Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
332/22.7JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
NULIDADE POR INSUFICIÊNCIA DE INQUÉRITO
CONCURSO APARENTE DE CRIMES
CRIME INSTRUMENTAL OU CRIME-MEIO
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – JUIZ 4
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERLOCUTÓRIO E CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO DO ACÓRDÃO FINAL
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 30.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 67.º-A, N.º 3, 120.º, N.º 2, ALÍNEA D), E 271.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGO 24.º, N.ºS 1 E 2, DA LEI N.º 130/2015, DE 4 DE SETEMBRO/ESTATUTO DA VÍTIMA
Sumário:
I – A validade das declarações para memória futura não depende da prévia constituição do suspeito como arguido.

II – A insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de actos obrigatórios e não também a quaisquer outros actos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade.

III – No concurso aparente de crimes ocorre uma relação de consunção quando o preenchimento de um tipo legal, mais grave, inclui o preenchimento de outro tipo legal, menos grave, devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especificidade do caso concreto, resultando dos princípios ne bis idem e lex consumens derogat lex consumate que só se aplica o tipo mais grave.

IV – Quando acontece o inverso e o crime mais grave acompanhar um crime menos grave, ocorre uma consunção impura, aplicando-se a norma mais leve.

V – O crime instrumental ou crime-meio é aquele em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos, representando, por isso, a sua valoração autónoma e integral uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração.

VI – A vontade do arguido de não deixar sair a ofendida de sua casa concretizou-se quando ele lhe diz, em tom de voz alto e sério, “atreve-se a sair! atreve-te a sair”, assim se consumando o crime de sequestro. Quando o arguido, depois, agride a ofendida e lhe aponta uma faca, quando ela fez menção de sair, comete dois crimes instrumentais ou crimes-meio, que não devem ser punidos autonomamente.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

       A – Relatório

1. …

foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, o arguido

AA …

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferido acórdão, a 13.6.2023, decidindo-se:

“a) Absolver o arguido … do crime de devassa da vida provada, …

b) Absolver o arguido … do crime de acesso ilegítimo, …

c) Condenar o arguido … pela prática de quatro crimes de violação, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 164º n.º 2 alínea a) do Código Penal, nas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles;

d) Condenar o arguido … pela prática de um crime de sequestro, p. p. pelo 158º n. 1 do Código Penal (para o qual se convolou o crime de sequestro agravado que lhe vinha imputado) na pena de 9 (nove) meses de prisão;

e) Condenar o arguido … pela prática de um crime de coacção, na forma consumada, p. p. pelos artigos 154º n.º 1 e 155º n.º 1 alínea a) e 131º, todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;

f) Condenar o arguido … pela prática de um crime de coacção, na forma tentada, p. p. pelos artigos 154º n.º 1 e 155º n.º 1 alínea a) e 131º, 22º e 23º, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão;

g) Condenar o arguido … pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo artigo 143º n.º 1 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão (factos descritos e provados no ponto 2.1.18);

h) Condenar o arguido … pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo artigo 143º n.º 1 do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão (factos descritos e provados no ponto 2.1.28.);

i) Condenar o arguido … pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. p. pelo artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão;

j) Condenar o … pela prática de quatro crimes de gravações e fotografias ilícitas p. p. pelo artigo 199º n.º 2, alíneas a) e b) do Código Penal, nas penas parcelares de 3 (três) meses de prisão por cada um deles;

k) Efectuado o cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenar o arguido … na pena única 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva;

l) Condenar também o arguido … no pagamento à ofendida BB …, da quantia de €8.000,00 (oito mil euros), a título de indemnização, nos termos do artigo 16º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e artigos 67º-A e 82º-A do CPP;

3. Em momento processual anterior, ainda na fase de inquérito, o arguido veio arguir a nulidade das declarações prestadas para memória futura, no dia 10 de Maio de 2022, pela ofendida …, alegando em síntese, que:

- tais declarações foram prestadas quando ainda não tinha sido constituído arguido, apesar de já estar identificado como único suspeito, pelo menos, desde o dia .../.../2022;

- apesar de ter sido nomeado um defensor oficioso para presenciar o ato, não pode ser considerado este defensor oficioso do arguido …

4. Na sequência deste requerimento do arguido, o tribunal proferiu despacho, a 8.9.2022, indeferindo a invocada nulidade.

5. … veio o arguido interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“a. A nomeação de defensor oficioso para presenciar o ato de tomada de declarações para memória futura a um suspeito só cumpre com o princípio da defesa cravados no texto fundamental, nos art.º 20, 32, assim como no art.º 6 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e nos art.º 47 e 48 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia na medida em que o inquérito corra contra pessoa determinada ou não localizável.

b.  Havendo pessoa determinada alvo do inquérito, tem sempre o suspeito o direito de constituir ou escolher defensor, assim como de com ele conferenciar …

c. A validade formal não é suficiente para que haja tomada de declarações para memória futura, havendo uma verdadeira obrigação do Juiz de Instrução de pugnar pela validade material, respeitando o esquema metodológico, na admissibilidade da tomada de tais declarações.

d.  A manifesta urgência na tomada do depoimento em sede de declarações para memória futura tem que, obrigatoriamente, ser uma urgência mais premente do que no caso em que se demora 2 meses desde a identificação do suspeito até tomada das sobreditas declarações.

e.  O espaço temporal de 2 meses entre a notícia do crime e a tomada de declarações para memória futura não pode ser considerada uma situação de urgência manifesta …

f.  A discricionariedade tática do Ministério Público não permite que se protele a constituição de um suspeito em arguido, com a intenção de que este não possa exercer os direitos inerentes à sua condição de arguido no momento de prestação de declarações para memória futura.

g.  Se, existindo suspeita fundada contra uma pessoa da prática de um crime, se quiser tomar declarações para memória futura de uma alegada vítima, a constituição do suspeito como arguido cabe no dever de lealdade do Ministério Público, esse suscetível de controlo pelo Juiz de Instrução.

6. Inconformado, igualmente, com o douto acórdão, veio o arguido interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

4º. No entanto o Tribunal a quo não fez a devida análise critica das provas, apenas conformando a realidade ao pré-juizo do coletivo.

5º. As provas que sustentam a condenação são as declarações para memória futura da ofendida, …

6º. As declarações para memória futura da ofendida são ilegais, …

7º. As declarações das testemunhas não corroboram, mas contrariam, a versão que foi apresentada pela ofendida, …

22º.     Existe, por isso, erro notório na apreciação da prova.

23º.     Assim como insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

24º.     Também quanto ao Direito não pode ser atribuída ao arguido a prática dos crimes de violação porquanto está excluída a ilicitude por via do consentimento.

25º.     Quanto aos crimes de sequestro, ofensa à integridade física e coação, também a prova é tão contraditória que não beneficia de fundamentação consistente à decisão de condenação tomada.

27º.     O crime de violação não se mostra provado nos autos de forma consistente, …

28º.     Ainda que dando-se como provados os factos típicos da prática dos crime de sequestro, integridade física e coação, os últimos dois deverão ser considerados como consumidos pelo crime de sequestro, entrando em concurso aparente.

7. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto do despacho de 8.9.2022, …

8. O Ministério Público respondeu igualmente ao recurso interposto pelo arguido do douto acórdão, …

9. … o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer …

                *

       

        B - Fundamentação

 

1. …

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação de cada um dos recursos, as questões a decidir são as seguintes:

 Do recurso do despacho de 8.9.2022:

- se as declarações prestadas pela ofendida para memória futura são nulas, por terem ocorrido antes da constituição de arguido;

- se tal facto constitui nulidade por insuficiência de inquérito, nos termos do artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal;

- se foi violado o disposto nos artigos 271º, 272º do Código de Processo Penal, 20º e 32º da CRP, 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 47º e 48 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Do recurso do acórdão final:

- se o acórdão recorrido enferma dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- se os factos provados dos pontos 14, 15, 16, 23 a 25, 31, 39, 48, 56 e 57 (relativos ao crime de violação) foram incorrectamente julgados, deles devendo ser expurgadas todas as indicações de que o arguido forçou e obrigou a ofendida;

- se os factos provados dos pontos 17, 18, 19, 20, 21, 22, 28, 36, 37, 42, 43, 45, 46, 53, 54, 55, 58, 59, 60, 63, 64, e 65 (relativos aos crimes de sequestro, coação, tentada e consumada, e ofensa à integridade física) foram incorrectamente julgados;

- se o arguido deve ser absolvido do crime de violação;

- se existe concurso aparente entre o crime de sequestro, de coacção na forma consumada e de ofensa à integridade física, encontrando-se estes dois últimos consumidos pelo sequestro.

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade e motivação do acórdão recorrido, bem como o despacho recorrido de 8.9.2022.

 Factualidade e motivação do acórdão recorrido:

“2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Matéria de facto provada

 

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. A ofendida BB … é toxicodependente, consumindo cocaína diariamente, tendo conhecido o arguido … em data não apurada, mas situada no final do ano de 2021, pelo facto de aquele vender produtos estupefacientes, designadamente, cocaína;

2. Em data não concretamente apurada, mas situada no final do ano de 2021, o arguido vendeu, pelo menos uma vez, cocaína à BB … em quantidade não concretamente apurada.

3. Desde pelo menos 11 de Fevereiro de 2022 até ao dia 16 de Março de 2022, o arguido … vendeu à BB, com uma periodicidade quase diária, cocaína, … deslocando-se a ofendida … a casa do arguido, …

4. Na sequência destes factos, o arguido acabou por saber que BB não dispunha de rendimentos, tinha escassez de dinheiro para adquirir produto estupefaciente para o seu consumo, não tinha condições para ter uma habitação e que vivia de favor em casa do filho CC …

5. … no dia 14 de Março de 2022, a ofendida … deslocou-se a casa do arguido … para comprar cocaína, acabando por consumir a dose que adquiriu na companhia do mesmo, regressando de seguida a casa do filho;

6. No dia seguinte, 15 de Março, a BB voltou a casa do arguido, a quem comprou novamente cocaína, em quantidade não concretamente apurada, acabando mais uma vez por consumir o produto estupefaciente em casa daquele;

7. Depois de consumir, o arguido, por saber que ela vivia provisoriamente com o filho por não ter mais nenhum sítio para onde ir, sugeriu-lhe que fosse viver com ele, tendo BB recusado esse convite;

8. No dia seguinte, 16 de Março, cerca das 09h30m, BB voltou a casa do arguido … para comprar cocaína, como era hábito;

9. Como não tinha dinheiro, o que o arguido sabia, este disse-lhe para se despir e que em troca lhe dava cocaína;

10. BB, estando a ressacar, acabou por aceitar o pedido do arguido, despiu-se, ficando apenas de cuecas e soutien,… e foram ambos para a cama consumir cocaína, o que aconteceu no período da manhã;

11. … no mesmo dia, BB consumiu mais cocaína que o arguido lhe deu, pedindo-lhe este, em troca, que lhe fizesse sexo oral, o que BB apenas aceitou em virtude de precisar de consumir, como era do conhecimento do arguido, que se aproveitou desta fragilidade da vítima;

12. Assim, deitaram-se ambos na cama e o arguido AA introduziu o seu pénis ereto na boca de BB, obrigando-a a fazer movimentos para a frente e para trás, praticando coito oral;

13. Por não conseguir ejacular, o acto sexual (de coito oral) começou a ser mais demorado, tendo BB manifestado ao arguido vontade de parar e de descansar;

14. Contudo, aquele não deixou que BB parasse e, para o efeito, contra a vontade daquela, puxou-lhe a cabeça para baixo de encontro ao seu pénis e agarrou-lhe os cabelos, forçando-a a permanecer com o pénis dele na sua boca, …

15. Enquanto assim procedia, o arguido ordenou a BB que retirasse as próteses dentárias que usava e a pôr a mão nos seus testículos, manuseando-os até ejacular, ao mesmo tempo que lhe dizia repetidamente, em tom de voz alta e com foros de seriedade, “ainda tens muito que aprender; não sabes fazer nada; és uma atrasada; tem de ser até ao fundo da garganta; é assim, é assim que tens que fazer” e filmava os referidos actos sexuais através do telemóvel, sem a autorização e contra a vontade dela, ignorando os insistentes pedidos de BB para que parasse de a forçar a manter sexo;

16. Na sequência de tal conduta por parte do arguido, BB teve, por várias vezes, dificuldade em respirar, acabando por vomitar e ficar com fortes dores nos maxilares e na garganta;

17. Por volta das 19h30m/20h, a BB disse ao arguido que estava na hora de regressar a casa, aguardando-a o filho para jantar, tendo-lhe aquele dito, em tom de voz alto e sério, “atreve-te! atreve-te!”;

18. Como BB ignorou esta advertência e fez tenção de abandonar a casa, o arguido … pegou numa bacia e desferiu-lhe, com força, uma pancada no rosto, provocando-lhe escoriações e dores na região frontal e no nariz, desferindo-lhe ainda estalos e socos na cara, provocando-lhe duas escoriações na hemiface esquerda;

19. Após, o arguido, munido com uma faca artesanal, com cabo em madeira e lâmina larga com forma curva, colocou-a entre os dedos da mão, apontou-a na direção de BB e disse-lhe em tom de voz alto e com foros e seriedade: “atreve-se a sair! atreve-te a sair”, mais lhe dizendo, no mesmo tom de voz, que matava pessoas e nunca ninguém descobriu; que deu metadona a uma rapariga que morreu e que tinha comido carne humana, assim a atemorizando, agindo com o propósito de aquela não sair de sua casa;

20. Com o mesmo propósito de obrigar BB a ficar em sua casa, o arguido trancou à chave a porta de entrada da casa e escondeu a chave, tendo-lhe também retirado o telemóvel, da marca ..., para a impedir de falar com alguém;

21. BB não conseguia contactar telefonicamente com ninguém por não ter acesso ao telemóvel, bem como não conseguia sair de casa, não só por ter receio que o arguido a agredisse ou atentasse contra a sua vida, mas também porque a porta de entrada estava fechada à chave e a única janela que havia no-rés-do chão … estava obstruída …

22. Ainda assim, BB pediu ao arguido para contactar o seu filho CC, mas ele exigiu que essa chamada fosse feita em alta voz para que ele pudesse ouvir o teor da conversa, acabando, contudo, por ser aquele quem ligou para o CC do telemóvel dele e lhe disse que a mãe estava bem, não tendo permitido que os dois conversassem um com o outro;

23. Durante a noite de 16 para 17 de Março de 2022, o arguido … forçou novamente e da mesma forma, usando a força física, agarrando a cabeça e puxando os cabelos de BB, a que esta, contra a sua vontade e sem que conseguisse evitar, a introduzir o seu pénis ereto na sua boca, o mais fundo que aquele conseguia, o que fez por diversas vezes, até ejacular, intercalando com a introdução do pénis na vagina de BB, penetrando-a várias vezes contra a vontade dela e fazendo movimentos para trás e para a frente, usando sempre a força física para conseguir os seus intentos, através de puxões de cabelo e agarrando-a para que ela não parasse e não saísse dali, apesar desta se debater para se livrar dele e lhe dizer para parar;

24. As relações sexuais assim mantidas, ocorreram conforme a vontade do arguido, enquanto intercalava com o consumo de cocaína;

25. As referidas práticas sexuais e também as que havia mantido no dia 16, foram filmadas pelo arguido através de um telemóvel, contra a vontade de BB, o que o arguido bem sabia;

26. No dia 17 de Março de 2022 de manhã, o arguido ordenou a BB que se levantasse para lhe aquecer o café e limpar a casa;

27. Esta, ao levantar-se, por estar extremamente cansada e debilitada, uma vez que não se tinha alimentado e estava a ressacar, caiu no chão;

28. Nessa altura, o arguido pegou na canadiana que habitualmente usava e desferiu-lhe com ela diversas pancadas no corpo, …

29. BB, a muito custo, conseguiu levantar-se e, como o arguido lhe ordenara, fez o café para o arguido, lavou a loiça, limpou a casa, enquanto aquele permanecia deitado na cama;

30. De seguida, o arguido … ordenou a BB que fosse para junto dele, para a cama, enquanto ele fumava “um caneco” (cocaína), dizendo-lhe que se ela também quisesse um “caneco”, teria de ter relações sexuais com ele;

31. Por estar completamente exausta, frágil, cansada e a ressacar, BB não reagiu, pelo que, o arguido voltou a agarrá-la e voltou a forçá-la a ter sexo oral com ele, da mesma forma acima descrita …

32. Próximo do meio dia daquele dia 17 de Março, o arguido contactou um amigo/conhecido dele, cuja identidade não se logrou apurar e foram os três ao ..., …

33. Na cidade ... deslocaram-se a um bairro social, cujo nome e localização precisa se não logrou apurar, a fim do arguido ir comprar cocaína;

35. Durante todo o referido período de tempo, a vítima BB esteve sempre acompanhada do arguido AA ou sob o alcance da sua visão, estava muito fraca e sonolenta, não tendo possibilidade de fugir e não tendo pedido ajuda ao indivíduo que os acompanhou ao ..., …

36. Regressados a ..., voltaram para casa do arguido AA, ele voltou a trancar a porta de entrada em casa e a guardar a chave fora do alcance da ofendida, tendo consumido ambos cocaína que o arguido lhe deu;

37. Cerca das 23 horas, BB pediu ao arguido que a deixasse telefonar para o filho … porque tinha de ir ao CRI buscar metadona no dia seguinte e ele deixou-a falar com o filho por breves momentos, mas em alta voz e na sua presença, …

38. Durante o telefonema, o arguido retirou o telemóvel a BB e falou com o filho daquela, dizendo-lhe que a mãe estava bem, que já tinha jantado e que não se devia preocupar;

39. Nessa noite, todas as práticas sexuais supra descritas se repetiram, com os mesmos actos violentos e contra a vontade de BB, …

41. No dia seguinte, sexta-feira, dia 18 de Março de 2022, cerca das 08h, BB pediu ao arguido que a deixasse ir buscar a metadona ao CRI ...;

42. O arguido consentiu, abrindo-lhe a porta, mas deu-lhe o prazo de uma hora para tratar desse assunto e regressar a casa, tendo-lhe dito, em tom de voz alto e com foros de seriedade, que se contasse a alguém o que se tinha passado entre eles, que a matava;

43. BB deslocou-se ao CRI em ... e dali foi para casa do filho a quem relatou os acontecimentos de que foi vítima, …

44. BB apresentava marcas de agressão física no rosto e nos membros superiores e inferiores, dores no corpo, … estava muito debilitada fisicamente e psicologicamente muito afetada, pelo que o filho CC logo a conduziu ao Serviço de Urgências do Hospital ..., acabando, de seguida, por apresentar queixa contra o arguido;

48. Durante o período de tempo em que a ofendida permaneceu contra a sua vontade em casa do arguido, este, em número de vezes não concretamente apuradas, despiu-a totalmente, contra a sua vontade, para ver se tinha algum tipo de droga escondido no corpo;

52. BB não conseguia pedir ajuda aos vizinhos, designadamente, gritar, porque tinha medo que o arguido lhe fizesse mal, …

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              *

   Despacho recorrido de 8.9.2022:

“Veio o arguido invocar a nulidade das declarações para memória futura prestadas pela vítima, nos termos do artigo 120, nº2, alínea d), do CPP.

Para tal alega a falta de constituição de arguido, aquando das declarações para memória futura apesar de já existir suspeito nos autos.

Na situação concreta foi a vítima … ouvida em declarações para memória futura no passado dia 10 de maio.

Aquando da prestação de declarações inexistia arguido constituído, tendo sido nomeado defensor para o ato, em representação do então suspeito.

A ofendida nos termos dos artigos 1º, al.j) e 67-A, nº3 do CPP tem a posição de vítima especialmente vulnerável.

Ora de acordo com o Estatuto da Vítima a ofendida goza de medidas especiais de proteção, sendo uma dessas medidas a prestação de declarações para memória futura (artigo 21).

E de acordo com o artigo 24 do mencionado estatuto:

Também assim estipula o artigo 271 do CPP, preceituando o seu nº1: …

Acrescentando o nº 3 …

As declarações para memória futura pressupõem uma situação de urgência da inquirição da vitima, nomeadamente em consequência da idade, do estado de saúde ou mesmo da gravidade dos factos, que tornam um ofendido em vitima, sendo tal urgência acrescida quando a vitima é especialmente vulnerável.

Tal urgência, muitas vezes, não é compatível com a prévia constituição de arguido, mesmo quando já existe um suspeito, não esquecendo que a audição em declarações para memória futura visa a proteção da vítima.

Assim, a prova por declarações para memoria futura pode ocorrer sem prévia constituição de arguido, verificando-se tal em situações, para além daquelas onde inexiste suspeito.

E não se argumente com a violação do princípio do contraditório da medida em que o mesmo se satisfaz com a nomeação de defensor para o ato, que, no cumprimento dos seus deveres, pugna pelas garantias de defesa e pela legalidade.

Na situação concreta, como mencionado os factos são gravíssimos, existindo fortes indícios de que o arguido é possuidor de personalidade violenta, sujeitando a vítima a atos de elevada gravidade, existindo também aqui uma enorme necessidade de proteção da vitima.

Logo, não se verifica qualquer nulidade, nomeadamente a do artigo 120, nº2, al. do CPP.

…”.

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              *

4. Cumpre agora apreciar e decidir.

  Do recurso do despacho de 8.9.2022

Começa-se por apreciar se as declarações prestadas pela ofendida para memória futura são nulas, por terem ocorrido antes da constituição de arguido.

A vítima do caso concreto, face ao disposto no artigo 67º-A, nº 3, do Código de Processo Penal, trata-se de uma vítima especialmente vulnerável, o que nos remete, desde logo, para o Estatuto da vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro.

Nos termos do artigo 24º deste diploma legal, com a epígrafe Declarações para memória futura, o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal (nº 1).

Estipula o nº 2 da mesma norma legal que, o Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

De acordo com o nº 6 da mesma norma, nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Por sua vez, dispõe o artigo 271º do Código de Processo Penal, igualmente com a epígrafe Declarações para memória futura, no seu nº 3, que  “ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor”.

Revertendo ao caso concreto, no dia 4.5.2022, foi proferido despacho a designar o dia 10 do mesmo mês para a tomada de declarações para memória futura.

Nesse despacho solicitou-se a indicação de defensor para nomear ao suspeito, o que foi feito no dia 5.5.2022, tendo sido nomeada …

Ainda nesse dia 5.5.2022 foi notificada a … defensora oficiosa do suspeito AA, de que se encontra designado o dia 10.5.2022, pelas 11 horas, para a referida diligência. …

No dia 10.5.2022 foram tomadas declarações para memória futura à ofendida … encontrando-se presentes, … defensora do suspeito.

Assim, o suspeito encontrava-se devidamente representado por defensora, a quem incumbia exercer o respectivo contraditório na diligência.

 Como resulta das normas legais supra citadas, apenas o Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes.

No caso de ainda não haver constituição de arguido, tal notificação não tem que ser efectuada ao mero suspeito. Nem mesmo o Ministério Público tem que constituir o suspeito como arguido previamente. Como dominus do inquérito e titular da acção penal, o M.P. deve constituir o suspeito como arguido quando entender que é o momento oportuno e adequado à investigação.

Assim, conclui-se que foram respeitadas todas as formalidades para a diligência de tomada de declarações para memória futura, não tendo sido cometida a invocada nulidade.

Aliás, a jurisprudência já se pronunciou abundantemente neste sentido.

A título de exemplo, vejam-se alguns arestos.

No Ac. da RL de 22.5.2023, in www.dgsi.pt, …

No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RL de 7.2.2023, in www.dgsi.pt, …

Segundo o Ac. da RC de 18.5.2022, in www.dgsi.pt, “a tomada de declarações para memória futura não supõe de forma necessária a prévia constituição de alguém como arguido ou sequer a audição do denunciado como suspeito”.

De facto, assim é.

Aliás, mesmo que se considerasse que o suspeito deveria ter sido notificado da nomeação que lhe foi feita, bem como da data da diligência, para comparecer, querendo, mesmo assim, nunca a omissão de notificação configuraria uma nulidade. Quando muito configuraria uma irregularidade que não foi arguida tempestivamente, nos termos do artigo 123º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Neste sentido, veja-se o Ac. da RP de 6.7.2022, in www.dgsi.pt, …

 O que fica dito revela-se bastante para se concluir que não assiste razão ao recorrente, improcedendo esta questão por si suscitada.

              *

Defende ainda o recorrente que, pelo facto das declarações para memória futura terem sido prestadas sem que o suspeito tivesse sido constituído arguido, não tendo por isso sido notificado, verifica-se a nulidade por insuficiência de inquérito, prevista no artigo 120º, nº2, alínea d), do Código de Processo Penal.

Pois bem.

Estipula o artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal, que constitui nulidade dependente de arguição, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

Ora, do que ficou dito supra, já resulta que não foi omitido qualquer acto obrigatório.

De qualquer forma, sempre se diz que para determinarmos o que deverá entender-se por insuficiência do inquérito, teremos que nos socorrer dos princípios que norteiam todo o nosso processo penal, sob pena de quebra da sua unidade.

O actual processo penal, por força de imperativos constitucionais (artigo 32º, nº 5, da CRP) tem uma estrutura acusatória, que importa uma clara separação entre os órgãos da acusação e do julgamento.

O inquérito é dirigido pelo Ministério Público e a lei não impõe, em geral, a prática de quaisquer actos típicos de investigação.

A ser assim, só se verifica esta nulidade quando se omita acto que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa. A omissão de diligências não impostas pela lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência.

É vasta a jurisprudência neste sentido.

A título de exemplo veja-se o Ac. da RG de 9.12.2020, in www.dgsi.pt, … (neste sentido, Ac. do STJ de 23-05-2012 (processo n.º 687/10.6TAABF.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.).

Com efeito, partindo da correta ponderação da estrutura acusatória do processo penal (art. 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), bem como dos princípios do contraditório e da oficialidade, a solução maioritariamente seguida pela jurisprudência é a de que a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de atos obrigatórios e já não também a quaisquer outros atos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade.

O Ministério Público é livre, salvaguardados os atos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei (Ac. do TC nº395/2004, de 2/6/2004, DR.1.Série de 9/10/2004).

Pelo exposto, não assistindo razão ao arguido, conclui-se pela inexistência da invocada nulidade.

              *

Próxima questão: se foi violado o disposto nos artigos 271º, 272º do Código de Processo Penal, 20º e 32º da CRP, 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 47º e 48 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Aqui chegados e por todo o supra exposto, facilmente se conclui que não foi violado o disposto no artigo 271º do Código de Processo Penal.

Assim como não foi violado o disposto nos artigos 20º e 32º da CRP, reafirmando-se que o recorrente, à data, era mero suspeito e não arguido.

Também o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos não se encontra violado, nem mesmo os artigos 47º e 48 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

                *

   Do recurso do acórdão final

A primeira questão a apreciar é a de saber se o acórdão recorrido enferma dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Mais alega que foi condenado pelos factos descritos em 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9 dados como provados, no entanto, verifica-se uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto. …

Nos termos do artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Revertendo ao caso concreto, no que respeita ao vício de erro notório na apreciação da prova, pela análise da peça recursória e natureza da alegação do recorrente, de que as passagens supra referidas são exemplo, facilmente se conclui que nada foi alegado que pudesse fundamentar o mencionado vício.

As questões colocadas não resultam do texto da sentença recorrida, mas sim do confronto desta com determinados elementos de prova.

Em suma, pelo que fica dito, facilmente se conclui pela inexistência dos alegados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.

Improcede, pois, esta questão suscitada pelo recorrente.

               *

A pretensão do arguido enquadra-se no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, o que nos conduz às próximas questões …

Pelo exposto, improcede a pretensão do recorrente, devendo manter-se como provados os factos impugnados com a redacção que lhe foi conferida pelo julgador.

               *

              *

Cumpre agora apreciar se existe concurso aparente entre o crime de sequestro, de coacção na forma consumada e de ofensa à integridade física, encontrando-se estes dois últimos consumidos pelo sequestro.

Alega o arguido que, ainda que tivesse praticado o crime de sequestro, o tribunal recorrido não fez a devida análise crítica às regras do concurso e ao artigo 3º do Código Penal.

Quando existam vários tipos legais verificados, temos de ter critérios de aferição da unidade ou pluralidade de factos, porque não podemos valorar o mesmo facto duplamente (imposição constitucional).

Estando perante uma pluralidade de crimes é obrigatório recorrer ao art.º 30 do Código Penal para perceber quais são as consequências jurídico-penais que podem advir dos factos (ainda que erradamente) dados como provados. Tal problema surge por prescrição do artigo 29º da CRP, porquanto ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime dando conteúdo funcional ao princípio do ne bis in idem.

O arguido apenas deveria ter sido condenado pelo crime de sequestro e não pelos crimes de ofensa à integridade física e de coação. Tais crimes, são inevitavelmente consumidos pelo ilícito dominante devendo o coletivo valorar na determinação da medida da pena os ilícitos dominados, de forma a cumprir o mandado de esgotante apreciação.

Pois bem.

Nos termos do artigo 30º, nº 1, do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.

Como bem referem Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado 1995, 1º Vol., pág. 286, “não fornece este artigo uma definição do que seja, para a nossa lei penal, o concurso de crimes, limitando-se a indicar um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, através do emprego do advérbio “efectivamente” que há-de supor-se presente também na segunda parte do preceito. A solução da questão primordial, da unidade e pluralidade de crimes, ponto de partida da teoria do concurso é deixada, em última análise, à doutrina e à jurisprudência”.

Mais afirmam que “o agente, em vez de preencher de uma só vez um único tipo de crime, preenche frequentemente, com o seu comportamento, mais do que um tipo de crime, ou o mesmo tipo de crime mais do que uma vez. Importa, então, saber quantos crimes cometeu”.

No caso de pluralidade e em relação ao concurso aparente, referem os mesmos autores, na obra supra citada, pág. 287, que “a conduta do agente preenche formalmente vários tipos de crime, mas, por via de interpretação, conclui-se que o conteúdo dessa conduta é exclusiva e totalmente abrangido por um só dos tipos violados, pelo que os outros tipos devem recuar, não sendo aplicados”.

Esses tipos de crime podem encontrar-se em diversas relações, como a de especialidade, consunção, subsidiariedade e facto posterior não punível.

No que respeita à consunção, o preenchimento de um tipo legal, mais grave, inclui o preenchimento de outro tipo legal, menos grave, devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especificidade do caso concreto. Por força dos princípios ne bis idem e lex consumens derogat lex consumate só se aplica o tipo mais grave. Pode também acontecer o inverso e o crime mais grave acompanhar um crime menos grave (consunção impura), aplicando-se, então, a norma mais leve.

Para o Professor Eduardo Correia, in Direito Criminal, II, pág. 200, “o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. Pelo que, se diversos valores ou bens jurídicos são negados, outros tantos crimes haverão de ser contados, independentemente de, no plano naturalístico, lhes corresponder uma só actividade …. Inversamente, se um só valor é negado, só um crime existirá, já que a específica negação de valor que no crime se surpreende reúne em uma só actividade todos os elementos que o constituem. Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados”.

Porém, “para que uma conduta se possa considerar como constituindo uma infracção não basta, como sabemos, que seja antijurídica; é ainda necessário que seja culposa, que possa ser reprovada ao agente. Ora, pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção … sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes. Como, porém, determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura? Seguro é que, sempre que possa verificar-se uma pluralidade de resoluções – de resoluções no sentido de determinações de vontade, de realizações do projecto criminoso -, o juízo de censura será plúrimo” – cfr. obra supra citada, pág. 202.

No que respeita ao concurso aparente, afirma Eduardo Correia que, “assim como da violação de uma só norma ou de um só artigo da lei penal não é lícito, sem mais, concluir pela realização de um só tipo e portanto de um só crime, do mesmo modo a violação de várias disposições pode só aparentemente indicar o preenchimento de vários tipos e a correspondente existência de uma pluralidade de infracções. … Muitas normas de direito penal estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras” – cfr. obra supra citada, págs. 203-204.

Aponta o mesmo professor como relações de subordinação e hierarquia entre as diversas normas, as de especialidade, consunção, subsidiariedade e de alternatividade.  

O Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., pág. 1006, no que respeita ao concurso de crimes, defende que “o tipo de ilícito é o portador, a expressão ou a sedimentação do específico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento humano numa concreta situação, atentas portanto todas as condições reais de que ele se reveste ou em que tem lugar.

 Por isso, da pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global é legítimo concluir, prima facie, que aquele comportamento revela uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional de dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeitos de punição. Aí deparamos com aquilo a que chamámos concurso de crimes efectivo, puro ou próprio e se encontra previsto no artigo 30º, nº 1”.

Relativamente ao concurso aparente, impuro ou impróprio, refere o mesmo professor (obra supra citada, pág. 1011) que “a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícito autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio. Casos existe, no entanto, em que uma tal presunção pode ser elidida porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas –, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o artigo 77º. Nomeadamente porque um tal procedimento significaria na generalidade das hipóteses violação da proibição (jurídico-constitucional: ne bis in idem) de dupla valoração – de uma parte – da matéria proibida e do conteúdo do ilícito respectivo. Podendo então dizer-se, num esforço continuado de compatibilização da doutrina que defendemos com o texto do artigo 30º, nº 1, que nestes casos se verifica uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes “efectivamente cometidos”.

Vejamos agora alguma jurisprudência onde são acolhidas as várias doutrinas acerca do concurso de crimes.

No Ac. do STJ de 10.10.1996, in www.dgsi.pt, refere-se que “no concurso aparente de infracções, embora o comportamento do agente preencha vários tipos de crime, o que sucede é que o conteúdo ou substância criminosa é aqui tão esgotantemente abarcado pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados, que os restantes devem recuar, subordinando-se perante uma tal aplicação”.

            Por sua vez, o STJ, no acórdão de 27.5.2010, in www.dgsi.pt, defende que “há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

Há consumpção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cf. H. H. Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, pág. 788 e ss.).

A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.

 O bem jurídico, ainda numa projecção difusa de uma pluralidade de bens jurídicos e numa dimensão mais ampla, autonomiza-se de cada um dos concretos bens jurídicos que possam vir a ser individualmente afectados na respectiva titularidade concreta, sendo, por si, autonomamente e ex ante, considerado com relevante para justificar a definição de um crime de perigo”.

Por último, no Ac. da RC de 11.3.2009, in www.dgsi.pt, defendeu-se que “a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio. Casos existem, no entanto, em que uma tal presunção pode ser elidida porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas –, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77.º»

No que respeita aos crimes instrumentais ou crime-meio, afirma o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Questões Fundamentais/A doutrina Geral do Crime, pág. 1018, que naqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos, parece claro que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, por outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso.

Revertendo ao caso concreto, resultou provada a seguinte factualidade:

17. Por volta das 19h30m/20h, a BB disse ao arguido que estava na hora de regressar a casa, … tendo-lhe aquele dito, em tom de voz alto e sério, “atreve-te! atreve-te!”;

18. Como BB ignorou esta advertência e fez tenção de abandonar a casa, o arguido … pegou numa bacia e desferiu-lhe, com força, uma pancada no rosto, …

19. Após, o arguido, munido com uma faca artesanal, com cabo em madeira e lâmina larga com forma curva, colocou-a entre os dedos da mão, apontou-a na direção de BB e disse-lhe em tom de voz alto e com foros e seriedade: “atreve-se a sair! atreve-te a sair”, …

20. Com o mesmo propósito … o arguido trancou à chave a porta de entrada da casa e escondeu a chave, tendo-lhe também retirado o telemóvel, da marca ..., para a impedir de falar com alguém;

21. BB não conseguia contactar telefonicamente com ninguém por não ter acesso ao telemóvel, bem como não conseguia sair de casa, não só por ter receio que o arguido a agredisse ou atentasse contra a sua vida, mas também porque a porta de entrada estava fechada à chave e a única janela que havia no-rés-do chão da casa em que se encontravam estava obstruída …

35. Durante todo o referido período de tempo, a vítima BB esteve sempre acompanhada do arguido … ou sob o alcance da sua visão, estava muito fraca e sonolenta, não tendo possibilidade de fugir e não tendo pedido ajuda ao indivíduo que os acompanhou ao ..., …

36. Regressados a ..., voltaram para casa do arguido …, ele voltou a trancar a porta de entrada em casa e a guardar a chave fora do alcance da ofendida, tendo consumido ambos cocaína que o arguido lhe deu.

Ora, perante tal factualidade, num primeiro momento, a pretensão do arguido de não deixar sair a ofendida de sua casa concretizou-se dizendo-lhe em tom de voz alto e sério, “atreve-te! atreve-te!”, “atreve-se a sair! atreve-te a sair”, apontando-lhe a referida faca artesanal, e a agredir a ofendida com a referida bacia quando ela ignorou a advertência e fez tenção de abandonar a casa.

Perante tal factualidade, dúvidas inexistem de que a referida advertência e a agressão com a bacia são um meio de realizar o ilícito principal, isto é, o sequestro. São, pois, dois crimes instrumentais ou crimes-meio que não devem ser punidos autonomamente.

Isto sem prejuízo do arguido também ter fechado a porta para impedir a saída da ofendida. O certo é que, num primeiro momento, e face ao teor da factualidade, a dita advertência bem como a agressão tinham em vista impedir a arguida de sair da habitação do arguido. São o meio, ou um dos meios, para a consumação do crime de sequestro.

Deve, por isso, o arguido ser punido pelo crime de sequestro e absolvido dos crimes de coacção na forma consumada e de ofensa à integridade física simples, relativo aos factos do ponto 18. Os factos correspondentes a estes dois últimos crimes deveriam ter sido considerados na medida da pena do crime de sequestro. Não o tendo sido, nada obsta a que sejam agora considerados na apreciação da imagem global do facto, com relevo na determinação da pena única.

Já no que respeita ao crime de coacção, na forma tentada, e ao crime de ofensa à integridade física relativa ao ponto 28, nada têm a ver com a consumação do sequestro, pelo que, quanto a estes deve manter-se a condenação face ao concurso efectivo de crimes.

              *

Consequentemente, a pena única terá que ser reformulada.

A moldura abstracta do concurso passa agora a ser de 4 anos e 6 meses a 22 anos e 1 mês de prisão.

Usando a mesma fundamentação e critérios do colectivo julgador para encontrar a pena única, e ponderando ainda que o sequestro se consumou, igualmente, com a prática dos factos relativos aos crimes de que o arguido vai agora absolvido, deve a pena única ser fixada em 8 anos e 5 meses de prisão.

              *

Pelo exposto, improcedendo todas as questões suscitadas no que respeita ao recurso interlocutório, deve ser negado provimento a este recurso.

No que respeita ao recurso do acórdão final, procedendo parcialmente as questões suscitadas pelo recorrente, deve ser concedido parcial provimento.

             *

           

       C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido e conceder parcial provimento ao recurso do acórdão final e em consequência decidem:

- absolver o arguido da prática do crime de coacção, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 154º, nº 1, e 155º, nº 1, alínea a), e 131º, todos do Código Penal;

- absolver o arguido da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal (factos descritos e provados no ponto 2.1.18);

- reduzir a pena única para 8 anos e 5 meses de prisão.

No mais mantém-se o acórdão recorrido.

              *

               …

                             *

           

             Coimbra, 25 de Outubro de 2023.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

               Rosa Pinto – Relatora

               Teresa Coimbra – 1ª Adjunta

               Jorge Jacob – 2º Adjunto