Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3706/19.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
FRACIONAMENTO PREDIAL
ÁREA INFERIOR À UNIDADE DE CULTURA
USUCAPIÃO
INÍCIO DA POSSE
AQUISIÇÃO DO DIREITO
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1376.º DO CÓDIGO CIVIL E 48.º DA LEI N.º 111/2015, DE 27-08, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI N.º 89/2019, DE 03-09
Sumário: I – O disposto no art. 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27-08, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2019, de 03-09, não impede que seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, de uma parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura, num caso em que a posse conducente à aquisição de tal direito se iniciou – início em 1995 – e completou antes da entrada em vigor desta Lei.

II – Neste âmbito, com vista a determinar se ocorre violação de regras legais imperativas, o momento que releva é a data do início da posse.

Decisão Texto Integral:

Relator: Arlindo Oliveira
Adjuntos: Emídio Francisco Santos
Catarina Gonçalves

            Processo n.º 3706/19.7T8VIS.C1 – Apelação

            Comarca de Viseu, Viseu, Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA e BB, casados sob o regime da comunhão geral de bens e com residência no Largo ..., ..., ..., ..., vieram intentar a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra CC, e DD, casados sob o regime da comunhão geral de bens, ambos com residência na Rua ..., ..., ..., ... e ainda contra EE, divorciado, com residência em 59 Rue ... ..., França.

Porquanto e em súmula alegam os autores que são titulares, em termos registrais, de 3/8 do prédio composto de terra de cultura com videiras e outras árvores, com eira e palheiro, sita ao ..., limite de ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com o caminho, do sul com FF, do nascente com casa de habitação do proprietário e caminho e do poente com o caminho, inscrita na matriz predial sob o artigo ...86 da freguesia ... e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...72 da freguesia ....

Ora, prosseguem os autores, em 1995 já como comproprietários de 3/8 do dito prédio rústico, procederam com os demais consortes, irmãs do autor – a saber, CC, titular de 3/8 do prédio e GG com 2/8 – à divisão material e demarcação do prédio, dividindo-o em três parcelas, ficando uma parcela definida para cada um dos irmãos. Cabendo assim ao aqui autor o antigo palheiro e terreno de cultivo de regadio, sendo tal parcela vedada por um muro em pedra de granito, pelas paredes do palheiro construídas em pedra de granito, blocos de cimento e tijolo pré-existentes e por muro construídos pelos autores em pedra de granito encimada por uma vedação com tubos de ferro e rede de arame revestida a plástico, no sentido norte /sul, desde a Rua ... até a um muro de suporte de terras que delimita a parcela de terreno que ficou a pertencer a GG e, por morte, desta sobrinho do autor, EE aqui também réu.

Donde, alegam os autores que, desde essa divisão material em 1995, existem três parcelas devidamente demarcadas e autonomizadas, sendo a do autor uma terra de cultivo de regadio, com um barracão de arrumos, um galinheiro e um tanque com uma área total de 926 m2 com as seguintes confrontações: norte –Rua ...; Sul – EE; Nascente – CC e Poente – Rua....

Acrescentam que vêm, concomitantemente, há mais de vinte anos exercendo a posse de forma ininterrupta e contínua, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, com exclusão de quaisquer outros, agindo na convicção de que exercem um direito próprio de proprietários da referida parcela. Mais concretamente, lavrando, estrumando, adubando o terreno de cultivo de regadio e nele semeando produtos hortícolas, tendo ali diversas árvores de fruta e videiras, que no terreno abriram, de resto, um furo artesiano com vista à rega e criam aves de capoeira no galinheiro. Rematam que reconstruíram o antigo palheiro, transformando-o num barracão de arrumos pelo que, ante tudo o exposto, à falta de outro título, adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio rústico em causa por usucapião que invocaram.

Destarte, pedem a este Tribunal a condenação dos réus a ver reconhecido que o direito dos autores não se reporta a uma fração indivisa do prédio melhor identificado do art. 1.º da Petição Inicial, mas antes que corresponde ao pleno direito de propriedade sobre um prédio autónomo, materialmente dividido e demarcado, tal como se encontra descrito nos arts. 8.º, 11.º, 12.º, 15.º a 17.º da Petição Inicial e bem ainda a reconhecer e respeitar o direito de propriedade dos autores sobre o prédio autónomo, materialmente dividido e demarcado, com a configuração, conteúdo, área e confrontações que correspondem à Parcela 1 da planta topográfica junta aos autos, descrito nos arts. 15.º a 17.º da Petição Inicial, abstendo-se de por qualquer forma o violar.

Regularmente citados, apresentou apenas o réu EE a sua contestação (de fls. 63 a 69) arguindo que o fracionamento que os autores peticionam é legalmente proibido à luz do art. 1376.º do Código Civil pois que o fracionamento de prédios rústicos aptos para cultura, só é permitido no caso de possuírem uma área superior à respectiva unidade de cultura, o que, in casu, não sucede, sendo, conclui, uma divisão nula à luz do 1379.º do Código Civil.

À cautela, mais alegou que a fração/parcela que os autores pretendem ver autonomizada não tem a configuração, conteúdo e área alegados na Petição Inicial e na planta topográfica ali junta que impugnou, tendo, efectivamente, uma área inferior aos 926m2 avançados pelos autores, encontrando-se o barracão/palheiro implantado em parte da parcela possuída pelo réu EE, donde, conclui, sempre terá a lide de improceder por não provada.

*

Após o oferecimento da contestação, foram os autores convidados ao abrigo dos arts. 3.º, n.º 3 e 6.º, n.º 1 ambos do Código de Processo Civil por despacho de 07-01-2020 a pronunciar-se sobre a matéria de excepção arguida na contestação. Convite a que responderam positivamente, conforme requerimento de fls. 77 a 81, ali postergando a excepção aduzida pois o que está em causa na ação repisam, é a aquisição por usucapião da sua parcela de acordo com a divisão material há muito delineada entre os três irmãos e não o fracionamento do direito de propriedade.

*

Com a concordância das partes foi dispensada a realização da audiência prévia.

Foi julgada válida e regular a instância em sede de despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção da nulidade da divisão arguida pelo réu e identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, os quais não foram objecto de qualquer reclamação ou impugnação.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, e finda a mesma foi proferida a sentença de fl.s 159 a 173 v.º, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto julga o Tribunal totalmente procedente a presente ação e, em consequência:

i) Reconhece a aquisição do direito de propriedade por usucapião dos autores AA e BB sobre parte do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o art. ...86 da freguesia ... e descrito Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...72 da freguesia ..., mais concretamente, sobre o prédio autónomo, materialmente dividido e demarcado com a configuração, conteúdo, área e confrontações patentes nos factos provados n.ºs 11 e 12 e de acordo com a Parcela 1 da planta topográfica de Fevereiro de 2019 junta aos autos a fls. 55 a 57 e que aqui se dá por reproduzida para todos os legais efeitos.

E concomitantemente,

ii) Condena os réus a reconhecer e respeitar como é de Lei o direito de propriedade dos autores sobre o prédio autónomo, materialmente dividido e demarcado, com a configuração, conteúdo e confrontações referidas em i), abstendo-se de por qualquer forma o violar.

iii) Condena os réus nas custas do processo.”.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso o réu EE, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 205), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1) O presente recurso tem por objecto a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, quanto à matéria de Direito, na qual se decidiu que:

“(…) a invocada proibição de fracionamento patente no art. 1376.º, n.º 1 do Código Civil (art. 49.º, n.º 1 da Lei n.º 111/2015 de 27 de Agosto e a Portaria n.º 219/2016 de 09 de Agosto, na redação produzida pela Portaria n.º 19/2019 de a5 de janeiro), não obsta à análise da pretensão dos autores porquanto, como vem pacificamente decidindo o Supremo Tribunal de Justiça, “a usucapião, sendo uma forma originária de aquisição de direitos, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico que proíbe o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima”.

1) O douto Tribunal a quo fundamenta aquela sua decisão nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28-03-2019, 18-06-2019 e 30-05-2019, melhor identificados na sentença.

2) Sucede que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, o douto Tribunal recorrido além de não fundamentar devidamente a sentença aqui em causa errou na interpretação das normas contidas nos artigos 1287.º, 1376.º e 1379.º do Código Civil e 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, na redação conferida pela Lei n.º 89/2019, de 03 de setembro.

3) Importa ter presente que a Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, sobretudo no seu artigo 48.º, sofreu alterações muito relevantes nesta matéria em 2019 que, no mínimo, deveriam ter sido ponderadas pelo douto Tribunal a quo, o que não sucedeu.

4) Inclusive, a alteração ao artigo 48.º daquela Lei n.º 111/2015 vem colidir frontalmente com a citada jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, toda ela proferida em data anterior àquela alteração legislativa e, portanto, sem a ter em conta.

5) Veja-se que, com a entrada em vigor da Lei n.º 89/2019, de 03 de setembro, o artigo 48.º da Lei n.º 111/2015 passou a ter a seguinte redação (com o nosso destaque):

“1 - Ao fracionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei.

2 - A posse de terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de atos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.

3 - São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.

4 - Quando todos os interessados estiverem de acordo, as situações de indivisão podem ser alteradas no âmbito do emparcelamento rural ou da valorização fundiária, pela junção da área correspondente de alguma ou de todas as partes alíquotas, a prédios rústicos que sejam propriedade de um ou de alguns comproprietários.

5 - Da aplicação do disposto nos números anteriores não podem resultar prédios com menos de 20 m de largura, prédios onerados com servidão ou prédios com estremas mais irregulares do que as do prédio original.”

6) A acrescer, dispõe o artigo 1287.º do CC (nosso destaque) que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

7) Ora, do disposto nos números 2º e 3º daquele artigo 48.º resulta evidente que a intenção do legislador foi proibir o fracionamento, através de aquisição por usucapião, em casos como o dos presentes autos, em que a posse incidiu sobre parcelas de terreno de área inferior à unidade de cultura.

8) Portanto, sendo a redação da norma inequívoca e tendo a presente ação dado entrada em juízo após a entrada em vigor daquela lei, não se concebe como é que a proibição de fracionamento contida no artigo 1376.º do Código Civil não obsta à pretensão dos Autores.

9) Nem se diga, salvo o devido respeito por entendimento contrário, que tendo a usucapião efeitos retroativos à data do início da posse, será a lei vigente nessa data que indicará se pode haver fracionamento do prédio e se o mesmo for fracionado em violação da lei quais as consequências que daí decorrem.

10) É evidente que a intenção do legislador de 2019 foi precisamente impedir que, a partir da data de entrada em vigor daquela lei, fosse invocada a usucapião para se alcançar um fracionamento ilícito, independentemente da data de início da posse, entendimento este que é seguido pela Magistratura do Ministério Público e, pelo menos, pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

11) Face ao supra exposto, considerando o disposto no artigo 48.º n.º 2 e 3 da Lei n.º 111/2015, na redação conferida pela Lei n.º 89/2019, não poderia o douto Tribunal a quo reconhecer a aquisição do direito de propriedade por usucapião dos autores sobre parte do prédio rústico em discussão nos autos, porque a sua aquisição é contrária ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.

12) Salvo o devido respeito por entendimento contrário, o douto Tribunal a quo deveria, assim, ter interpretado a conjugação das normas contidas nos artigos 1287.º, 1376.º e 1379.º do Código Civil e 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, na redação conferida pela Lei n.º 89/2019, de 03 de setembro, no sentido de não poder ser reconhecida a aquisição do direito de propriedade por usucapião de parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura.

13) A sentença, além de padecer de erro de julgamento quanto à matéria de direito, por violação das citadas normas, é também em si nula, nulidade que expressamente se invoca para todos os efeitos legais, uma vez que não se encontra devidamente fundamentada, designadamente no que concerne ao disposto no n.º 3 do artigo 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto.

14) O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 1287.º, 1376.º, 1379.º, todos do Código Civil, no artigo 48.º da lei 111/ 2015 de 27/8, a Lei 89/2019 de 3 de Setembro e o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser declarada a nulidade das sentença e revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que julgue a acção totalmente improcedente, com o que se fará inteira justiça.

Contra-alegando, os autores, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a presente acção deu entrada em juízo no dia 13 de Agosto de 2019, isto é; antes da entrada em vigor da Lei n.º 89/2019, de 3 de Setembro, pelo que a mesma não é aplicável à situação sub judice.

E, ainda que assim fosse e com apelo a jurisprudência que cita, defendem que a data a relevar é a do início da posse, in casu desde 1995, pelo que, sempre, teria a acção de proceder.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC e;

B. Se o disposto no artigo 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2019, de 3 de Setembro, impede que seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, de uma parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura, ainda que a posse conducente à aquisição de tal direito se tenha iniciado e completado antes da entrada em vigor desta Lei.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. Na Conservatória do Registo Predial ... está registada uma propriedade composta de terra de cultura com videiras e outras árvores, com eira e palheiro, sita ao ..., limite de ..., freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com o caminho, do sul com FF, do nascente com casa de habitação do proprietário e caminho e do poente com o caminho, inscrita na matriz predial sob o artigo ...86 da freguesia ... e descrita na dita Conservatória sob o n.º ...72 da freguesia ....

2. O prédio rústico identificado no facto provado n.º 1, fazia parte do acervo de bens imóveis que foram objeto da partilha por óbito do pai do Autor, HH, tendo sido adjudicado, em 2 de Maio de 1984 à mãe do autor, II, também conhecida por JJ, por conta da sua meação.

3. Por escritura pública de doação celebrada no dia 29 de Setembro de 1988, no ... Cartório Notarial ..., a mãe do Autor, II, também conhecida por JJ, doou-lhe uma quarta parte (1/4), isto é, 2/8 (dois oitavos) do prédio rústico.

4. No ano de 1994, os autores compraram verbalmente a KK, irmão do autor, metade de uma quarta parte, ou seja, 1/8 (um oitavo) do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo ...86 da freguesia ..., de que este era comproprietário e que lhe tinha sido doado pela sua mãe e mãe do autor, II, também conhecida por JJ.

5. Os demais comproprietários eram então as irmãs do autor: CC, com 3/8 (1/4 doado por II e 1/8 adquirido ao irmão KK) e GG com 2/8 do prédio identificado no facto provado n.º 1.

6. Com a morte de GG, veio o réu EE comprar aos seus irmãos a quarta parte que a sua mãe tinha no prédio rústico melhor referido no facto provado n.º 1.

7. Pelo menos desde o ano de 1995, os autores, já como comproprietários de 3/8 do prédio rústico identificado no facto provado n.º 1 e conjuntamente com os então demais comproprietários, CC e marido e GG, procederam por comum acordo à divisão material e demarcação do prédio em questão, dividindo-o em três parcelas, ficando uma parcela definida para cada um deles.

8. A parcela que ficou para o autor inclui o antigo palheiro e terreno de cultivo de regadio.

9. A dita parcela foi totalmente vedada por um muro em pedra de granito, pelas paredes do palheiro construídas em pedra de granito, blocos de cimento e tijolo pré-existentes e por muro construído pelos autores em pedra de granito encimado por uma vedação com tubos de ferro e rede de arame revestida a plástico, no sentido norte/sul, desde a Rua ... até a um muro de suporte de terras que delimita a parcela de terreno que ficou a pertencer à irmã do autor, GG.

10. O prédio que os autores possuem está devidamente demarcado e autonomizado em relação aos prédios pertencentes aos réus.

11. O prédio que os autores possuem tem como confrontações: Norte com a Rua ..., Sul com EE, Nascente com CC e Poente com a Rua... e a configuração ilustrada na planta topográfica a fls. 55 a 57.

12. O prédio que os autores possuem é constituído por uma terra de cultivo de regadio, um barracão de arrumos, um galinheiro e um tanque, e tem a área total de 926 m2.

13. O prédio que os autores possuem há mais de 20 anos, vinha já sendo possuído pelos seus antepossuidores de forma ininterrupta e contínua, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com exclusão de quaisquer outros e na convicção de estar a ser exercido um direito próprio de proprietário.

14. Os autores lavram, estrumam, adubam o terreno de cultivo de regadio e nele semeiam batatas, cebolas, cenouras, feijão e outros produtos hortícolas.

15. Os autores plantaram nesse terreno várias árvores de fruto, como ameixoeiras, laranjeiras, pessegueiros, macieiras, tangerineiras, kiwis, diospireiro e castanheiro, das quais cuidam, podam e colhem os respetivos frutos.

16. Os autores plantaram ainda no prédio em juízo videiras que podam, sulfatam e colhem as uvas.

17. Os autores abriram nesse terreno um furo artesiano para captação de água destinada à rega das suas culturas, das árvores de fruto e das videiras e construíram um tanque em betão para a armazenar.

18. Os autores construíram no terreno um galinheiro onde criam aves de capoeira.

19. Os autores reconstruíram o antigo palheiro, alteando as paredes antigas que eram em pedra de granito, sobre as quais assentaram tijolos e blocos de cimento e colocaram um novo telhado de cobertura em chapas metálicas.

20. O antigo palheiro foi transformado num barracão de arrumos, onde os autores parqueiam o seu trator, guardam as alfaias agrícolas e armazenam algumas colheitas, como milho, feijão e outros produtos agrícolas.

*

ii) Factos não provados;

§ Que o prédio que vem sendo possuído pelos autores tem uma área inferior a 926m2, encontrando-se o barracão / palheiro implantado em parte da parcela possuída pelo réu EE.

A. Se a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.

O recorrente assaca à sentença recorrida a referida nulidade porquanto, no seu entender, a mesma não se encontra devidamente fundamentada, dado que não obstante o disposto no artigo 48.º da citada Lei n.º 89/2019, ainda assim, reconheceu a aquisição do invocado direito de propriedade, quando a tal obsta o ora mencionado preceito.

O artigo 615, n.º 1, al. b), do CPC), sanciona com a nulidade a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Para que a sentença sofra de nulidade de falta de fundamentação, é necessário que haja falta absoluta, quer relativamente aos fundamentos de facto quer aos de direito e não já uma justificação deficiente, incompleta ou não convincente – cf. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, a pág. 669.

Na decisão, descrevem-se as razões de facto e de direito que acarretaram a procedência da acção, bem como lhes foram aplicadas as normas legais atinentes e que ao longo da mesma se foram, uns e outros referindo, concluindo-se que se verificam os requisitos da posse, conducente à aquisição do invocado direito.

De resto, já no despacho saneador se decidiu a concreta questão da proibição do fracionamento.

O que o recorrente manifesta é o seu inconformismo quanto á decisão de mérito proferida na sentença recorrida, mas, como é bom de ver, isso não corporiza a aludida excepção, traduzindo-se, ao invés, na “frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida” – cf. Código GPS, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, 2020, a pág. 763.

Pelo que não se verifica a nulidade com fundamento com base na falta da fundamentação, quer de direito quer de facto.

Pelo que, nesta parte, o presente recurso tem de improceder.

B. Se o disposto no artigo 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2019, de 3 de Setembro, impede que seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, de uma parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura, ainda que a posse conducente à aquisição de tal direito se tenha iniciado e completado antes da entrada em vigor desta Lei.

Como resulta do anteriormente exposto, o recorrente pugna pela improcedência da acção, com o fundamento em que a usucapião, ainda que decorrido o prazo para poder operar, não se pode sobrepor à norma imperativa que decorre da actual redacção do artigo 1379.º do Código Civil, conjugada com o disposto no artigo 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2019, de 3 de Setembro.

Ou seja, entende o recorrente que, ainda, que preenchidos os requisitos que conduzem à aquisição do direito de propriedade, através da usucapião, de parcela de terreno com área inferior à da unidade de cultura, por força da nulidade de tal fracionamento, não opera a usucapião, entendendo-se esta proibição de fracionamento como a excepção prevista no artigo 1287.º do Código Civil, quando dispõe que  a posse do direito tido em vista, durante certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição de tal direito “salvo disposição em contrário”.

Isto é; a proibição de fracionamento resultante da nova redacção dada ao artigo 1379.º do Código Civil, é entendida como “a disposição em contrário” que paralisa a eficácia do exercício de poderes de facto, acompanhado da intenção do exercício do direito correspondente.

Abona, em favor de tal tese o decidido nos Acórdãos da Relação de Guimarães, nos processos 1167/18.7T8PTL.G1, de 5/12/19 e 4165/18.7T8VCT.G1, de 22/10/20, ambos disponíveis no respectivo sítio do Itij.

Contrapõem os recorridos, alicerçando-se no decidido nos Acórdãos do mesmo Tribunal da Relação, n.º 1050/18.6T8PTL.G1, de 21/5/20 e n.º 4020/19.0T8VCT.G1, de 14/1/21 e do STJ, de 24/10/19, Processo n.º 317/15.0T8TVD.L1.S2, disponíveis nos mesmos sítios dos anteriores, que a data que releva para efeitos da usucapião é a do início da posse e inexistindo, então, a actual cominação de nulidade de fraccionamento de parcela com área inferior à da unidade de cultura, a posse sobrepõe-se ao agora preceituado nos citados artigos 48.º, da Lei 111/2015 e 1376.º do CC.

Na sentença recorrida e tendo por base o já decidido em sede de despacho saneador, em que se julgou improcedente a nulidade da divisão que o réu contestante havia invocado, seguiu-se esta última tese, em função do que se reconheceu aos autores a aquisição do invocado direito de propriedade, através da usucapião, não obstante se tratar de parcela de terreno, com área inferior à unidade de cultura.

Como decorre do ora referido, no que a esta questão respeita, na jurisprudência, encontram-se decisões no sentido da inadmissibilidade da aquisição de direitos através da usucapião e outros (posição maioritária) que a admitem – uma resenha de tal divergência pode ver-se no Acórdão da Relação de Guimarães, de 14/1/21, acima já citado.

Tal posição era, também, a defendida por Castro Mendes, in Teoria Geral, 1979, Vol. II, pág. 235 e por P. de Lima e A.Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista E Actualizada, pág. 269.

No mesmo sentido e especificamente sobre esta questão, Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3.ª Edição, a pág. 526 que ali refere:

“…, se uma área de terreno entra na esfera do poder empírico dum sujeito, manifestando-se como sendo dono, ou seja, se ele assim dela se “apodera” (originariamente ou por vontade do tradens) – existe “posse” (…)

A eventual ilicitude ou imoralidade de tal “apoderamento” serão irrelevantes, pois, a posse é agnóstica (…). E, até, apesar da ilicitude ou imoralidade do título, a posse será beneficiada, com a característica de “titulada” (artigo 1259): e mesmo para efeitos de posse prescricional, se o título está registado (artigos 1294 e 1298). Isto é, em tema de posse ou de usucapião, a eventual ilicititude substantiva do título não macula: ao invés, até beneficia.

(…)

a aquisição do direito por usucapião é “originária”, ou seja, tem a sua “causa” na “posse”: e, no caso, existe a posse (a causa).

E, por sua vez, a razão da usucapião é dar satisfação ao interesse público da certeza da existência dos direitos reais sobre as coisas e da respectiva titularidade e de a conseguir através da respectiva prova – “pela posse”.

(…)

E em tema de destaque, na perspectiva da posse, o que existe é tão só um domínio de facto (…) unilateral ou derivado que se exerce sobre uma coisa, em termos de posse definida e autonomizada pelas fronteiras de facto, do próprio senhorio de facto.

E, em tema de usucapião é tão só uma aquisição do direito, á imagem do que se possui. E, uma aquisição originária, genética e endógena baseada tão só nessa causa (posse). Não se pode, pois, dizer que pela aquisição do direito (usucapião) se realize um destaque ou um loteamento: já que a coisa é possuída como autónoma e é “essa posse dessa coisa possuída, como autónoma”, que é “causa” do usucapião.”.

Posto isto, importa, agora, analisar os preceitos legais aplicáveis, a fim de aquilatar da que pensamos ser a solução a dar à questão sub judice que melhor com os mesmos se coaduna.

Não oferece dúvidas que a parcela sobre a qual os autores pretendem ser reconhecidos como proprietários, tendo, como tem, 926 m2 é inferior à unidade de cultura para a zona em que se localiza, cf. Portaria 202/70, de 21/4 (aqui aplicável atenta a dada do início da posse – 1995), revogada pela Portaria n.º 219/2016, de 9 de Agosto, que por sua vez foi alterada pela Portaria n.º 19/2019, de 15 de Janeiro.

Ora, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 1376.º do Código Civil, os terrenos aptos para cultura – como é o caso – não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País.

A sanção para a violação dos actos de fracionamento desconformes com o disposto no ora citado artigo 1376.º era a da anulabilidade – cf. artigo 1379.º, n.º 1, do CC, na sua redacção anterior (vigente em 1995, data em que se iniciou a posse – cf. item 7.º, dos factos provados), sendo conferida a legitimidade para a acção de anulação, ao MP ou a qualquer proprietário preferente, devendo a mesma ser intentada no prazo de 3 anos, contados desde a celebração do acto – cf. seus números 2 e 3.

Posteriormente, e no que ao caso interessa, com a publicação da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, no seu artigo 48.º, passou a dispor-se o seguinte:

“1- Ao fracionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei.”.

Concomitantemente, passou a dispor-se no artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil que “São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º”.

Mais recentemente, foi publicada a Lei n.º 89/2019, de 3 de Setembro, que deu nova redacção ao artigo 48.º da citada Lei 111/2015, que passou a ter a seguinte redacção:

“1 – Ao fracionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei.

2 – A posse de terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de actos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.

3 – São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.”.

Daqui resulta, desde logo e com maior relevo para a decisão do pleito que nos ocupa que, enquanto na redacção vigente ao tempo ao tempo do início da posse dos autores sobre a parcela em causa a sanção para o fracionamento efectuado em violação do disposto no artigo 1376.º do Código Civil era a anulabilidade (sublinhado nosso), a partir da Lei 111/2015, passou a ser a da nulidade (igualmente, sublinhado nosso).

Como regra, nos termos do disposto no artigo 12.º do Código Civil, a lei só dispõe para o futuro e ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular, com a excepção a que se alude no seu n.º 2.

Por outro lado, e atendendo a que a lei 89/2019, tem caráter interpretativo ao consagrar a nulidade dos actos de fracionamento em causa (dado que a referida querela jurisprudencial se prolongou na vigência da Lei 111/2015), a mesma, nos termos do disposto no artigo 13.º do Código Civil não tem aplicação retroactiva para além do início de vigência da Lei 111/2015 (lei interpretada).

Posto isto e dado que, como acima já se referiu, o início da posse dos autores sobre a parcela em causa se iniciou em 1995, temos de considerar que a sanção para o fracionamento daí decorrente era a da anulabilidade, a arguir no prazo de três anos, do que não há notícia nos autos de que isso tenha sucedido.

Por outro lado, como decorre do disposto nos artigos 1288.º e 1317.º, al. c), ambos do Código Civil, invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse, adquirindo-se o direito de propriedade no momento em que se iniciou a posse – in casu, em 1995.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 02 de Maio de 2019, Processo n.º 514/07.1TBGDL.E1.S1, disponível no respectivo sítio do Itij, estando “em causa apreciar se o reconhecimento do direito de propriedade (…), adquirido por usucapião, viola regras legais imperativas, considera-se que o momento que releva para efeitos de apurar se tal violação ocorre é a data do início da posse”.

No mesmo sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal de 01 de Março de 2018, Processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2.

Sendo certo que as regras que conformam a posse têm – tais como as que regulam o fraccionamento dos prédios rústicos e as que fixam as traves mestras do urbanismo – um interesse público, com vista a assegurar quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre os bens sobre que incide a posse e respectivo titular, quer permitir, através da usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e à sua titularidade – neste sentido Durval Ferreira, ob cit., a pág. 494.

Como referia o Prof. Orlando de Carvalho, a posse tem, na sua génese, uma atitude/intenção “anti-jurídica”, que visa cimentar relações jurídicas baseadas na posse que, ao fim de determinado período de tempo e desde que verificadas certas condições, tornam tal actuação (de início anti-jurídica) como conforme à ordem jurídica, reconhecendo esta a eficácia da posse. Não sendo a posse que acompanha o direito, mas este que se “conforma/acompanha” a posse.

Assim sendo e desde que verificados os requisitos da posse conducentes à aquisição do direito de propriedade a que se arrogam os autores sobre a parcela em questão, nada impede, não obstante se tratar de área inferior à unidade de cultura, porque, como acima referido, a sanção era a da mera anulabilidade, não arguida, nos termos em que o poderia ser, igualmente, acima já explicitados, a eficácia de tal posse.

E nem a tal obsta um dos argumentos utilizados pelos defensores da tese contrária, de que a expressão “salvo disposição em contrário” ínsita no artigo 1287.º do Código Civil, inclui a proibição do fraccionamento de parcelas com área inferior à unidade de cultura, nos moldes consagrados no artigo 1376.º do mesmo Código.

Isto porque, como se refere no Acórdão do STJ, ora por último citado, por referência à aqui aplicável redacção deste artigo 1376.º, “inexiste qualquer norma excepcional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre as parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião, ou seja, que as mesmas não podem ser adquiridas por usucapião”.

Outra, salvo o devido respeito, não pode ser a solução, atenta a função, natureza e objectivos da posse, acima referidos, que conduz à aquisição de um determinado direito, que nasce na esfera do titular, de forma originária, isto é, independentemente do existente na esfera do anterior(es) titular(es).

Efectivamente, é pacífico que a usucapião mais não é do que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, desde que se revista de determinadas características e durante certo período temporal – cf. artigo 1287.º CC.

Por seu turno, a posse, nos termos do artigo 1251.º do mesmo Código é o poder que se manifesta (exercício de poderes de facto) sobre uma coisa, em termos equivalentes ao direito de propriedade ou de outro direito real, traduzindo-se no corpus: elemento material, que mais não é do que a assunção de poderes de facto sobre a coisa e no animus: o exercício de tais poderes de facto como titular do respectivo direito de propriedade ou de outro direito real.

Como é sabido, o nosso Código Civil, consagrou uma concepção subjectiva da posse, no sentido de que não basta o exercício de poderes de facto, de dominialidade sobre a coisa, exige-se, também, a intenção de os exercer pela forma correspondente à do direito real invocado.

A usucapião traduz-se numa forma originária de aquisição do direito, ou seja, em que o titular recebe o seu direito independentemente do direito do anterior titular, pelo que para a mesma poder ser eficaz necessário se torna avaliar se existem actos de posse e se os mesmos foram exercidos em moldes conducentes à aquisição do direito, isto é com a intenção de corresponder ao direito real invocado, in casu, o direito de propriedade, durante um certo lapso de tempo e com determinadas características.

No que às características da posse tange, de acordo com o disposto nos artigos 1258.º a 1262.º, do CC, pode a mesma ser titulada/não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, o que tem relevância para a quantificação do prazo reputado de suficiente para que se verifique a usucapião – cf. artigos 1294.º a 1296.º, CC, sendo que o prazo para que a usucapião se possa iniciar não se conta enquanto permanecer uma situação de posse violenta ou tomada ocultamente – cf. dispõe o artigo 1297.º CC.

Ora, de acordo com a factualidade provada e constante dos itens 7.º a 20.º dos factos provados, demonstrou-se que os autores, passaram fruir da dita parcela, nos moldes e pelo período de tempo, ali referidos, pelo menos, desde 1995, de forma a adquirirem o respectivo direito de propriedade, através da usucapião.

Como escreveu Orlando de Carvalho, in RLJ, n.º 3780, a pág. 66, para que se verifique o exercício de poderes de facto sobre uma coisa não existe a necessidade de um contacto físico com a coisa, para tal bastando que “… a coisa entre na nossa órbita de disponibilidade fáctica, que sobre ela podemos exercer (querendo), poderes empíricos; basta a entrada factual de uma coisa em certa órbita de senhorio ou de interesses.”.

Ou, como escreve Durval Ferreira, in Posse e Usucapião, 3.ª edição, Almedina, 2008, a pág.s 152 e 155, são elementos do corpus, todos os elementos materiais quer da coisa, quer da sua relação estancial com um sujeito ou de espaço que, á luz do consenso público permitam, relevantemente, a valoração, o entendimento, de entre o sujeito e a coisa existir uma relação de senhorio de facto, à imagem de uma relação empírica de domínio e para que a coisa entre na disponibilidade fáctica de um sujeito, deve atender-se à energia do acto de apreensão, á sua perdurabilidade e á natureza do direito que se pretende adquirir.

Para o que basta se o acto ou série de actos têm, segundo o consenso público, a energia suficiente para significar que, entre uma coisa e determinado indivíduo, se estabeleceu uma relação duradoura.

Idêntica opinião é expressada por M. Henrique Mesquita, in Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, edição policopiada, Coimbra, 1967, pág.s 96 e 97.

Na mesma esteira, o Acórdão do STJ, de 11/12/2008, Processo 08B3743, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj, segundo o qual “… a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o efeito não implica necessariamente que ela se traduza em actos materiais, pelo que há corpus da posse enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito em termos de ele poder, querendo, renovar a actuação material sobre ele.”.

No entanto, para que a posse possa conduzir à usucapião, tem de revestir determinadas características (as descritas no artigo 1258.º do CC), em que se inclui a exigência de ser uma posse pacífica e que tem de ser complementada com a prática reiterada dos actos de posse, de acordo com o estatuído no artigo 1263.º, alínea a), do Código Civil.

Para além de que, como referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista E Actualizada (Reimpressão), Coimbra Editora, 1987, a pág.s 25 e 26, sem a prática reiterada e pública dos actos de posse, nos termos do artigo 1263.º, al. a), do CC, a posse não existe, nem se constitui, valendo esta alínea como um complemento ou uma confirmação do conceito de posse expresso no artigo 1251.º (do Código Civil).

Faltando, desde logo, o requisito de a posse ser pacífica, não pode esta conduzir à usucapião, “não é boa para usucapião”, nos termos do disposto no artigo 1297.º do CC, dado que como neste se determina a posse só começará a contar para efeitos de usucapião quando revestir a natureza/característica de pacífica – veja-se, Durval Ferreira, ob. cit., a pág.s 319 e 507.

A usucapião tem em vista a resolução do conflito de interesses que surge entre o titular inerte do direito de propriedade, que dispõe apenas de um poder jurídico simples (ou tão só formal-jurídico), porque desprovido da correspondente posse (causal) – e o sujeito activo – ou seja, o possuidor formal ou autónomo e acima de tudo, satisfazer a exigência de que, após um certo lapso de tempo, a situação de direito se adeqúe à situação de facto, que a posse é de harmonia com o «ordo ordinatus querido pela lei», assim se visando almejar a «ordenação dominial definitiva», ou seja que se conjuguem na mesma pessoa a titularidade do direito (maxime de propriedade) e a correlativa posse causal, com a disponibilidade fáctica ou empírica que a caracteriza como «faculdade jurídica secundária» englobada no conteúdo desse direito, consagrando-se a posse como um caminho para a autêntica dominialidade, assim acabando com a indesejada discrepância entre o direito real, v.g. de propriedade e o poder de facto a que o mesmo tende, que por vezes pode ser conflituosa – neste sentido, veja-se A. Vassalo de Abreu, Titularidade Registral Do Direito De Propriedade Imobiliária Versus Usucapião (“Adverse Possession”), Coimbra Editora, Março de 2013, pág.s 145 a 147.

Como acima referido, a posse exercida durante certo lapso de tempo conduz à aquisição do direito correspondente, nos termos consignados, quanto aos imóveis, nos artigos 1293.º e seg.s do Código Civil.

Assim, uma vez que os autores conseguiram provar os factos tendentes ao exercício de poderes de facto por forma correspondente ao invocado direito (de propriedade), nos termos expostos, adquiriram, através da usucapião, o direito de propriedade sobre a dita parcela de terreno, que, assim, se autonomizou do prédio de que fazia parte, porque os descritos actos de posses praticados pelos autores, se limitaram à mesma e não à totalidade do prédio de que, inicialmente, fazia parte.

Consequentemente, igualmente, quanto a esta questão, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 22 de Novembro de 2022.