Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
275/09.0TBNLS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.47, 90, 128, 129, 136, 137, 138, 146 DO CIRE
Sumário: I. Da conjugação do disposto nos artigos 47.º, 90.º, 128.º n.º 1 e 3 do CIRE, se conclui que, declarada a insolvência da devedora, aos credores depara-se em regra um único caminho: a reclamação dos seus créditos no âmbito do processo de insolvência.

II. Excepcionalmente, findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, nos termos do artigo 146.º do CIRE, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, mas tal reclamação não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior e só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respectiva constituição, caso termine posteriormente.

III. Reclamado um crédito por parte da recorrente, não reconhecido pelo administrador da insolvência, nem aprovado na tentativa de conciliação prevista no n.º 2 do artigo 136.º do CIRE, deverá ser fixada a base instrutória, nela se integrando os factos alegados pela reclamante como suporte da sua pretensão, com vista à realização da audiência de julgamento, após o que se proferirá sentença de verificação e graduação de créditos que inclua, ou não, consoante o que vier a ser decidido, o crédito da recorrente.

IV. Não pode ser declarado não reconhecido o crédito reclamado, no despacho saneador, sem qualquer produção de prova, com fundamento em que o mesmo “não se encontra titulado” e em que os autos de insolvência “não são o meio processualmente adequado ao reconhecimento de tal crédito”.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
Tendo sido declarada a insolvência da S (…) SA, no âmbito do Processo n.º 275/09.0TBNLS, Prés (…) Lda reclamou junto do Administrador de Insolvência o crédito de € 174.000,00, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 540 destes autos, alegando em síntese que: tem por objecto o comércio de tabaco, jornais e revistas; celebrou com a insolvente o contrato de ocupação de espaço de loja para comércio que junta, nos termos do qual, ficou a reclamante autorizada a utilizar, pelo período de 5 anos, contados de 01 de Novembro de 2006, aloja n.º 110, piso 1 do denominado edifício Multiusos (…); em contrapartida de uma renda mensal de € 1.000,00, acrescida de IVA, actualizável; o pagamento da renda apenas ocorreria a partir de 01 de Janeiro de 2007, sendo que, durante os primeiros 12 meses, o seu valor seria reduzido para um terço da renda acordada; foi garantido à reclamante pelo gerente da insolvente, que iria ser um negócio bastante lucrativo, e que a Câmara Municipal de ... iria construir, junto do edifício Multiusos uma rotunda na E.N 16, que iria melhorar a acessibilidade ao edifício, que estaria pronto a receber os lojistas, reclamante incluída, o mais tardar até ao final do 1.º semestres de 2006; em início do ano de 2006, a reclamante aceitou associar-se ao novo empreendimento da insolvente, aí acordando iniciar a exploração de uma loja na qual se propunham proceder à venda de café, tabaco, brindes e afins; a abertura do novo espaço comercial foi sendo sucessivamente adiada, em virtude, soube-o posteriormente a reclamante, de a insolvente não possuir qualquer licença de utilização do edifício, que se achava ilegalmente construído, sem autorização para a actividade de comércio; a reclamante ao decidir explorar a loja no complexo da insolvente, baseou a sua decisão na informação que lhe fora previamente transmitida por aquela, concluindo que a exploração daquele espaço comercial seria certamente rentável; a insolvente garantiu à reclamante que pelo complexo comercial iriam circular diariamente entre 600 a 1000 pessoas, o que permitiria à reclamante ter um elevado contacto com clientes, traduzindo-se tal numa facturação diária não inferior a euros € 1.000,00; tanto mais que naquele espaço comercial a loja explorada pela reclamante era a única que vendia cafés, tabaco, pastelaria, jornais; garantindo a insolvente à reclamante pelo menos uma facturação mensal não inferior a € 25.000,00; o que se traduziria uma margem bruta de pelo menos 17,5% daquele valor, equivalente a cerca de € 52.500,00/ano; com a qual iria a reclamante suportar todos os demais custos anuais no valor de € 18.500,00; o que lhe permitiria obter um lucro de cerca de € 34.000,00/ ano; lucro esse que se repetiria pelo menos durante os 5 anos de duração do contrato, num total de € 170.000,00, por cujo pagamento é a insolvente responsável; devendo ainda a reclamante ser indemnizada pelo valor do recheio que ficou aprisionado no interior da loja aquando do seu encerramento em valor não inferior a € 4.000,00.
O crédito reclamado não foi reconhecido pelo Administrador de Insolvência, tendo a Pres (…), Lda impugnado a referida decisão nos termos e com os fundamentos que constam do requerimento de fls. 531.
Consta da acta da tentativa de conciliação - fls. 820/1:
«Pres (…), Lda - impugnação apresentada a fls. 531. A reclamante tem um crédito não reconhecido no valor de 174.000,00. Alega que o crédito nasceu de um contrato de ocupação de espaço de loja, pelo qual ficou autorizada a utilizá-la pelo período de 5 anos contados desde 01-11-2006.
Dada a palavra ao Sr. Administrador da Insolvência, o mesmo refere que tal crédito não está reflectido na contabilidade, pelo que não deverá ser reconhecido.
Levado a aprovação, todos os credores se opuseram, pelo que não foi reconhecido este crédito…».
Foi proferido despacho saneador (fls. 803 e seguintes), no qual se decidiu conhecer de imediato das impugnações deduzidas, nomeadamente a da Pres (…) Lda «considerando que nos autos existem todos os elementos fácticos que permitem uma decisão de mérito da mesma…».
Consta da referida decisão:
«No que concerne ao crédito de PRES (…), LDA, improcede o mesmo, porquanto e como resulta da sua própria alegação, se trata de um crédito futuro e eventual, estando ainda por apurar a responsabilidade contratual da insolvente em processo próprio, não sendo os presentes autos o meio processualmente adequado ao reconhecimento de tal crédito. Por outras palavras, o crédito reclamado não se encontra titulado.
Pelo exposto, indefere-se o requerido não se reconhecendo o crédito reclamado.»
Não se conformando, a reclamante Pres (…) Lda, interpôs recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões:

A - O presente recurso é interposto da sentença datada de 05.02.2009, na parte em que a mesma decidiu não reconhecer o crédito de euros 174.000,00 reclamado pela recorrente;

B - O crédito reclamado resulta de um incumprimento contratual por parte da insolvente quanto ao contrato de ocupação de espaço de loja para comércio pelo período de 5 anos ente esta e a recorrente;

C - A recorrente apresentou reclamação de créditos dirigida ao Sr. Administrador de Insolvência, tendo alegado os factos constitutivos do seu direito e junto l0 documentos, incluindo o contrato incumprido, para prova de tais factos a par de testemunhas;

D - O crédito reclamado não foi reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência com a justificação de que o “crédito reclamado não reflectido na contabilidade da devedora. Face aos fundamentos apresentados, não se reconhece tal crédito.”;

E - Em face de tal não reconhecimento a recorrente impugnou alista de credores reconhecidos requerendo o reconhecimento do seu crédito;

F - A fundamentação do Sr. Administrador é insuficiente e o mesmo nem sequer nega os factos alegados, sendo certo que o não registo contabilístico por parte da insolvente não pode ser imputado à recorrente;

G - Na impugnação a recorrente, à cautela, deu por reproduzido o teor da reclamação (tendo juntado cópia);

H - Por força da não fundamentação e da não contestação dos factos, deveria o crédito do reclamado ter sido de imediato reconhecido;

I - O crédito reclamado, contrariamente ao referido pelo Tribunal a quo não é futuro nem eventual, pois refere-se a situações passadas relativas à insolvência e anteriores ao início do processo de insolvência;

J - A titularidade do crédito não é condição essencial para o reconhecimento de um crédito em processo de insolvência;

K - A recorrente cumpriu com os requisitos do artigo 128° do CIRE tendo junto vários documentos para prova dos factos;

L - Só o credor que reclama o seu crédito pode obter pagamento no processo de insolvência e esse crédito pode ser qualquer crédito, desde que anterior à data da declaração de insolvência e da responsabilidade da insolvente mesmo que tal crédito não conste em absoluto de documentos e a sua existência não seja totalmente pacífica;

M - Os artigos 128°, n.º 3, 134°, n.º 1, 25°, n.º 2, 136°, n.º 1 e 3 e 137º , todos do CIRE, mostram claramente que é nesta fase que todos os créditos, incluindo os resultantes de incumprimentos contratuais, devem ser reclamados;

N - O credor da insolvente dispõe unicamente de dois momentos para reclamar o seu pretenso crédito, a saber, no decurso do prazo previsto para o efeito na sentença que declara a insolvência ( prazo este utilizado, in casu, pela apelante) ou, decorrido tal prazo, no ano imediatamente a seguir ao respectivo trânsito em julgado da mesma.

O - A sentença recorrida, por violadora, desde logo do artigo 128° do CIRE (que deve ser interpretado no sentido de ser possível a reclamação de todos os créditos), deve ser revogada e substituída por outra que reconheça o crédito reclamado e não justificadamente não reconhecido pelo Administrador de Insolvência e em consequência proceda a nova sentença de verificação e graduação geral de todos os créditos.

P - No limite, e mantendo a revogação da sentença recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos, em ordem à elaboração de despacho saneador, selecção da matéria de facto, realização de diligências instrutórias e prolação de nova sentença de verificação e graduação de créditos que inclua, ou não, consoante o que vier a ser decidido, o crédito da recorrente.
A Insolvente apresentou contra-alegações (fls. 918 e seguintes) nas quais preconiza a manutenção do julgado.

II. Do mérito do recurso

1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o tribunal a quo, face ao teor da reclamação apresentada pela reclamante/recorrente, podia julgá-la improcedente no saneador por alegada falta de título, ou se, ao invés, teria que proceder à produção de prova sobre os factos alegados como suporte da pretensão apresentada pela reclamante.

2. Fundamentos de facto
Está documentalmente provada nos autos a seguinte factualidade relevante:
2.1. No Processo n.º 275/09.0TBNLS, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Nelas, foi declarada a insolvência da sociedade S (…) SA.
2.2. No referido processo, a sociedade Pres (…), Lda reclamou junto do Administrador de Insolvência o crédito de € 174.000,00, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 540 destes autos, alegando em síntese que celebrou com a insolvente um contrato de ocupação de espaço de loja para comércio dum centro comercial ilegalmente construído pela insolvente, que nem sequer estava autorizado para a actividade de comércio, emergindo desse contrato um dano para a reclamante de € 170.000,00, por cujo pagamento é a insolvente responsável, a que acresce o valor do recheio que ficou aprisionado no interior da loja aquando do seu encerramento em valor não inferior a € 4.000,00.
2.3. O crédito reclamado não foi reconhecido pelo Administrador de Insolvência, com o fundamento constante de fls. 538 e 539: «Crédito reclamado não reflectido na contabilidade da devedora. Face aos fundamentos apresentados, não se reconhece tal crédito».
2.4. A (…) Lda impugnou a referida decisão nos termos e com os fundamentos que constam do requerimento de fls. 531.
2.5. Consta da acta da tentativa de conciliação - fls. 820/1:
«Pres (…), Lda - impugnação apresentada a fls.531. A reclamante tem um crédito não reconhecido no valor de 174.000,00. Alega que o crédito nasceu de um contrato de ocupação de espaço de loja, pelo qual ficou autorizada a utilizá-la pelo período de 5 anos contados desde 01-11-2006.
Dada a palavra ao Sr. Administrador da Insolvência, o mesmo refere que tal crédito não está reflectido na contabilidade, pelo que não deverá ser reconhecido.
Levado a aprovação, todos os credores se opuseram, pelo que não foi reconhecido este crédito…».
2.6. Foi proferido despacho saneador (fls. 803 e seguintes), no qual se decidiu conhecer de imediato das impugnações deduzidas, nomeadamente a da Pres (…), Lda «considerando que nos autos existem todos os elementos fácticos que permitem uma decisão de mérito da mesma…».
2.7. Consta da referida decisão:
«No que concerne ao crédito de PRES (…) LDA, improcede o mesmo, porquanto e como resulta da sua própria alegação, se trata de um crédito futuro e eventual, estando ainda por apurar a responsabilidade contratual da insolvente em processo próprio, não sendo os presentes autos o meio processualmente adequado ao reconhecimento de tal crédito. Por outras palavras, o crédito reclamado não se encontra titulado.
Pelo exposto, indefere-se o requerido não se reconhecendo o crédito reclamado.»

3. Fundamentos de direito
A decisão recorrida, de não reconhecimento, suporta-se em três argumentos jurídicos: i) na “natureza do crédito”; ii) no facto de não se encontrar ainda apurada a responsabilidade da insolvente em processo próprio; iii) e na alegada inexistência de um “título” por parte da reclamante/apelante.
É o que transparece da parte final do despacho, onde se enunciam os três factores aludidos: «porquanto (…) se trata de um crédito futuro e eventual, estando ainda por apurar a responsabilidade contratual da insolvente em processo próprio, não sendo os presentes autos o meio processualmente adequado ao reconhecimento de tal crédito. Por outras palavras, o crédito reclamado não se encontra titulado
Começamos pela apreciação da exigência do “título”.
A decisão recorrida baseia-se no acórdão do STJ de 19.11.2009, proferido no Processo n.º 1246/06.3TBPTM-H.S1[1], consistindo a sua fundamentação, quase na íntegra, numa longa transcrição do aresto referido.
No entanto, salvo o devido respeito, a exigência de “título” é aludida no acórdão citado, não como pressuposto necessário para o reconhecimento do crédito, mas como requisito do direito de retenção, como se constata da mera leitura do seu sumário.

Num processo de verificação e graduação de créditos, apenso a processo de insolvência, a simples alegação, por parte do credor-reclamante, de factos eventualmente integradores do direito de retenção, consagrado no nº 1 do artigo 755º do Código Civil, é, por si só, insuficiente para que lhe seja reconhecido o privilégio consagrado no nº 2 do artigo 759º, deste último diploma legal, com a consequente primazia sobre hipoteca, mesmo com registo anterior.

Para que tal possa ser uma realidade, torna-se necessário que prove os factos dessa alegação, juntando, para tanto, o título justificativo, que, no caso, é a sentença condenatória a reconhecer o incumprimento do promitente-vendedor e a tradição da coisa para o promitente-comprador.
Colhe-se da fundamentação do aresto do STJ citado na decisão sob recurso, que a exigência de “título” a que o mesmo se refere (sentença judicial), nada tem a ver com a viabilidade ou procedência da reclamação, mas apenas com a possibilidade de invocação do direito de retenção, perante a insolvente e os credores:

No caso de verificação de créditos em processo de insolvência, rege, hoje em dia, o preceituado no artigo 128º do já aludido C.I.R.E., que determina que o requerimento de reclamação de créditos deve, inter alia, ser acompanhado de todos os documentos probatórios disponíveis, no qual indiquem a sua proveniência, data de vencimento, montante de capital, as condições a que estão subordinados, a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida.

Salta à vista que a simples invocação de matéria de facto integradora do aludido direito de retenção é, por si só, insuficiente para que o credor obtenha, em sede de verificação e graduação de créditos, o reconhecimento daquele direito. Torna-se, antes, necessário que junte o título que reconheça esse mesmo direito, que, no caso, é a sentença condenatória a reconhecer o incumprimento do promitente-vendedor e a tradição da coisa para o promitente-comprador, factos estes que determinam a consagração do direito de retenção, tal como está consagrado no artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil.
Em parte alguma do acórdão do STJ em que a M.ª Juíza fundamenta a sua posição, se refere a necessidade de “título” como requisito necessário à reclamação de créditos no processo de insolvência.
Tal exigência subverteria a estrutura do CIRE[2], e os objectivos enunciados neste diploma legal, referentes à fase da reclamação.
Vejamos porquê:
Dispõe o artigo 90.º do diploma legal referido: «Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.»
Em anotação a este normativo, escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[3]:

«Este preceito regula o exercício dos direitos dos credores contra o devedor no período de pendência do processo de insolvência.

A solução nele consagrada é a que manifestamente se impõe, pelo que, apesar da sua novidade formal, não significa, no plano substancial, um regime diferente do que não podia deixar de ser sustentado na vigência da lei anterior.

Na verdade, o artigo 90.º limita-se a determinar que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos “em conformidade com os preceitos do presente Código”. Daqui resulta que têm de os exercer no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE.

É esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, como execução universal, tal como o caracteriza o artigo 1.º do Código.

Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (cfr. artigo 98.º, n.º 3; vd., também, o n.º 2 do artigo 87.º).

Neste ponto, o CIRE diverge do que, a propósito, se acolhia no […] artigo 188.º, n.º 3, do CPEREF [Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril].

Por conseguinte, a estatuição deste artigo 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores.»[4]
Decorre do exposto que terão que ser necessariamente reclamados no processo de insolvência, todos os créditos, sem excepção.
Tal conclusão resulta não só do normativo transcrito, mas também da conjugação dos artigos 47.º e 128.º do CIRE.
Estabelece o n.º 1 do artigo 47.º: «Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos da natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio».
Prescreve, por seu lado, o n.º 1 do artigo 128.º: «Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham…».
Dispõe, finalmente, o n.º 3 do mesmo dispositivo legal: «A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento».
Como bem salientam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[5], da articulação do n.º 1 com o n.º 3, primeira parte, do artigo 128.º «resulta que todos os credores da insolvência, qualquer que seja a natureza e fundamento do seu crédito[6], devem reclamá-lo no processo de insolvência, para aí poderem obter satisfação», sendo que «a formulação ampla da primeira parte do n.º 3 é corroborada pela segunda parte que, à semelhança do que estatuía o n.º 3 do artigo 188.º do CPEREF [Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93], não dispensa a reclamação dos créditos que tenham sido reconhecidos por decisão definitiva, se os seus titulares pretenderem ser pagos no processo, à custa da massa insolvente».
Em suma: da conjugação dos normativos citados e transcritos, se conclui que, declarada a insolvência da devedora, aos credores constantes da lista referida no artigo 129.º do CIRE, depara-se um único caminho: a reclamação dos seus créditos no âmbito do processo de insolvência.
A lei processual não prevê alternativa a este meio de exercício do direito por parte destes credores.
É certo que, excepcionalmente, findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, nos termos do artigo 146.º do CIRE, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, mas tal reclamação não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior e só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respectiva constituição, caso termine posteriormente.
Como imperativamente prescreve a alínea b) do n.º 2 do citado normativo, tal reclamação «não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior».
Manifestamente, a situação da reclamante não se integra na previsão excepcional da alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE, pelo que sobre ela recaía o ónus previsto nos artigos 47.º, 90.º, 128.º n.º 1 e 3, de reclamar o seu crédito no processo de insolvência “qualquer que seja a sua natureza e fundamento[7].
A prevalecer a exigência que se faz no despacho recorrido, de que o reclamante apresente um “título”[8] como condição de admissão da reclamação do seu crédito, seria impossibilitar a realização do seu direito, considerando que todos os credores da insolvente estão legalmente obrigados a reclamar os seus créditos no processo de insolvência, vedando-lhes a lei o acesso a outro incidente ou mecanismo processual, salvo o caso excepcionalíssimo previsto no art. 146.º (artigos 47.º, 90.º, 128.º n.º 1 e 3 do CIRE e alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º do mesmo diploma legal a contrario).
Uma vez reclamado o crédito, tendo sobre o mesmo recaído a impugnação do Administrador da Insolvência, abre-se no processo de insolvência um incidente processual de natureza declarativa, que culminará na audiência de discussão e julgamento e na sentença, caso se torne necessária a produção de prova sobre os factos articulados pela reclamante, de acordo com o disposto nos artigos 131.º a 140.º do CIRE[9].
Ao contrário do que consta do despacho recorrido, salvo o devido respeito, o crédito em causa não tem natureza de “crédito futuro e eventual”.
Trata-se de um crédito que poderá ou não ser judicialmente reconhecido na sequência e em função da prova produzida em audiência de julgamento, traduzindo-se a procedência da reclamação, na declaração judicial da sua existência reportada ao momento da declaração da insolvência.
Nos termos do n.º 7 do artigo 136.º do CIRE «se a verificação de algum dos créditos necessitar de produção de prova, a graduação de todos os créditos tem lugar na sentença final».
A situação sub judice, integra claramente a previsão legal do normativo citado, dado tratar-se de um crédito controvertido, que imperativamente tem que ser apreciado no processo de insolvência (artigos 47.º, 90.º, 128.º n.º 1 e 3 do CIRE e alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º do mesmo diploma legal a contrario), pelo que os fundamentos de facto invocados na reclamação terão que ser integrados na base instrutória (artigos 510.º e 511.º do CPC, ex vi n.º 3 do artigo 136.º do CIRE), seguindo-se a produção de prova em audiência de julgamento, com inquirição das testemunhas arroladas pela reclamante.
Deverá, em conformidade com o que ficou dito, ser concedido provimento ao recurso, devendo em consequência ser revogada a decisão recorrida, determinando-se prosseguimento dos autos com vista à selecção da matéria de facto, realização de diligências instrutórias e prolação de nova sentença de verificação e graduação de créditos que inclua, ou não, consoante o que vier a ser decidido, o crédito da recorrente, tal como se peticiona na alínea P) das doutas conclusões de recurso.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, ao qual se concede provimento, revogando em consequência o despacho recorrido, na parte que se refere ao crédito reclamado pela Apelante, devendo essa parte ser substituída por uma decisão na qual se dê cumprimento ao disposto nos n.º 3 artigo 136.º do CIRE, integrando-se na base instrutória os factos controvertidos da reclamação de créditos apresentada pela Apelante, após o que se deverá cumprir o disposto no n.º 7 do artigo 136.º e artigos 137.º, 138.º, 139.º e 140.º do CIRE, proferindo-se sentença de verificação e graduação de créditos que inclua, ou não, consoante o que vier a ser decidido, o crédito da Apelante.
Custas do recurso pela Apelada.


[1] Acessível em http://www.dgsi.pt
[2] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
[3] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, QUID JURIS, Sociedade Editora, Lisboa, 2009, p. 364
[4] Sublinhados nossos
[5] Obra citada, pág. 448
[6] Sublinhado nosso
[7] Artigo 128.º, n.º 3, do CIRE
[8] Na situação em apreço só poderia ser uma decisão judicial.
[9] Luís A. Carvalho Fernandes, e João Labareda, in Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, pág. 93.