Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
820/23.8T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
ELEMENTO SUBJECTIVO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
“REFORMATIO IN PEJUS”
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: DETERMINADO O REENVIO PARCIAL DO PROCESSO PARA APURAMENTO DE FACTOS
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, 58.º E 72.º-A DO D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL/RGCO
ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I – No âmbito do recurso contraordenacional o tribunal da relação funciona como tribunal de revista e apenas conhece da matéria de direito, excepção feita aos casos em que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, oficiosamente decida conhecer dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P.

II – Os requisitos exigidos pelo artigo 58.º do RGCO visam garantir que o destinatário da decisão administrativa exerça, de forma cabal, os seus direitos de defesa e tal mostra-se assegurado se a decisão, ao nível da fundamentação de facto, contiver “a descrição dos factos imputados”, permitindo-lhe compreender, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais o agente é condenado, de modo a que este possa adequadamente impugnar os fundamentos dessa condenação.

III – Não obstante a matéria de facto constante da decisão administrativa não conter qualquer referência ao elemento subjectivo da infracção, se tais referências constarem da parte atinente ao direito tal não constitui qualquer vício já que aquela decisão, não sendo uma sentença, não tem que obedecer ao formalismo a que esta deve obedecer.

IV – O juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima, embora não podendo proceder à alteração substancial dos factos constantes da decisão administrativa, não está absolutamente vinculado aos factos que constam do seu texto.

V – A circunstância de o juiz, no elenco dos factos julgados provados, descrever os factos integradores do elemento subjetivo que constavam da decisão administrativa, constitui mera correcção de carácter técnico e não alteração substancial dos factos.

VI – À semelhança do que ocorre no processo penal, em matéria contraordenacional aquando da decisão o tribunal deve atentar na circunstância de ter ocorrido alteração da lei que prevê e pune os factos entre a sua prática e a decisão e, quando tal aconteça, deve aplicar ao caso os regimes legais que se sucederam para, comparando os respectivos resultados, optar, obrigatoriamente, por aquele se se mostre, em concreto, mais favorável para o arguido.

VII – Faltando elementos para se concluir pelo regime mais favorável, resulta que a decisão judicial em recurso padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do C.P.P.

Decisão Texto Integral:
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1. … a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) aplicou a "… Lda", a coima única de €2 800,00 (dois mil e oitocentos euros), pela prática das seguintes contraordenações:

a) Falta de informação pré-contratual nos contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento comercial, no que respeita à existência de livre resolução e respetivo prazo para o exercício do direito, prevista no artigo 4.º, n.º 1, alínea l), conjugado com o artigo 10.º, n.º 1 ambos do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, em vigor à data dos factos, e punível pelo artigo 31.º, n.º 2, alínea b), do mesmo Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, pela qual a Autoridade Administrativa aplicou a coima parcelar de € 2.600,00 (dois mil e seiscentos euros); e

b) Falta de informação para a concorrência leal na venda com redução de preço, especificamente falta de indicação de modo inequívoco da data de início e período de duração das vendas com redução de preço, prevista no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 109/2019, de 14 de Agosto e punível pelo artigo 16.º do mesmo Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de Março, pela qual a Autoridade Administrativa aplicou a coima parcelar de €400,00 (quatrocentos euros)..

2. Não se conformando com essa decisão administrativa, a arguida impugnou-a judicialmente, …, tendo sido proferido despacho, ao abrigo do disposto no artigo 64º nº2 do RGCO, cujo dispositivo é o seguinte (transcrição):

«VI – DECISÃO:

Face ao exposto, e julgando totalmente improcedente o recurso apresentado pela arguida, …., decide-se manter a decisão da AUTORIDADE ADMINISTRATIVA ….»

3. Inconformada, a arguida "… Lda" interpôs o presente recurso, concluindo assim a respetiva motivação e petitório (transcrição):
            «…
               2. A douta decisão recorrida violou o art. 50.º do RGCO, ao não dar á arguida oportunidade de se defender dos factos que lhe são imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável.
               …
               5. Com efeito, a notificação á arguida nos termos e para os efeitos do artigo 50.º do RGCO fez-se logo no início do processo, antes das diligências de prova que vieram a ser feitas, vindo a decidir-se por uma modalidade de culpa (DOLO) que a indicada notificação não fazia supor, porque, disso, não foi dado conhecimento à arguida antes da decisão, tal como não lhe foi dado conhecimento de qualquer facto integrável nesse grau de culpa lhe foi alguma vez.
               …
               8. Para além de não constar do dos autos nenhum facto integrador de um qualquer elemento subjetivo do tipo, também nenhum facto provado consta da decisão administrativa que pudesse levar á condenação da arguida a título de Dolo.
               9. Na verdade, a condenação da arguida a título de dolo, foi efetuada sem qualquer facto provado na decisão administrativa que permita concluir pela existência desse elemento subjetivo do ilícito o que, viola o exercício efetivo do direito de defesa da arguida, como aliás, resulta do disposto no artigo 243° do Código de Processo Penal (CPP) – aplicável no âmbito contraordenacional por força do art.º 41° do DL 433/82, de 27 de Outubro (RGCO) -, do qual não se retira que a entidade autuante possa imputar a infração a titulo de dolo sem imputar, comportamentos, situações que permitam captar “o elemento subjetivo” da mesma.
               …
               23. A douta sentença recorrida não cumpre com a obrigatoriedade de indicar se no caso em apreço vigora, ou não o princípio da proibição da “REFORMATIO IN PEJUS”, obrigação que decorre da lei que p. e p. o comportamento da arguida como contraordenação, sendo que tal omissão fere de nulidade a decisão ora recorrida.
               24. Essa nulidade prejudica a arguida, porque sendo a proibição da REFORMATIO IN PEJUS a regra para afastar o condicionamento ao livre exercício do direito recorrer ou impugnar judicialmente a decisão condenatória, a existência de proibição dessa natureza aporta essa condicionante, decisiva para a decisão da arguida de recorrer ou não.
               …
               26. A decisão administrativa, não indicou as normas que previam a conduta da arguida como contraordenação nem a norma pela qual puniu o arguido, o que a feriu de nulidade insanável, de conhecimento oficioso pelo tribunal , tendo a 1ª instância suprido essa omissão sem sequer, previamente, notificar o arguido para se pronunciar sobre a mesma pelo que também esta decisão se encontra ferida de nulidade.
               …»

           

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

            Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[1], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

            Note-se que tais disposições se mostram aplicáveis ao Processo contraordenacional, por força do disposto no artigo 41º nº1 do RGCO.

            Assim, o Tribunal de Recurso conhece apenas da matéria de Direito, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as enumeradas supra, mormente as nulidades da sentença e os vícios elencados no artigo 410º do Código de Processo Penal.

            Atentas as conclusões formuladas pela Recorrente as questões a decidir são as seguintes:

            1ª – Saber se ocorre nulidade decorrente da violação do disposto no artigo 50º do RGCO (Decreto-lei nº433/82 de 27-10) – [Conclusões 1. a 7.]

            2º - Saber se ocorre nulidade decorrente da violação do disposto no artigo 58º do RGCO – [conclusões 8. a 15.]

            3ª – Saber se ocorre nulidade da decisão judicial em recurso por violação do princípio da legalidade e por constituir uma “decisão surpresa” face à circunstância de incluir factos relativos ao elemento subjetivo que não constavam da decisão administrativa – [Conclusões 16. a 22.]

            4ª – Saber se ocorre nulidade da decisão judicial por não cumprir a obrigatoriedade de informar a arguida se no caso dos autos vigora, ou não, o princípio da “reformatio in pejus” – [Conclusões 23. a 25.]

            5ª – Saber se ocorre nulidade da decisão administrativa por a mesma não indicar as normas que preveem e punem as condutas que descreve e subsequente nulidade da decisão judicial por não lhe ser lícito fazer incluir tais normas – [Conclusões 26. a 29.]

           

            Não obstante não ter sido invocado no recurso, cabe averiguar, oficiosamente, se ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal, aplicável ao processo de contraordenação, ex vi artigos 75º e 41º do RGCO.

            2. Da decisão recorrida.

            3. Apreciação do recurso.

            No âmbito do recurso contraordenacional, o Tribunal da Relação posiciona-se como o Supremo Tribunal de Justiça se posiciona no processo penal, ou seja, funciona como tribunal de revista e apenas conhece da matéria de direito, exceção feita para os casos em que para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, oficiosamente, ou seja, por sua iniciativa, decida conhecer dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Como bem se salienta no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de abril de 2012[2] (remetendo-se para a breve, mas esclarecedora, referência ao nascimento e evolução do direito das contraordenações que aí é feita):

 “O regime geral das contraordenações e coimas [DL n.º 433/82 de 27-10] apresenta uma nítida autonomia face ao Código Penal, decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores.”

            Tal distinção reflete-se sobremaneira no que concerne ao princípio da culpa.

            Como bem assinala o Prof. Augusto Silva Dias[3], “O princípio da culpa no direito das contra-ordenações conhece uma maior flexibilidade dogmática e probatória relativamente ao direito penal”.

Com efeito - sustenta o mencionado Autor - “Para esta flexibilidade concorre a circunstância de o parâmetro normativo no Direito das Contra-Ordenações ser constituído pelo papel social: no centro da imputação subjectiva e da censura estão as representações, procedimentos e comportamentos típicos do papel em cada sector da actividade económica e social: o empresário, o contribuinte, o condutor, o intermediário financeiro, etc., diligentes e criteriosos. O papel é densificado mediante o conjunto de deveres, práticas e usos que regulam o exercício de cada sector de actividade e se espera que cada participante cumpra ou adopte (...). No plano da imputação subjectiva, em particular na negligência, o papel fornece o padrão de cuidado cujo incumprimento constitui o desvalor da acção. No plano da culpa, a censura tem o sentido de uma admonição ou reprimenda social, de um “... mandato ou especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas” (...) e o conteúdo ou objecto da censura é o desempenho defeituoso do papel, ou seja, o desvio relativamente ao procedimento-padrão no sector da actividade em causa (...) . A intensidade da reprimenda variará consoante esse desvio seja maior ou menor”.

Nesta linha de pensamento tem-se pronunciado o Tribunal Constitucional, citando-se, a título de exemplo, o Acórdão nº 336/2008, de 19/06/2008[4], no qual se afirma:

“(…) existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contra-ordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).

A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.

É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contraordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).

Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das contra-ordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio concurso de infracções (vide, neste sentido, Figueiredo Dias na ob. cit., pág. 150).

Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).

(...)

Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social."

Efetuado este enquadramento geral centrado na autonomia do ilícito de mera ordenação social em face do ilícito penal e revertendo ao caso em apreço.

         

3.1. – Da nulidade decorrente da violação do disposto no artigo 50º do RGCO.

Insurge-se a Recorrente contra aquilo que considera ter sido uma violação do seu direito de defesa, a qual inquina, não só a decisão administrativa, como a decisão judicial subsequente.

Na sua leitura, a notificação de que foi objeto, ao abrigo do disposto no artigo 50º do RGCO não lhe deu a conhecer todos os elementos de facto e de direito relevantes para a decisão. Alega [conclusões 4. e 5.] que foi objeto de tal notificação num momento inicial da instrução dos autos, quando ainda não tinham sido levadas a cabo as diligências de prova que vieram a ser feitas, não lhe tendo sido comunicados quaisquer factos suscetíveis de preencher o elemento subjetivo das infrações que lhe eram imputadas.

Tal nulidade foi arguida em sede de impugnação judicial e aí conhecida no sentido de que a mesma não se verifica.

Adere-se, na íntegra, a essa decisão e aos respetivos fundamentos, que se dão aqui por reproduzidos remetendo para a transcrição supra.

Com efeito, e conforme assinalado na douta resposta do Ministério Público na 1ª Instância, “Compulsados os autos, resulta do teor da nota de ilicitude dirigida à arguida/Recorrente para efeitos do artigo 50.º do RGCO a indicação de todo o circunstancialismo em que ocorreu a actividade inspectiva, qual foi o fundamento legal que prevê e pune a prática das duas infrações identificadas, qual a medida abstrata da moldura das coimas respetivas e a indicação do prazo máximo para que a arguida/Recorrente possa pronunciar-se.”

Mostra-se, assim, integralmente cumprido o disposto no artigo 50º do RGCO, remetendo-se para a jurisprudência e doutrina citadas na decisão judicial em recurso, de onde decorre ser esse o entendimento constante em face de notificações com as características daquela que foi levada a efeito nos presentes autos.

Relativamente ao facto de, no dizer da Recorrente, ter sido objeto da notificação em causa num momento em que a instrução do processo estava no seu início, não lhe tendo sido dado conhecimento do resultado das posteriores diligências probatórias, apenas se dirá que a Recorrente não pode ignorar, porque o processo é claro quanto a isso, que não foram desenvolvidas, posteriormente, quaisquer diligências de prova adicionais.

A prova dos autos é a constante da notificação em causa, tanto mais que a Recorrente não indicou nenhuma no prazo concedido para o efeito.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

 3.2. – Da nulidade decorrente da violação do disposto no artigo 58º do RGCO .

Compulsado o teor das conclusões 8. a 15., constata-se que o outro motivo de discordância da Recorrente, intimamente ligado ao anterior, decorre de considerar que, compulsado o teor da decisão administrativa proferida nos autos (acima transcrita), dela não constam os elementos exigidos pela lei, concretamente, pelo artigo 58º do RGCO, redundando tal omissão em limitação do seu direito de defesa e, consequentemente, em nulidade da mesma decisão.

Considera que da mesma decisão não constam quaisquer factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, não sendo legítimo concluir por uma forma de culpa sem qualquer substrato factual para tal. Concretizando, a autoridade administrativa concluiu por uma atuação a título doloso, sem que da decisão constem factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo consubstanciado nessa modalidade de culpa.

Não assiste razão à Recorrente.

Estabelece o artigo 58º do RGCO que:

A Recorrente não põe em causa que constam da decisão administrativa todos os elementos elencados, à exceção do mencionado na alínea b) do nº 1, pois considera que a mesma não descreve os factos imputados suscetíveis de integrar o elemento subjetivo, mostrando-se, assim, infundamentada.

Não obstante, a decisão cumpre as exigências legais, também, em nosso entender, no que se reporta àquela alínea b) do nº1.

Mesmo no que tange ao elemento subjetivo, embora de forma que não prima pela correção técnica [já que não faz constar as considerações que tece a este propósito, da parte da decisão com a epígrafe “Matéria de Facto” e sim do segmento com a epígrafe “Da Culpa do Agente”], a decisão explana como, a partir dos factos objetivos e concatenando-os com as regras de experiência comum, conclui estar provado que a arguida agiu com dolo. Com efeito, ali consta que:

 “O(a) arguido(a) tinha o dever de adotar a conduta adequada à lei em causa, na medida em que o comerciante tem o dever de se informar sobre as obrigações legais que regem a sua atividade comercial.

Acresce a circunstância de tais obrigações legais já se encontrarem previstas há tempo suficiente na ordem jurídica, para que o(a) arguido(a) se pudesse orientar e agir em conformidade com as normas em vigor.

Assim, uma vez que estas regras não podem ser ignoradas e desprezadas por parte dos agentes económicos, não se compreende que o(a) arguido(a) não tivesse providenciado no sentido de que os incumprimentos não ocorressem, pelo que se conclui pela censurabilidade da sua ação.

               (…)

Ora no caso sub judice, o(a) arguido(a) sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigado(a) a divulgar as informações pré-contratuais, designadamente o direito de livre resolução do contrato, o respetivo prazo e o procedimento para o exercício do direito, bem como a informar a data de inicio e o período de duração da venda com redução de preço que realizava optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, pelo que se considera que agiu com dolo eventual.”

Como bem assinala o Ilustre Desembargador Cruz Bucho no acórdão de 24-09-2007 do Tribunal da Relação de Guimarães[5], por si relatado, a propósito do conteúdo do dever de fundamentação que se impõe à autoridade administrativa na decisão que profere:

III – Por isso, sublinham os Consº Simas Santos e Lopes de Sousa, as exigências feitas no citado artigo 58° “devem considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercido desses direitos” (Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 3° ed., Lisboa, 2006, pág. 387)

IV – Mesmo aqueles para quem o incumprimento do dever de fundamentação da decisão administrativa constitui nulidade nos termos do artigo 379° do Código de Processo Penal, são forçados a admitir que “uma vez que tal decisão é proferida no domínio de uma fase administrativa sujeita às características da celeridade e simplicidade aquele dever de fundamentação deve assumir uma dimensão menos intensa em relação a uma sentença.

V – O que deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e de direito que levaram à sua condenação, possibilitando-lhe um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, já em sede de impugnação judicial ao tribunal conhecer o processo lógico da formação da decisão administrativa” (Ac. da Rel. de Coimbra de 4-6-2003, CoI. De Jur. Ano XXV!lI, tomo 3, pág 40; no mesmo sentido sublinhando que os preceitos do processo penal deverão ser devidamente adaptados cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 23-4-2000, procº nº 1223/03, in www.trc.pt).

VI – Acresce que, devendo a fundamentação ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa é a questão a decidir, no caso dos autos, a questão se reveste extrema simplicidade, não requerendo nenhuma fundamentação especial para que se torne clara para a arguida como de resto, para qualquer cidadão: foi-lhe imputado o facto de a mesma funcionar com o estabelecimento de restauração e bebidas há cerca de um ano, sem possuir a respectiva licença de utilização

VII – No caso concreto, a fundamentação da decisão é mais do que suficiente, uma vez que a arguida, através da impugnação que deduziu nos autos, demonstrou conhecer perfeitamente os factos que lhe eram imputados e as razão por que tais factos lhe foram imputados, sendo certo, por outro lado que, é obvio, face ao seu teor, qual o processo lógico da formação daquela decisão Administrativa.”

 Assim, os requisitos exigidos pelo artigo 58º do RGCO visam garantir que o destinatário da decisão administrativa exerça, de forma cabal, os seus direitos de defesa e tal mostra-se assegurado sempre que aquela decisão, ao nível da fundamentação de facto, contenha “a descrição dos factos imputados”.

Tal descrição deve permitir ao arguido perceber qual a conduta que lhe está imputada, isto é, a sua leitura deve permitir compreender, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais o agente é condenado, de modo a que este possa adequadamente impugnar os fundamentos dessa condenação.

Tem sido este o entendimento da jurisprudência, de que são exemplos os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Junho de 2003, (Santos Cabral Coletânea, Tomo III, pp. 40) e da Relação de Lisboa de 19 de Maio de 2004, www.dgsi.pt processo 2448/2004-4, Duro Mateus Cardoso) e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Março de 2011, processo 583/09.0T2OBR.C1, Paulo Guerra e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 4 de Abril de 2004, (www.dgsi.pt processo 483/04-1 Ribeiro Cardoso).

Ainda no mesmo sentido, também Oliveira Mendes e Santos Cabral salientam que “o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal.”[6]

Alega a arguida que a factualidade atinente ao dolo não vem descrita na decisão.

É certo que sob a epígrafe “Matéria de Facto”, como já se assinalou supra, não consta qualquer referência ao elemento subjetivo.

Sucede, porém, que a decisão administrativa não é uma sentença, nem tem que obedecer ao formalismo da sentença penal.

Na verdade, como assertivamente se refere no Acórdão da Relação de Lisboa, de 20/06/2017[7]:

I. As exigências formais no processamento das contra-ordenações não se equiparam às do processo penal, apresentando aquelas autonomia decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores;

II. Apesar de, na parte relativa aos factos provados, apenas constarem os que integram o elemento objectivo da infracção, referindo a decisão administrativa na parte decisória que a arguida "... agiu com dolo, já que toda a acção ilícita foi praticada de forma voluntária e com pleno conhecimento que incumpria os requisitos estabelecidos ...", deve entender-se que da decisão administrativa constam os factos relativos ao elemento subjectivo da infracção imputada;

III. A expressão "dolo" tem um sentido claro no uso vulgar de cada cidadão para que o agente possa saber do que se trata quando uma infracção lhe é imputada a esse título, o que permite ao arguido adequada impugnação do fundamentos da condenação e exercício dos seus direitos de defesa.”

Ora, voltando ao caso vertente, como se viu, verifica-se que na decisão administrativa consta, na parte atinente ao direito, mais concretamente no subcapítulo “Culpa”, a referência à circunstância de a arguida ter sabido, previsto e aceitado a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigada a divulgar as informações pré-contratuais, designadamente o direito de livre resolução do contrato, o respetivo prazo e o procedimento para o exercício do direito, bem como a informar a data de inicio e o período de duração da venda com redução de preço que realizava optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, pelo que se considera que agiu com dolo eventual.

É certo que, no rigor dos princípios, estamos em presença de uma conclusão jurídica, não estando descrita na parte atinente aos elementos de facto descritos na decisão em causa.

Porém, como se disse, e ora se reitera, em sede de decisão administrativa não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial.

Na verdade, a leitura atenta da decisão administrativa proferida conduz à conclusão de que, embora do ponto de vista formal a peça apresentada não prime pelo rigor técnico - na medida em que deveria conter uma melhor concretização na indicação dos elementos subjetivos da prática da infração - aborda de uma forma perfeitamente aceitável o elemento subjetivo, acabando por considerar que a arguida agiu com dolo eventual e o porquê dessa conclusão.

Daí que se possa concluir que, sem ser modelar nesse âmbito, a decisão administrativa contém os elementos imprescindíveis para a caracterização daquela matéria atinente à atuação dolosa da Recorrente, não afetando, assim, as garantias de defesa, nem dificultando o exercício do direito de impugnação judicial, uma vez que a arguida não ficou privada de apresentar os argumentos que entendesse úteis e também não ficou impedida de invocar todos os elementos de facto e de direito suscetíveis de permitirem ao tribunal a apreciação dessa matéria.

Ademais, há que sublinhar que a arguida, por via da impugnação judicial que oportunamente deduziu, revelou perfeito entendimento dos factos que lhe foram imputados na decisão administrativa, e a que título o foram, o que significa que a fundamentação da decisão, tal como se encontra exarada, foi suficiente para permitir o exercício do direito de defesa.

Assim, improcede a arguição de nulidade da decisão administrativa.

 

3.3. – Da nulidade da decisão judicial em recurso por violação do princípio da legalidade e por constituir uma “decisão surpresa” face à circunstância de incluir factos relativos ao elemento subjetivo que não constavam da decisão administrativa.

Como resulta do acima exposto, a questão colocada pela Recorrente [Conclusões 16. a 22.], mostra-se, em parte, decidida no sentido da improcedência do recurso, também nesta parte, uma vez que se considerou que a decisão administrativa contém os elementos necessários à compreensão do elemento subjetivo constitutivo das infrações imputadas à Recorrente.

Trataremos, pois, de forma breve, de abordar a questão de saber se a decisão judicial, por descrever factos integradores do elemento subjetivo - agora de forma tecnicamente adequada, tendo em conta as exigências colocadas a uma decisão judicial – constitui uma “decisão surpresa”, ferida de nulidade.

Está em causa o ponto 6. da matéria de facto provada, o qual é do seguinte teor: “A arguida/Recorrente …., ao actuar conforme descrito, agiu livre, voluntária e conscientemente, representando como consequência possível da sua conduta a violação de um comando legal, não se abstendo, todavia, de a empreender, conformando-se com a produção desse mesmo resultado.” 

Considera a Recorrente que se trata de um facto novo que não constava da decisão administrativa, tendo o Tribunal violado, dessa forma, o princípio da legalidade, pois que a responsabilidade contraordenacional não pode ter por base presunções, mas sim factos.

Conforme pensamos ter explicitado supra, analisada pormenorizadamente a decisão administrativa, constata-se que o facto em causa, dado como provado pelo Tribunal a quo, não diverge, no essencial, daquilo que já daquela constava a esse propósito, pois nada de verdadeiramente novo acrescenta ao que aí se mostra consignado. O Tribunal limita-se, no ponto referido, a traduzir de uma forma tecnicamente correta aquilo que já constava da decisão administrativa, não existindo qualquer “surpresa” ao nível factual para a Recorrente.

Não ocorre, pois, qualquer alteração substancial nem mesmo não substancial dos factos, tal como é definida nos artigos 359º e 358º do Código de Processo Penal, respetivamente.

Mas mesmo admitindo que este “facto”, leia-se, “esta descrição factual”, não constava da decisão administrativa, mesmo assim, não ocorre qualquer nulidade.

Vejamos.

Na verdade, há muito se vem entendendo que o juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial de autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão. Ponto é que o Tribunal não proceda à alteração substancial dos factos constantes da acusação, sob pena de cerceamento das garantias de defesa do arguido[8].

A Recorrente invoca um vício atinente à matéria de facto considerada provada e que seria causa de nulidade não sanada da sentença. Seria o caso de se terem dado como provados factos que não constavam da acusação, considerando-se como tal o texto da autoridade administrativa que aplicou a coima (artigo 62.º, n.º 1, do RGCO).

Não obstante, ao nível dos factos, não vigora nesse caso o princípio da “reformatio in pejus” e compete ao juiz promover oficiosamente a prova de todos os factos que considere relevantes para uma decisão correta (artigo 72.º, n.ºs 1 e 2 do RGCO). Mesmo no recurso da decisão judicial que for lavrada, o Tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, tendo como único limite o estabelecido no artigo 72º-A do RGCO (artigo 75.º, n.º 2, al. a) do RGCO).

Como de forma pertinaz se escreve no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/02/2013[9]:

«No âmbito do processo de contra-ordenação costuma falar-se em duas fases de natureza distinta: uma fase administrativa do processo e uma fase judicial. A primeira fase processual, decorre sob a direção de uma autoridade administrativa. Começa pela notícia da infração e, após investigação e instrução, culmina com uma decisão propriamente dita, que pode ser de arquivamento ou condenatória.

A segunda fase do processo de contra-ordenação, chamada de fase judicial, inicia-se com o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, designando um conjunto de atos processuais que vão da interposição do recurso à decisão do mesmo nos tribunais (art. 62.º e seguintes do RGCOC). Interposto recurso de impugnação judicial os autos são enviados ao Ministério Público, «que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação» (art.62.º, n.º 1 do RGCOC). Há jurisprudência que interpreta este preceito no sentido de que a “acusação” é todo o processo e que “os atos passíveis de apreciação pelo tribunal são os que resultam de todo o processo”[Ac. Da Relação de Coimbra de 23-03-2001 CJ, Ano XXVI, Tomo 3, pág. 38.], ou dito de outro modo, que “a acusação se plasma no conjunto do processo administrativo”[ Ac. Rel. Évora de 23.04.2002, CJ, Ano XXVII, Tomo 2, pág. 285.].

Pese embora a lei mencione que a remessa dos autos ao Ministério Público vale como acusação, entendemos que, com o recurso de impugnação da decisão administrativa, não é todo o processo que se converte em acusação, mas apenas a decisão administrativa. Como refere o Dr. Manuel Ferreira Antunes “Quando o recorrente interpõe o recurso, ainda não há acusação, mas, logo que o recurso seja introduzido em juízo, tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse a acusação […]. Na verdade, com a interposição do recurso, a decisão condenatória transforma-se na acusação” [In Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional, SPB Editores, 1997, pág. 172.].

Neste sentido, também o STJ no Assento nº 1/2003, refere que «…a decisão administrativa de aplicação de uma coima só virtualmente constituirá uma “condenação”, pois que, se impugnada, “tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse a acusação”[ In DR, I Série-A, de 25.01.2003.].»

Ora, a intervenção corretiva efetuada pelo Tribunal a quo foi apenas de caráter técnico. Isto é, limitou-se a traduzir em factos aquilo que já constava da decisão administrativa no que concerne ao elemento subjetivo constitutivo das contraordenações em causa nos autos.

Nessa medida, não houve qualquer alteração da matéria de facto ou da qualificação jurídica, inexistindo qualquer agravamento ao nível da sanção aplicada, pelo que não ocorreu qualquer alteração substancial ou não substancial prevista nos artigos. 358º e 359º do Código de Processo Penal, aplicáveis por força do disposto no artigo 41º nº 1 do RGCOC, já que a decisão da 1ª instância se limitou a corrigir, ao nível da descrição factual o que já constava da decisão administrativa impugnada.

Também Cruz Bucho escreve[10]:

 «Como refere Pinto de Albuquerque, “o regime da alteração dos factos na audiência de julgamento no processo contra-ordenacional rege-se por outros critérios, uma vez que o tribunal procede a uma renovação da instância com base na remessa dos autos e não a uma mera reforma da decisão administrativa recorrida, devendo por isso ter em conta toda a prova já produzida nos autos e a que vier a ser produzida na audiência de julgamento, bem como todos os factos que dela resultem, mesmo que não tenham sido incluídos na decisão administrativa recorrida (acórdão do TRC, de 10.1.2007, in CJ, XXXII, 1, 37, e acórdão do TRL 15.2.1995, CJ., 1995, 2, 134)” –Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2007, págs. 901-902, anotação 26 ao artigo 359º. Vejam-se, também, em sentido não totalmente convergente, os Acs. da Rel. do Porto de 27-1-1997, proc.º n.º 9740337, de 22-1-1997, proc.º n.º9640915, ambos in www.dgsi.pt e da Rel. de Coimbra de 24-3-1999, Colectânea de Jurisprudência, ano XXIV, tomo 2, pág. 48 e, na doutrina, Borges de Pinho, Das Contraordenações, Coimbra, Almedina, 2004, págs. 56-57, Manuel Ferreira Antunes, Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional, Lisboa, SPB- Editores & Livreiros, 1997, págs. 97-99.»

Atento tudo o exposto, sublinhando que se considera que não houve qualquer alteração de factos, não ocorre qualquer nulidade da decisão judicial pelo que, também nesta parte o recurso improcede.

3.4. – Da nulidade da decisão judicial por não cumprir a obrigatoriedade de informar a arguida se no caso dos autos vigora, ou não, o princípio da “reformatio in pejus” e da  nulidade da decisão administrativa por a mesma não indicar as normas que preveem e punem as condutas que descreve e subsequente nulidade da decisão judicial por não lhe ser lícito fazer incluir tais normas.

Abordaremos as questões supra enunciadas em simultâneo, na medida em que é manifesta a sua improcedência.

Vejamos.

Em primeiro lugar, compulsadas as conclusões 23. a 25. do recurso verifica-se que a pretensão da Recorrente não se mostra fundamentada em qualquer norma legal ou princípio.

Com efeito, o artigo 72º-A do RGCO estabelece a proibição da “reformatio in pejus”, definindo o conteúdo e os limites de tal proibição.

Não obstante, compulsado o teor do artigo 58º do RGCO, preceito que, como se explicitou supra, estabelece quais os elementos que devem, obrigatoriamente, constar da decisão administrativa e que devem ser comunicados ao seu destinatário, dele não consta qualquer referência à obrigatoriedade de informar o notificando nos termos mencionados pela Recorrente.

Aquela obrigatoriedade não existe[11], sendo certo que a Recorrente também não esclarece de onde a mesma decorre, na sua perspetiva.

Quanto à segunda questão, permitimo-nos transcrever o douto parecer do Ministério Público: “Ser igualmente incorrecta, por último, a alegação de que a decisão proferida pela autoridade administrativa não teria indicado as normas legais que prevêem e punem as infracções pelas quais a ora recorrente foi condenada, uma vez que tais normas constam expressa e claramente de tal decisão (ainda que, mais uma vez, não sejam reproduzidas na parte dispositiva de tal decisão, conforme deveria suceder se estivéssemos perante uma sentença proferida em processo penal)”.

Atento tudo o exposto, improcede o recurso, também nesta parte.

                                                           *

Conforme já aludido supra, aquando da enunciação das questões a conhecer, cabe averiguar, oficiosamente, se ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal, aplicável ao processo de contraordenação, ex vi artigos 75º e 41º do RGCO.

O artigo 3º do RGCO é do seguinte teor:

            Portanto, à semelhança do que ocorre no Processo Penal, o Tribunal no momento da decisão, deve atentar na circunstância de, eventualmente, entre o momento da prática dos factos e o momento da decisão, ter ocorrido alteração da lei que prevê e pune  a conduta apurada nos autos e, caso se verifique tal alteração, deve proceder a um exercício de aplicação ao caso de um e outro regime para, comparando o resultado, optar, obrigatoriamente, por aquele se se mostre, em concreto, mais favorável para o arguido.

            No caso dos autos, embora tenha existido, entre a data da prática dos factos (18-02-2020) e a data da decisão judicial (21-04-2023) alteração da redação das leis aplicáveis, não foi feito pelo Tribunal a quo o exercício a que se aludiu supra.

            Façamo-lo, então.

Da comparação dos regimes salta à vista que, a ponderação relativamente ao que se mostra mais favorável à arguida está dependente de saber que tipo de pessoa coletiva é a arguida, nos termos definidos pelo RJCE.

Na verdade, se se tratar de uma microempresa, a moldura abstrata a considerar é substancialmente inferior à que era aplicável à data da prática dos factos (coima com o mínimo de €2 500,0 e máximo de €25 000,00), já se se tratar de uma pequena, média ou grande empresa, as molduras abstratas a considerar têm limites mínimos muito superiores ao previsto pela lei na data da prática dos factos, pelo que, a sua aplicação vem a revelar-se, necessariamente, menos favorável.

Ora, a decisão em recurso não contém quaisquer factos que permitam saber qual o tipo de pessoa coletiva que está em causa, impedindo, assim, a ponderação do regime mais favorável.

O nº3 do preceito transcrito prevê a hipótese de “não ser possível determinar a dimensão da empresa para efeitos de aplicação dos números anteriores”, no entanto, não é esse o caso dos autos, na medida em que, nenhumas diligências foram levadas a cabo pelo Tribunal no sentido de apurar essa factualidade.

Nessa medida, a decisão judicial em recurso padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal.

No que concerne ao Decreto-lei nº70/2007 de 26-03.

Ora, neste caso é manifesto que o regime legal atualmente em vigor é menos favorável à arguida.

Assim, é de manter a decisão no que concerne à contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 4º nº1 e 16º nº1 alínea b) do Decreto-lei nº70/2007 de 26-03, uma vez que, apesar de a lei ter sofrido alterações, as mesmas não são aplicáveis por representarem um agravamento da situação da arguida – assim se cumprindo o disposto no artigo 3º do RGCO.

Em conclusão, pese embora o recurso não tenha provimento no que tange às nulidades nele arguidas pela Recorrente, confirmando-se a decisão no que tange à condenação pela prática da contraordenação prevista e punida pelos artigos 4º nº1 e 16º nº1 alínea b) do Decreto-lei nº70/2007 de 26-03, determina-se o reenvio dos autos para sanação do vício a que alude o artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal, para apuramento da factualidade mencionada, e fixação da coima a aplicar no que concerne à contraordenação prevista e punida pelos artigos 4º e 31º do Decreto-lei no 24/2014 de 14-02, devendo, após fixação da coima concreta, ser fixada a coima única.

O apuramento dos factos poderá ser levado a cabo mediante a marcação de julgamento, ou por despacho, observados que sejam os respetivos pressupostos legais.

III. DISPOSITIVO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal o Tribunal da Relação de Coimbra em:

a) Julgar improcedentes as nulidades arguidas no recurso, que improcede.

b) Determinar o reenvio parcial do processo, tendo em vista o apuramento de factos nos termos apontados e posterior fixação da coima única a aplicar, a levar a efeito nos termos dos artigos 426º e 426º-A do Código do Processo Penal, com as devidas adaptações, tendo em conta o disposto no artigo 64º do RGCO.

            Sem tributação.


(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP)

                                               Coimbra, 13-12-2023       

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (Relatora)

Helena Lamas (1ª Adjunta)

Capitolina Fernandes Rosa (2ª Adjunta)

(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)






[1] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, …
[2] Prolatado no âmbito do processo nº 2122/11.3TBPVZ.P1, Relator: Joaquim Gomes, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[3] in “Direito das Contra-Ordenações”, Almedina, Reimpressão, 2019, págs. 65/66
[4] Disponível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080336.html
[5] Acórdão prolatado no âmbito do processo nº1403/07-1, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[6] In “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, 3ª ed. Almedina, p. 191 a 194.
[7] Prolatado no âmbito do processo nº127/16.7TNLSB.L1-5, Relator: Vieira Lamim, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[8] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-02-1995, prolatado no âmbito do recurso nº33525, publicado na Coletânea de Jurisprudência, Ano XX, tomo II, página 134.
[9] Prolatado no âmbito do processo nº5614/10.8TBVFR.P1; Relator: Eduarda Lobo, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[10] “Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal”, in Revista Julgar, nº9 – 2009, Coimbra editora, nota 13, página 46
[11]