegavam a inversão do titulo da posse. Eles concluíam, em termos de direito, por essa inversão. Não havia pois factos que tivessem a ver com a inversão do título da posse. Não havia nem podia haver pois que, por último, tal seria absoluta-mente contraditório com o que eles antes tinham alegado: se tinha havido um conluio entre eles e o arrematante do imóvel na venda judicial, no sentido de eles continuarem na posse, como proprietários, do imóvel em causa, não faria qualquer sentido a alegação, em termos concretos, de um acto de oposição dos embargantes contra o seu cúmplice no sentido de, a partir de certa altura, passarem a ter a posse em nome próprio, pois que nunca tinham deixado de a ter... Portanto, nada disto poderia ou deveria ser considerado na decisão que fixou a matéria de facto e por isso nada pode censurado a esta a esse propósito. * Sumário: Com a venda judicial, o direito de propriedade e a posse transferem-se para o comprador, passando o vendedor/executado, se continuar na posse da coisa, a ser um possuidor precário, em nome alheio, não podendo invocar a posse para a usucapião, sem provar a posterior inversão do título da posse. * Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e em consequência re-voga-se a sentença recorrida e em sua substituição consideram-se improce-dentes os embargos de terceiro, mantendo-se a penhora e os registos sobre o imóvel em causa. Custas, quer dos embargos quer do recurso, pelos embargantes.
Pedro Martins ( Relator ) Virgílio Mateus António Carvalho Martins |