Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/14.4T8OHP-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO DOMINGOS PIRES ROBALO
Descritores: ERRO NA DECLARAÇÃO
ERRO OBSTÁCULO
PRESSUPOSTOS
VÍCIO DA VONTADE NEGOCIAL
Data do Acordão: 02/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – O. HOSPITAL – JUÍZO COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMETE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 247º E 286º DO C.C., E 291º DO C.P.C.
Sumário: I – O erro na declaração, ou erro obstáculo, existe quando, não intencionalmente - v.g., por inadvertência, engano ou equívoco -, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor, existente, mas de sentido diverso.

II - Existe erro obstáculo sobre a identidade da coisa que constitui objecto da declaração - error in corpore -, “quando a indicação ou a descrição que dela se faz, leve a identificar uma coisa diferente da que o declarante pretende”.

III - Contudo, a relevância do erro obstáculo, para que o negócio seja anulável, carece:

- Que para o declarante seja essencial o elemento sobre o qual incidiu o erro, de tal forma que, se deste se tivesse apercebido, não teria celebrado o negócio;

- Que o declaratário conheça ou não deva ignorar a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro para o declarante.

IV - O vício da vontade negocial que se traduza ou envolva uma deficiência de discernimento do seu autor constitui erro que corresponde à ignorância ou falsa representação de uma realidade (a ignorância do que se ignora).

Decisão Texto Integral:






  Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

Processo n.º 67/14.4T80HP-A.C1

                                                          Acórdão

1.-Relatório

1.1. - Por apenso à acção que instauraram contra A... e mulher L..., vieram E... e mulher M... interpor, ao abrigo do art.º 696.º, al. d), do Código de Processo Civil, recurso extraordinário de revisão da sentença de homologação de transacção que pôs termo àquela demanda.

1.2. - Para tanto invocam os Recorrentes que não pretendiam manifestar qualquer declaração de vontade com vista à celebração da transacção nos termos que constam da respectiva acta, nem pôr termo ao litígio por essa via.

Alegam, ainda, que na audiência final não lhes foi dado a conhecer os termos e condições daquele negócio jurídico e se algum consentimento houve só poderá constituir uma situação de erro na declaração, porquanto não pretendiam vincular-se aos termos daquele negócio, o que era do conhecimento da mandatária que os patrocinou e dos Recorridos.

Pugnam, assim, pela anulabilidade da transacção.

1.3. - Admitido liminarmente o recurso extraordinário de revisão, foram os Recorridos notificados e oferecerem resposta a sustentar a improcedência do mesmo.

1.4. - Ao abrigo do art.º 700.º, n.º 2, do C.P.C. os autos seguiram os termos do processo comum, tendo sido dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador a afirmar a regularidade da instância, seguido de identificação do objecto do litígio e de enunciação dos temas de prova.

1.5. - Após o saneador nada sobreveio que afecte a regularidade da instância, ali afirmada, nada obstando ao conhecimento de mérito da causa.

1.6. - Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença onde se decidiu negar provimento ao presente recurso extraordinário de revisão, por não provado, negando a revisão da sentença e condenar os recorrentes em custas.

1.7. Os requerentes E... e mulher M... não se conformando com a sentença recorrida dela recorreram terminaram a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

1.8.- Não houve contra alegações

1.9. – Colhidos os vistos cabe decidir.

2. Fundamentação

2.1. Factos Provados

...

                                               3. Decisão

3.1. - É, em princípio, pelo teor das conclusões do recorrente que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (cfr. art.s 608, 635, n.º 4 e 639, todos do C.P.C.).

Questões a resolver:

a)- Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.

b)- Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que dê provimento ao recurso de revisão interposto, por violação do preceituado nos art.ºs 247 e 286 do C.C., e 291 do C.P.C..

Tendo presente que são duas as questões a apreciar, por uma questão de método iremos em 1.º lugar analisar a questão da matéria de facto, após a questão de direito.

I - Saber se a matéria de facto fixada em 1.ª instância deve ser alterada.

Em primeiro lugar cabe referir que nada obsta ao conhecimento desta matéria, porquanto foi observado o preceituado no art.º 640 do C.P.C.

Quanto a esta matéria cabe salientar que o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova, que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição (cfr. de facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível

enfraquecimento da memória, etc.”- Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol. cit., p. 201); “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “ob citada”, II vol. fls.. 273).

Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348).

De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

 Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Daí que-conforme orientação jurisprudencial prevalecente o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.

Em conclusão: mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade.

É que o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.

Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou (cfr. Miguel Teixeira de Sousa obra citada, pág. 348).

 Casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi

conferido no julgamento, de não terem sido consideradas- v.g. por distracção-determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.

A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.

Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto.

...

            Assim, esta pretensão dos recorrentes não pode proceder.

II- Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que dê provimento ao recurso de revisão interposto, por violação do preceituado nos art.ºs 247 e 286 do C.C., e 291 do C.P.C..

            Segundo os recorrentes a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a sua pretensão, desde logo, por ter havido erro na declaração de vontade  a que alude o art.º 247 do C.C, pois é inquestionável que qualquer interpretação da vontade declarada pelos recorrentes no sentido fixado no acordo de transacção é muito divergente da vontade real, pelo que a transacção é nula ao abrigo dos art.ºs 247 e 286 do c.c., e 291 do C.P.C.

            Por sua vez a sentença recorrida sobre esta matéria refere que face à matéria de facto provada não se verificam os pressupostos da figura aludida pelo que nega provimento ao recurso.

            Vejamos.

Como se sabe o erro na declaração, ou erro obstáculo, existe quando, não intencionalmente - v.g., por inadvertência, engano ou equívoco -, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor, existente, mas de sentido diverso.

Trata-se, no dizer de Emílio Betti, “…de um erro que faz faltar no autor do acto a consciência do seu significado objectivo, provocando uma discrepância entre este e a ideia que ele dele faz.” (cfr. Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo II, tradução de Fernando de Miranda, Coimbra Editora – 1969, pág. 416).

Existe erro obstáculo sobre a identidade da coisa que constitui objecto da declaração - error in corpore -, “quando a indicação ou a descrição que dela se faz, leve a identificar uma coisa diferente da que o declarante pretende” (cfr. Betti, obra e volume citados, pág. 424).

Contudo, a relevância do erro obstáculo, para que o negócio seja anulável, carece:

- Que para o declarante seja essencial o elemento sobre o qual incidiu o erro, de tal forma que, se deste se tivesse apercebido, não teria celebrado o negócio;

- Que o declaratário conheça ou não deva ignorar a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro para o declarante.

Esta “essencialidade”, cuja prova cabe ao declarante errante e deve ser analisada sob o aspecto subjectivo deste, significa, afinal, como expressivamente se diz no Acórdão do STJ de 16/09/2008 (Revista nº 08A2265), “que o declarante não teria emitido a declaração de vontade negocial com o sentido que veio a ser exteriorizada”.

Por seu turno, Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2010, 6ª edição, págs. 658/659) escreve que «a vontade negocial pode estar viciada na sua formação, no processo de volição e de decisão, por deficiência de esclarecimento ou de liberdade……e a parte cuja vontade tenha sido perturbada pode, se assim o desejar, libertar-se do negócio viciado, procedendo à sua anulação».

Ainda sobre a exigência do necessário esclarecimento, Heinrich Ewald Horster refere (A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª reimpressão, Almedina, pág. 567) que «o negócio jurídico apenas pode desempenhar as suas funções quando a vontade, que se manifesta através da declaração negocial, se formou de uma maneira esclarecida, assente em bases correctas, e livre, sem deformações provindas de influências exteriores. Se a vontade não se formou esclarecida e livremente, ela está viciada. Na sequência do vício, que fere a vontade, também a declaração negocial em que esta se manifesta fica viciada».

O vício da vontade negocial que se traduza ou envolva uma deficiência de discernimento do seu autor constitui, assim, erro que corresponde à ignorância ou falsa representação de uma realidade (a ignorância do que se ignora (cfr. Cfr, a este propósito, J. Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 6ª edição, 1977, pág. 84, e José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria Geral, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 135).

O erro, particularmente no quadro dos desvalores de um negócio jurídico, equivale sempre à ignorância de algo e implica, em geral, «uma avaliação falsa da realidade: seja por carência de elementos, seja por má apreciação destes» (cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, pág. 807).

Fala-se a este respeito «no desconhecimento ou na falsa representação da realidade que determinou ou podia ter determinado a celebração do negócio» (cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 4ª ed., Lisboa, 2007, p. 199).

O erro situa-se, assim, na formação do negócio jurídico, portanto em momento logicamente anterior a este. E deve notar-se que «só existe erro quando falta um elemento ou a representação mental está em desacordo com um elemento da realidade existente no momento da formação do negócio jurídico.

Este recai apenas sobre o elemento externo da declaração e afecta o comportamento declarativo, isto é, a exteriorização da declaração, produzindo uma divergência entre a vontade, que não está viciada ou deformada, e o que é declarado. Trata-se, portanto, de um erro no processo de formulação ou de manifestação da vontade, enquanto o erro-vício, que, frise-se, é o que está suscitado no caso vertente, incide só sobre a própria vontade (elemento interno) e não gera qualquer divergência entre esta e a declaração, que se apresenta em perfeita conformidade ou consonância com aquela. A vontade é que se encontra mal formada ou viciada na sua formação por erro, logo mal esclarecida, mas coincide com a declaração exteriorizada (cfr. Cfr, neste sentido, Carlos Alberto da Mota Pinto, obra citada, pág. 386, Heinrich Ewald Horster, obra citada, págs. 569/570, Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume I, 1967, págs. 159 e 162, Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, pág. 659, e José de Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 136).

Manuel A. Domingues de Andrade, in (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 9ª reimpressão, Coimbra, 2003, pág. 233), caracteriza-o, nos moldes seguintes: “[o] erro-vício consiste na ignorância (falta de representação exacta) ou numa falsa ideia (representação inexacta), por parte do declarante, acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da sua vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu”.

Fazendo, agora, recair a nossa atenção sobre o caso sub-judice, temos que os Autores/Recorrentes não provaram os factos tendentes a demonstrar tal vício, cabendo-lhes fazê-lo face ao preceituado no art.º 342, n.º 1, do C.C. que preceitua « àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado».

Assim, não vemos que a sentença recorrida tenha violado o preceituado nos art.ºs 247 e 286 do C.C., nem o preceituado no art.º 291 do C.P.C. que reza «          1 — A confissão, a desistência e a transação podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros atos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do artigo 359.º do Código Civil».

            Assim, face ao exposto esta pretensão dos recorrentes não pode proceder.

                                                4. Decisão

Pelo exposto, decide-se:

I - Jugar parcialmente procedente o recurso no que concerne à alteração da matéria de facto fixada em 1.ª instância, como supra referido.

II - Julgar o recurso improcedente em ver revogada a sentença recorrida e substituída por outra que acolha a pretensão dos recorrentes, mantendo a sentença recorrida, nos seus termos.

Custas os recorrentes – devendo ter-se em conta o apoio judiciário.

Coimbra, 16/2/2017
Pires Robalo (relator)

Sílvia Pires (adjunta)

Jorge Loureiro (adjunto)