Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1494/23.1T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: QUALIDADE EM QUE O ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA REPRESENTA O INSOLVENTE EM JUÍZO
MASSA INSOLVENTE
LEGITIMIDADE DO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA PARA REQUERER A ABERTURA DE INVENTÁRIO PARA A PARTILHA DA HERANÇA A QUE PERTENCE O QUINHÃO HEREDITÁRIO DE HERDEIRO INSOLVENTE
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DAS CALDAS DA RAINHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 81.º, 4, DO CIRE
ARTIGO 30.º, 1 E 2, DO CPC
ARTIGOS 1082.º, B); 1085.º, A) E 2067.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - O administrador da insolvência, pese embora a norma do art 81º/4 do CIRE inculque o contrário, não atua em juízo como representante do insolvente, mas como parte, enquanto substituto processual daquele, recaindo a sua atuação no âmbito da substituição processual.
II - A massa insolvente carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário que foi para ela apreendido na sequência da declaração de insolvência do herdeiro.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            I – A Massa Insolvente de AA, veio requerer que se proceda a inventário para partilha das heranças indivisas de BB e de CC.

           Alegou, para tanto, e em síntese, que sendo AA filha dos referidos BB e CC, foi declarada insolvente por sentença proferida a 25/05/2017, no âmbito do proc. n.º 1198/17...., que correu termos no Juízo de Comércio ..., e que foi apreendido para a Massa Insolvente o quinhão hereditário que lhe cabe por óbito da sua mãe, quinhão resultante do acervo patrimonial deixado pelo seu falecido pai. Mais alegou que é também herdeiro relativamente a estas heranças DD, irmão da insolvente.

           Conclui, assim, que atenta a existência de bens em comunhão hereditária, dos quais a Insolvente e o seu irmão DD são herdeiros, importa proceder ao inventário, o que requer.

           Foi indeferido liminarmente o requerimento apresentado, por se ter entendido carecer a Requerente de legitimidade para requerer o inventário.

           II – Do assim decidido, apelou a Massa Insolvente, tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos:

           1.ª – A Recorrente Massa Insolvente de AA vem recorrer do despacho de indeferimento liminar, que determinou a ilegitimidade ativa do Administrador da Insolvência para requerer o processo de inventário do herdeiro insolvente, com fundamento na incorreta apreciação da matéria de direito aplicável, nos termos e para efeitos do artigo 639.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

            2.ª – Conforme o disposto nos artigos 1082.º, al. a) e 1084.º, n.º 1 do CPC, o processo de inventário versa sobre a partilha de direitos com expressão e natureza inequivocamente patrimonial, até porque, nos termos do artigo 1198.º, do CPC, é condição essencial e necessária para a partilha, a atribuição, aos específicos bens ou direitos que compõem a herança, de um específico valor pecuniário.

             3.ª – A Recorrente pretendeu com a instauração do inventário judicial cessar a comunhão hereditária dos inventariados e proceder à partilha de bens, por forma a concretizar a liquidação do quinhão hereditário pertencente à insolvente, património esse que diz diretamente respeito à Massa Insolvente, porquanto se encontra apreendido a favor da Recorrente

            . 4.ª – O CPC fixou no seu artigo 30.º o conceito de legitimidade ativa, estatuindo - no que nestes autos interessa - que o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo que esse se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação.

            5.ª – A legitimidade processual para requerer o inventário judicial é conferida aos interessados diretos na partilha conforme dispõe o artigo 1085.º, n.º 1, al. a) do CPC, constituindo um conceito indeterminado e mais alargado de sujeitos admitidos a requerer a partilha, os quais não se limitam aos sucessores legais, ao cônjuge ou ao Ministério Público;

            6.ª – O ter ou não ter interesse direto numa partilha de bens com valor patrimonial é que comanda a legitimidade para requerer ou intervir no inventário, e não a qualidade de herdeiro, sendo que o conceito de interessado direto é bastante mais abrangente do que o de herdeiro.

           7.ª – No pleito inventarial, a Massa Insolvente, representada pelo Administrador da Insolvência, tanto visa satisfazer os legítimos interesses e direitos dos credores da insolvência, o que é pressuposto essencial do processo insolvencial definido no artigo 1.º, n.º 1 do CIRE, como age em representação do devedor para efeitos de carácter patrimonial (cfr. artigo 81.º, n.ºs 1 e 4 do CIRE).

             8.ª – Da declaração de insolvência resulta tanto a subtração dos poderes de disposição e administração dos bens do insolvente herdeiro, como a consequente impossibilidade de o próprio falido ter legitimidade para ser requerente do processo de inventário.

           9.ª – O quinhão hereditário, que tem utilidade económica (em função dos bens, direitos e obrigações que compõem a herança), é avaliável, alienável e partilhável, nos termos do disposto nos artigos 2101.º e 2124.º do Código Civil.

           10.ª – Nessa medida, não pode deixar de ser reconhecido à Massa Insolvente um interesse direto e legitimo na partilha da herança, dado que a definição e a concretização do acervo hereditário apresentam um interesse patrimonial inequívoco, para a sociedade civil em geral, como para a insolvência em especial, essencial para a satisfação dos credores e para realização da finalidade primordial do processo de insolvência, da legalidade e do Direito.

            11.ª – A apreensão do quinhão hereditário, excluídos os poderes de administração do herdeiro insolvente, transfere para a Massa Insolvente todos os seus direitos ou toda a sua posição relativamente aos bens e, entre estes, está o direito de exigir a divisão, nos termos do artigo 2101.º do Código Civil, direito esse que apenas pode ser exercido através do seu representante, que é precisamente o Administrador da Insolvência.

           12.ª – A aferição da medida da quota hereditária e a sua concretização em bens com natureza patrimonial, só alcançáveis mediante a respectiva avaliação em processo de inventário, traduz-se também num mecanismo de defesa dum património apreendido para a Massa e, por isso, devem considerar-se dentro das competências atribuídas ao Administrador da Insolvência, a petição de inventário, por ter interesse em tornar definitiva, certa, determinada e liquidável, a apreensão do quinhão hereditário.

           13.ª – Não deve continuar a vingar a interpretação jurisprudencial maioritária de que os direitos da Massa Insolvente recaem exclusivamente sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, uma vez que tais direitos sobre o quinhão ocorrem relativamente a todos os herdeiros, interessados directos e outros, sendo, no caso, o Administrador da Insolvência representante dos direitos patrimoniais do herdeiro falido.

            14.ª – Vedar ao insolvente o direito de requerer a partilha e, ao mesmo tempo, cobrir de um manto de ilegitimidade ativa a ação do administrador nesse sentido, constituiria uma insuportável denegação de justiça, em vários aspectos e sentidos, deixando o tempo da partilha exclusivamente na vontade dos demais interessados, com consequências prejudiciais óbvias para os credores, para o insolvente – nomeadamente o não exonerado do passivo restante -, manietando o legítimo exercício dos poderes adjetivos e substantivos conferidos por Lei ao administrador da massa insolvente.

           15.ª – Com a generalização do entendimento de ilegitimidade ativa do Administrador da Insolvência, o mais certo é que deixe de se conseguir efetuar a venda dos direitos sucessórios, uma vez que os familiares dos insolventes passarão a protegê-los, abstendo-se de efetuar partilhas e deixando arrastar o processo até findar a insolvência, na maior parte dos casos de insolvência pessoal com exoneração do passivo restante.

           16.ª – A entender-se assim tal discrimina os insolventes, porquanto, em caso de inexistência de outros legitimados a concorrer à herança, a concretização do quinhão hereditário com específicos bens e a definição do respetivo valor patrimonial, é facilmente percetível pelos credores, visto que existindo apenas um herdeiro (e uma única quota), não se verifica necessidade de proceder a inventário.

           17.ª – Tal entendimento viola o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

           18.ª – Ao impedir-se a afetação das heranças ao processo de insolvência por ilegitimidade ativa do Administrador da Insolvência em requerer inventário, age-se contra o espírito e as linhas europeias definidas na Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, conhecida como a Diretiva sobre Reestruturação e Insolvência, que pretendeu definir medidas para aumentar a eficácia dos processos de insolvência e de perdão de dívidas, designadamente o estabelecido no Considerando (80).

            19.ª – A decisão recorrida violou assim o disposto nos artigos 30.º, 1082.º, al. a), 1085.º, n.º 1, al. a), 1098.º, n.º 1 do CPC, e os artigos 1.º, 81.º, n.º 1 e 4 e 85.º, n.º 3 do CIRE. Face ao exposto,

             20.ª – Deverá ser revogada a decisão de indeferimento liminar proferida pelo Tribunal a quo e ser substituída por outra que decida permitir o prosseguimento dos presentes autos, nos termos peticionados.

            Não foram produzidas contra-alegações.

            III -Os factos a ter em consideração para a decisão do recurso emergem do circunstancialismo fáctico processual acima referido.

            IV - Do confronto das conclusões das alegações com a decisão impugnada, resulta constituir objecto do presente recurso, saber se, quando, na sequência de declaração de insolvência, haja sido apreendido para a massa insolvente quinhão hereditário do insolvente, a massa insolvente  tem  legitimidade para requerer a abertura do processo de inventário; e, no caso  de se entender que a não tem, se esse entendimento fere o principio constitucional da igualdade, por resultar tratado diferentemente perante os credores do insolvente, o insolvente que seja o único herdeiro relativamente ao insolvente  que o não seja.

           Tem sido entendido, crê-se que muito maioritariamente, que a massa insolvente,  não sendo interessada directa na partilha, não tem legitimidade para requerer a instauração do inventário. [1]

            Sem dúvida que na análise da questão objecto do recurso há que partir do conceito de legitimidade, porque é dela que se trata e, por isso, e antes de mais, convocar a norma do art 1085º/1 CC, que se reporta à legitimidade  para requerer inventario,  e onde se dispõe: «1- Tem legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens; b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta».

           Estando fora de causa a situação desta al b), e igual, e obviamente, a da recondução da massa insolvente a cônjuge meeiro ou à dos interessados apenas na elaboração da relação dos bens, a que se reporta a al b) do referido art 1082º, será sempre o conceito de interessado directo na partilha que importará à situação em apreço, impondo-se, por conseguinte, saber se a massa insolvente se pode considerar interessado directo na partilha. Afirma, efectivamente, Augusto Lopes Cardoso[2], que «ter ou não interesse direto na partilha é que comanda a legitimidade para a requerer».

           O interesse directo remete-nos, por sua vez, para o conceito geral de legitimidade, expresso no art 30º/1 e 2, de que decorre que a legitimidade activa advém do interesse directo em demandar e este exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção, pelo que se deverá concluir que só pode provocar a instauração de inventário quem tiver interesse directo na utilidade resultante da consecução do mesmo.

           Tem-se assinalado, no entanto,  que  o “interessado direto na partilha” a que se reporta a referida al a ) do art 1085º/a), não pode circunscrever-se  apenas aos herdeiros, pois, de contrário, falar-se-ia ali de “herdeiro” e não de “interessado direto na partilha”, sendo manifesto que se quiseram abranger outros sujeitos que  têm legitimidade para requerer e intervir no inventário como parte principal, como sejam o cessionário do quinhão de um dos co-herdeiros, o credor que se sub-roga ao repudiante da herança (cfr. artigo 2067º do Código Civil), aqueles que exerçam as responsabilidades parentais, bem como o tutor ou o curador, estes nos casos em que a partilha é diferida a incapazes ou a ausentes em parte incerta [3].

            Nesta linha de entendimento, faz todo o sentido, vista a finalidade do inventário, que, estando em causa o interesse directo em demandar e  a utilidade derivada  daquele processo, se tenham como interessados diretos nele «todos os que, sendo ou não, herdeiros do de cujos, veem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário [4]      Assim sendo, o que importa nos autos é ponderar se a massa insolvente  pode ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário.

           Entende a apelante que não pode deixar de ser reconhecido à Massa Insolvente um interesse direto e legitimo na partilha da herança, dado que a definição e a concretização do acervo hereditário apresenta um interesse patrimonial inequívoco para a satisfação dos credores e para realização da finalidade primordial do processo de insolvência – importando aos credores da insolvência conhecer o conteúdo e valor específico do quinhão hereditário - por isso devendo considerar-se que o direito à concretização desse quinhão se encontra dentro das competências atribuídas ao Administrador da Insolvência,  como representante dos direitos patrimoniais do herdeiro insolvente. 

            Esta posição radica no pressuposto de que que o administrador, quando exerce direitos do âmbito patrimonial do insolvente, agindo nos interesses dos credores, age  como  representante legal daquele, em seu  nome e no suprimento da sua incapacidade de exercício, e que, por isso, sendo do interesse do insolvente, assim como da  massa insolvente, o direito de ver concretizado em bens o quinhão hereditário, sob pena de a apreensão dos bens da insolvente não cumprir a sua finalidade que é a de contribuir para o benefício máximo dos credores e da própria insolvente, se dever reconhecer à massa insolvente, através do seu administrador, o direito de requerer inventário.

           Sucede que atribuir-se ao administrador da insolvência a qualidade de representante do insolvente – pese embora o nº 4 do art 81º sugira que o administrador da insolvência actua como representante legal do insolvente quando exerce direitos do âmbito patrimonial do insolvente – briga à partida com a circunstância de, como resulta do nº 1 dessa norma, quanto aos bens compreendidos na massa insolvente, este ficar privado dos poderes de administração e disposição. Se estes poderes, de que aquele fica privado, são atribuídos ao administrador da insolvência [5],  a esta atribuição não pode residir o fenómeno da representação – porque apenas pode transmitir poderes aquele que os tem – antes se tratando de um fenómeno de substituição processual.

            Assim o fazem notar Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/António Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres [6], referindo, ainda que não apenas relativamente à situação que nos ocupa, mas também para a de penhora de quinhão hereditário: 

            «Pode suceder que o quinhão hereditário de um interessado directo tenha sido penhorado ou que um dos interessados directos tenha sido declarado insolvente. Nestas situações, o interessado directo não tem legitimidade para requerer (dif. RE 22/12/17 (219/15)) ou para ser requerido no inventário, dado que, segundo o disposto do art. 819.° CC, é inoponível à execução qualquer acto do executado sobre o quinhão penhorado e, segundo o estabelecido no art. 81º/1 e 6 CIRE, o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer actos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão (RL 11/4/19 (171/17)).. Isto justifica, no âmbito da substituição processual (ou legitimidade indirecta), as seguintes soluções:

            a) O administrador é o substituto processual do interessado insolvente (art. 81°/ 4, CIRE). Este preceito refere-se, de modo equívoco, a uma função de representação do insol­vente: a verdade é que o administrador actua em juízo como parte, e não como representante do insolvente (que seria então a parte representada). Isto significa que o administrador da insolvência vai actuar no processo de inventário como substituto processual do interessado insolvente. (…)

           O interessado executado não tem nenhum substituto processual designado na lei, certa­mente porque não é comum que haja que actuar quanto aos bens penhorados fora do processo executivo. No entanto, uma das situações em que esta actuação é pensável é precisamente a penhora de quinhão em bens indivisos, dado que esta penhora não pode inibir a faculdade de qualquer contitular requerer a divisão da coisa comum ou a partilha da universalidade comum. Nesta hipótese, suscita-se o problema de saber quem vai estar em juízo em substituição do exe­cutado. A resposta só pode ser a de que qualquer credor exequente ou reclamante pode assumir a substituição no processo divisório do contitular executado.

            b) Pode perguntar-se se a legitimidade que é reconhecida ao administrador da insolvência ou ao credor exequente ou reclamante, na qualidade de substituto processual do interessado executado ou insolvente, lhe permite requerer a divisão da coisa comum ou o inventário para partilha da universalidade comum. A resposta tem de ser negativa, dado que os direitos dos cre­dores exequentes e reclamantes e da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens.

           Disto decorre que o credor exequente ou reclamante e o administrador da insolvência não têm legitimidade para requerer a divisão da coisa ou o inventário da herança, mas têm legitimidade para nestes processos serem requeridos em substituição do interessado directo executado ou insolvente.»   

           Esta conclusão -  de que o administrador não atua em juízo como representante do insolvente, mas como parte, enquanto substituto processual daquele, recaindo a sua atuação no âmbito da substituição processual (ou legitimidade indireta)   - implica, como é próprio desta, que o mesmo seja  admitido como parte no processo apesar de não ser  sujeito da relação jurídica deduzida em juízo [7], e que  aja  no processo em seu próprio nome  (e não em nome do insolvente, como  ocorre com o representante) e no seu próprio interesse, embora litigando sobre direito alheio [8].

           Acresce ao que foi ponderado que o administrador da insolvência não adquire do insolvente a qualidade de herdeiro que este detém.

           E tão pouco a massa insolvente tem essa qualidade, antes constituindo um mero património autónomo distinto da pessoa jurídica do herdeiro.

            A qualidade de sucessor legal dos inventariados permanece na esfera jurídica da insolvente.

           Por isso, a massa insolvente não é interessada directa no inventário, e por assim ser, não pode beneficiar directa e imediatamente com a partilha, dado que o que está em causa é o quinhão hereditário e não o seu preenchimento com bens concretos.

           Deve, pois, concluir-se que a massa insolvente carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário da insolvente, devendo, em consequência, confirmar-se a decisão recorrida.

           Quanto à  ofensa ao principio constitucional da igualdade em função de resultarem diferenciadamente tratados os credores do  insolvente único herdeiro, relativamente aos credores de  insolvente que concorra à herança com outros herdeiros, visto que aqueles acedem ao conteúdo especifico da herança, ao passo que estes, na falta de legitimidade da massa insolvente para requerer inventário, resultam privados do conhecimento do quinhão hereditário apreendido,  trata-se apenas de uma  deturpada questão, pois que o principio da igualdade pressupõe, o que aqui não se verifica, à partida – que as situações que se querem equiparar sejam idênticas, quando aqui o não são. Na verdade, a questão objecto do processo reporta-se à apreensão do quinhão hereditário do insolvente e não à da apreensão da herança deste.

            V - Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pela apelante.

                                                           Coimbra, 6 de Fevereiro de 2024
(Maria Teresa Albuquerque)

(Luís Ricardo)

(Cristina Neves)

            (…)

               [1] -  Neste sentido, relativamente à jurisprudência das Relações, para além do citado Ac RL 24/09/2020 (Borges Carneiro), vejam-se os Acs. da R C de 09/11/2021, (Freitas Neto), da RL 28/04/2022 (António Moreira), da RC 10/05/2022 (Pires Robalo), Ac R G 24/3/2022 (Raquel  Baptista Tavares), RL 22/1/2022 (Diogo Ravara).

               Relativamente ao STJ, vejam-se os Ac 09/11/2022 (Ana Resende), de 21/3/2023 (Nunes Tibério) e de 21/3/2023 ( Jorge Arcanjo)..

                Em sentido contrário, o Ac. RC 09/11/2021 (Paulo Correia), Ac R E 7/4/ 2022 (Rui Machado e Moura) Ac RP 15/04/2010 (Amaral Ferreira)

               [2] - «Partilhas Judiciais», com a colaboração de Artur Lopes Cardoso e Fernando Casal, Volume I, 6ª Ed, 2015, p. 297 e 301

[3] - Consoante é referido no acima referido Ac R L  24/09/2020
[4] - «O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil», Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/António Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, , p. 31.

                [5]- Luís  Carvalho Fernandes/João Labareda, «Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado» 2013, 2ª Edição, p. 431; Maria do Rosário Epifânio, «Manual de Direito da Insolvência», Almedina, 2019, 7ª Edição, p. 111 a 121; Catarina Serra, »Lições de Direito da Insolvência», Almedina, 2018, p. 141 a 176
                [6]  - Obra citada, p  32-33
                [7]  - Anselmo Castro, «Direito Processual Civil Declaratório», vol. III,  1982, p. 391
                [8]  - Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio Nora, «Manuel de Processo Civil», p. 732 e 733