Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2133/15.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: SERVIDÃO DE AQUEDUTO
SERVIDÃO DE PASSAGEM A PÉ
ARGUIÇÃO
PROCESSO
Data do Acordão: 01/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. LOCAL – SEC.CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1544º, 1547º E 1561º C. CIVIL.
Sumário: I) O direito de servidão de aqueduto e de servidão de passagem podem ser invocados em mera defesa por excepção peremptória, nada obrigando processualmente a um pedido reconvencional de reconhecimento de tais direitos.

II) O critério diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na circunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coactivamente, sendo que a circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os donos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem essa natureza.

III) A passagem a pé, pelos donos do prédio dominante, pelo prédio serviente, para acompanhamento de águas que circulam pelos aquedutos existentes no prédio serviente pode legitimar-se num direito de servidão de passagem autónomo e complementar do direito de servidão de aqueduto ou num mero adminucula servitutis do próprio direito de servidão de aqueduto.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

O autor propôs contra os réus a presente acção declarativa com a forma de processo comum pedindo que os réus sejam condenados a: a) reconhecer que o prédio identificado no artigo 1º da petição é do autor; b) retirarem o tubo de condução de águas que atravessa o logradouro da habitação do autor, desde o caminho público, a sul, até ao tanque dos réus, a norte; c) absterem-se de, por qualquer forma ou a qualquer titulo, transitarem de pé, de e para os seus prédios até ao e do, respectivamente, caminho público; d) retirarem o portão de ferro que colocaram no prédio do autor; e) retirarem do prédio do autor os peirões e os arames que nele colocaram ultrapassando a linha de estrema, bem definida por um alinhamento de pedras e peirões; f) pagarem ao autor a título de compensação pela diferença de custos das obras actuais no cotejo com as obras realizadas daqui a um ou dois anos a quantia de € 5.000.

Como fundamento das suas pretensões, alegou, em resumo, que: é dono e legitimo possuidor do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição e do rústico identificado no artigo 2º do mesmo articulado; os réus são proprietários dos prédios identificados no artigo 9º da petição; aproveitando-se da ausência dos antepossuidores do autor no Brasil, os réus passaram a transitar pelo prédio urbano do autor de forma abusiva, de pé, de e para os seus prédios, fazendo atalho, em vez de percorrerem no caminho público uns poucos mais passos, bem como a transitar pelo mesmo prédio para acompanhar as águas de irrigação, de uma poça exterior, que encaminharam por um tubo, junto ao muro do vizinho, a nascente, até um tanque que edificaram na sua estrema sul; os réus colocaram peirões e arames a suportar videiras próprias, para lá da linha de estrema norte, ocupando mesmo o espaço sob o telhado da habitação do autor e colocaram um portão de ferro no terreno envolvente, impedindo o autor de aceder à parte norte da sua casa e de circular em todo o perímetro desta; com tais condutas os réus ocasionaram ao autor atrasos no início das obras de conservação do seu prédio urbano.

Citados, os réus apresentaram contestação, pugnando pela improcedência da acção.

Alegaram, em resumo, que não violaram qualquer direito de propriedade do autor com a colocação dos arames, peirões e portão referidos na petição, os quais foram implantados no prédio dos réus, assistindo a estes, por outro lado, direitos de servidão de aqueduto e de passagem sobre o prédio urbano do autor cujos factos constitutivos melhor descrevem na petição.

O autor respondeu à contestação dos réus, impugnando a versão de facto apresentada pelos réus e concluindo nos mesmos termos em que já o tina feito na petição inicial.

Prosseguiram os autos os seus regulares trâmites, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:

Por tudo o exposto, julga-se a presente acção procedente por provada e em consequência condenam-se os réus a:

a) Reconhecerem que o autor D... é dono e legítimo proprietário do prédio identificado no ponto 1) da factualidade provada, com o logradouro constante do ponto 6) e os limites aludidos de 14) a 18) da factualidade provada.

 Absolvem-se os réus dos demais pedidos formulados.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o autor, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Os réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a sentença recorrida condenou além do pedido;

2ª) se a sentença recorrida não podia ter reconhecido, por a tanto obstar o art. 1561º/1 do CC, uma servidão legal de aqueduto sobre o prédio urbano de que o autor é dono;

3ª) se a sentença recorrida não podia ter reconhecido, por a tanto obstar o art. 1565º do CC e a circunstância de estarem em causa aquedutos subterrâneos, a servidão de passagem a pé pelo prédio identificado no ponto 1º) dos factos provados para acompanhamento da água que circula naqueles aquedutos durante todo o ano;

4ª) se os réus deveriam ter sido condenados a pagar uma indemnização ao autor pelo facto de persistirem em transitarem pelo prédio do autor, sobre os aquedutos de condução de águas para o prédio dos réus, na parte em que os mesmos estão implantados no prédio urbano do autor, assim atrasando obras de restauro e ampliação deste último prédio.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

...

B) De direito

Primeira questão: se a sentença recorrida condenou além do pedido.

Nos termos do art. 609º/1 do NCPC “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.”, estatuindo o art. 608º/2 do NCPC que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”.

No caso em apreço, o autor deduziu conta os réus os seguintes pedidos: “Deve a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência os RR. condenados:

a) a reconhecer que o prédio identificado no artigo 1º desta, com a identificação aí descrita, é do A.;

b) a retirarem o tubo de condução de águas que atravessa o logradouro da habitação do A. desde o caminho público a sul até ao seu ( dos RR.) tanque , a norte;

c) a absterem-se de, por qualquer forma ou a qualquer titulo , transitarem de pé , de e para os seus prédios até ao e do, respectivamente, caminho público;

d) a retirarem o portão de ferro que colocaram no prédio do A. ( ver foto)

e) a retirarem do prédio do A. os peirões e os arames que nele colocaram ultrapassando a linha de estrema, bem definida por um alinhamento de pedras e peirões, como a foto mostra.

f) a pagarem ao A. a titulo de compensação pela diferença de custos das obras actuais no cotejo com as obras realizadas daqui a um ou dois anos, a quantia de € 5 000,00 ( cinco mil euros), com custas e condigna procuradoria a seu (dos RR.) cargo.”.

Conhecendo desses pedidos, a sentença recorrida decidiu nos seguintes termos:

Por tudo o exposto, julga-se a presente acção procedente por provada e em consequência condenam-se os réus ... a:

a) Reconhecerem que o autor D... é dono e legítimo proprietário do prédio identificado no ponto 1) da factualidade provada, com o logradouro constante do ponto 6) e os limites aludidos de 14) a 18) da factualidade provada.

Absolvem-se os réus dos demais pedidos formulados.”.

A questão ora em apreço suscita-se, apenas, em relação à improcedência que o tribunal recorrido decretou dos pedidos constantes das alíneas b) e c) do petitório com o fundamento de que o prédio urbano do autor identificado no ponto 1º) dos factos provados está onerado, em benefício do prédio dos réus identificado no ponto 3º) dos factos provados, com uma servidão de aqueduto e com um “…direito acessório de servidão de passagem para acompanhamento da água …” que por aquela servidão de aqueduto transita “…durante todo o ano…”.

Crê-se que o autor suscita a questão em causa por considerar que os réus não sustentaram nos autos a existência daquelas servidões de aqueduto e de passagem.

É o que se depreende das seguintes passagens das alegações de recurso:

Explanando essa errada interpretação e aplicação do direito, determinante do decesso da acção que, de facto e de direito, merecia a integral procedência, o recorrente vai procurar traduzi-la em factos que relacionará e esquematizará relativamente aos pedidos formulados e à “declaração” de direitos dos réus, sem que estes os hajam pedido por via de excepção, reconvenção ou subsidiariedade, numa autêntica condenação para além do pedido.”.

Os RR. contestaram por impugnação e não deduziram excepção peremptória (arts. 576º a 579º CPC), pedido subsidiário (art. 554º CPC) ou pedido reconvencional (art. 583º ss CPC) , limitando-se a pedir a sua absolvição dos pedidos “tout court”;”.

Não acompanhamos o apelante.

Com efeito, face aos pedidos formulados pelo autor de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel identificado no ponto 1º) dos factos provados e consequente condenação dos réus a “…retirarem o tubo de condução de águas que atravessa o logradouro da habitação do A. desde o caminho público a sul até ao seu (dos RR.) tanque, a norte” e a “a absterem-se de, por qualquer forma ou a qualquer titulo, transitarem de pé, de e para os seus prédios até ao e do, respectivamente, caminho público”, os réus sustentaram claramente na contestação que estes dois últimos pedidos deveriam improceder pela circunstância de sobre aquele prédio do autor estarem constituídas, “…duas servidões de aqueduto para agricultura…” e “…uma servidão atípica, ou complementar ou acessória, de acompanhamento a pé…”, “…o que os legitima nos actos praticados e faz improceder os pedidos efectuados sobre as alíneas b) e c) da P. I.”. – arts. 40º e 41º da contestação.

Por outro lado, os réus alegaram os factos de que, no seu entender, emergiram os alegados direitos de servidão – arts. 25º a 39º da contestação.

A significar que em relação aos pedidos contantes das citadas alíneas b) e c) os réus se defenderam por excepção peremptória[1] com base na alegação de factos modificativos, por restrição do seu conteúdo, do direito de propriedade do autor sobre o prédio identificado no ponto 1º) dos factos provados.

Importa referir, também, que nenhum normativo impunha processualmente aos apelados a obrigação de peticionarem reconvencionalmente o reconhecimento das servidões a que se arrogam na contestação, não lhes estando vedada a invocação dessas mesmas servidões exclusivamente por via de defesa por excepção.

Neste enquadramento, ao decretar a improcedência desses pedidos com o fundamento nela invocado a sentença recorrida cumpriu o comando normativo decorrente do estatuído no art. 608º/2 do NCPC no sentido de conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, por consequência do que não violou a restrição imposta no nº 1 do art. 609º do NCPC e traduzida na proibição de condenação além do peticionado.

Segunda questão: se a sentença recorrida não podia ter reconhecido, por a tanto obstar o art. 1561º/1 do CC, uma servidão legal de aqueduto sobre o prédio urbano de que o autor é dono.

Sustenta o apelante que sendo urbano o prédio identificado no ponto 1º) dos factos provados, tendo em conta que os aquedutos reconhecidos na sentença recorrida atravessam o logradouro da casa de habitação construída naquele prédio, e atendendo a que os réus não demonstraram ter direito às águas que circulam por aqueles aquedutos, o estatuído no art. 1561º/1 do CC obsta ao reconhecimento das servidões de aqueduto afirmadas pela dita sentença.

Não acompanhamos o apelante, já que o seu posicionamento parte de um entendimento que também não acompanhamentos quanto à natureza das servidões em questão[2] e quanto à aplicabilidade ao caso dos autos daquele art. 1561º.

Importa ter presente, antes de mais, a distinção que tem de ser levada a efeito entre diferentes modalidades ou tipo de servidões

Como ensina Mota Pinto (Direitos Reais, Almedina, 1975, pp. 329/330, ao proceder à classificação e distinção entre servidões voluntárias e legais, «As legais se traduzem no poder de constituir coercivamente uma servidão…., estendendo-se esta designação à própria servidão constituída, sendo voluntária a que resulta do acordo das partes, sem haver preceito legal que a imponha.”, referindo na página 324, ainda a propósito de servidão legal, que “Há, porém, certas hipóteses em que a lei prevê a possibilidade de um individuo, mediante o exercício de um direito potestativo, criar uma servidão, falando-se, então, em servidão legal.”, aludindo a seguir que uma dessas hipóteses é “As chamadas servidões legais de passagem.”.

Caracterizando e diferenciando as modalidades ou tipo de servidões, escreve Oliveira Ascensão (Direito Civil – Reais, 5ª edição, p. 258) que a expressão servidões legais é utilizada “Para designar certas categorias de servidão que podem ser coactivamente impostas.”, apontando como exemplo as servidões de trânsito ou passagem previstas nos arts. 1550º a 1556º do Cód. Civil.

Nestes casos, “As servidões são legais porque, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa (art.º 1547, n.º 2, do Cód. Civil).”.

Acrescenta nas páginas 259 e 260, depois de aludir à constituição deste tipo de servidão e ao poder potestativo de a impor, que «Servidão coactiva não é a que foi coactivamente imposta, mas a que poderia ter sido…Se as partes, por contrato, por exemplo, regularem a sua situação, o legislador não deixa de considerar existente uma servidão legal. Este princípio tem a sua consagração legal no art.º 1569º, n.º 3, do Cód. Civil, que dispõe a extinção por desnecessidade das servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição. Com isto se quer dizer que, verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se constituir se deve sempre considerar legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada.”.

No mesmo sentido, ensina Carvalho Fernandes que “A distinção entre servidões legais e servidões voluntárias estabelece-se em função da modalidade do título constitutivo, mas não nos termos singelos que os correspondentes qualificativos sugerem. Assim, se as servidões voluntárias são as constituídas por negócio jurídico ou acto voluntário, já não é correcto ver as servidões legais como as constituídas por lei.

De resto, o legislador esclarece o verdadeiro âmbito das servidões legais, ao defini-las, no nº 2 do artigo 1547º, como as que, não sendo constituídas voluntariamente, podem sê-lo por sentença judicial ou por decisão administrativa, consoante os casos. Servidão legal, hoc sensu, é, pois, a que pode ser constituída coercivamente. Servidões legais, no Código Civil, são as de passagem e as de águas, reguladas, respectivamente nos artigos 1550º, 1556º e 1557º e seguintes.” (Lições de Direitos Reais, 4ª ed., p. 440).

Como se escreveu no acórdão da Relação do Porto de 26/6/2001, proferido no processo 0120953, “Uma primeira distinção é necessário fazer, quanto à natureza e constituição das servidões, entre servidões voluntárias ou por facto do homem e servidões legais.

Há que entender em termos hábeis as expressões voluntárias e legais. As servidões voluntárias constituem-se por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família - 1547º, nº 1; as legais podem constituir-se voluntariamente pelos mesmos meios, mas têm de característico poderem ser constituídas também, na falta de constituição voluntária, por sentença judicial ou, se caso disso, por decisão administrativa - 1547º, nº 2.

Se as servidões legais fossem, na verdadeira acepção do termo, «legais», resultariam ipso jure da lei e não estaríamos então perante verdadeiras servidões, mas perante restrições objectivas aos direitos reais. O que precisamente distingue as servidões das restrições é que aquelas têm origem num acto (negócio jurídico ou sentença) e estas resultam ipso jure de uma dada situação de facto em que ab origine se encontram os prédios por elas afectados [P. Lima e A. Varela, Anotado, III, notas ao art. 1547º.].

Num primeiro momento, a servidão legal é um simples direito potestativo que confere ao respectivo titular a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente da vontade do dono deste.

Num segundo momento, exercido o direito potestativo e constituída assim, por acordo das partes ou, na falta de acordo, por sentença ou acto administrativo, a relação de carácter real a que tendia esse direito, a servidão legal converte-se numa verdadeira servidão, ou seja, num encargo excepcional sobre a propriedade. Quer isto dizer que, nas servidões legais, a verdadeira servidão só mediatamente é imposta por lei; a fonte imediata desta reside na vontade das partes, na sentença constitutiva ou no acto administrativo.

O que verdadeiramente caracteriza a servidão legal é o facto de, para aqueles casos especialmente previstos na lei, o proprietário do prédio dominante poder impor ao dono do prédio que virá a ser o serviente, contra a vontade deste, a servidão que a lei previu. Não que não possam as partes acordar na sua constituição.

Em confronto com as demais servidões e quanto ao modo por que podem constituir-se, as servidões legais distinguem-se apenas pela possibilidade de, na falta de constituição voluntária, serem impostas coercivamente. Verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se constituir deve considerar-se sempre legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada [H. Mesquita, RLJ 129º-255.].”.

Flui de tudo quanto vem de referir-se que o decisivo critério diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na circunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coactivamente, sendo que a circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os donos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem essa natureza – sobre esta temática e neste mesmo sentido podem consultar-se Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, 1985, p. 194, Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, vol. III, notas ao art. 1547º, acórdãos do STJ de 28/10/2014, proferido no processo 750/03.0TCGMR.G1.S1, da Relação do Porto de 7/4/2005, proferido no processo 0531170, da Relação de Coimbra de 25/3/2014, proferido no processo 482/11.5TBVIS.C1

No caso em apreço, resulta dos pontos 1º, 6º, 20º a 24º dos factos provados que os aquedutos em que se materializam as servidões reconhecidas na sentença recorrida atravessam terreno rústico (o denominado rocio) que faz parte integrante do prédio urbano identificado no ponto 1º) dos factos provados, sendo contíguo à casa de habitação que está construída nesse mesmo prédio urbano.

A significar que jamais os réus podiam impor ao autor a servidão legal de aqueduto a que se reporta o art. 1561º do CC, pois que os aquedutos em questão estão implantados em prédio urbano com terreno rústico contíguo a casa de habitação que aquele normativo isenta da imposição coactiva de uma servidão legal de aqueduto.

Simplesmente, não foram servidões correspondentes a tal servidão legal aquelas que foram reconhecidas na decisão recorrida.

Ao invés, a sentença recorrida reconheceu a existência de servidões voluntárias de aqueduto, constituídas por usucapião, nos termos consentidos pelos arts. 1544º e 1547º/1 do CC, servidões essas que pelas apontadas razões não podiam ser impostas ao abrigo do art. 1561º citado e que por isso não estão sujeitas às limitações decorrentes da disciplina legal instituída neste último normativo.

É particularmente elucidativo, a este respeito, o seguinte trecho da decisão recorrida: “A servidão de aqueduto pode constitui-se de forma voluntária ou legal, sendo que, no caso está em apreciação a constituição voluntária da mesma por usucapião, sendo que, face à factualidade provada dúvidas não temos que a mesma se mostra verificada em beneficio do prédio aludido no ponto 3) da factualidade provada para onde a água é conduzida e aproveitada e por sobre o logradouro do prédio aludido em 1), quer no tocante ao tubo ali colocado quer no tocante à manilha, sendo que, os mesmos substituíram um rego a céu aberto que ali existia anteriormente.” – sublinhado nosso.

Improcede, assim, a pretensão do apelante no sentido da aplicação à situação em apreço do estatuído no citado art. 1561º do CC que, por isso, não constitui obstáculo ao reconhecimento das servidões de aqueduto afirmadas na decisão recorrida.

Por outro lado, não se divisa na apelação qualquer argumentação de discordância em relação ao decidido na sentença recorrida no sentido da verificação dos pressupostos fácticos e jurídicos de que dependia a constituição por usucapião das servidões voluntárias de aqueduto naquela reconhecidas, ou seja, a verificação da posse (art. 1253º do CC) não titulada (art. 1259º/1 do CC, a contrario), de boa-fé (art. 1260º/1 do CC), pacífica (art. 1261º/1 do CC) e pública (art. 1262º do CC) correspondente a essas servidões de aqueduto exercidas pelos réus e antecessores, por um período de tempo suficiente para poder operar a usucapião (arts. 1287º e 1296º do CC); a verificação desses pressupostos resulta, aliás, evidente da subsunção às normas jurídicas acabadas de enunciar dos factos enunciados nos pontos 20º a 24º dos factos descritos nos factos provados.

É negativa, assim, a resposta à questão em apreço, não sendo merecedora de qualquer censura a sentença recorrida na parte em que reconheceu as servidões de aqueduto em apreço.

Terceira questão: se a sentença recorrida não podia ter reconhecido, por a tanto obstar o art. 1565º do CC e a circunstância de estarem em causa aquedutos subterrâneos, a servidão de passagem a pé pelo prédio identificado no ponto 1º) dos factos provados para acompanhamento da água que circula naqueles aquedutos durante todo o ano.

Parte o apelante, para sustentar uma resposta afirmativa a esta questão, do entendimento de que o direito de passagem dos réus sobre o prédio de que o primeiro é dono para acompanhamento de águas constitui um mero adminicula servitutis[3] das servidões de aquedutos reconhecidas na decisão recorrida, adminicula esse que jamais deveria ter sido reconhecido por estarem em causa aquedutos subterrâneos, em resultado do que aquela passagem a pé não se compreende no que é necessário para o uso e conservação das servidões de aqueduto em questão, devendo ter-se por excluída da extensão dessas servidões por aplicação do art. 1565º/1 do CC.

Simplesmente, é preciso ter em devida conta que por força do art. 1564º do CC o correspondente art. 1565º só logra aplicabilidade em caso de o título constitutivo da servidão ser insuficiente para a determinação da sua extensão e do seu exercício.

Com efeito, resulta daquele art. 1564º do CC que o regime concreto de cada servidão deve resultar do respectivo título constitutivo, entendendo-se este como o facto ou conjunto de factos de que a servidão tira a sua existência e seu modo de ser - Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 1983, pp. 101 e 303; só na sua falta ou insuficiência é que se aplicam as regras supletivamente dispostas na lei, das quais se extrai o princípio, meramente subsidiário, do melhor aproveitamento económico possível seja do prédio serviente seja do dominante: a servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, com o menor sacrifício possível do prédio dominado (arts. 1565º/2, 1566º/2 e 1568º/1/2 do CC).

Como assim, a delimitação do conteúdo positivo da servidão é dada em primeiro lugar pelo título e só subsidiariamente por actuação daquele princípio regulativo – neste sentido, acórdãos do STJ de 19/10/2006, proferido no processo 06B3501, da Relação de Coimbra de 24/2/2015, proferido no processo 357/13.3TBTND.C1, de 22/9/2015, proferido no processo 1893/11.1TJCBR.C1, da Relação do Porto de 22/6/2010, proferido no processo 2536/08.6TBVFR.P1, de 5/4/2011, proferido no processo 80/07.8TBSJP.P2.

Ora, decorre dos factos provados que os réus e seus antepossuidores, há mais de 25, 30 e 50 anos, transportam água para rega no seu prédio rústico através de dois aquedutos que atravessam o prédio do apelante identificado no ponto 1º) dos factos provados, acompanhando a entrada da água nesses aquedutos, seguindo depois a pé sobre o rocio daquele prédio do apelante e até que a água entra no prédio dos réus identificado no ponto 3º) dos factos provados, à vista de toda a gente, designadamente dos antepossuidores do autor, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, na ignorância de lesarem direitos de outrem e na convicção de exercerem um verdadeiro direito – pontos 20º a 24º dos factos descritos como provados.

Neste enquadramento, o direito de passagem dos réus, a pé, pelo prédio do autor, não constitui um mero adminiculum das servidões de aquedutos referidas na decisão recorrida e a cujo reconhecimento obstava o art. 1565º/1 do CC conjugado com o facto de estarem em causa aquedutos subterrâneos.

O que está realmente em causa é uma servidão de passagem a pé que conjuntamente com as referenciadas servidões de aqueduto e complementarmente a estas se constituiu por usucapião em benefício do prédio rústico dos réus e onerando o prédio urbano do autor, tendo em conta a posse (art. 1253º do CC) não titulada (art. 1259º/1 do CC, a contrario), de boa-fé (art. 1260º/1 do CC), pacífica (art. 1261º/1 do CC) e pública (art. 1262º do CC) correspondente a essa servidão de passagem exercida pelos réus e antecessores por um período de tempo suficiente para poder operar a usucapião (arts. 1287º e 1296º do CC), tudo com a finalidade do acompanhamento das águas que circulam por aqueles aquedutos na parte em que os mesmos atravessam o prédio do autor.

Consequentemente, esse direito dos réus a passar pelo prédio do autor não emerge do art. 1565º/1 do CC, que o autor pretende ver aplicado à situação em apreço, mas do art. 1564º/1ª parte do CC, que exclui a possibilidade de aplicação daquele artigo ao caso dos autos.

É certo que o facto de ambos os aquedutos terem sido enterrados pode ter originado alguma situação de desnecessidade da servidão de passagem a pé nos exactos termos em que a mesma vinha sendo praticada e se constituiu; simplesmente, enquanto essa situação de desnecessidade e consequente extinção do direito de servidão (art. 1569º/2 do CC) não forem reconhecidas ou declaradas judicialmente pelo exercício do correspondente direito potestativo extintivo do autor, aquele direito de servidão e a correspondente passagem dos réus pelo prédio urbano do autor terão de subsistir e de ser respeitados.

Bem andou a decisão recorrida, pois, quando reconheceu em benefício do prédio identificado no ponto 3º) dos factos provados um direito de servidão de passagem a pé sobre o prédio do autor identificado no ponto 1º) dos factos provados e, por consequência, decretou a improcedência do pedido constante da alínea b) da parte conclusiva da petição inicial.

Quarta questão: se os réus deveriam ter sido condenados a pagar uma indemnização ao autor pelo facto de persistirem em transitarem pelo prédio urbano do autor, sobre os aquedutos de condução de águas para o prédio dos réus, na parte em que os mesmos estão implantados no prédio do autor, assim atrasando obras de restauro e ampliação deste último prédio.

A resposta positiva a esta questão pressupunha prévia resposta positiva às segunda e terceira questões, pois que só assim se poderia sustentar em relação aos réus, no que toca à persistência dos aquedutos que atravessam o prédio do autor e ao trânsito por esse prédio sobre o leito do solo onde se localizam aqueles aquedutos, um dos pressupostos de que o art. 483º do CC faz depender a responsabilidade civil extracontratual que se pretende imputar aos réus, concretamente o da ilicitude do comportamento dos réus.

Sucede, como visto a respeito das segunda e terceira questões, que a persistência desses aquedutos e o trânsito por parte dos réus pelo prédio do autor decorrem do exercício de correspondentes direitos de servidão de aqueduto e de passagem, com a consequente resposta negativa que mereceram aquelas duas questões, ficando completamente prejudicada, por essa via, qualquer possibilidade de a questão em análise merecer resposta positiva.

Improcede, pois e sem necessidade de qualquer outra consideração, a pretensão indemnizatória do autor.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 17/1/2016.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I) O direito de servidão de aqueduto e de servidão de passagem podem ser invocados em mera defesa por excepção peremptória, nada obrigando processualmente a um pedido reconvencional de reconhecimento de tais direitos

II) O critério diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na circunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coactivamente, sendo que a circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os donos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem essa natureza.

III) A passagem a pé, pelos donos do prédio dominante, pelo prédio serviente, para acompanhamento de águas que circulam pelos aquedutos existentes no prédio serviente pode legitimar-se num direito de servidão de passagem autónomo e complementar do direito de servidão de aqueduto ou num mero adminucula servitutis do próprio direito de servidão de aqueduto.


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[1]As excepções peremptórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.” – art. 576º/3 do NCPC.

São excepções peremptórias “…as que se traduzem na invocação de factos ou causa impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do Autor, por isso mesmo levando à improcedência total ou parcial da acção – a uma sentença material desfavorável (mais ou menos) a esse pleiteante. O Réu não nega os factos donde o Autor pretende ter derivado o seu direito, mas opõe-lhe contra-factos que lhe teriam excluído ou paralisado desde logo a potencialidade jurídica ou posteriormente lhe teriam alterado ou suprimido os efeitos que chegaram a produzir.” – Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra Editora, 1979, pp.130/131; no mesmo sentido, José Lebre de Freitas, Código Processo Civil anotado, vol. 2º, pp. 287/288.

[2] Tratar-se-iam, no entender do autor, de servidões legais de aqueduto.

[3] “Os adminucula servitutis não constituem uma servidão autónoma ainda que acessória e diferente da que se designaria por principal. O conteúdo da servidão é uno e os adminucula são simples faculdades complementares reconhecidas ao titular para exercer a única servidão existente.

São simples modalidade de exercício de uma servidão, modalidade essa que, só por si, não constitui um poder sobre o prédio serviente e que tem uma função instrumental respeitante à servidão, com o conteúdo ou extensão resultante do título.

Subsistem apenas enquanto aquela durar e o seu exercício não obsta à extinção da servidão.” - Tavarela Lobo, Mudança e Alteração da Servidão, pp. 16 e segs.

Na servidão de aqueduto são numerosos os adminucula passíveis de ser conjecturados, entre os quais se conta a faculdade de passar no prédio serviente para a inspecção, consertos e melhoramentos necessários.

Constitui adminuculum desta servidão, tratando-se de aqueduto ou rego a descoberto, a faculdade de passagem pelo prédio serviente, pois que só no uso desta passagem “…poderá o titular, no tempo e exercício da servidão, assegurar o livre curso das águas, removendo do leito do aqueduto a terra, pedras, areia e qualquer entulho que impeçam ou retardem aquele curso ou provoquem a diminuição do caudal.

Este direito assim assegurado ao proprietário do prédio dominante de proceder à necessária expurgação ou limpeza do aqueduto em nada colide com o direito de tapagem ou vedação conferido por lei ao proprietário do prédio serviente (artigos 1356º e segs., do C. Civil).

Nada impede, por isso, que este vede o prédio serviente, assegurando sempre o livre trânsito do proprietário do prédio dominante quer para acompanhar a água e para a inspecção do aqueduto, quer para obras de reparação e consertos, podendo, nomeadamente, facultar uma chave ao proprietário do prédio dominante.

Se o aqueduto é subterrâneo, é óbvio que não assiste tal direito ao titular do prédio dominante, pois necessita apenas de, quando as circunstâncias o imponham, inspeccionar o aqueduto.” - Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, vol. II, pp. 392 e 393.