Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1330/06.3TBTNV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
LEGITIMIDADE PASSIVA
CONCEITO JURÍDICO
HERDEIRO
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 371º, Nº 1, E 373º, Nº 1, DO CPC
Sumário: I – Nos termos do artº 371º, nº 1, do CPC, a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes.

II – Contudo, os titulares de vocação sucessória não têm necessariamente que aceitar o chamamento – se aceitarem a herança, evoluem de meros sucessíveis para efectivos sucessores e adquirem o domínio e posse dos bens da herança – artº 2050º, nº 1, do C.Civ.-; se não aceitarem, o que tem de ser formalizado através de repúdio (artº 2062º CC), são chamados os sucessíveis subsequentes, até, eventualmente, se chegar ao Estado (artº 2133º, nº 1, al. e), C. Civ.).

III – “Sucessor” para o direito processual não é necessariamente o sucessível que acorreu ao chamamento e aceitou a herança – artºs 373º, nº 1; 375º, nº 1; e 1132º do CPC.

IV – Com efeito, o artº 373º, nº 1, alude a “qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida”, deixando claro que se pode ser sucessor sem se ser herdeiro.

V – Ao requerente da habilitação bastará alegar e provar que os requeridos são titulares prioritários da vocação sucessória, e a estes incumbirá, se for o caso, alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua legitimidade, isto é, que não são sucessores, no indicado sentido lato do termo.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         Por apenso aos autos de execução comum nº 1330/06.3TBTNV, instaurados no Tribunal de Judicial de Torres Novas e posteriormente remetidos, na sequência de incidente de incompetência, ao Tribunal Judicial de Tomar, onde correm termos pelo 1º Juízo, nos quais figuram como exequente a A...e como executada B..., foi pela exequente, face ao falecimento da executada, requerida a habilitação como herdeiros desta de C... e D... , a favor de quem a executada, falecida no estado de viúva, sem ascendentes vivos e sem filhos, deixou testamento.

         Os requeridos contestaram pugnando pelo indeferimento do pedido de habilitação. Para tanto alegaram, em síntese, que não praticaram qualquer acto de aceitação da herança nem foram citados, através do processo regulado no artº 1467º do Código de Processo Civil, para declararem se a aceitam ou repudiam, pelo que, estando a colocar seriamente a hipótese de repúdio, não podem ser tidos como sucessores da executada.

         Tendo sido juntos com a contestação vários documentos, a requerente apresentou requerimento em que impugna a força probatória dos mesmos.

         Foi depois proferida a decisão de fls. 77 a 79 deferindo o incidente da habilitação e julgando os requeridos C.... e marido D... habilitados como sucessores da falecida executada B.....

         Inconformados, os requeridos interpuseram recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

         Na alegação apresentada os agravantes formularam as conclusões seguintes:

[………………………………………………………….]

         A agravada respondeu pugnando pela manutenção do julgado.

         Foi proferido despacho de sustentação tabelar.

         Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil[1], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se os requeridos, na sua qualidade de herdeiros testamentários da executada falecida, podem ou não ser habilitados como sucessores da mesma, apesar de alegarem não ter praticado qualquer acto de aceitação da herança e ponderar seriamente repudiá-la.


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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Os factos e trâmites processuais relevantes para a decisão do agravo são os que decorrem do antecedente relatório e ainda os seguintes:

         2.1.1. B.... faleceu no dia 9 de Abril de 2006, no estado de viúva de E..., sem ascendentes vivos e sem filhos.

         2.1.2. A dita executada, no dia 16 de Agosto de 2000, já viúva, havia outorgado, no Cartório Notarial do Entroncamento, testamento público em que declarara que deixava todos os seus bens a C.... e marido D....


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         2.2. De direito

         Nos termos do artº 371º, nº 1, “a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes”.

         É sabido que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (artº 2031º do CC), sendo chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (artº 3032º, nº 1 do CC).

         Os recorrentes, porque contemplados no testamento com todos os bens da falecida executada e porque esta não deixou herdeiros legitimários, são seguramente titulares prioritários de vocação sucessória (artº 2026º do CC), isto é, são sucessíveis prioritários.

         Contudo, os titulares de vocação sucessória não têm necessariamente que aceitar o chamamento. Se aceitarem a herança, evoluem de meros sucessíveis para efectivos sucessores e adquirem o domínio e posse dos bens da herança (artº 2050º, nº 1 do CC). Se não aceitarem, o que tem de ser formalizado através de repúdio (artºs 2062º e seguintes do CC), são chamados os sucessíveis subsequentes até, eventualmente, se chegar ao Estado [artº 2133º, nº 1, al. e) do CC].

         Compreende-se, pois, facilmente que entre o momento da abertura da sucessão e o da aceitação decorra um período de tempo, que pode ser mais ou menos longo, em que as relações jurídicas do falecido não têm titular determinado. Durante esse período, em que ocorre um fenómeno que o Prof. Paulo Cunha denominava de «obnubilação do sujeito de direito», a herança diz-se jacente (artº 2046º do CC).

         A razão da jacência tanto pode estar no desconhecimento ou incerteza dos titulares da vocação sucessória como na demora destes em decidir-se por aceitar ou repudiar.

         No caso dos autos, sendo os recorrentes titulares de vocação sucessória, mas não tendo ainda aceitado ou repudiado a herança, mantém-se a jacência.

         A situação, porque os sucessíveis são conhecidos, poderia ser ultrapassada através do processo a que se referem os artºs 2049º do CC e 1467º do CPC, normas que, no caso de sucessível conhecido chamado à herança que a não aceite nem repudie dentro de quinze dias, permitem ao tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para, no prazo que lhe for fixado, declarar se a aceita ou repudia, sendo que a falta de declaração de aceitação ou de apresentação de documento legal de repúdio dentro do prazo fixado equivale a aceitação.

         Contudo, não tendo sido lançada mão desse procedimento, a questão que se coloca neste agravo é a de saber se a simples titularidade de vocação sucessória, a mera qualidade de sucessível prioritário confere legitimidade passiva para o incidente de habilitação.

         Já vimos que o artº 371º, nº 1 alude a sucessores. E que no direito sucessório substantivo se distingue entre sucessíveis e sucessores.

         Importa agora averiguar se no direito adjectivo, nomeadamente no que tange ao incidente da habilitação, é feita igual distinção. Ou se é usado o vocábulo «sucessores» em sentido lato, abrangendo também os sucessíveis.

         «Sucessor» para o direito processual não é necessariamente o sucessível que acorreu ao chamamento e aceitou a herança. Com feito, o artº 373º, nº 1, alude a “qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida”, deixando claro que se pode ser sucessor sem se ser herdeiro[2]. O artº 375º, nº 1 alude a sucessores incertos. E no artº 1132º fala-se em sucessores não conhecidos e em sucessores conhecidos que repudiaram a herança …

         Como consta do voto de vencido do então Desembargador, hoje Conselheiro, João Bernardo, proferido no Acórdão da Relação do Porto de 30/10/2003[3], se falecer aquele que nada deixou para herdar e que, por exemplo, é réu numa acção de preferência relativa à venda do seu único bem, como pode prosseguir a lide, se não se habilitarem aqueles que nada têm para aceitar?

         A atribuição de um sentido lato ao termo «sucessores» usado na lei adjectiva, abrangendo os meros sucessíveis, é sugerida pelo Prof. Castro Mendes[4] ao colocar a seguinte questão: “Quid juris se, depois de habilitados certos sucessores, estes (todos ou alguns) repudiarem a herança?”.

         É igualmente admitida por Santos Silveira[5] ao configurar “a hipótese de os sucessores do réu repudiarem a herança depois de considerados habilitados por meio do incidente”.

E, se bem vemos, também o Prof. Alberto dos Reis aceitava tal entendimento, como decorre da seguinte passagem do seu Código de Processo Civil Anotado: “Propôs-se acção contra dois réus; morre um deles, deixando como sucessores três filhos; o autor promove a habilitação. Contra quem é deduzido o incidente? Em primeiro lugar, contra os três filhos, visto pretender-se trazê-los para o processo, a fim de ocuparem o posto do falecido”.

         No Acórdão da Relação do Porto de 30/10/2003, já acima referido, no qual os recorrentes se baseiam, fez vencimento o entendimento de que no artº 371º, nº 1 se utiliza o termo sucessores em sentido estrito, excluindo os meros sucessíveis, e que, durante o período de jacência, é sobre a herança jacente (aberta mas ainda não aceite) que recai a legitimidade passiva para ser habilitada e com ela prosseguirem os termos da demanda no caso de o respectivo autor ter falecido na pendência da causa.

         Mas, algo contraditoriamente, embora fosse esse o caso concreto colocado naquele processo, não se revogou pura e simplesmente a sentença que habilitara meros sucessíveis. Antes se argumentou que a regra é o herdeiro aceitar a herança; que cai sobre ele o ónus de provar a sua não-aceitação, juntando o documento de repúdio; e que os princípios gerais de direito processual permitem lançar mão, no incidente da habilitação, dos procedimentos previstos nos artºs 2.049º do CC e 1.467º do CPC. E, considerando obscura e insuficiente a matéria de facto, anulou-se o julgamento e mandou-se a 1ª instância notificar os sucessíveis habilitados para, em prazo a fixar, declararem se aceitam ou repudiam a herança, com a advertência de que a não junção da declaração de aceitação nem do documento de repúdio equivale, para efeitos de habilitação, e só para tal, a ter-se a herança por aceite.

         Com todo o respeito, tal solução não nos convence.

         Por um lado, nada obsta a que o Código de Processo Civil consagre um conceito de «sucessores» não exactamente coincidente, porque mais lato, com o consagrado no Código Civil.

         Por outro, conhecendo-se bem a distinção entre sucessível e sucessor, no caso de ser habilitado sucessível que venha a repudiar, basta aplicar o ensinamento do Prof. Castro Mendes[6]: “o repúdio da herança representa o desaparecimento – embora não físico, mas jurídico – dos sucessores habilitados. É obrigatório comunicar esse repúdio no processo, seguindo-se suspensão da instância e nova habilitação.”

         Depois, falando o artº 2049º do Cód. Civil em requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado e exigindo o artº 1467º do Cód. Proc. Civil que o requerente que não seja o Ministério Público fundamente o seu interesse, afigura-se-nos forçado transformar oficiosamente aquele processo especial de jurisdição voluntária em incidente do incidente da habilitação.

         Finalmente, o artº 375º, nº 4, introduzido pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12/12, ao preceituar, em disposição com a epígrafe «habilitação no caso de incerteza de pessoas», que nos casos em que à herança é atribuída personalidade judiciária [cfr. artº 6º, al. a)] é lícito requerer a respectiva habilitação inculca não ser obrigatória tal solução, deixando aberta a hipótese, que mais se justificará se houver sucessíveis conhecidos, de optar pela habilitação destes.

         A legitimidade dos sucessíveis para serem habilitados para ocupar o lugar da parte falecida e com eles prosseguirem os termos da demanda impõe-se também por razões de celeridade e eficiência processuais e encontra suporte no princípio da cooperação (artº 266º). Com efeito, se nos casos de falecimento do réu, em que normalmente não há interesse dos seus sucessores em promoverem o andamento do processo, já é frequentemente difícil ao autor identificar os titulares da vocação sucessória, para com eles fazer prosseguir a demanda, muito mais difícil passaria a ser a sua tarefa se lhe fosse imposto que averiguasse previamente se houve aceitação, tácita ou expressa, ou se foi formalizado repúdio.

         Ao requerente da habilitação bastará alegar e provar que os requeridos são titulares prioritários da vocação sucessória. A estes incumbirá, se for o caso, alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua legitimidade, isto é, que não são sucessores, no indicado sentido lato do termo.

         Soçobram, portanto, as conclusões da alegação dos recorrentes, com o consequente não provimento do agravo e manutenção da decisão recorrida.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e, consequentemente, em manter a decisão sob recurso.

         As custas são a cargo dos agravantes.


[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] Será o caso do proprietário da raiz em relação ao usufrutuário. Em caso de morte deste, o sucessor no usufruto é aquele, independentemente de ser ou não herdeiro.
[3] CJ, XXVIII, IV, 194/201. Os recorrentes citam este Acórdão erradamente a data de 23/04/2003. Mas tal data é a da decisão da 1ª instância.
[4] Direito Processual Civil, Vol. II, Apontamentos das lições dadas ao 4º ano de 1973-1974, com a colaboração do Assistente Armindo Ribeiro Mendes, pág. 271.
[5] Questões Subsequentes em Processo Civil, 1964, pág. 344.
[6] Obra citada, pág. 272.