Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS TEIXEIRA | ||
Descritores: | ACÓRDÃO TRIBUNAL DA RELAÇÃO EFEITOS ARGUIDO NOTIFICAÇÃO COMUNICAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 03/08/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | CASTELO BRANCO (JL CRIMINAL DA COVILHÃ) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 113.º DO CPP | ||
Sumário: | I - É entendimento jurisprudencial que os acórdãos proferidos, em recurso, pelo tribunal da Relação não têm de ser notificados pessoalmente ao arguido - cfr. art.º 113.º, n.º 10, do CPP. II - Distinguem-se dois efeitos de natureza diferente, quanto à notificação de decisão de Tribunal Superior, na pessoa do arguido, quando esta tenha sido apenas notificada ao seu defensor: a) Efeitos de natureza processual ou outros, que tenham a ver com a tramitação stricto sensu ou o exercício do direito de defesa, como seja exercer o direito de recorrer ou outro análogo; b) Efeitos que se repercutem diretamente na esfera jurídica e pessoal do arguido e que dependem de um conhecimento seu efetivo do teor da decisão. E de entre essas repercussões contam-se as de natureza penal, como é o caso. III - O que significa que o arguido para ser responsabilizado penalmente pela não entrega da carta nos dez dias posteriores ao trânsito em julgado do acórdão do Tribunal da Relação, implicava saber ou ter conhecimento dessa data e efetuar a contagem do prazo. IV - O conhecimento deste facto, uma vez que o arguido não foi notificado pessoalmente desta decisão, tinha que lhe ser transmitido pelo defensor. V - No processo não foi produzida qualquer prova de que o defensor transmitiu ou deu conhecimento ao arguido do teor da decisão da Relação. VI - O arguido presume-se inocente, e a acusação é que tem que produzir a prova do conhecimento daquele e vontade de agir em desconformidade. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.
I 1. Nos autos supra identificados, em que é arguido A... , filho de (...) e de (...) , natural de (...), nascido em 28.10.1964, casado, residente no Bairro (...) Caria Imputando-lhe o Ministério Público a autoria material de um crime de desobediência p. e p. pelo art.º 348 n.º 1 al. b) do C. Penal Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido absolver o arguido do crime de que vinha acusado. 2. Não se conformando com esta decisão, dela recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões: 1. O Ministério Público entende que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras da razão, da lógica e da experiência, impunham que se desse como provado, além dos demais factos provados, que: a. O arguido sabia ter decorrido o prazo fixado para entrega da carta e, mesmo assim, faltou ao seu cumprimento, o que fez de modo livre e consciente, sabendo vedada a sua conduta e que, mais uma vez, incorria em responsabilidade criminal.
2. O Tribunal a quo deu como provada a versão trazida a julgamento pelo arguido que confessou os factos relativamente à condenação no processo sumário n.º 20/14.8GTGRD e negou o conhecimento do acórdão proferido nesse processo em sede de recurso.
3. Deste modo, cometeu um erro notório na apreciação da prova ao valorar as declarações do arguido as quais, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum, deveriam ter conduzido a outra conclusão no que ao elemento subjectivo típico respeita considerando como provado o facto integrador do elemento subjectivo que consta como facto não provado.
4. A instâncias do Mm.º Juiz, inicialmente, o arguido declarou A gente recorreu e depois não fui notificado de mais nada (Gravação áudio 00:09 a 00:12).
5. Saliente-se que as declarações do arguido foram sempre nesse sentido: falta de notificação do Acórdão da Relação nunca se referindo ao conhecimento, ou falta dele, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra e por isso conclui que não tinha de entregar a carta dizendo ainda: Fiquei a aguardar que me dissessem alguma coisa, que me notificassem para alguma coisa, nunca fui notificado para mais nada (Gravação áudio 02:53 a 02:58).
6. Do teor destas declarações ressalta a estratégia da defesa do arguido: invocar a falta de notificação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra para não entregar a carta de condução.
7. Entendemos que esta argumentação do arguido não procede sob pena de estar encontrada a forma de os arguidos não respeitarem as decisões superiores quando o próprio Código de Processo Penal estatui que os acórdãos superiores não são notificados aos arguidos mas apenas as sentenças proferidas em 1.ª instância.
8. Não tendo o arguido logrado provar objectivamente qualquer circunstância que o impossibilitasse de entregar a carta de condução no prazo legal pessoalmente comunicado aquando da leitura da sentença em 1.ª instância, estranha-se que o Tribunal a quo considere que o arguido, por não ter sido notificado do acórdão, não teve conhecimento por qualquer forma dessa decisão.
9. Salientamos ainda que à pergunta se o arguido sabia que o advogado tinha sido notificado do acórdão do Tribunal Relação de Coimbra o mesmo escusou-se a responder tendo sido o Mm.º Juiz a responder repetidas vezes: não sabe (Gravação áudio 03:35 a 03:52).
10. Conforme se extrai da própria gravação, o Mm.º Juiz a quo tinha já formado a sua convicção anteriormente à produção integral da prova o que se manifestou nas diversas interrupções nas respostas do arguido quando o Ministério Público o questionou se sabia que o advogado tinha sido notificado.
11. No final das suas declarações, o arguido diz, a instâncias do seu Il. Defensor oficioso: Fui duas vezes ao escritório do advogado o qual estava fechado (Gravação áudio 04:19 a 04:21).
12. Destas declarações prestadas pelo arguido decorre que admite a deslocação ao escritório do advogado no processo da condenação porque sabia do recurso cujo resultado aguardava mas, apesar de terem decorridos muitos meses (quatro meses e meio desde o trânsito em julgado), não se deslocou ao Tribunal enquanto aguardava tranquilamente para saber quando teria de entregar a carta de condução.
13. A alegada falta de contacto entre o arguido e o seu advogado não poderá, de modo algum, constituir justificação do arguido a atender pelo Tribunal mas uma eventual violação deontológica do advogado do arguido nesse processo da condenação.
14. O Tribunal a quo não atentou devidamente para o facto de que a condenação proferida no processo 20/14.8GTGRD transitou em julgado em 02.03.2015 e a carta de condução do arguido foi efectivamente apreendida pelas autoridades policiais competentes em 20.07.2015, ou seja, decorridos mais de 4 (quatro) meses e meio após o trânsito e mais de 11 (onze) meses após a condenação inicial nesse processo que seguia a forma sumária.
15. Portanto, estamos convencidos que o arguido não tinha qualquer interesse em respeitar a condenação nesse processo e simplesmente ignorou a condenação por vários meses para poder continuar a conduzir, considerando ainda a sua profissão de mecânico, quando sabia perfeitamente que tinha 10 dias para entregar a carta de condução após o trânsito em julgado da sentença proferida nesses autos.
16. Assim sendo, a versão dos factos apresentada pelo arguido não procede considerando que não produziu qualquer prova objectiva da falta de conhecimento do acórdão para além das suas próprias declarações que não se revestem de imparcialidade necessária para, só por si, considerar-se como não provado esse conhecimento sendo naturalmente interessado na sua absolvição.
17. Além do mais, a fundamentação do acórdão recorrido é contra legem considerando que da lei e jurisprudência decorre que os acórdãos dos Tribunais superiores não são notificados aos arguidos.
18. E não se diga que esta jurisprudência se aplica às consequências sobre a tramitação do processo e não sobre as consequências penais que decorram do conhecimento do acórdão como o início da contagem do prazo para entrega da careta de condução pois são indivisíveis estas duas consequências.
19. Se assim não fosse, então como contar o prazo de prescrição de uma pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados: a partir da notificação da decisão final ou do conhecimento dessa decisão por parte do arguido?
20. A lei penal é muito simples: a partir do trânsito em julgado (artigo 122.º, n.º 2 e 123.º CP) que ocorre após a notificação do acórdão ao advogado do arguido quando há recurso (artigo 113.º, 10 CPP), logo o prazo para a entrega da carta de condução não se conta a partir do conhecimento do acórdão pelo arguido.
21. Atentas as apontadas insuficiências nas declarações do arguido e motivação da sentença recorrida propugnamos que a defesa não poderá proceder e dar-se como não provado que o arguido sabia ter decorrido o prazo fixado para entrega da carta de condução e ainda assim faltou ao seu cumprimento o que fez de modo livre e consciente sabendo que incorria em responsabilidade penal.
22. Pelo supra exposto, o Tribunal a quo, ao não condenar o arguido pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1 al. b) do Código Penal 324.º incorreu em erro notório na apreciação da prova ao valorizar as declarações do arguido atentas as insuficiências apontadas
23. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, considerando toda a prova documental e as declarações do arguido, e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida proferida em 1.ª instância com modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto dada como não provada dando-se o seguinte facto como provado: O arguido sabia ter decorrido o prazo fixado para entrega da carta e, mesmo assim, faltou ao seu cumprimento, o que fez de modo livre e consciente, sabendo vedada a sua conduta e que, mais uma vez, incorria em responsabilidade criminal.
24. Condenando-se o arguido pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1 al. b) do Código Penal 324.º em pena de multa face à ausência de antecedentes criminais pela prática deste crime.
Certa de que, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!
3. Responde o recorrido arguido dizendo:
1) O Douto Recurso apresentado pela Digníssima Magistrada do M.P. é extemporâneo pois foi apresentado ao 30º dia, após a notificação da sentença, e não visa qualquer reapreciação da prova produzida violando o disposto nos artigos 411º nº1 e 412 nº3 do CPP;
2) No recurso apresentado alegam-se erros notórios de julgamento mas não se concretizam os pontos que se consideram incorrectamente julgados, nem as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida nem as provas que devem ser renovadas;
3) Para que a decisão, quanto à matéria de facto, seja alterada, em recurso, não basta o Recorrente alegar que em seu entendimento a decisão deveria ser diversa por não aceitar como credíveis as declarações do arguido ou outras;
4) Os nºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP indicam os pressupostos específicos a observar no recurso, designadamente a motivação, quando se impugna a decisão sobre a matéria de facto, o que o M.P. não respeitou;
5) Efectivamente, embora o M.P. Recorrente faça alusão a alguns trechos do depoimento do arguido, na gravação áudio, não requer, nas suas conclusões, a reapreciação das mesmas;
6) O M.P. não tem qualquer motivo, não tem qualquer razão lógica para dizer, como o fez na conclusão 10º, que se extrai da gravação que “o Mmo Juiz a quo tinha já formado a sua convicção anteriormente à produção integral da prova (…)”
7) O M.P. recorrente, que entende que a lei penal é muito simples (conclusão 20º) não pode olvidar que é ao Acusador que incube provar os factos que alega na sua acusação e não é o arguido quem tem de provar o que quer que seja;
8) E, havendo dúvidas, o julgador decidirá a prova a favor do arguido, de acordo com os princípios consagrados no nosso ordenamento jurídico-penal;
9) No caso vertente, o julgador nem teve necessidade de recorrer ao princípio in dubio pro reo, atenta a completa inexistência de prova por parte do acusador, ora, Recorrente;
10) A decisão quanto à matéria de facto e de direito decorre de um julgamento realizado com rigor, de acordo com as estritas regras processuais, pelo que é legal, justa e adequada.
Termos em que devem V.Exas julgar o recurso extemporâneo e improcedente mantendo a decisão recorrida como é de justiça! 4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso. 5. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
II Questão a apreciar: A impugnação do facto dado por não provado que deve ser dado por provado e respetiva consequência legal: a condenação do arguido pela prática do crime de desobediência. III 1. Na sentença recorrida foram dados como provados e não provados os seguintes factos: 1. Por condenação de 10 de Julho de 2014, transitada em julgado em 02.03.2015 proferida no Processo Sumário n.º 20/14.8GTGRD, do então 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, foi o arguido condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 5 meses de prisão substituída por 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de 9 meses de proibição de conduzir veículos a motor. 2. Aquando da leitura dessa sentença, nesse dia 10.07.2014, pelas 13h45m, o arguido foi notificado pessoalmente, assistido pelo seu Defensor, de que deveria entregar o seu título de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado dessa sentença, no tribunal ou em qualquer posto policial, sob a cominação de, não o fazendo, praticar um crime de desobediência do que ficou bem ciente por aí se encontrar presente. 3. O arguido interpôs recurso da decisão referida em 1, sobre o qual veio a ser proferido acórdão (fls. 40), datado de 21 de Janeiro de 2015, que manteve a decisão recorrida 4. O acórdão foi notificado ao mandatário do recorrente por carta datada de 26/01/2016, 5. Acresce que, decorrido aquele prazo, o arguido não entregou de tal título, como podia e devia, o qual manteve na sua posse. 6. Tendo apenas sido apreendida através das autoridades policiais competentes a sua carta de condução em 20 de Julho de 2015, decorridos mais de quatro meses desde a data em que deveria ter entregado a mesma. 7. Sabia o arguido que a ordem que recebera era legítima, que emanava de autoridade competente, fora-lhe pessoal e regularmente comunicada e que lhe devia obediência. 8. Por condenação de 15 de Dezembro de 2008, transitada em julgado em 05.01.2009 proferida no Processo Sumário n.º 126/08.2GFCVL, do então 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, foi o arguido condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 6,00 e na pena acessória de 4 meses e 15 dias de proibição de conduzir veículos a motor. 9. O arguido é mecânico, auferindo o salário mensal; 10. Vive em casa própria, tendo encargo com empréstimo no montante de 130 euros; 11. Uma filha menor a seu cargo; estudante; 12. A esposa trabalha auferindo o salário mínimo nacional; * Não provado; a. O arguido sabia ter decorrido o prazo fixado para entrega da carta e, mesmo assim, faltou ao seu cumprimento, o que fez de modo livre e consciente, sabendo vedada a sua conduta e que, mais uma vez, incorria em responsabilidade criminal. 2. O tribunal a quo fundamenta a decisão e facto nos seguintes termos: Os factos dados como provados resultam do teor da certidão de fls. 1 (condenação e notificação para entrega da carta, em dez dias, a contar do trânsito em julgado, declarações do arguido que os confessou e, ainda, nas suas declarações face À sua situação pessoal e económica e crc de fls. 26. Nãos e deu como provado que o arguido sabia ter decorrido o prazo fixado para entrega da carta e, mesmo assim, faltou ao seu cumprimento, o que fez de modo livre e consciente, sabendo vedada a sua conduta e que, mais uma vez, incorria em responsabilidade criminal, pois a decisão de 1.º instância foi objecto de recurso, acórdão que não foi notificado ao arguido. É entendimento jurisprudencial que os acórdãos proferidos, em recurso, pelo tribunal da Relação não tem de ser notificado pessoalmente ao arguido - cfr. art art.º 113º, nº 10 do C. Processo Penal. Todavia, tal jurisprudência há-de aplicar-se, atento a natureza técnica dos recursos, às consequências sobre a tramitação do processo e não, também, sobre consequências penais que decorram do conhecimento do acórdão, como no caso, o conhecimento do termo inicial da contagem do prazo para entrega de condução. Ora, não tendo sido notificado o acórdão e dele não tendo tido conhecimento por qualquer outra forma, deu-se como como não provado que o arguido teve conhecimento do trânsito em julgado da decisão e do decurso do prazo fixado para a entrega da carta. IV Cumpre decidir: A) Questões prévias. 1ª Questão prévia: A extemporaneidade do recurso: Suscita o recorrido/arguido a questão da extemporaneidade do recurso dizendo que este foi interposto fora do prazo legal. Esta afirmação do recorrido parte do pressuposto, errado, de que o prazo para a interposição é de 20 dias. Acontece que, segundo a nova redação do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal dada da Lei nº 20/2013 de 21 de Fevereiro, este prazo passou a ser de 30 dias. Logo, o recurso do Ministério Público é tempestivo. 2ª Questão prévia: A ininteligibilidade das conclusões de recurso: Diz o arguido que o “recorrente, embora com ligeiras alterações, reproduz, em sede de conclusões, o que referiu nos pontos I e II do recurso, sem cuidar da síntese a que as mesmas deviam obedecer”. Não sendo inteiramente correta a afirmação do arguido, é certo que as conclusões não são propriamente sintéticas. Nos termos do disposto no artigo 417º, nº 3, do Código de Processo Penal, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada “se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 412º”. Ora, uma coisa é a extensão das conclusões, outra a sua clareza e compreensão. E esta não suscita dúvidas. Pelo que inexiste fundamento para qualquer convite ao recorrente para apresentar novas conclusões.
B) O objecto do recurso: A impugnação do facto dado por não provado que deve ser dado por provado e respetiva consequência legal: a condenação do arguido pela prática do crime de desobediência. 1. Insurge-se o recorrente Ministério Público contra o facto de o Tribunal recorrido ter dado como não provado que: “O arguido sabia ter decorrido o prazo fixado para entrega da carta e, mesmo assim, faltou ao seu cumprimento, o que fez de modo livre e consciente, sabendo vedada a sua conduta e que, mais uma vez, incorria em responsabilidade criminal”. Está em causa a apreciação do crime de desobediência em virtude de o arguido não ter entregado a carta de condução para cumprimento da pena acessória de 9 meses de proibição de conduzir veículos a motor conforme condenação de 10 de Julho de 2014, transitada em julgado em 02.03.2015 proferida no Processo Sumário n.º 20/14.8GTGRD, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã. Na verdade, conforme se mostra provado, aquando da leitura da sentença em primeira instância, no dia 10.07.2014, pelas 13h45m, o arguido foi notificado pessoalmente, assistido pelo seu Defensor, de que deveria entregar o seu título de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado dessa sentença, no tribunal ou em qualquer posto policial, sob a cominação de, não o fazendo, praticar um crime de desobediência do que ficou bem ciente por aí se encontrar presente. Mas mais resulta que o arguido interpôs recurso desta decisão sobre o qual veio a ser proferido acórdão por este Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21 de Janeiro de 2015, que manteve a decisão recorrida Este acórdão foi notificado ao mandatário do recorrente por carta datada de 26/01/2016,
Mais se sabe que o arguido não entregou a carta de condução voluntariamente nos dez dias seguintes ao trânsito em julgado do acórdão da Relação, tendo a mesma sido apreendida através das autoridades policiais em 20 de Julho de 2015. A questão essencial a apurar é pois dar como provado ou não provado se o arguido sabia da obrigação de entregar a carta de condução, desde quando e até quando. O recorrente apoia-se em jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e deste Tribunal da Relação para dizer que a interpretação do disposto no artigo 113º, nº 10, do Código de Processo Penal, apenas exige a notificação do acórdão do Tribunal de Recurso ao defensor, produzindo o mesmo efeitos relativamente ao arguido apesar de não lhe ser notificado. Cita a propósito os acs. do STJ de 10.05.2007 (CJ T2, pág. 179) e de 06.02.2002 (CJ T1, pág. 199) e do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.02.2002 (CJ T1 pág. 50).
2. Na verdade, é este o entendimento. Assim também o considerou o Tribunal recorrido. Todavia, a decisão recorrida explicita algo mais que deve ser aplicada à situação em concreto: “Tal jurisprudência há-de aplicar-se, atento a natureza técnica dos recursos, às consequências sobre a tramitação do processo e não, também, sobre consequências penais que decorram do conhecimento do acórdão, como no caso, o conhecimento do termo inicial da contagem do prazo para entrega de condução. Ora, não tendo sido notificado o acórdão e dele não tendo tido conhecimento por qualquer outra forma, deu-se como como não provado que o arguido teve conhecimento do trânsito em julgado da decisão e do decurso do prazo fixado para a entrega da carta”.
Distinguem-se assim dois efeitos de natureza diferente, quanto à notificação de decisão de Tribunal Superior, na pessoa do arguido, quando esta tenha sido apenas notificada ao seu defensor: Efeitos de natureza processual ou outros, que tenham a ver com a tramitação stricto sensu ou o exercício do direito de defesa, como seja exercer o direito de recorrer ou outro análogo. E efeitos que se repercutem diretamente na esfera jurídica e pessoal do arguido e que dependem de um conhecimento seu efetivo do teor da decisão. E de entre essas repercussões contam-se as de natureza penal, como é o caso.
Esta jurisprudência, máxime o teor do ac. da Relação de Coimbra citado, 13-02-2002, vai beber no ac. do TC nº59/99, de 2-02-99 que apreciou esta questão. E na verdade, aí se afirma a dado momento: “É sabido que o Diploma Fundamental, ao consagrar que o processo criminal tem de assegurar todas as garantias de defesa, aponta para que o mesmo deverá incluir toda uma previsão ou um feixe de direitos, meios e instrumentos de harmonia com os quais é facultada ao arguido uma eficaz defesa e uma adequada contraditoriedade relativamente à acusação. O processo criminal terá, por isso, de perspectivar-se como um due process of law, permitindo, pois, que nele haja sempre a possibilidade de o arguido se defender (cfr. Acórdão deste Tribunal nº 61/88, no Diário da República, 2ª Série, de 20 de Agosto de 1988). E essa defesa, inclusivamente, pode abarcar, quando esteja em causa uma decisão jurisdicional tomada em última instância por um tribunal superior - da qual, consequentemente, já não caiba recurso ordinário -, a colocação em crise, confrontadamente com a sua validade constitucional, da normação com base na qual foi prolatada a decisão condenatória (se, como é claro, estiverem congregados os respectivos pressupostos processuais). Sendo isto assim, são configuráveis várias hipóteses que apontam para que as garantias de defesa de um arguido só serão plenamente adquiridas se ao mesmo for dado um cabal conhecimento da decisão condenatória que a seu respeito foi tomada. Mas, entende este Tribunal, esse cabal conhecimento, atinge-se, sem violação das garantias de defesa que o processo criminal deve comportar, desde que o seu defensor - constituído ou nomeado oficiosamente -, contanto que se trate do primitivo defensor, seja notificado da decisão condenatória tomada pelo tribunal de recurso. Na verdade, os deveres funcionais e deontológicos que impendem sobre esse defensor, na vertente do relacionamento entre ele e o arguido, apontam no sentido de que o mesmo, que a seu cargo tomou a defesa daquele, lhe há-de, com propriedade, transmitir o resultado do julgamento levado e efeito no tribunal superior. De harmonia com tais deveres, há-de concluir-se que o arguido, por intermédio do conhecimento que lhe é dado pelo seu defensor (aquele primitivo defensor) ficará ciente dos motivos fácticos e jurídicos que o levaram a ser considerado como agente de um ilícito criminal e da reacção, a nível de imposição de pena, que lhe foi aplicada pelo Estado, ao exercitar o seu jus puniendi. Outrotanto, porém, se não passa se se tratar de um defensor meramente nomeado para a audiência em substituição do defensor que, para ela notificado, não compareceu. Aqui, esse defensor não estará vinculado a deveres funcionais e deontológicos que lhe imponham a dação de conhecimento ao arguido do resultado do julgamento realizado no tribunal superior, já que a sua intervenção processual se «esgotou» na audiência e somente para tal intervenção foi nomeado”. 3. A doutrina e filosofia do Tribunal Constitucional para considerar o arguido legalmente notificado na pessoa do seu defensor de uma decisão proferida por um tribunal superior, reside na confiança que deve existir entre arguido e defensor e nos deveres funcionais e deontológicos deste. E, sendo assim, com base neste princípio da confiança, é de considerar que os direitos do arguido e o conhecimento que este deve ter do processo e da decisão, lhe são transmitidos pelo defensor. Ora, esta premissa ajusta-se inteiramente ao que se disse sobre o exercício dos direitos de defesa do arguido no processo, sobretudo de natureza técnica. Mas já não inteiramente, em nosso entender, sobre eventuais condutas, comportamentos, obrigações que resultem para o arguido, na sequência da decisão em causa. É que o conhecimento exigido ao arguido para cumprir determinada obrigação, apoia-se naquela mera presunção de cumprimento do dever funcional e deontológico pelo defensor. Que pode existir ou não. Que o mesmo pode ter dado conhecimento efetivo ou não ao arguido. Com certeza que, de eventual incumprimento pelo defensor daqueles deveres poderão advir consequências também funcionais ou disciplinares ou de ressarcimento de danos. Mas a questão que neste momento importa apreciar é de natureza diferente. O arguido estava ciente ou pelo menos tinha a obrigação de estar, de que, conforme notificação pessoal e direta feita pelo tribunal de primeira instância, que deveria entregar a carta de condução no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença. Se porventura não tivesse sido interposto recurso, fácil seria para o arguido ou pelo menos tinha a obrigação de se informar, quer perante o defensor ou perante o tribunal, do dia exato a partir do qual estava obrigado a entregar a carta de condução, uma vez que a data do trânsito em julgado é uma questão técnica, que não é exigível a qualquer arguido que a saiba. Acontece que com a interposição do recurso, este raciocínio e modo de proceder ou agir, se alterou. Ficou mais indefinida e incerta a dita data do trânsito em julgado da sentença. Que só veio a apurar-se com a prolação do acórdão pela Relação e consequente trânsito em julgado deste. O que significa que o arguido, para ser responsabilizado penalmente pela não entrega da carta nos dez dias posteriores àquele trânsito em julgado do acórdão do Tribunal da Relação, implicava saber ou ter conhecimento dessa data e efetuar a contagem do prazo. Ora, o conhecimento deste facto, uma vez que o arguido não foi notificado pessoalmente desta decisão, tinha que lhe ser transmitido pelo defensor. Que, em última instância, o deveria alertar para a contagem do prazo ou da data em que deveria entregar a carta sob pena de cometer (o arguido), o crime de desobediência. Mas esta obrigação do defensor assenta apenas no dito dever funcional e deontológico. No processo não foi produzida qualquer prova de que o defensor transmitiu ou deu conhecimento ao arguido do teor da decisão da Relação e muito menos da data do trânsito em julgado do acórdão.
O recorrente Ministério Público conclui que o arguido tinha conhecimento daquelas datas. Apoia-se nas declarações do arguido, prestadas em audiência e segundo as regras da experiência. Sobre a matéria e de relevante, disse o arguido: - A gente recorreu e depois não fui notificado de mais nada (Gravação áudio 00:09 a 00:12). - Fiquei a aguardar que me dissessem alguma coisa, que me notificassem para alguma coisa, nunca fui notificado para mais nada (Gravação áudio 02:53 a 02:58). - Fui duas vezes ao escritório do advogado o qual estava fechado (Gravação áudio 04:19 a 04:21) O recorrente alega ainda: “Mais se salientamos que perguntado ao arguido se sabia que o advogado tinha sido notificado do acórdão do Tribunal Relação de Coimbra o mesmo escusou-se a responder tendo sido o Mm.º Juiz a responder repetidas vezes: não sabe (Gravação áudio 03:35 a 03:52)”. E conclui o recorrente: “Destas declarações decorre que o arguido admite a deslocação ao escritório do advogado no processo da condenação porque sabia que tinha havido recurso e estava à espera da decisão…”. A alegada falta de contacto entre o arguido e o seu advogado não poderá, de modo algum, constituir justificação do arguido à qual o Tribunal atende mas eventual violação deontológica do advogado do arguido nesse processo da condenação. … Assim sendo, entendemos que a versão dos factos apresentada pelo arguido não poderá proceder considerando que não se produziu qualquer prova da falta de conhecimento do acórdão superior para além das suas próprias declarações que não se revestem de imparcialidade necessária para, só por si, considerar-se como não provado esse conhecimento sendo este naturalmente interessado na sua absolvição”.
4. Afigura-se demasiada temerária esta conclusão do recorrente. E ilegal, diga-se. O crime imputado ao arguido (desobediência), é necessariamente doloso. O que exige um conhecimento real e efetivo da obrigação de entregar a carta no período considerado para o efeito. Bem como a vontade e consciência de a não entregar. Este conhecimento da obrigação de entregar a carta, não se presume. Segundo o que se disse e afirmou, considera-se (nos termos da jurisprudência citada, que não diretamente do disposto no artigo 113º, nº 10, do Código de Processo Penal), o arguido legalmente notificado. Mas para os efeitos e termos também já referenciados. Tal conhecimento do arguido é requisito essencial para a prática do crime. A que se somam os restantes. A prova deste facto compete à acusação. Não compete ao arguido demonstrar e provar que não tinha conhecimento da obrigação de entrega da carta naquela concreta data. A entender-se assim, seria inverter o ónus da prova e uma verdadeira violação do princípio da presunção de inocência do arguido. O recorrente, da análise que faz da prova produzida e maxime das declarações do arguido, afirma que este não demonstrou não saber do teor do acórdão e da obrigação de entregar a carta de condução no devido prazo - não se produziu qualquer prova da falta de conhecimento do acórdão superior. Não compete ao arguido produzir esta prova. Este presume-se inocente. A acusação é que tem que produzir a prova do seu conhecimento e vontade de agir em desconformidade. Manifestamente, essa prova não foi produzida. Os elementos dos autos são parcos. Não se trata de ajuizar segundo as regras da experiência. As regras da experiência nesta situação não têm resposta, não são de aplicar. E, ainda que porventura se admitisse que o defensor até teria dado conhecimento da decisão do Tribunal da Relação ao arguido, sempre ficaria a dúvida sobre o teor exato desse conhecimento, pois o que está em causa não é um conhecimento genérico mas concreto e específico da data legal e obrigatória para entregar a carta de condução pelo arguido. Sempre pairaria, manifestamente, de forma bastante dubitável, o conhecimento exato deste teor. O que significa que ainda assim seria prudente e obrigatório aplicar o princípio do in dúbio pro reo. 5. Perante situações desta natureza, será com certeza de ponderar os procedimentos nos tribunais a quo para efetivar a obrigação da entrega da carta de condução pelos arguidos. Sobre esta matéria dispõe o artigo 500º, nºs 2 e 3, o seguinte: 2 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo. 3 - Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
Apesar de o arguido ter sido notificado no momento da leitura da sentença em primeira instância desta obrigação e da respetiva cominação (desobediência), a verdade é que, nas situações de recurso, surgem vicissitudes várias que podem suscitar dúvidas justificadas sobre a data exata da obrigação da entrega da carta de condução pelo arguido, para que aquela desobediência se verifique (o que pressupõe, necessariamente, o conhecimento desse facto pelo arguido e a vontade deste em não a entregar). Pelo que, do mesmo modo que se for aplicada e confirmada pena de prisão, o tribunal emite os mandados de detenção e condução ao estabelecimento sem aguardar a apresentação voluntária do arguido – v. artigo. 478º, do Código de Processo Penal; se for aplicada e confirmada pena de multa, o arguido é notificado para o pagamento em 15 dias – v. artigo 489º, nº 2, do Código de Processo Penal; será de ponderar como melhor procedimento (mais pragmático), antes de ser ordenada a apreensão a que se refere o nº 3 do citado art. 500º, proceder a nova notificação do arguido para os termos do nº2 do mesmo preceito (entrega da carta em 10 dias), com a respetiva cominação da desobediência.
IV Decisão Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso do recorrente Ministério Público, confirmando-se a decisão de absolvição do arguido.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
Coimbra, 8 de Março de 2017
(Luís Teixeira – relator)
(Vasques Osório – adjunto) |