Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1820/20.5T8ANS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
CAPACIDADE
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 6.º, N.º 3, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I - A sociedade comercial pode prestar garantias a dívidas de outras entidades se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

II - Invocando a sociedade garante a nulidade das garantias que prestou a terceiros, cabe-lhe a ela provar que não se verificavam as situações que tornavam válidas as garantias prestadas.   

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

J..., S.A., deduziu contra  C... S.A,  embargos à execução que esta lhe moveu.

Alegou, em síntese:

A hipoteca é nula por ser contrária à lei nos termos dos artigos 6.º, n.º 3 do CSC, 280.º e 294.º do Código Civil.

Ademais, o objeto social da Embargante é construção civil e obras públicas, reparação e comercialização de edifícios e a compra e venda de propriedades e não a prestação de garantias a terceiros.

 A embargante não tinha no seu corpo social qualquer participação da P..., S.A., pelo que não estava numa relação de domínio ou de grupo com a mesma.

Na altura eram acionistas da  Embargante AA, BB e CC, donde decorre o alegado interesse da Embargante na prestação da garantia. Nunca existiu qualquer mútuo e nunca houve qualquer projeto de internacionalização ou empreendimento comum com a P..., S.A., o que era do conhecimento do Exequente. Na data do alegado empréstimo a P..., S.A. atravessava graves dificuldades financeiras e que vieram a determinar a sua insolvência.

O mutuo foi cozinhado para aumentar as garantias do Banco; tratou-se apenas de renegociar o passivo da P..., S.A..

Ou seja, estamos perante um mutuo simulado: os 457 mil euros colocados na conta da Embargante foram logo transferidos para a P..., S.A. e aproveitados para liquidar as suas responsabilidades financeiras.

A nulidade do mútuo determina a nulidade da hipoteca nos termos do artigo 730.º, al. a) do CC.

Pediu:

A procedência dos embargos, com as legais consequências.

O Exequente contestou.

Disse, em resumo:

A Embargante coloca em causa o mútuo, mas não a escritura pública de constituição de hipoteca.

A Embargante faz parte do mesmo grupo económico que o da mutuária P..., S.A., inclusive com administradores comuns.

O mutuo foi creditado em conta da P..., S.A., por ser a mutuária. Também não foram alegados quaisquer factos de onde se possa concluir pela simulação.

A Embargante litiga de má fé e em venire contra factum proprium.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Com os fundamentos de facto e de direito enunciados, julgo totalmente improcedentes, por não provados, os presentes embargos de executado e, em consequência, determino o prosseguimento da execução;»

3.

Inconformada recorreu a embargante.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. O tribunal a quo fez uma errada interpretação dos factos e uma errada análise da prova produzida nos presentes autos, olvidando que o Doc. 2 do Requerimento Probatório da Embargada, de 10.09.2021 (Ref.ª Citius: 7985295) demonstra claramente que esta sempre soube que os €457.000,00 creditados na conta de movimentos à ordem da P..., S.A.., foram por esta utilizados para liquidar responsabilidades por si anteriormente assumidas.

B. A constituição da hipoteca a favor da embargada, incidente sobre as frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ... e ... do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., em ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...8 e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo n.º ...23.º da freguesia e concelho ... é nula, por ser contrária à lei.

C. Resulta dos autos que a embargante tem por objeto social a construção civil e obras públicas, reparação e comercialização de edifícios e a compra e venda de propriedades e não a prestação de garantias a terceiras entidades.

D. A capacidade das pessoas coletivas abrange (apenas) os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins.

E. Do simples cotejo da ata da Assembleia Geral da embargante 10 de maio de 2010, logo se constata que a embargante não tinha no seu corpo social qualquer participação da P..., S.A., pelo que não estava numa relação de domínio ou de grupo com a mesma.

F. Eram, na altura, acionistas da embargante AA, BB e CC – Doc. 2 do requerimento inicial.

G. Eis, portanto, desmontada a vertente do alegado interesse próprio da embargante na prestação da garantia.

H. Por outro lado, o alegado mútuo prestado pela exequente nunca teve lugar e nunca esteve em causa e nunca existiu qualquer projeto de internacionalização ou empreendimento comum com a P..., S.A., o que era do pleno conhecimento da embargada.

I. O mútuo invocado pela embargada nunca verdadeiramente teve lugar.

J. Dada a conjuntura económica do país, em maio de 2010, a empresa P..., S.A. já atravessava graves dificuldades financeiras, que eram irreparáveis e que determinaram a sua insolvência em 13 de abril de 2011.

K. Nessa altura, a P..., S.A. apresentava para com a embargada uma avultada dívida de vários milhões de euros, que se encontrava em incumprimento.

L. O “mútuo” cozinhado com a P..., S.A. mais não constituiu que uma forma ardilosa de aumentar as garantias do Banco exequente sem este mobilizar ou disponibilizar quaisquer novos recursos financeiros.

M. Tratou-se apenas de renegociar um passivo da P..., S.A. e da assunção do referido passivo por parte da ora embargante, sem que tivesse sido mutuada nesta altura qualquer nova quantia, fosse àquela sociedade, fosse à embargante, ora recorrente.

N. Tratou-se, pois, de um mútuo simulado: os €457.000,00 que o Banco exequente alegadamente terá colocado (se é que foram colocados) na conta da ora embargante, logo foram transferidos para a conta da P..., S.A., no mesmo Banco, logo foram aproveitados para liquidar responsabilidades financeiras desta última!

O. Tratando-se de um mútuo simulado, o mesmo é inequivocamente nulo.

P. Sendo nulo o contrato de mútuo, nula é forçosamente a garantia hipotecária.

Q. O mútuo é um contrato real quoad constitutionem, cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objeto mediato.

R. Não existindo prova plena da demonstração da entrega da quantia por parte dos credores e incumbindo a estes, como mutuantes, o ónus da prova da entrega da quantia, se para além do documento autêntico (escritura pública) não apresentarem outro meio probatório que demonstre a entrega, será de concluir não demonstrarem o preenchimento dos requisitos do direito de crédito resultante do mútuo por si invocado e que foi validamente impugnado.

S. Demonstrado que verdadeiramente nada foi mutuado pela exequente à P..., S.A. e demonstrado que esta tinha perfeito conhecimento de que eram falsos e desprovidos de qualquer correspondência com a realidade os motivos invocados para a concessão da garantia real na ata da Assembleia Gral da embargante de 10 de maio de 2010, é inequivocamente nula e de nenhum efeito a hipoteca exequenda.

T. O procedimento aqui retratado era, de resto, um procedimento recorrente no Banco exequente, frequentemente utilizado como forma de aumentar as garantias dos empréstimos que fazia sem ter de mobilizar ou disponibilizar quaisquer novos recursos financeiros.

U. Deverá, pois, inequivocamente, ser revogada a douta sentença recorrida.

V. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 6.º, n.ºs 1 e 3; 486.º e 488.º do Código das Sociedades Comerciais e os artigos 160.º, n.º 1; 240.º, n.º 2; 280.º, n.º 1; 294.º e 730.º, al. a) do Código Civil.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – Procedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

5.1.2.

O caso vertente.

Uma vez que, como se disse, o teor das conclusões define o objeto do recurso, verifica-se que, nelas, a recorrente pretende  a prova de que:

 a exequente/embargada sempre soube que os €457.000,00 creditados na conta de movimentos à ordem da P..., S.A.., foram por esta utilizados para liquidar responsabilidades por si anteriormente assumidas.

Para tanto invoca o doc. nº2 junto pela embargada.

Diz que tal documento consubstancia  «extratos de movimentos da conta bancária da P..., S.A. na embargada, consta um movimento, com data valor de 18.05.2010, e com data movimento de 24.05.2010, onde se lê “Contratação 266-36....”, através do qual são creditados os €457.000,00.

E que nos «referidos documentos, pode ver-se que a referida quantia foi imediatamente debitada da conta bancária da P..., S.A. pela embargada, no mesmo dia 24.05.2010, para liquidar responsabilidades financeiras daquela.

Assim concluindo que «Este facto, de fundamental importância para a boa decisão da causa …demonstra inequívocamente que se tratou de um mútuo simulado, que apenas serviu para aumentar as garantias da embargada sem que esta mobilizasse ou disponibilizasse quaisquer novos recursos financeiros.»

Mas visto o documento aludido, do mesmo não podem retirar-se esta conclusão final atinente à simulação do mútuo.

Na verdade, em tal extrato consta apenas, em 18.05.2010, um movimento, a crédito, na conta da  P..., S.A., da quantia de 457 mil euros; e, bem assim, nele consta, em 24.05.2010, um movimento, a débito, da mesma  quantia.

Ora da  simples e singela efetivação  de tais operações a crédito e a débito não pode concluir-se, sem mais, que o aludido montante, necessariamente e sem qualquer dúvida, serviu «para liquidar responsabilidades financeiras daquela».

É obvio que a simples saída da conta da P..., S.A. daquela quantia não demonstra o destino da mesma, e, muito menos, a finalidade a que foi adstringida.

Perante tal documento sabe-se que o dinheiro saiu da conta, mas não se sabe para onde e para que finalidade.

Destarte, a conclusão da recorrente apresenta-se, não apenas perante os meios probatórios invocados, como,  inclusive, perante as regras da lógica e do senso comum, totalmente desamparada.

A assim ser, inelutavelmente se conclui pela não fundamentação da sua conclusão final que  tal  «demonstra(ria) inequívocamente que se tratou de um mútuo simulado».

Mas mesmo que assim não fosse, e se concluísse, como entende a recorrente, que a verba serviu para solver responsabilidades financeiras da P..., S.A., nem tal seria o bastante para se concluir pela simulação do mútuo.

Na verdade, este pagamento alcança-se, no domínio da realidade da vida, como perfeitamente compatível e compaginável com um real e efetivo mútuo.

Ou seja, o facto de a quantia se ter porventura destinado a satisfazer tais responsabilidades não significa que  ela não tenha sido efetivamente mutuada e colocada na disponibilidade da P..., S.A., como, aliás, o extrato invocado o demonstra.

Antes pelo contrário: se a P..., S.A. tinha reais responsabilidades financeiras a cumprir e não tinha dinheiro para tal cumprimento -  como parece, pois que atravessava já dificuldades e foi depois declarada insolvente -, então é perfeitamente normal que tivesse recorrido a um, efetivo e real, mútuo, para consecutir tal cumprimento.

5.1.3.

Por conseguinte, e no indeferimento desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

i. A Embargante foi constituída em 1994 e tem por objeto social a construção civil e obras públicas, reparação e comercialização de edifícios, compra e venda de propriedades e tudo o que se relacione com esta atividade.

ii. Desde a sua constituição e até março de 2011 teve como Presidente do Conselho de Administração, AA e desde a sua constituição e até novembro de 2006 e entre abril de 2009 e março de 2011, BB como vogal.

iii. A P..., S.A. (doravante P..., S.A.) foi constituída em 1994 e tinha por objeto social empreitadas e obras públicas, construção civil e comércio de materiais de construção.

iv. Desde a sua constituição e até fevereiro de 2011 teve como Presidente do Conselho de Administração e Vogal, respetivamente, AA e BB.

v. Entre a C... (doravante Exequente) e a P..., S.A., representada no ato por AA, Presidente do Conselho de Administração da referida sociedade foi celebrado, em 18 de maio de 2010, um contrato de crédito ao investimento n.º 266-36...., que consta de fls. 3 a 12 dos autos de execução e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

vi. No âmbito desse contrato a sociedade P..., S.A. confessou-se devedora à Exequente da quantia de 457 mil euros, que a titulo de mútuo dela (Exequente) recebeu, quantia que a P..., S.A. declarou destinar-se à liquidação de livranças em vigor – cfr. cláusula 1.ª, ponto 1).

vii. A quantia de 457 mil euros foi creditada na conta de depósito à ordem n.º ..., constituída no balcão da Exequente, em ..., titulada pela P..., S.A. – cfr. cláusula 1.ª, ponto 2) - e utilizada pela mutuária P..., S.A..

viii. Para garantia do integral cumprimento das obrigações emergentes e assumidas no presente contrato pela P..., S.A. foram constituídas garantias hipotecárias unilaterais, para além do mais, pela Embargante, por escritura de 18 de maio de 2010, lavrada de fls. 83 a fls. 86, do Livro ... - cfr. cláusula 10.ª.

ix. Da referida escritura pública outorgada no dia 18 de maio de 2010, no Cartório Notarial ..., exarada de fls. 83 a fls. 86 do Livro de Notas para “Escrituras Diversas” n.º ... daquele Cartório, consta que a sociedade J..., S.A.., representada por AA e BB, na qualidade de seus Administradores da sociedade anónima, constituiu primeira hipoteca a favor da Exequente sobre as frações autónomas designadas pelas letras ..., ..., ... e ... do prédio urbano sito na Avenida ..., em ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...8 e inscrito na matriz sob o artigo ...23.º, para garantia do pagamento da quantia de 457 mil euros que a Exequente emprestou, na data da constituição da hipoteca, à P..., S.A., proveniente de um contrato de crédito ao investimento celebrado por documento particular, à taxa nominal anual de 4,955%, pelo período de 3 anos, do pagamento dos juros à taxa nominal anual de 4,955%, acrescida de 4%/ano em caso de mora e a titulo de cláusula penal e do pagamento das despesas judiciais e extrajudiciais que a referida Exequente haja de fazer para reaver o seu crédito; o montante máximo de capital e acessórios garantido pela hipoteca é de 663.792,50 euros; a hipoteca é constituída atento o justificado interesse da própria sociedade garante, de acordo com o estipulado no artigo 6..º, n.º 3 do CSC e conforme deliberação da sociedade tomada em 10 de maio de 2010, anexa à escritura e dela faz parte integrante (cfr. documento junto aos autos de execução a fls. 14 a 17 v.º, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais).

x. As hipotecas foram registadas pela inscrição Ap. ...76 de 2010/06/15.

xi. Da ata número trinta e quatro, lavrada no dia 10 do mês de maio de 2010, consta que reuniu na sede social sito no P..., S.A., em ..., ..., a Assembleia Geral da Sociedade J..., S.A.”, com presença dos acionistas AA, BB e CC, representando mais de 95% do capital, com a seguinte ordem de trabalhos: aplicação do n.º 3 do artigo 6.º do CSC; aberta a sessão, pela Presidente da Mesa da Assembleia Geral, de acordo com a convocatória emitida nos termos da lei e por todos recebida, foi posto à consideração e dado que a sociedade tem interesse em vir a internacionalizar / potenciar a atividade através de parceria reais, em financiamento a solicitar junto da C..., pela forma P..., S.A., foi deliberado por unanimidade e após votação, dar garantias reais e onerar as frações autónomas ..., ..., ... e ... descritas na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...8 da freguesia ... e inscritas na respetiva matriz sob o n.º ...23.º, para garantir o empréstimo, que a P..., S.A. vai contrair junto da C... até ao limite de 457 mil euros, à taxa de 4,955%, Euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 4%/ano, acrescida de 2%/ ano em caso de mora e sem recurso a juízo ou de 4%/ano em caso de mora e com recurso a juízo (cfr. ata que consta de fls. 9 v.º a 10 v.º dos embargos de executado).

xii. A sociedade P... S.A. foi declarada insolvente em 13 de abril de 2011.

5.2.

Segunda questão.

A julgadora decidiu a causa, de jure, aduzindo o seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«… O negócio de concessão de hipoteca pode ter carácter oneroso ou gratuito – tudo depende da conexão da hipoteca com o crédito garantido.

No caso de hipoteca prestada por terceiro, o negócio é oneroso se ao dador da garantia é dada uma compensação ou pelo credor hipotecário ou pelo devedor.

Como direito real de garantia, a hipoteca está ao serviço de um crédito, que assegura, sendo um direito acessório deste.

Por isso, em caso de incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca, o credor hipotecário poderá satisfazer o seu crédito pelo produto da venda do bem; por outro lado, a extinção da obrigação acarreta a extinção da hipoteca (artigo 730.º, al. a) do Código Civil).

No caso vertente, a hipoteca assegura o cumprimento de um contrato de mútuo (“contrato de crédito ao investimento n.º 266-36....”).

 A Embargante alega que a Embargada não entregou qualquer (nova) quantia à P..., S.A..

Mais referiu que o mútuo foi cozinhado para reforçar as garantias da Exequente – sic.

O negócio simulado (artigo 240.º do Código Civil)  assenta numa divergência intencional e bilateral entre a vontade real e a vontade declarada, num acordo simulatório entre declarante e declaratário e na intenção de enganar terceiros.

Umas vezes, sob este negócio aparente, não existe qualquer vontade real de negociar, hipótese em que estamos perante uma simulação absoluta; outras vezes, porém, debaixo do negócio aparente existe outro com outro nomen júris que as partes pretendem realizar, caso em que a simulação é relativa.

…resultou provado que, efetivamente, a Exequente creditou a quantia mutuada em conta titulada pela sociedade P..., S.A. – ponto vi) dos factos provados.

Mais resultou provado que a mutuária utilizou, efetivamente, a nova quantia mutuada.

Deste modo, a Embargante cumpriu a sua obrigação de entrega do capital de 457 mil euros e, claramente, pretendia que a mutuária cumprisse a sua obrigação de restituição, nos termos atrás assinalados.

Pelo que, a declaração negocial contém todos os elementos de um negócio válido e as partes queriam que ele produzisse os efeitos que legalmente lhe correspondem.

Deste modo, o contrato de mútuo não padece de qualquer fala ou vício da vontade, sendo válido e eficaz.

…e considerando a anunciada característica da acessoriedade, a hipoteca continua a assegurar ou prevenir as consequências do seu incumprimento.

 A Embargante coloca em crise a validade da declaração unilateral de constituição de hipoteca por falta de capacidade jurídica da Embargante para o ato.

Releva, para o efeito, a capacidade de gozo das sociedades comerciais, id. est, a medida de direitos e vinculações de que uma dada sociedade comercial é suscetível de ser titular, de entre todos os direitos e vinculações possíveis e compatíveis com a personalidade coletiva.

O Código das Sociedades Comerciais refere que a capacidade da sociedade compreende os direitos e vinculações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, excetuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou inseparáveis da personalidade singular.

Deste modo, o artigo 6.º, n.º 1 do CSC repete o que decorre do artigo 160.º do CC, que consagra o princípio da especialidade do fim.

Delimitando o objeto da sociedade os direitos e vinculações necessários ou convenientes à realização da sua atividade, o mesmo não é restritivo da sua capacidade (artigo 6.º, n.º 4 do CSC)

A Embargante alega que não tem por objeto social a concessão de garantias.

Porém, na esteira do referido, isso não significa que não tenha capacidade possa (para) prestar garantias (reais ou pessoais) a terceiros.

Concluindo-se, dessa forma, ser irrelevante que a Embargante não tenha por objeto social a prestação de garantias (reais ou pessoais) a terceiros, tanto mais por ser incontestável não se dedicar, a titulo profissional, a operações de crédito, mormente, concessão de garantias.

Dispõe o n.º 3 do artigo 6.º do CSC, que deve ter-se por contrário ao fim social, id. est, não se compreende no objeto social, a prestação de garantias reais ou pessoais a dividas de outras entidades.

Mas só assim será quando a prestação de garantias pela sociedade tenha lugar a titulo gratuito.

Mas o n.º 3 do artigo 6.º do CSC contém duas ressalvas: se existir justificado interesse próprio da sociedade garante; se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

A existência de um interesse justificado que legitime a garantia prestada pela sociedade é um conceito indeterminado, vago e vasto que, se não acaba por consumir a regra, torna-a extremamente difusa e aleatória.

Pelo que, compete, em última análise, ao juiz, determinar caso a caso se o interesse é justificado, ponderando se o concreto risco assumido é proporcional à prestação da garantia.

No caso em apreço, nada foi alegado quanto à gratuidade ou não onerosidade da hipoteca, pelo que se desconhece se ao Embargante foi dada alguma compensação nomeadamente pelo devedor/mutuário/garantido.

Seja como for, resultou provado - pontos ix) e xi) dos factos provados - que a Embargante justificou o interesse em garantir o mútuo concedido pela Exequente em futuras parcerias, incluindo internacionais, com a mutuária / garantida P..., S.A..

É certo que a Embargante alegou que entre si e a P..., S.A. nunca teve lugar nem esteve em causa nem existiu qualquer projeto de internacionalização ou empreendimento comum.

Tem sido controvertida na doutrina a questão de saber a quem compete o ónus da prova do justificado interesse próprio ou da sua falta.

Assim de acordo com o disposto no artigo 342.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado compete àquele contra quem a invocação é feita.

Nessa medida, compete ao beneficiário da garantia fazer a prova que foi, de facto, contratada entre as partes a garantia e os termos em que foi negociada.

Por sua vez, incumbe ao garante a prova do facto impeditivo do direito invocado pelo beneficiário, ou seja, de que a garantia foi prestada sem justificado interesse próprio.

No caso vertente, a Embargada logrou provar que foi contratada entre as partes a garantia e os termos em que foi negociada.

Porém, a Embargante não logrou provar que a garantia foi prestada sem justificado interesse próprio, nomeadamente, que nunca houve interesse em vir a internacionalizar / potenciar a atividade através de parceria reais com a P..., S.A..

E será que a utilização que a mutuária / garantida deu ao dinheiro resultante do mútuo permite concluir que nunca teve lugar nem esteve em causa nem existiu qualquer projeto de internacionalização ou empreendimento comum entre a Embargante e a P..., S.A.?

Não.

Mesmo que o dinheiro se tenha destinado a liquidar livranças em vigor – cfr. cláusula 1.ª, ponto 1) – a injeção do capital provindo do mútuo viabilizou e potenciou (naquele momento) a atividade da devedora P..., S.A..

Em dois atos a Embargante declarou ter interesse na concessão do empréstimo e justificou devidamente esse interesse (em vir a internacionalizar / potenciar a atividade através de parceria reais com a P..., S.A.) - na reunião da Assembleia Geral e no ato de constituição de hipoteca.

Deste modo, ao pretender inutilizar, agora, a responsabilidade que assumiu, arrimando-se na ausência de interesse justificado que legitime a garantia, a Embargante viola, claramente, os mais elementares ditames da confiança e boa fé, agindo, claramente, em abuso de direito na vertente de venire contra factum proprium (artigo 334.º do Código Civil)»

Dilucidemos.

Esta argumentação apresenta-se, desde logo em tese, curial, e, para o acaso concreto e atentos os seus contornos fáctico circunstanciais apurados, adequada.

Pelo que urge chancelá-la e corroborá-la.

Em seu abono, e, quiçá,  ad abundantiam, mais se expende o infra plasmado.

São os seguintes os essenciais artigos do CSComerciais a ter em consideração:

Artigo 6.º

(Capacidade)

1 - A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

3 - Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

4 - As cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos.

5 - A sociedade responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente, nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos comissários.

Artigo 409.º

Vinculação da sociedade

1 - Os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.

2 - A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas.

Ora:

« Do artigo 6.º, n.ºs 1, 3 e 4, do CSC, resulta que a capacidade de gozo das sociedades é ampla de modo a permitir-lhes a prossecução do seu fim e não pode ser restringida pela própria sociedade, nomeadamente mediante restrição unilateral do que possa entender-se ser esse fim em concreto (v.g. pela fixação de objecto) Assim, a capacidade é «uma categoria generalizadora» para a prática de determinados actos considerados abstractamente no seu contorno jurídico – v.g. capacidade para comprar, para vender, para arrendar – e não em termos casuísticos – v.g. capacidade para comprar naquelas concretas circunstâncias, para arrendar aquele concreto bem por aquele indicado preço, etc.

 A prestação de garantias a entidades estranhas vincula assim a sociedade – artigo 409.º, n.º 1, do CSC – que pode, no entanto, opor a inexistência de interesse próprio nessa prestação a terceiros que soubessem ou não pudessem ignorar essa inexistência – artigo 409.º, n.º 2, do CSC …

Prestando a co-executada sociedade garantia aos avalistas da letra por si aceite, também executados, verificam-se os diversos requisitos característicos do interesse próprio: economicidade, objectividade, proporcionalidade e tempestividade.» - Ac. RL de 25.10.2012, p. 9334/11.... in dgsi.pt.

Ou, noutra nuance ou perspetiva:

«-A regra prevista no art. 6º, nº 3, do C.S.C., consiste na limitação da possibilidade das sociedades comerciais de prestarem garantias a dívidas de outras entidades, excepto em caso de justificado interesse próprio da sociedade garante, ou no caso de se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.

- Não estando definido na lei o que constitui o justificado interesse próprio da sociedade, terá este de ser definido pela própria sociedade, através dos seus órgãos estatutários e de acordo com os seus objectivos societários.

- Constando de escritura pública de constituição unilateral de hipoteca para garantia de dívidas de terceiros, que existe interesse próprio da sociedade, incumbe à sociedade garante que invoca a nulidade, o ónus de prova da ausência de interesse próprio ou da inexistência da relação de grupo, uma vez que, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado recai sobre aquele contra quem a invocação é feita» -  Ac. RE de 16.01.2020, p. 1091/13.....

No caso sub judice assim é.

Primus, e na sequência do já supra aludido, não apenas a recorrente não provou que o mútuo inexistiu, como, ao invés, se tendo provado, ao menos numa  normal e sagaz  exegese dos factos apurados, que  real e efetivamente, existiu.

E tanto assim foi que a  P..., S.A. naturalmente adstringiu a verba recebida ao cumprimento de responsabilidades que sobre si impendiam.

Destarte, não há qualquer simulação, absoluta ou relativa e, assim, inexiste qualquer nulidade do  contrato de empréstimo.

Depois, e perante os factos apurados, conclui-se que a recorrente não provou, como lhe competia, que não está aqui presente, ao menos, uma das exceções obstativas à relevância e eficácia da regra da proibição da prestação de garantias pelas sociedades, qual seja, que a garantia foi prestada e teve em consideração e visou a prossecução de um interesse próprio seu.

E, também aqui, não apenas ela não logrou, em sede excetiva – artº 342º nº2 do CC - , provar a inexistência de tal exceção, como se apurou que, efetivamente, a garantia foi prestada na consideração da prossecução de um concreto interesse seu, qual seja o de «vir a internacionalizar/ potenciar a (sua) atividade através de parceria reais».

Sendo que nós vamos até mais longe do que expendido na sentença (se bem a interpretamos).

É que, tendo a sociedade como fito o último o lucro,  e sendo este, por via de regra, a determinar a sua atuação no giro comercial, a simples prestação por si de uma garantia, faz presumir que algum interesse teve ao prestá-la.

Logo, tem ela de ilidir tal presunção provando a inexistência de qualquer interesse ou da outra exceção legal (inexistência de relação de domínio ou de grupo).

Finalmente, e perante os factos provados – rectius os dos pontos IX e XI – os quais  meridianamente demonstram  que a recorrente, previamente à prestação da garantia, decidiu, formalmente, no sentido da demonstração do seu interesse na prestação da mesma, os embargos e, principalmente,  o recurso, ao insistir na sua peregrina tese,  apresentam-se, como bem alertado na sentença, numa atuação em abuso de direito, na modalidade do venire, e, máxime nesta sede decursiva, a roçar a má  fé.

 E apenas não se despoletando nesta instância este incidente tendente a apurar a má fé recursiva, na condescendência de que a recorrente se encontra algo obnubilada e confusa na intuição e dilucidação da essência  da questão jurídica em causa.

Improcede o recurso.

6.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a, aliás douta, sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2022.04.05.