Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ARLINDO OLIVEIRA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO DIREITO DE REGRESSO DANOS COLATERAIS PRESCRIÇÃO ILÍCITO CRIMINAL | ||
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Data do Acordão: | 04/17/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COVILHÃ 1º J | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 19.º F) DO DL 522/85, DE 31/12; ARTIGOS 304.º, N.º 1; 498.º, N.º 2 E 3; 593.º, N.º 1 DO CC | ||
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Sumário: | 1. Liquidada a indemnização ao seu segurado, a seguradora que o demanda para reaver o seu dinheiro age no exercício de um direito de regresso e não de sub-rogação. 2. Por isso não beneficia do alongamento do prazo de prescrição do direito à indemnização derivada de factos que constituam a prática de um crime, a que se refere o n.º 3 do citado artigo 498.º do Código Civil. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
A “Companhia de Seguros A..., SA”, intentou a acção declarativa, que corre termos sob a forma ordinária, de que os presentes autos constituem apenso, contra B..., já ambos identificados nos autos, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 141.702,48 €, de capital em dívida, acrescida da de 6.397,96 €, relativa a juros vencidos, à taxa legal, bem como nos vincendos, sobre o capital em dívida, até efectivo e integral pagamento. Para tal, alega que o réu foi interveniente num acidente de viação, ocorrido em 23 de Dezembro de 2004, quando conduzia uma viatura de sua propriedade e seguro na ora autora, em virtude do qual veio a falecer o outro interveniente no acidente. Mais alega que o referido acidente se ficou a dever a culpa do seu segurado, por conduzir com imperícia e falta de cuidado, invadindo a mão de trânsito contrária à sua, para além de que o seu veículo não tinha, à data do acidente, sido sujeito e aprovado na Inspecção Periódica de Veículos e sem que se encontrasse em condições de segurança para circular, o que poderia ter sido detectado naquela inspecção. Designadamente, por falhas no sistema de direcção e sistema de travagem, quando o seu segurado travou, as rodas bloquearam o que fez com que não conseguisse dominar o seu veículo, saindo da sua mão de trânsito, por ter perdido a capacidade de direcção do veículo, acabando por colher a vítima, que seguia num ciclomotor, tendo invadido a mão de trânsito deste. Dada a sua conduta, o ora réu foi condenado, no âmbito dos autos que correram termos no 3.º Juízo do Tribunal da Covilhã, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano e quatro meses e na coima de 160,00 €, pela prática de uma contravenção ao disposto no artigo 13.º, n.os 1 e 3, do Código da Estrada, cf. sentença proferida em 27/04/2006, de que se acha junta cópia de fl.s 23 a 61, que aqui se dá por reproduzida. Ainda no âmbito de tais autos, a título de indemnização cível, foi a aqui autora condenada a pagar à viúva e filha da vítima, a quantia global de 132.650,96 €, que lhes liquidou em 17 de Junho de 2006 e ao ISS, em 19 de Outubro de 2006, a quantia de 5.885,52 €, a título de pensões por morte e pensões de sobrevivência, que este Organismo tinha pago aos herdeiros do falecido. Pretende ser reembolsada destas quantias, à custa do réu, por este circular com uma viatura não sujeita e aprovada na Inspecção Periódica de Veículos a que está sujeita, atento o disposto no artigo 19.º, al. f), do DL 522/85, de 31/12.
Contestando, no que agora interessa, o réu veio alegar a prescrição do direito de regresso a que se arroga a autora, com o fundamento em que, nos termos do disposto no artigo 498.º, n.º 2, do Código Civil, prescreve no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis, ainda que o acidente de viação integre simultaneamente ilícito criminal sujeito a prazo de prescrição mais longo. Atento a que a autora indemnizou os herdeiros da vítima em 21 de Junho de 2006 e o ISS em 19 de Outubro de 2006 e a presente acção deu entrada em juízo no dia 13 de Janeiro de 2010, já tinham decorrido mais de três anos entre a data do cumprimento e esta última, pelo que o direito que se propõe exercer já se encontra prescrito.
A autora defende que estando em causa um ilícito criminal, o direito de regresso beneficia do prazo de cinco anos previsto no n.º 3 do artigo 498.º CC, pelo que tendo o réu sofrido a condenação crime acima referida, o seu direito não se encontra prescrito.
Com dispensa da audiência preliminar, elaborou-se despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a invocada excepção de prescrição, por se entender que em casos em que o acidente de viação também constitua ilícito criminal, o prazo de prescrição a considerar é o de 5 anos, o qual aproveita, também, a quem pretenda exercer o direito de regresso, por lhe aproveitar o mesmo prazo de prescrição que aproveitaria aos lesados, a quem satisfez as indemnizações pagas e contando-se tal prazo, desde a liquidação das indemnizações devidas.
Inconformado com a mesma, interpôs recurso, o réu B..., recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cf. despacho de fl.s 151), finalizando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões: 1. O direito de regresso é um direito ex novo que nasce com a extinção, por via do pagamento, da relação jurídica entre a seguradora e o lesado. 2. O direito de regresso tem a sua fonte (fonte contratual), na eventual violação do contrato de seguro entre a companhia de seguros e o seu segurado sendo tal relação jurídica alheia ao direito indemnizatório pago pela seguradora. 3. O prazo de prescrição do exercício do direito de regresso é, pois, de três anos e não de cinco anos não se justificando, à luz da lei e do direito, o alongamento de tal prazo prescricional, cfr. artigo 498.º, n.º 2 do Código Civil. 4. O douto despacho saneador, recorrido, na parte que é objecto de recurso, violou, por deficiente interpretação, o artigo 498.º, n.º 2 do Código Civil. Termina, peticionando a procedência do seu recurso, com a revogação do despacho saneador, na parte objecto do mesmo, declarando-se, em conformidade, a prescrição do direito invocado.
Contra-alegando, a autora, pugna pela manutenção da decisão recorrida, defendendo que o prazo de prescrição a considerar é o de 5 anos, baseando-se em inúmera jurisprudência, que cita, em abono da sua tese.
Dispensados os vistos legais, há que decidir. Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verifica ou não, a prescrição do direito a que se arroga a autora.
A matéria de facto a considerar para a decisão desta questão é a que consta do relatório que antecede, apenas havendo a acrescentar que os presentes autos deram entrada em juízo no dia 13 de Janeiro de 2010 (cf. fl.s 64).
Se se encontra ou não, prescrito o direito a que se arroga a autora. Na decisão recorrida considerou-se que este direito não se encontra prescrito porque, em rigor, configura o mesmo uma sub-rogação legal do que decorre que a demandante se substitui ao lesado e nessa medida exerce o mesmo direito que por este poderia ser exercido e em caso de o ilícito constituir crime, também lhe aproveita o prazo de prescrição, se mais longo, decorrente de o facto constituir crime, no caso o de 5 anos. Consequentemente, o prazo de prescrição a ter em conta é o de 5 anos, que ainda não decorreu, atenta a data do último pagamento efectuado pela seguradora e a data da propositura da acção, pelo que se julgou improcedente a alegada excepção de prescrição, com o aplauso da recorrida. Por sua vez, o réu, recorrente, defende que se trata de um direito de regresso, o qual, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 498.º CC, prescreve no prazo de três anos a contar do cumprimento, por configurar um direito novo dissociado do facto ilícito que gerou a obrigação de indemnização por parte da seguradora.
A questão a decidir consiste, pois, no fundo, em saber se o alongamento do prazo de prescrição do direito à indemnização derivada de factos que constituam a prática de um crime, a que se refere o n.º 3 do citado artigo 498.º, também prevalece em casos em que se pretenda exercer um direito de regresso. E a mesma não tem vindo a merecer decisão unânime por parte da jurisprudência, como se colhe da decisão recorrida, a qual, registe-se, se acha bem fundamentada, atenta a opção em que se baseou.
Como desde há muito assente, a prescrição assenta na falta de exercício de um poder, na inércia ou não exercício de um direito, que poderia ser exercido e não o foi, num certo lapso de tempo e que acarreta, que tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou a ela se opor, por qualquer modo, tal como decorre disposto no artigo 304.º, n.º 1, do CC. A controvérsia acerca de qual o prazo de prescrição a ter em conta em casos como o ora em apreço, deriva, em grande parte, da questão de saber se estaríamos perante uma sub-rogação ou um verdadeiro direito de regresso. Efectivamente, ao passo que na sub-rogação legal, em conformidade com o estipula o artigo 593.º, n.º 1, do CC, se verifica uma transmissão do direito para o sub-rogado, conservando a extensão, os poderes, as garantias e acessórios do direito transmitido, no direito de regresso, trata-se da constituição de um direito novo, independente da fonte da obrigação que esteve na sua génese, do que decorre, consequentemente, que o direito de regresso exercido, v. g., pela seguradora, não se confunde com o direito de indemnização que suportou perante os lesados, vítimas do acto ilícito que o originou. Só quando a seguradora liquida tal indemnização, é que surge na sua esfera jurídica um direito de crédito novo (o de exigir ao causador do sinistro, seu segurado, as quantias que pagou), o qual nada tem que ver com a fonte da obrigação que a seguradora extinguiu ao cumprir o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil que tinha celebrado com o lesante. Ainda que do ponto de vista da pureza da doutrina jurídica se possa discutir se o direito que a ora recorrida pretende exercer se deve configurar como uma sub-rogação ou um direito de regresso, o certo é que, ex vi legis, o mesmo tem de ser tratado como direito de regresso. Efectivamente, como decorria do que, então, dispunha o artigo 19.º, do DL 522/85, de 31/12: “Satisfeita a indemnização, a seguradora, apenas tem direito de regresso: (…) f) Contra o responsável pela apresentação do veículo a inspecção periódica que não tenha cumprido a obrigação decorrente do disposto no n.º 2 do artigo 36.º do Código da Estrada e diplomas que o regulamentam, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.” Assim, tem a questão sub judice, de ser tratada e decidida tendo por base a ideia de que a demandante exerce um direito de regresso, nos termos expostos.
Como resulta assente dos autos, o segurado da autora foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º. n.º 1, do Código Penal e a ora recorrida foi condenada a pagar aos lesados, a título de indemnização cível, as indemnizações que, com a presente acção, pretende reaver. Ora, conforme artigo 498.º, do CC: “1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar do dia em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso. 2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis. 3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”. Em face da natureza do direito de regresso: direito novo, que nada tem a ver com a fonte da obrigação, como acima melhor já referido, somos de opinião, que aos casos de direito de regresso não se aplica o prazo mais longo, previsto no n.º 3 do ora (parcialmente) transcrito artigo 498.º do CC. Como tem vindo, mais recentemente e de forma quase unânime, a ser decidido pelo STJ, se é certo que o elemento literal de interpretação desta norma não afasta, só por si, qualquer das teses em confronto, o certo é que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, a razão de ser para o alongamento concedido pelo seu n.º 3 não se enquadra com o exercício de um direito de regresso. Como refere Afonso Correia, in Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil – Direito de Regresso da Seguradora, em II Congresso nacional de Direito de Seguros, pág. 204: “o direito de regresso conferido pelo artigo 19.º do DL 522/85, de 31 de Dezembro, à seguradora é mais um direito de reembolso do que ela pagou em circunstâncias que tornam inaceitável o risco assumido. A seguradora, na acção de regresso, não exerce um direito igual ao do lesado que indemnizou, não propõe contra o réu uma acção de indemnização por danos, antes se limita a exigir o reembolso do que pagou, uma vez que o risco que contratualmente assumira não se compadece com condutores sem habilitações legais, com condutores que abandonam sinistrados, que agem sob a influência do álcool. Ou seja, é o desvalor da acção, que não o desvalor do resultado, que está no espírito da norma …”. Por outro lado, a razão de ser do alongamento do prazo de prescrição só se compreende estando em causa o direito do lesado mas não quando se trata do direito de regresso da seguradora. Isto porque, em casos em que o ilícito configura crime, mercê do princípio da adesão consagrado no artigo 71.º do CPP, não teria lógica que o direito do titular à indemnização cível, necessariamente exercido no processo penal, fosse cerceado pela prescrição, quando ainda não se tinha completado o prazo da prescrição criminal, por regra, mais longo do que o da prescrição civil, daí que, em tais casos, se justifique o alongamento do prazo de prescrição civil a fim de que, em idêntico prazo, se possa apreciar, também, a responsabilidade civil, ou seja, em tais casos, enquanto o facto ilícito puder ser discutido em sede penal, deve poder ser apreciado no âmbito da responsabilidade civil, aqui residindo, reitera-se, a razão de ser do alongamento do prazo de prescrição a que se reporta o n.º 3 do artigo 498.º, do CC. A qual deixa de ter relevância, em caso de direito de regresso, dado o seu carácter ex novo, a que acima já fizemos referência e ainda porque o mesmo, nos termos do n.º 2 de tal preceito, deve ser cumprido, a contar do cumprimento, independentemente da fonte da obrigação que a seguradora extinguiu ao satisfazer a indemnização, pelo que tem de prevalecer o interesse da lei na rápida definição da situação e dando à seguradora um prazo mais curto para o exercício do direito do que o concedido ao lesado, porque, neste caso, o prazo só se inicia depois de definido o direito que a este compete (n.º 1), ao passo que o direito da seguradora se define com o pagamento da indemnização, independentemente da gravidade do ilícito. “Assim, por exemplo, nos casos de veículo não inspeccionado ficaria sem se compreender a diferença de prazos de acordo com os prazos prescricionais do crime preenchido com o acidente de viação. Ou, então, com o ilícito que esteve na base da primitiva indemnização, passam a existir outros, em plano de igualdade, com prazos de prescrição diversos…”, consoante o crime em causa, como se salienta no Acórdão do STJ, de 04/11/2010, Processo 2564/08.1TBCB.A.C1.S1, disponível in http://www.dgsi,pt/jstj. Assim sendo, face ao exposto, entendemos que não se aplica ao caso em apreço o alongamento do prazo de prescrição a que se refere o n.º 3 do artigo 498.º, do Código Civil, pelo que o prazo de prescrição a considerar é de três anos, consagrado no seu n.º 2, dado tratar-se de um direito de regresso. Neste sentido, para além do Aresto, ora citado, podem ver-se os do STJ, de 06/05/1999, in CJ, STJ, 1999, tomo II, pág. 99 e os de 29/11/2011, Processo 1507/10.7TBPNF.P1.S1; de 17/11/2011, Processo 1372/10.4T2AVR.C1.S1; de 16/11/2010, Processo 2119/07.8TBLLE.E1.S1; de 27/10/2009, Processo 844/07.2TBOER.L1 e de 04/11/2008, Processo 08A3119, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj. Também, no mesmo sentido, os Acórdãos desta Relação de 24/01/2012, Processo 644/10.2TBCBR-A.C1 e 07/09/10, Processo 329/06.4TBAGN.C1, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtrc.
Assente que o prazo de prescrição a considerar é o de três anos e que a indemnização foi satisfeita, pela ora recorrente, aos herdeiros da vítima, em 21 de Junho e ao ISS, em 19 de Outubro de 2006, tendo a acção dado entrada em juízo no dia 13 de Janeiro de 2010, é indubitável que já tinham decorrido mais de três anos contados desde a liquidação da indemnização e a propositura da acção de que emanam os presentes autos, pelo que procede a alegada excepção de prescrição do direito invocado, a qual constitui uma excepção peremptória que acarreta a absolvição do pedido – cf. artigo 493.º, n.os 1 e 3, CPC. Assim, não pode subsistir a decisão recorrida, procedendo, em conformidade com o exposto, o presente recurso.
Nestes termos se decide: Julgar procedente a apelação deduzida, em função do que se revoga a decisão recorrida, declarando-se prescrito o direito a que se arroga a autora e, consequentemente, absolve-se o réu do pedido. Custas pela apelada.
Arlindo Oliveira (Relator) Emídio Francisco Santos António Beça Pereira |