Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
357/21.0T8SPS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO NÃO PATRIMONIAL
EXCLUSÃO DE DANOS CONSTANTE DA APÓLICE DE SEGURO
NULIDADE DA CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
Data do Acordão: 06/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE S. PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 4.º DA PORTARIA N.º 377/2008, DE 26/5
ARTIGOS 12.º E 15.º DO DL N.º 446/85, DE 25/10
Sumário: I - O dano não patrimonial não se reconduz ao dano meramente moral traduzido apenas em sequelas psíquicas, antes pode abranger danos decorrentes de afetações físico-materiais e biológico-corporais das quais possam dimanar prejuízos mais abrangentes não diretamente mensuráveis em termos monetários, mas  que afetam a vida do lesado,  vg. em termos de bem estar, saúde, longevidade,  afirmação laboral e integração social.

II - Destarte, a exclusão, num contrato de seguro por acidentes de viação, das consequências que  se traduzam em «Perturbações ou danos exclusivamente do foro psíquico», não afasta o direito da autora a  danos não patrimoniais na aludida definição, se ela alegou factos que, a provarem-se, a podem consubstanciar.

III - Ademais, tal exclusão, porque impeditiva de um direito que a lei geral concede, implicaria um intolerável desequilíbrio nas prestações dos outorgantes, e, assim, por não justa e equitativa, sendo contrária à boa fé, seria nula – artºs 12º e 15º do DL n.º 446/85, de 25.10.

Decisão Texto Integral:

Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: Rui Moura
2ª Adjunto: Fonte Ramos


ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA instaurou contra L... S.A., ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Invocou um acidente de viação, danos que sofreu no mesmo e a celebração de contrato de seguro com a ré.

Pediu a condenação desta a pagar-lhe certas quantias a título de danos patrimoniais e, ainda, a condenação a pagar-lhe o montante de 30 mil euros como compensação por danos não patrimoniais.

Em sede de audiência prévia foi, para além do mais e no que ora interessa, proferido o seguinte despacho:

«Veio ainda a A. peticionar o pagamento de 30.000 euros a título de danos não patrimoniais, como compensação de dores, tristezas e angústias, que alegadamente experimentou e que ainda vivenciaria.

Confunde aquela, salvo o devido respeito, realidades díspares: o que seja, por um lado, o ressarcimento de danos que tenha sofrido e que tenham sido causados por terceiro, no âmbito dos quais lhe assistiria o direito a ver-se ressarcida de danos de natureza patrimonial como, outrossim, a ser compensada daqueles de natureza não patrimonial (artº 496º, nº 1 do CC); por outro o âmbito do direito que compete à contraparte da aqui Ré no contrato de seguro em função da emergência do risco ou evento aleatório prevenido naquele.

De facto, o pagamento ou ressarcimento de tal importância não apresenta qualquer cobertura contratual. Ou seja, A. e Ré nada acordaram a propósito da emergência ou verificação de tais situações ou afectações negativas do ponto de vista psicológico, e aliás, diversamente, mostra-se convencionada a sua exclusão do rol de consequências que poderiam dar origem à prestação a cargo da seguradora. Assim, e por um lado, no âmbito das coberturas sistematizadas sob a garantia de acidentes pessoais (morte, incapacidade permanente, incapacidade temporária absoluta em caso de internamento e despesas de tratamento), nada é referido e, por isso, nada foi acordado ou convencionado quanto ao pagamento de qualquer prestação em função da verificação de danos do tipo em apreço.

Diversamente, da cláusula referente às exclusões (cláusula 4ª do sobredito ponto 10), consta, no seu nº 2, que “Para além do disposto no número anterior, ficam ainda excluídas as consequências de acidentes que se traduzam em: … c) Perturbações ou danos exclusivamente do foro psíquico”.

Ou seja, independentemente da experimentação, pela A., de danos não patrimoniais na sequência do acidente (e dificilmente se pode colocar em crise que alguns tenham sobrevindo), como assim do grau ou natureza desses danos, os mesmos não só não se mostram convencionados como susceptíveis de gerarem a prestação a que a seguradora se vinculara, como expressamente se encontram excluídos do âmbito de tal prestação.

Não foi essa – ‘ressarcimento’ (lato sensu) de danos não patrimoniais – a “prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato…” e, consequentemente, não se encontra a Ré obrigada a qualquer pagamento com tal fundamento. Não se está, reitera-se, e contrariamente ao que aparenta perpassar pela tese da A., perante uma qualquer situação de responsabilidade civil para cujo ressarcimento a Ré seguradora se obrigara. No que às coberturas facultativas diz respeito encontramo-nos numa diferente sede jurídica, isto é, não naquela da responsabilidade civil, mas no âmbito contratual, cujas convenções devem ser pontualmente cumpridas, todavia na medida do que tenha sido acordado. E a prestação pretendida da Ré pela A. (pagamento de danos não patrimoniais) não se mostra acobertada pelo manto do acordo celebrado entre as partes.

Termos em que julgo improcedente o pedido de pagamento da importância de 30.000 euros (travessão 4º do petitório), pelo que absolvo a Ré do mesmo»

2.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A recorrente celebrou com a R. L... S.A., um contrato de seguro de responsabilidade automóvel, o qual, incluía como cobertura, a invalidez permanente do condutor, e ao abrigo de tal contrato de seguro - de acidentes pessoais referente à pessoa da ora recorrente - veio peticionar o pagamento de valores correspondentes às sequelas de foro ortopédico que lhe conferem uma incapacidade permanente de 8 pontos, e ainda, de danos não patrimoniais/morais, por ter sofrido e sofrer de dores físicas que, ainda hoje se mantém, e afectações negativas do ponto de vista psicológico e emocional.

2. Por decisão de 12 de julho de 2022, veio o Tribunal a quo, julgar improcedente o pedido de pagamento da importância a título de danos não patrimoniais/morais e absolver a R. L... S.A. de tal pedido, considerando, em suma, que: “ (…) Assim, e por um lado, no âmbito das coberturas sistematizadas sob a garantia de acidentes pessoais (morte, incapacidade permanente, incapacidade absoluta em caso de internamento e despesas de tratamento), nada é referido e, por isso, nada foi acordado ou convencionado quanto ao pagamento de qualquer prestação em função da verificação de danos do tipo em apreço. Diversamente, da clausula referente às exclusões (clausula 4ª do sobredito ponto 10), consta, no seu nº 2, que “Para além do disposto no número anterior, ficam ainda excluídas as consequências de acidente que se traduzam em: … c) Perturbações ou danos exclusivamente do foro psíquico”.

3. É contra esta decisão que a ora recorrente se insurge, pois que, considera que, tal interpretação do contrato de seguro, para além de não ter qualquer correspondência no texto da apólice, é ainda, contrária à índole do mesmo contrato.

4. Sendo o cerne do presente recurso saber se tais danos não patrimoniais/morais se encontram ou não cobertos pelo seguro contratado pela recorrente.

5. A ora recorrente considera que, tais danos não estão expressamente excluídos, o que resulta, nomeadamente da leitura da 4ª clausula do ponto 10 (acidentes pessoais), e bem assim, parece resultar do entendimento da própria Ré, aquando da sua contestação, quando vem apenas referir que tais danos (natureza não patrimonial/moral) não se encontram garantidos, por não terem sido convencionados, não fazendo alusão, que tais danos estão, efectiva e expressamente, excluídos.

6. Mas mais, considera a ora recorrente que, a terminologia usada na referida alínea c) - “exclusivamente” - serve, para afastar as perturbações/danos do foro psíquico, quando esta consequência fosse a exclusivamente decorrente do acidente, isto é, quando a pessoa segura não tivesse sofrido lesões corporais, mas tão só perturbações ou danos do foro psíquico.

7. Não sendo o caso dos autos, considerando que, a ora recorrente apresenta, também, lesões corporais em consequência do acidente de viação, nomeadamente, do foro ortopédico.

8. Mas mais, a ora recorrente considera que a referida exclusão - “c) Perturbações ou danos exclusivamente do foro psíquico” - não se reconduz, nem pode reconduzir, aos danos não patrimoniais/morais.

9. Isto porque, nos danos não patrimoniais, inclui-se o sofrimento físico, sofrimento este que, consideramos não ser, de todo, uma perturbação/dano exclusivamente do foro psíquico.

10. E, assim, incluir as dores/sofrimentos físicos que a ora recorrente padeceu e padece, na referida exclusão da alínea c) só faria sentido se, os danos/perturbações de foro psíquico fossem sinónimo de danos não patrimoniais/morais, o que manifestamente não é o caso.

11. O que é certo é que, nem as condições gerais do seguro, nomeadamente a sua cláusula 4.ª e nem as condições particulares, excluem expressamente os danos não patrimoniais/morais resultantes das coberturas devidas por morte e invalidez permanente.

12. E se dúvidas houvessem, porque a lei impõe a absoluta e ostensiva clareza do contrato de seguro em matéria de exclusões da cobertura, o contrato de seguro deve ser interpretado contra a parte que o redigiu e enunciou as respectivas cláusulas, mormente cláusulas contratuais gerais, devendo, na dúvida, prevalecer o sentido mais favorável ao aderente.

13. Devendo, assim, concluir-se que inexiste qualquer exclusão quanto a este tipo de danos não patrimoniais/morais.

14. A decisão recorrida errou na interpretação e aplicação das normas constantes dos artigos 175º e 210º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril, artigos 236º a 238º do Código Civil, artigos 10º e 11º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.

Contra alegou a ré pugnando pela manutenção do decidido.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é  a seguinte:

(i)legalidade da decisão que absolveu a ré do pedido de danos não patrimoniais.

4.

Apreciando.

4.1.

O dano moral, hoc sensu, não se confunde com o dano não patrimonial.

Este é mais abrangente.

Na verdade:

«O dano diz-se não patrimonial quando a situação vantajosa lesada tenha natureza espiritual; o dano não patrimonial é o dano insusceptível de avaliação pecuniária, reportado a valores de ordem espiritual, ideal ou moral; é o prejuízo que não atinge em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. Há uma ofensa a bens de carácter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro» -Ac. RC de 21.03.2013, p. 793/07.4TBAND.C1 in dgsi.pt.

Tal amplitude e abrangência dimana ainda  de certos textos legais, como, vg., da Portaria 377/2008, de 26 de Maio, o qual estatui no seu artº 4º, sob a epígrafe:

 «Danos morais complementares

Além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado por danos morais complementares, autonomamente, nos termos previstos no anexo i da presente portaria, nas seguintes situações:

a) Por cada dia de internamento hospitalar;

b) Pelo dano estético;

c) Pelo quantum doloris;

d) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente absoluta para a prática de toda e qualquer profissão ou da sua profissão habitual;

e) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua actividade profissional habitual;

f) Quando resulte uma incapacidade permanente absoluta para o lesado que, pela sua idade, ainda não tenha ingressado no mercado de trabalho»

Assim, o dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo o chamado quantum doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas; o “dano estético”, que simboliza, nos casos de ofensa à integridade física, o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões; o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem-estar e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem-estar da vítima; o pretium juventutis, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida – cfr. Ac. do STJ de 18.06.2009, dgsi.pt, p. 1632/01.5SILSB.S1.

Acresce que a indemnização por danos não patrimoniais reveste uma natureza acentuadamente mista.

 Por um lado, visa, mais do que indemnizar, reparar os danos sofridos pela pessoa lesada; pretende-se proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material - a única possível -, que lhe permite obter prazeres ou distrações - porventura de ordem puramente espiritual - que, de algum modo, atenuem o desgosto sofrido: não consiste num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris.

Por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.

4.2.

Assim norteados, e atentando-se no teor do contrato de seguro em causa, verifica-se, desde logo, e versus o entendido na decisão, que a indemnização pelos danos não patrimoniais, com a abrangência com que devem ser perspetivados, não se encontra excluída do mesmo.

Nele apenas se excluem as «perturbações ou danos exclusivamente do foro psíquico»

Mas, como se viu, os danos não patrimoniais vão para além desta vertente e sequela meramente mental ou psíquica.

E a recorrente alega, na sua  pi. factos bastantes atinentes a afetações,  mazelas e sequelas físicas que consubstanciam, vg., um dano corporal ou biológico com consequências nocivas tanto na vertente patrimonial como não patrimonial.

Este dano biológico é um dano autonomamente indemnizável, tanto na vertente patrimonial, como na não patrimonial, se necessário por recurso ao juízo équo – cfr., entre outros, o Ac da RC de 21.03.2013, p. 793/07.4TBAND.C1; AC STJ de 21.01.2016, p. 1021/11.3TBABT.E1.S1 e Ac. do STJ de 17.01.2023, p. 5986/18.6T8LRS.L1.S1, todos in dgsi.pt.

Mesmo que assim não fosse ou não se entenda, a aludida exclusão seria proibida, porque contrária à boa fé, e, assim, nula – artºs12º e 15º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.

Na verdade, a um lesado num acidente de viação não pode ser coartada, cerce e liminarmente, a possibilidade de ser indemnizado por danos de natureza não patrimonial  que são em tese geral concedidos pela lei e que se assumam como a consequência normal, direta e até inelutável,  desse acidente.

A assim ser, estar-se-ia a ferir intoleravelmente o desejado equilíbrio contratual e a correspetividade e proporcionalidade das inerentes prestações: a do segurado  em pagar o valor do prémio anuído e a da seguradora em indemnizar/compensar o segurado pelos prejuízos, ademais atinentes à afetação física e psíquica da pessoa do lesado, que sejam  normal e típica emanação do sinistro verificado.

O que a seguradora tem direito, dentro do aceitável e razoável, é definir os limites do quantum indemnizatório e em função do qual o montante do prémio do seguro é fixado.

Mas não pode cercear ao segurado o direito de aceder a indemnizações que a lei geral em tese lhe concede, máxime as de jaez não patrimonial, essencialmente atinentes à pessoa do lesado.

Isto não obstante tais indemnizações  poderem comportar o risco que a ora recorrida quer evitar: serem de difícil e possível aleatória  avaliação pecuniária, porque definidas em função da equidade, critério  algo contingente e incerto, e poderem implicar  valores e com os quais ela não concorde, porque tidos por elevados.

Mesmo que assim possa acontecer,  tal  insere-se dentro dos riscos, ainda admissíveis, da atividade seguradora que ela voluntáriamente abraçou.

Riscos estes que, aliás, são, até certo ponto, minimizados pela atividade jurisprudencial, a qual também tem de se reger e decidir em função de critérios de justiça comparativa ou relativa.

A autonomia da vontade das partes na definição do conteúdo dos contratos tem -  por razões de equidade e justiça social, numa comunidade  como aquela em que vivemos e cujos valores clamam que os interesses próprios  de um dos contraentes não devem prevalecer, total e atribiliáriamente, sobre os interesses da contra parte, máxime quando esta se apresenta algo fragilizada no iter negocial e se limita a aderir sem, em termos substanciais, ter lido e interiorizado todo o conteúdo de uma plêiade de cláusulas pré definidas -, de ter limites. 

Destarte, e nesta senda, reitera-se,  não pode a seguradora, a seu bel talante, com base em tal possibilidade de indemnizações tidas por desmesuradas, impedir, cerce, liminarmente, e de todo em todo, o segurado, de receber uma indemnização, por  danos não patrimoniais, a qual, presentes os seus pressupostos factuais, é - tanto em tese geral, como na economia do contrato, com o seu teor razoável e sensatamente  perspetivado, como é mister dever verificar-se -, da mais elementar justiça e equidade que possa receber.

Procede, brevitatis causa, o recurso.

(…)

 6.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogar a decisão, e ordenar o prosseguimento dos autos com a consideração da factualidade pertinente alegada pela autora, a qual, a provar-se, possa consubstanciar ou ter interesse para o pedido de danos não patrimoniais na sua definição/âmbito/abrangência supra aludidos.

Custas recursivas pela recorrida.

Coimbra, 2023.06.27.