Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
89/22.1GBALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
DEVER DE CORREÇÃO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO EM JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALMEIDA)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 143º, N.º 1, 31º, N.º 1, AL. B), DO CÓDIGO PENAL; 1878º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL; 281º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I – Mesmo a ter-se tido como provado que a ofendida, filha do arguido, lhe tivesse dirigido as expressões grosseira e ofensivas que este alega, o agredi-la ele e em retaliação fisicamente, com bofetada na cara, nem deixa de integrar o tipo-de crime de ofensas à integridade física (art. 143.º/1, do CP), nem a consequente punição poderia afastar-se com suposta exclusão da ilicitude da acção, a pretexto de com aquela agressão o arguido estar afinal, e nos termos e para os efeitos do art. 31.º/1/2-b-c, do CP, exercer um direito ou cumprir um dever legal, designadamente o poder/dever de correcção dos filhos.

II – A inclusão, no exercício desse poder/dever, de castigos físicos, é algo em que, a conceder-se, teria sempre de ficar subordinada a uma estrita proporcionalidade entre o concreto castigo aplicado pelo progenitor e a falta do filho, a uma rigorosa adequação dele para lograr essa correcção ou quando menos contenção, e, em especial, uma inescapável necessidade dele para isso – o que não se vê como afirmar quando se trate por um lado de palavras grosseiras (aliás proferidas em contexto de viva discussão), e por outro do atingir da integridade física do filho.

III – E sobre isso, uma tal via de exclusão da ilicitude do facto torna-se particularmente insustentável quando sucede que à data da comissão dele a ofendida era já maior e, como tal subtraída ao poder/dever de correcção do pai e senhora da regência da sua pessoa, nos termos dos art. 1877.º e 130.º, do CC. 

IV – Naturalmente que a existirem, essas prévias ofensas, em si mesmas um ilícito, e mesmo criminal (art. 181.º/1, do CP), emprestando relevante compreensibilidade à indevida reação, sempre teriam significativo peso como factor que, em sede de escolha e medida da pena, militasse em favor do arguido – mas o que não permitiriam, nos termos dos art. 143.º/3-a-b, e 74.º/1-a-b-c/3, do CP, e por manifesta falta dos estritos pressupostos respectivos como nessas normas enunciados, era dar lugar à pretendida dispensa de pena.

V – A circunstância de em fase de julgamento a lei não contemplar a possibilidade de suspensão provisória do processo, como aliás o impõe o respeito pelo princípio da acusatoriedade do processo, não importa desigualdade constitucionalmente censurável entre os arguidos em processo que por a ela chegar fiquem privados desse mecanismo, e os que dele puderam beneficiar em fase de inquérito ou instrução, únicas em que com efeito está previsto (art. 281.º/ e 307.º/2, do CPP).

VI – Essa inadmissibilidade de suspensão provisória do processo em fase de julgamento, na qual ao juiz está atribuída já somente a função de julgar, e não mais a de submeter ou não a causa a julgamento (como em instrução sucede), não sofre excepção por força de alteração, em julgamento, da qualificação jurídica dos factos que fora feita em acusação e subsequente pronúncia, degradando-a de um crime que naquelas fases e pela sua gravidade a tivesse porventura liminarmente impedido, para um que em abstracto a pudesse ter nelas consentido – e menos quando em todo o caso sempre ao longo do processo a ofendida, constituída assistente, tenha manifestado com essa hipótese discordância, inclusivamente deduzindo acusação particular.


Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Competência Genérica de Almeida, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, e após audiência de julgamento em processo comum com intervenção de juiz singular, proferiu-se a 31/10/2023 sentença em cujos termos o arguido

AA, viúvo, ..., nascido a ../../1983, natural de ..., filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., ...,   

foi condenado, como autor de um crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º/1, do Código Penal (CP), na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, e ainda, na parcial procedência do pedido de indemnização civil formulado pela assistente/demandante, DD, a pagar a esta a quantia de 300,00 €, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal e desde a data da sentença até integral pagamento.

2. Contra essa sentença vem o arguido interpor recurso em que, insurgindo-se contra a decisão em matéria de facto, sustenta ainda ter agido no exercício do poder/dever de correcção da filha e nos respectivos limites, sendo por isso excluída a ilicitude da acção, devendo por conseguinte ser absolvido; e, sem prescindir, que mesmo em assim se não entendendo, então, e sucessivamente, que sempre importaria a suspensão provisória do processo, cuja inadmissibilidade em fase de julgamento reputa de inconstitucional, que em caso de condenação deveria ter lugar dispensa de pena e, por fim, que cumpriria ter sido determinada a não transcrição da condenação no registo criminal. Das motivações de recurso extrai conclusões que são as seguintes:

«(…)

XIII – Aqui chegados, a conduta da assistente desrespeitou o pai (arguido), desobedecendo-lhe e violando o seu dever previsto no art. 1878.º/2, do Código Civil (CC), não respondendo aos seus telefonemas para jantar, mantendo-se em silêncio, sentou-se à mesa, não cumprimentou as pessoas, e dirigiu-se, depois a ele, dizendo-lhe vai-te foder.

XIV – A punição, salvo o devido respeito, deverá considerar-se legítima, porque o arguido é o pai da assistente e agiu com a intenção de a corrigir, dada a sua atitude desrespeitosa. A bofetada foi um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa da filha e foi também atual.

XV – Se tivessem sido valoradas as declarações do arguido e da testemunha EE, que além de estar presente (como confirma a própria assistente), mostrou-se ser um depoimento sereno, sincero, lógico e sem hesitações, quanto ao circunstancialismo em que os factos ocorreram, teria de se concluir, salvo o devido respeito por opinião contrária, que o arguido agiu como forma de reprimir a filha pela atitude de desrespeito pela pessoa do outro (no caso, o pai).

XVI – Consequentemente, a punição física que o arguido infligiu à sua filha, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do art. 31.º/1/2-b, do CP (exercício de um direito).

XVII – O arguido sempre negou a prática do crime de violência doméstica e sempre defendeu que os elementos probatórios obtidos em sede de inquérito, não permitiam, mesmo em termos de juízo indiciário, imputar ao arguido a prática de um crime de violência doméstica agravado, uma vez que, da prova constante do inquérito, era inequívoca a inexistência da prática de factos integradores de tal tipo legal de crime pelo arguido.

XVIII – A verdade é que assim não se entendeu e, neste momento, o tribunal vê-se confrontado com uma absolvição pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º/1-d/2-a, do CP, e condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de 8,00 €.

XIX – Nestas circunstâncias, não podemos deixar de notar a diferença de tratamento em relação aos demais processos e arguidos que beneficiaram da aplicação do instituto da suspensão provisória do inquérito.

XX – A inadmissibilidade da suspensão provisória do processo, nesta fase, considerando a situação do caso concreto (absolvição da prática de um crime de violência doméstica) ofende, de forma frontal, o princípio constitucional da igualdade previsto no art. 13.º, da Constituição da república Portuguesa (CR), na vertente do direito de igualdade processual do arguido, por existir justificação material para a diferenciação, a qual funda-se na pouca gravidade dos crimes e na “existência de provas simples e evidentes” da verificação e autoria do crime, legitimando essa simplicidade probatória uma aceleração processual também reclamada pela CR (no seu art. 32.º), na dimensão do direito do arguido a ser julgado em curto prazo, embora compatível com as garantias de defesa.

XXI – O arguido, reitera que a sua conduta se encontra excluída da ilicitude penal, não se conformando com outro entendimento. Porém, em todo o caso e sem prescindir, não tendo o tribunal tal entendimento sempre deveria ter ponderado a verificação das circunstâncias para a dispensa de qualquer pena e ainda para ordenar a não transcrição de qualquer decisão condenatória para o registo criminal do arguido.

XXII – A presente sentença viola as disposições dos art. 1878.º/2, do CC; 31.º/1/2-b, do CP; 364.º/1, 374.º/2, 410.º/2-c, 410.º/3-b, e 412.º/6, do CPP; e 13.º, da CR. »

3. Responderam o MP e a assistente, em ambos os casos pugnando pela integral negação de provimento ao recurso, com manutenção do decidido, sustentando no essencial o seguinte:

3.1. Da resposta do MP (síntese nossa)

I – Muito embora com efeito a expressão em causa, supostamente dirigida pela assistente ao arguido, tivesse sido “vai-te foder”, e não “filho da puta”, isso não altera o sentido da decisão, em todo o caso sendo indefensável a configuração do exercício de um direito como causa de exclusão da ilicitude, nos termos do art. 31.º/1/2-b, do CP, na medida em que o poder dos pais de correcção dos filhos nem é compatível com o intuito punitivo que foi o da bofetada empregue, nem em especial abarca a aplicação de castigos corporais.

II – A suspensão provisória do processo é mecanismo processual limitado às fazes de inquérito e instrução (art. 281.º e 307.º, do CPP), o que em nada contende com o princípio constitucional da igualdade (art. 13.º/1/2, da CR), e admiti-la em fase de julgamento seria mesmo, isso sim, incompatível com o princípio constitucional da natureza acusatória do processo (art. 32.º/5, da CR).

III – Não se verificam no caso os pressupostos de dispensa de pena, nem os específicos para os casos de ofensas à integridade física, como previstos pelo art. 143.º/3-a-b, do CP, nem os gerais da diminuta ilicitude do facto, da reparação do dano e da compatibilidade com as exigências de prevenção (art. 74.º/1-a-b-c/3, do CP).

IV – A não transcrição da condenação no registo criminal do arguido não é um dever do tribunal, a decidir em jeito como que ‘automático’, mas antes uma excepcional determinação facultativa, e que se o arguido pretende ver concretizada pode sempre em requerimento autónomo solicitar, cabendo-lhe concretizar os motivos disso.

3.2. Da resposta da assistente (conclusões pela própria formuladas)

«I – Com o devido respeito, o recurso apresentado pelo arguido não merece qualquer provimento.

II – O douto tribunal bem andou ao elencar como elencou os factos dados como provados e não provados, entendendo que não se lhes deve fazer qualquer reparo.

III – Ainda que o arguido pugne pela similaridade dos depoimentos prestados pelo arguido e pela sua companheira, a testemunha EE, tais não foram merecedores de credibilidade, porquanto foram claramente exagerados na tentativa de justificar um comportamento indesculpável.

IV – Nesse sentido, atenta toda a prova produzida – e ainda os demais factos conexos não postos em causa – não há razão para alterar a qualificação dos factos n.º 7, 8, 12, 13 e bb).

V – Inexiste qualquer direito ao abrigo do qual a conduta assumida e confessa pelo arguido possa ser enquadrada na al. b) do n.º 2 do art. 31.º do CP,

VI – pelo que não pode, de forma alguma, ser afastada a ilicitude da conduta perpetrada pelo arguido.

VII – De igual forma, de acordo com a prova produzida e com factos dados como provados, não é enquadrável a conduta da assistente numa qualquer violação de eventuais deveres enquanto filha.

VIII – Tal como não se pode aceitar que a violência seja o caminho para educar,

IX – quando é o próprio arguido que transcreve que devem ser adoptados métodos positivos de educação como o diálogo.

X – Atento o exposto, não se entende, nem se alcança como pode ser afastada a ilicitude do arguido,

XI – tal como não se entende como possa ser o mesmo dispensado de qualquer pena.

XII – A assistente, filha do arguido, é uma recém adulta, com 18 anos completados, que vivia a perda recente de sua mãe e que se encontrava abalada psicologicamente.

XIII – Ao arguido, pai da assistente, pela experiência de vida e pelas mais duas décadas já vividas, impunha-se um comportamento diferente para a mesma.

XIV – Contrariamente ao que se exigia, o arguido violentou a assistente, deixando-a molestada, angustiada, e pior do que tudo isso, sozinha.

XV – Não considerando tal suficiente, o arguido ainda mudou as fechaduras da sua habitação, assim impedindo que a assistente tivesse acesso ao seu lar, deixando-a desamparada.

XVI – Tal como dado como provado, ainda hoje a assistente não tem acesso à sua casa e, em consequência, aos seus mais elementares pertences pessoais.

XVII – Atento o exposto, não merece qualquer provimento o recurso interposto pelo arguido,

XVIII – não existindo qualquer causa de exclusão de ilicitude,

XIX – Ou qualquer direito que justifique a conduta tida pelo arguido.

XX – Assim, não devendo a qualificação dos factos n.º 7, 8, 12, 13 e bb), ou, em bom rigor, quaisquer outros, ser alterados.

XXI – No entanto, para que justiça fosse feita, atento os comportamentos perpetrados, contínuos e que ainda hoje se fazem sentir, deveria o arguido ser condenado pelo crime de violência doméstica. »        

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que acompanha as razões da resposta do MP em primeira instância, pronunciando-se a final igualmente pela negação de provimento ao recurso e consequente manutenção integral da sentença recorrida.

5. Cumprido que foi o disposto no art. 417.º/2, do CPP, nada mais se acrescentou e, ao exame preliminar não se tendo patenteado dúvidas relevantes, sem vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso está limitado às focadas nas conclusões apresentada pelo recorrente. Com isto presente, afigura-se-nos que os problemas que cabe concretamente dilucidar são os seguintes:

(…)

iv. Estabilizada a matéria de facto, a pretensa licitude da actuação do arguido no quadro do exercício do poder de correcção da assistente enquanto sua filha, assim se configurando causa de exclusão da ilicitude da sua conduta, nos termos do art. 31.º/1/2-b, do CP;

v. No caso de não caber a pretendida absolvição do arguido, então a eventualidade de ser equacionada a suspensão provisória do processo (por alegada inconstitucionalidade da limitação da respectiva possibilidade às fases de inquérito e instrução), e ainda, a não ser devida e cabendo condenação, a pertinência de uma dispensa de pena e a da determinação da não transcrição da condenação no registo criminal.   

1.2. Não cabendo renovação de provas e de igual modo não sendo caso de realização de audiência (o que nada aliás o recorrente requereu), sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º/3-c, do CPP), como foi.

2. A decisão recorrida

A boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, importa que, não obstante a extensão assim imposta a esta peça, se faça aqui presente, da sentença recorrida, tanto a decisão em matéria de facto (factos provados, não provados e motivação correspondente), quanto as partes da fundamentação de direito atinentes à afirmação do preenchimento do crime. Assim delimitado, é o seguinte o teor respectivo [títulos nossos]:

« (…)

II – Fundamentação de facto

A. Factos provados

[da acusação pública]

1) O arguido AA era casado com FF.

2) Fruto dessa união nasceram a assistente DD, a ../../2004, e GG, a 12/09/2012.

3) Todos residiam na Rua ..., ..., ....

4) Em ../../2022, faleceu FF.

5) Era o arguido quem suportava as despesas de casa, pagando as despesas de DD, que ainda estudava.

6) O quarto de DD ficava ao lado do quarto onde dormia o arguido.

7) No dia 14/11/2022, na altura em que estavam a jantar, a assistente disse, em circunstâncias não concretamente apuradas, que pretendia realizar partilhas por morte da mãe.

8) No circunstancialismo descrito em 7) o arguido, com a sua mão direita, desferiu uma bofetada na assistente, do lado esquerdo do rosto.

9) No dia 16/11/2022, em hora não concretamente apurada, estando EE a falar com DD no local onde aquele trabalha, ..., sita na Rua ..., ..., em ..., apareceu o arguido, em circunstâncias não concretamente apuradas.

10) O arguido cumprimentou quem ali se encontrava, tendo-se posteriormente dirigido a DD, em termos não concretamente apurados.

11) A assistente, em datas não concretamente apuradas, não conseguiu entrar na casa onde residia o arguido, por se encontrar a chave dentro da porta.

12) O arguido agiu com a intenção, concretizada, de atingir e molestar a ofendida, ofendendo-a na sua saúde física.

13) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

[da acusação da assistente]

14) A assistente já tentou aceder à casa onde residia com o arguido, não tendo conseguido.

15) O arguido, em data não concretamente apurada trocou a fechadura de casa.

16) A assistente, à data, ainda não recuperou todos os seus pertences pessoais.

[do pedido de indemnização civil]

17) A assistente sentiu-se violentada e angustiada em virtude do comportamento descrito do arguido.

18) A assistente sente-se sozinha.

[mais resultou provado que]

19) Em data não concretamente apurada, mas em momento posterior a ../../2022, o arguido e EE iniciaram uma relação de namoro.

20) Em setembro ou outubro de 2022, a assistente iniciou o ensino superior, a expensas do arguido.

21) Volvidos um número de dias não concretamente apurado desde o início das aulas, mas não superior a três dias, a assistente desistiu da frequência do curso.

22) Nessa sequência, transmitiu ao arguido que pretendia realizar um ano sabático, sem trabalhar ou estudar.

23) As discussões entre o arguido e a assistente passaram a ser frequentes, ante o referido em 20 a 22).

24) Desde essa data e enquanto residiu com o arguido, não estudou ou se dedicou a qualquer atividade profissional.

25) A assistente a EE mantiveram, durante período temporal não concretamente apurado, mas pelo menos desde ../../2022 a novembro de 2022, uma relação próxima, recorrendo a primeira à segunda em diversas ocasiões.

26) Actualmente, a assistente reside com os avós maternos, não mantendo contacto com o arguido.

[das condições pessoais, económicas e sociais]

27) O arguido reside em casa própria, com uma das suas filhas, menor de idade.

28) Integra os quadros de pessoal da Câmara Municipal ... desde o ano de 2007, encontrando-se atualmente em situação de mobilidade inter carreiras, fruto das habilitações académicas que entretanto adquiriu.

29) Aufere, de rendimentos líquidos mensais, o montante de € 1.250,00, correspondendo a quantia de € 973,03 o montante auferido pelo exercício da função referida em 13) e a quantia de € 277,00, correspondendo à pensão de viuvez e apresenta como despesas fixas mensais o montante de € 700,00 a € 800,00.

[dos antecedentes criminais]

30) O arguido não tem antecedentes criminais.

(…)

III – Do direito

A. Enquadramento jurídico-penal

a. Crime de violência doméstica

(…)

Revertendo ao caso concreto, resultou da factualidade provada que no dia 14/11/2022 [o arguido] estava a jantar com a assistente e que esta lhe disse, em circunstâncias não concretamente apuradas, que pretendia realizar partilhas por morte da mãe e que, nesse circunstancialismo, o arguido, com a sua mão direita, desferiu uma bofetada a DD, do lado esquerdo do rosto (factos provados n.º 7 e 8).

Mais resultou que o arguido agiu com a intenção, concretizada, de atingir e molestar a ofendida, ofendendo-a na sua saúde física.

E que a assistente já tentou aceder à casa onde residia com o arguido, não tendo conseguido, que o arguido, em data não concretamente apurada trocou a fechadura de casa e que, à data, ainda não recuperou todos os seus pertences pessoais (factos provados n.º 14 a 16)

Assim, ante a relação de filiação existente entre o arguido e assistente (facto provado n.º 2), importará analisar as condutas sob a perspetiva do crime pelo qual o arguido vem acusado, para o que imporá ao tribunal aquilatar se as condutas acima elencadas, analisadas sob uma perspectiva global, apresentam o elemento distintivo caracterizador do crime de violência doméstica, contendendo com a dignidade da assistente, por consubstanciarem já um quadro de degradação da vítima, nos termos acima explicitados.

Antecipa-se, desde já, uma resposta necessariamente negativa.

Desde logo, atendendo à globalidade dos factos aqui em causa, constata-se que a bofetada que o arguido desferiu na assistente consubstancia um evento isolado, ocorrido no âmbito de uma situação perfeitamente circunscrita e identificável, relacionada – directa ou indirectamente – com uma conversa sobre partilhas, iniciada pela assistente, volvido pouco tempo após o falecimento desta e já num contexto de discussões, relacionadas com o facto de a assistente não trabalhar nem se dedicar a nenhuma actividade profissional,

E fora precisamente nesse circunstancialismo concreto que o arguido perpetrou tal conduta, e já não numa qualquer situação vivencial de diminuição da assistente.

Na verdade, não se entende que tal evento, pese embora tenha naturalmente violado bens jurídicos penalmente protegidos – maxime, a integridade física da assistente – tenha talqualmente violado o reduto mínimo de qualquer ser humano: a sua dignidade.

E assim é porquanto não se considera ainda que tal conduta, consubstanciada numa única bofetada num dos lados da cara da assistente, sem que lhe tenham seguido quaisquer outras agressões de ordem física ou verbal se tenham repercutido na saúde física e mental da assistente com a gravidade exigida pelo tipo incriminador, afetando a sua dignidade enquanto pessoa, de molde a preencher o elemento objectivo do ilícito.

De facto, sendo inegável que as condutas perpetradas pelo arguido são desvaliosas e reprováveis, o certo é que não se extrai do acervo factual uma particular crueldade ou perversidade, reconduzida a um quadro de degradação da vítima, apta a permitir a conclusão de que tais comportamentos se subsumem a uma situação de violência doméstica.

Não se vislumbra, pois, um desrespeito global pela pessoa da vítima, em termos de a diminuir como pessoa, nem tampouco uma qualquer posição de prevalência e domínio sobre aquela que evidenciem uma tentativa de enfraquecimento do seu domínio.

E não se diga que tal crime se verifica, necessariamente, ante a relação de filiação que une o arguido e a assistente.

Com efeito, considerando que as incriminações em sede penal visam a proteção de bens jurídicos, sempre se imporá, para que opere a subsunção à norma jurídica abstratamente convocável, que a conduta do agente atente, efectivamente, contra o bem jurídico que a mesma visa proteger e que, in casu, se reconduz à dignidade da pessoa humana.

Ora, tal hipótese, no caso vertente, pelos fundamentos já expendidos, manifestamente não se verifica, não bastando a existência de uma relação de proximidade, mormente familiar, entre o agente e o objecto do crime para que se considere que tal se verifica.

Do mesmo modo, também a circunstância de, à data, a assistente não exercer qualquer profissão ou estudar, sendo economicamente dependente do arguido e de este praticar acções de molde a impedir o livre acesso daquela à sua habitação, em nada belisca o que ora vem dito.

Na verdade, a assistente, à data de tais factos, era já maior de idade e, nessa medida, capaz de se prover a si própria, inexistindo qualquer regulação do exercício das responsabilidades parentais em seu benefício e não havendo nota de uma qualquer limitação física ou cognitiva que nos permitisse concluir pela necessidade de apoio permanente.

E por assim ser, ainda que tal conduta – pelo menos, quando descontextualizada – possa ser eticamente censurável, nem por isso se torna merecedora de tutela jurídico-penal.

Em face do exposto, nada mais resta senão concluir que não se verifica, in casu, o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, na acepção preconizada pelo art. 152.º/1, do CP, motivo pelo qual não se encontra preenchido o elemento objectivo do crime de violência doméstica, impondo-se a absolvição do arguido pela prática do crime de violência doméstica pelo qual vem acusado.

Em face da absolvição do arguido pelo crime de violência doméstica pelo qual vem acusado, cumpre apreciar a possível subsunção da factualidade provada ao crime de ofensa à integridade física.

b. Crime de ofensa à integridade física

(…)

In casu, provou-se que no dia 14/11/2022, na altura em que estavam a jantar, a assistente disse, em circunstâncias não concretamente apuradas, que pretendia realizar partilhas por morte da mãe e que, nesse circunstancialismo o arguido, com a sua mão direita, desferiu uma bofetada a DD, do lado esquerdo do rosto.

Mais se provou que o arguido agiu com a intenção, concretizada, de atingir e molestar a ofendida, ofendendo-a na sua saúde física, tendo agido sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Não restam, assim, dúvidas quanto ao elemento objectivo e subjectivo do tipo e, desta feita, pelo preenchimento do crime de ofensa à integridade física, desde logo, porquanto não se antevê como sendo equacionável a consideração de que estará em causa um poder-dever de correção por parte do arguido.

Seguindo de perto o entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque “os pais e tutores têm excecionalmente um direito de correção dos educandos, ao abrigo dos seus deveres gerais de educação e cuidado”, desde que exercido em contexto de pressupostos, muito exigentes, para que se possa considerar que a actuação do educador está a coberto de uma causa de justificação. São eles:

(i) O exercício do direito de correção, por parte dos pais, seja motivado por “acção voluntária muito grave do educando”, sendo que esta “mede-se por ela ser dirigida contra bens jurídicos protegidos pelo próprio direito penal” ou seja, considera que só haverá justificação da conduta do educador quando esta vise dar resposta a um acto que implicaria a responsabilidade criminal do menor se este fosse imputável pois, é para o autor “dever do educador cuidar por que o castigo transmita a censura ético-social associada ao comportamento do educando, de modo a que ele não o repita no futuro” (ficando assim de fora “castigos por faltas do educando que não lesem bens jurídico-penais”).

(ii) A acção levada a cabo pelo menor seja voluntária, “não sendo admissível o castigo de menores de tão tenra idade ou com debilidade mental que não percebam o sentido do acto que praticaram”;

(iii) O castigo só deve ser aplicado “depois de prévia advertência do educando”;

(iv) Em quarto lugar, o castigo deve ser de natureza não física e, por último, que “só diante da reiteração do comportamento do educando se pode excecionalmente recorrer à ofensa à integridade física simples”, excluindo-se sempre “uma ofensa corporal grave do educando

Acresce que, face à conduta descrita na factualidade provada, conclui-se que o arguido representou o facto típico, com todos os elementos objectivos que integram o tipo de ilícito, tendo dirigido a sua vontade à realização do facto havido como crime, agindo, pois, com dolo direto (factos provados n.º 12 e 13).

Por outro lado, não se verifica qualquer causa da exclusão da ilicitude ou da culpa que afaste a sua responsabilidade penal.

Nesta conformidade, conclui-se que o arguido agiu com dolo direto e com plena consciência de que a sua conduta é crime e punível por lei e, assim, com culpa, nos termos dos artigos 14.º/1, e 17.º, do CP.

(…)

Em face ao exposto, resta concluir que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP.

(…) »

3. Enfim apreciando

(…)

C. A putativa exclusão da ilicitude da conduta do recorrente

3.20. Sendo aparentemente, e se bem o avaliamos, o verdadeiro cerne do recurso, o aspecto nuclear da compreensão do problema que o recorrente manifesta, a questão dir-se-ia contudo e de certo modo prejudicada pelo naufrágio da impugnação da decisão de facto, enquanto tentativa de estabelecer as bases fácticas da solução proposta: se não se assenta em que a assistente, sua filha, lhe dirigiu expressões grosseiras e que o seu objectivo com atingi-la à bofetada fosse nisso corrigi-la, então, ainda dando-as como intoleráveis na relação paterno-filial, torna-se inócuo, e talvez até de um despropositado academismo, ponderar a admissibilidade de castigar fisicamente filhos, em termos de com isso se exercer licitamente um poder/dever e, por essa via e à luz do art. 31.º/1/2-b, do CP, excluir-se a ilicitude do que materialmente é uma ofensa à integridade física (porque, não cabe duvidar, disso com efeito se trata: de uma ofensa à integridade física, no caso como p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP). Não obstante, o denodado empenho com que o recorrente explora o tema, leva-nos a ainda assim focá-lo, com brevidade que seja, apenas para tentar deixar as coisas tão claras quanto possível. Em vista disso, admitamos, para facilidade expositiva somente, que com efeito a assistente tivesse dirigido ao recorrente seu pai as expressões grosseiras em causa; mesmo nessa hipótese, e sem prejuízo do valor que uma tal conduta dela pudesse ter para em favor do recorrente militar quando se tratasse de escolher e graduar a pena, o que jamais poderia admitir-se era a exclusão da ilicitude do desferir-lhe uma bofetada na face, para efeitos do n.º 1 do citado art. 31.º do CP (e menos ainda tratar-se especificamente do “exercício de um direito”, que em boa verdade é o que expressamente contempla o n.º 2, al. b, daquele art. 31.º, do CP).

3.21. Sempre partindo daquela todavia indemonstrada hipótese, as palavras da assistente seriam então, com certeza, uma violação do seu dever de respeito para com o pai (art. 1874.º/1, do CC), além de em si mesmas um ilícito criminal (art. 181.º/1, do CP), e portanto de uma repreensibilidade indiscutível. E contudo, debalde o recorrente invocaria o poder/dever de correcção, incluindo a bofetada, enquanto castigo físico, na panóplia de instrumentos educativos legítimos ao serviço dele e como previsto no art. 1878.º/1, do CC, que concita. Desde logo, aquele poder/dever dos pais de dirigir a educação dos filhos, é algo que se integra no âmbito do exercício das responsabilidades parentais, às quais todavia os filhos apenas estão sujeitos enquanto menores (cfr. o art. 1877.º, do CC). À data dos factos (14/11/2022), a assistente, nascida a ../../2004, tinha já atingido os 18 anos de idade (em ../../2022), era por isso maior, habilitada a reger a sua pessoa e bens (art. 130.º, do CC), e por conseguinte já não sujeita às responsabilidades parentais do recorrente (delas apenas e quando muito podendo, em certas condições e com certos limites, sobrar alguns deveres de sustento – art. 1879.º e 1880.º, do CC). Resulta portanto esdrúxulo, e até revelador de uma algo censurável compreensão das coisas, que o recorrente se louve de um suposto direito de correcção da filha já maior (já agora: a existir, nos termos invocados, tratar-se-ia de um dever imposto por lei, e nessa medida mais apropriado teria sido, talvez, invocar o art. 31.º/2-c, do CP).

3.22. Mas postulemos ainda, e só para esgotar o problema, que à data não tivesse ainda a assistente completado os 18 anos de idade. Nessa hipótese, o que em todo o caso teria de dizer-se é que só com as maiores reservas e cautelas pode conceder-se na admissibilidade do castigo físico, à qual sempre seria necessária uma estrita proporcionalidade entre aquele e a falta do menor, uma sua rigorosa adequação para corrigi-la e, em especial, uma inescapável necessidade do mesmo para isso. A esta luz perguntar-se-ia, apenas retoricamente, claro está, qual desde logo a necessidade da bofetada? Não teria o recorrente outro meio de instar a filha a cessar as grosserias ou de contê-las? E porque seria adequada? Não seria isso sim apta a agravar a contenda e a estimular novas grosserias? E enfim, que proporcionalidade poderia afirmar-se entre palavras, ofensivas como fossem, e um “estalo” na cara de uma jovem? Não se produz com esta, isso sim, uma ofensa bem maior do que a sofrida com as alegadas grosserias, e nos planos tanto físico como moral? Acreditará verdadeiramente o recorrente que face à gravidade da falta que lhe imputa, ofendendo-o verbalmente (ainda supondo tudo isso verdadeiro), desferir uma estalada na face da filha adolescente, na casa onde vive e na presença da namorada dele, equivale a, por exemplo, dar uma ligeira palmada no rabo de uma criança pequena que insistentemente parta objectos ou magoe pessoas?

3.23. Como dissemos, tudo isto resulta académico, sendo nosso objectivo, apenas, o de demonstrar que mesmo a ser verdade que a assistente tivesse do alegado modo ofendido o recorrente, e mesmo que ela fosse então ainda menor, nem assim poderia considerar-se excluída a ilicitude da agressão física que a bofetada substancia, causando-lhe aliás não apenas a consequente ofensa da integridade física, mas sendo até e nas circunstâncias particularmente humilhante. Breve, uma tal provocação por banda da assistente, dando, no quadro da normalidade das relações sociais/familiares, alguma compreensibilidade à intempestiva reacção com a bofetada, poderia ter significativo relevo em sede de escolha e medida da pena (vertentes da decisão que de resto o recurso compreensivelmente não ataca, nem sequer de modo subsidiário, apostando em primeira linha na absolvição e, nessa via subsidiária, focando apenas a dispensa de pena, além da não transcrição da condenação em registo e de uma hipotética suspensão provisória do processo); o que decerto não poderia, e menos ainda em se tratando de uma cidadã maior, era conduzir à não punibilidade pela ofensa à integridade física e à luz do art. 31.º/1/2-b-c, do CP, norma que manifestamente não cabia aplicar e que por conseguinte não foi pela respectiva não aplicação violada – também nisto improcedendo os argumentos de recurso.

D. A suspensão provisória do processo

3.24. Neste plano, revela-se deveras surpreendente, sempre com o devido respeito, a posição do recorrente. Descontando a alusão, cujo alcance não é compreensível, a uma suposta “irregularidade” (?) em que teriam incorrido a acusação e a pronúncia com a configuração de um crime de violência doméstica, o argumento, se bem o entendemos, é que tendo sido absolvido desse crime, cuja natureza não teria em inquérito ou instrução consentido a suspensão provisória do processo, então, não prevendo a lei essa eventualidade em fase de julgamento, e condenado que acaba, isso sim, por um crime de ofensa à integridade física, que já a consentiria, ver-se-ia por fim tratado em desfavorável desigualdade relativamente a outro qualquer arguido que dessa suspensão tivesse podido beneficiar em inquérito ou instrução, sendo certo que, diz, se verificam os pressupostos materiais (previstos no art. 281.º/1, do CPP). Segue o argumento que em sendo assim violado, com tal inadmissibilidade de suspensão em fase de julgamento, o art. 13.º/2, da CR, então, poderia (deveria?) o tribunal do julgamento ter remetido os autos de novo ao MP para dessa suspensão cuidar ou, alternativamente, dela cuidar ele próprio… Penoso como se mostre, temos de esclarecer, ainda que nisso tentando o maior sintetismo, a total inconsistência de semelhante linha argumentativa.

3.25. Antes de mais, o recorrente foi acusado e depois pronunciado pelo crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152.º/1-d/2-a, do CP,  porque em inquérito se entendeu, e depois em instrução confirmou, haver indícios bastantes dos factos a que assentava essa qualificação jurídica. A circunstância de em julgamento se não provar afinal boa parte desses factos, e de aos que se provaram apenas caber a qualificação como crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º/1, do CP, naturalmente não torna em retrospectivamente indevidas ou de alguma forma processualmente viciadas aquelas acusação e a pronúncia, e muito menos em termos que coubesse após a sentença conhecer, seguramente se não podendo afirmar qualquer nulidade insanável que legitimasse o regresso do processo a fase anterior. Por outro lado, o recorrente parece incorrer ainda em manifesto erro quando supõe que a configuração, naquelas fases anteriores do processo, de um crime de violência doméstica, impediria a suspensão provisória do processo. Não impedia, uma vez que se não tratava de crime agravado pelo resultado e a pena para ele prevista não excedia os cinco anos de prisão (art. 291.º/1/8, do CPP); se não foi no termo do inquérito equacionada, foi porque, como no despacho de acusação manifestou o MP (cfr. doc. ref. 30216467, de 22/03/2023), o próprio arguido a não aceitaria, logo à partida faltando o pressuposto do art. 281.º/1-a, do CPP; e se também na instrução não teve lugar, acontecendo até que embora referindo-a, a decisão instrutória verdadeiramente a não equacionou (cfr. doc. ref. 30442068, de 13/06/2023), a verdade é que independentemente de se verificarem ou não os mais pressupostos, e mesmo de então o recorrente já a aceitar e até ter solicitado, quem nisso não concordaria, tendo mesmo deduzido acusação particular em que acompanhou a do MP (cfr. doc. ref. 2165139, de 10/04/2023), era a assistente, falta de concordância que, aliás reiterada na resposta ao recurso (!), essa sim e nos termos do referido art. 281.º/1-a/8, do CPP, de todo a teria inviabilizado.

3.26. E por cima de quanto antecede, se necessário fosse ainda, o que se dirá é que com efeito a admissibilidade da suspensão provisória do processo está limitada às fases de inquérito (art. 281.º/1, do CPP) e de instrução (art. 307.º/2, do CPP), sendo que se para a de julgamento a lei a não prevê é por uma boa razão, sintetizada em jeito feliz na resposta do MP ao recurso: nesta fase está já delimitado o objecto da causa (pela acusação ou pela pronúncia), a função do tribunal de julgamento não é já a de decidir sobre a submissão ou não do arguido a julgamento mas a de julgar esse objecto, e a coerência do sistema e designadamente o respeito pelo princípio da acusatoriedade do processo (art. 32.º/5, da CR), não consentiriam a atribuição ao julgador da faculdade de suspender provisoriamente o processo. Finalmente, temos por manifesto que carece de sentido a alegação de uma violação do art. 13.º/2, da CR, não podendo detectar-se desigualdade no tratamento processual dos arguidos por poderem uns beneficiar da suspensão em inquérito ou instrução e não o poderem outros em julgamento; desigualdade poderia quando muito haver se, sem fundamento, uns pudessem e outros não pudessem disso beneficiar nas mesmas fases processuais, o que evidentemente não é o caso. O recorrente poderia em inquérito ou instrução ter usufruído da suspensão, o que se não ocorreu foi porque se não julgaram verificados todos os pressupostos respectivos; e o que não pode, nem como ele poderia outro qualquer arguido, é aproveitá-la em julgamento que não tivesse sido por ela previamente divertido. Também nisto improcedem os argumentos de recurso, evidentemente.

(…)

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se negar provimento ao recurso do arguido AA, mantendo-se integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em quatro UC’s (art. 513º/1/3, do CPP, e 8.º/9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique


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Coimbra, 20 de Março de 2024
Pedro Lima (relator)

Carolina Cardoso (1.ª adjunta)

Eduardo Martins (2.º adjunto)

Assinado eletronicamente