Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1263/16.5T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: REGIME DE BENS
CASAMENTO
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Data do Acordão: 03/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS940, 1722, 1723, 1724, 1725 CC, 8 CSC
Sumário: 1. No regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos na constância do matrimónio presumem-se comuns.

2. A participação social resultante da intervenção de apenas um dos cônjuges na constituição de uma sociedade e em que a respetiva entrada foi feita com dinheiro do pai do único cônjuge interveniente, constitui bem próprio deste.

Decisão Texto Integral:         





                                                                                       

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

A (…) intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra J (…),

pedindo a condenação do Réu a reconhecer que a quota de €2.000,00 da sociedade M (…) & Filhos, Lda., é bem comum do extinto casal constituído por autora e réu.

Para tanto alega, em suma, que aquela sociedade foi constituída durante a constância do matrimónio de A. e R., tendo o casal entrado para aquela sociedade com o valor de €2.000,00 de dinheiro de ambos para pagamento da respetiva quota.

O Réu apresenta contestação, alegando ter sido o seu pai quem pagou os €2.000,00 da sua quota, tal como pagou os €2.000,00 da quota do seu irmão na mesma sociedade, constituindo estas quantias doações do pai aos seus filhos, pelo que os respetivos cônjuges, casados no regime da comunhão de adquiridos, nenhum direito têm a este dinheiro ou a esta quota, concluindo pela total improcedência da ação.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo o réu do pedido.


*

Não se conformando com tal decisão, a autora dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

 

1.ª) Andou mal o Tribunal de Primeira Instância na interpretação dos artigos 342.º, 350.º, 1722.º, 1723.º,1724.º e 1725.º todos do Cód. Civil, que aplicou incorretamente;

2.ª) A forma de aquisição da quota não reúne nenhum dos elementos da doação tal como ela vem definida no Cód. Civil – cfr. art.º 940.º e ss -, mas como tal foi incorretamente classificada na sentença em crise;

3.ª) Ao classificar como doação a forma de aquisição da quota em causa nos autos a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 452.º e ss. 940.º e ss., 874.º e ss. e 1245.º e ss. todos do C.C.;

4.ª) Padece a sentença de nulidade, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alíneas b) e c).

5:ª) Aliás a mesma nem sequer faz uma análise crítica da prova.

6.ª) Padecendo de obscuridade e contradição da decisão da matéria de facto, bem como de falta de motivação, tornando-a mesmo ininteligível.

7.ª)Tendo em conta os depoimentos supra transcritos, que se dão aqui por reproduzidos, nunca poderia ser dado como não provado que a quota da sociedade tenha sido adquirida com dinheiro do casal.

8.ª) Os depoimentos são manifestamente contraditórios e a douta sentença, na sua motivação, apresenta declarações que não foram prestadas em sede de julgamento.

9.ª) Era ao Réu que incumbia ilidir a presunção da quota ser bem comum do casal.

10.ª) Nada desta matéria foi levada aos factos provados.

11.ª) Pelo que deveria a ação ser julgada procedente, nos precisos termos peticionados.

Nos termos expostos e nos melhores de direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando a douta sentença da 1.ª instância nos precisos termos constantes nas conclusões.


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Pelo Réu foram apresentadas contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 657º do CPC, in fine, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidades.
2. Impugnação da matéria de facto.
3. Se é de alterar o decidido.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidades

A apelante invoca as nulidades previstas nas als. b) e c), do art. 615º do CPC, alegando que a sentença da 1ª instância padece de “obscuridade e contradição da decisão da matéria de facto, bem como de falta de motivação (da matéria de facto), tornando-a ininteligível”.

Não concretizando a apelante onde residirá a “obscuridade” e a “contradição” da matéria de facto, e tendo o juiz a quo exposto os motivos pelos quais julgou determinados factos como “provados” ou como “não provados” – nomeadamente o facto sob impugnação, respeitante à proveniência do dinheiro utilizado para o preenchimento da participação social –, não se pode reconhecer a verificação das invocadas nulidades.


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2. Impugnação da matéria de facto

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Para que o tribunal se encontre habilitado para proceder à reapreciação da prova, o artigo 640º, do CPC, impõe as seguintes condições de exercício da impugnação da matéria de facto:

1 – Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevante;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

A impugnação da matéria de facto que tenha por fundamento a errada valoração de depoimentos gravados, deverá, assim, sob pena de rejeição, preencher os seguintes requisitos:

a) indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, que deverão ser enunciados na motivação do recurso e sintetizados nas conclusões;

b) indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

c) indicação, ou transcrição, exata das passagens da gravação erradamente valoradas. 

Estes requisitos visam assegurar a plena compreensão da impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, mediante a identificação concreta e precisa de quais os pontos incorretamente julgados e de quais os motivos de discordância, de modo a que se torne claro com base em que argumentação e em que elementos de prova, no entender do impugnante, se imporia decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal.

Tais exigências surgem como uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo[1], assegurando a seriedade do próprio recurso intentado pelo impugnante.


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Os requisitos básicos para o conhecimento da impugnação deduzida à decisão proferida relativamente a algum ponto da matéria de facto são a identificação concreta do facto que o apelante entende estar mal decidido e qual a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida relativamente a tal matéria.

No corpo das suas alegações de recurso, depois de reproduzir algumas passagens de determinados depoimentos que considera relevantes, a Apelante sustenta que “o tribunal nunca poderia ter dado como não provado que a quota não[2] tenha sido adquirida com dinheiro de casal”.

De tal alegação deduzimos que a Apelante/autora pretenderá que o facto descrito em segundo lugar, nos factos que o tribunal deu como “não provados” – a quota nessa sociedade foi adquirida com dinheiro do casal” – deveria ter sido dado como “provado”.

Contudo, antes de ingressarmos na apreciação da impugnação deduzida pela autora haverá que chamar a atenção de que, tratando-se de uma participal social adquirida na constância do matrimónio, presumir-se-á comum, por força do artigo 1724º do Código Civil, pelo que, “caberá ao cônjuge que pretenda demonstrar a qualidade de bem próprio o ónus de provar o contrário por verificação de uma das exceções previstas na lei”[3].

Ou seja, para que a autora/Apelante veja reconhecida a sua pretensão à identificada quota como bem comum, é suficiente que nos autos não se provem os factos alegados pelo Réu como levando à sua qualificação como bem próprio, ou seja, quem terá entrou com o capital social para a sociedade terá sido o seu pai.

E se, no momento em que se determina qual a matéria que deverá ser objeto de instrução [enunciação dos temas de prova, artigo 596º, nº1, CPC] – de onde veio o dinheiro necessário para a sua entrada na sociedade, ou seja, se a quota foi adquirida com dinheiro do casal ou com dinheiro dado pelo pai do Réu –, o julgador não necessita de se preocupar com a distribuição do ónus da prova[4], já assim não será, no momento de apreciação da prova, ao determinar quais os factos a selecionar para dar como “provados” ou “não provados”.

Assim sendo, relativamente à matéria sob a impugnação e tendo em consideração as referidas regras de distribuição do ónus da prova, o facto que o tribunal terá de apreciar para o efeito de o dar como “provado”, ou como “não provado” é se a participação do réu marido na referida sociedade foi adquirida com dinheiro proveniente do pai deste.

Passemos então à reapreciação da decisão proferida quanto a tal matéria.

(…)

Assim sendo, e julgando improcedente a impugnação deduzida pelo Apelante relativamente à matéria em apreço, será de dar como provado o seguinte facto:

13. Quem entrou com o capital necessário para a aquisição da quota em nome do Réu foi o seu pai.


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A. Matéria de Facto
São os seguintes, os factos dados como provados, na sentença recorrida, com as alterações aqui introduzidas na sequência da impugnação deduzida pelos Apelantes:
 1. - A Autora e o Réu contraíram casamento no dia 12 de abril de 1997, sem convenção antenupcial.
2. - A Autora e o Réu requereram o divórcio por mútuo consentimento.
3. - Processo esse que correu termos na Conservatória do Registo Civil de (...) , com o número (...) /2012.
4. - Foi proferida decisão de divórcio, entre Autora e Réu, em 27 de novembro de 2012, que transitou de imediato em julgado.
5. - Na constância do matrimónio, o R. constituiu em 30 de novembro de 2011, em conjunto com M (…), casada com M (…), na comunhão geral de bens, e A (…), casado com J (…) na comunhão de adquiridos, a sociedade M (…) & Filhos, Lda..
6. - A referida sociedade tem um capital social de €10.000,00, com sede na (...) e tem como objeto social o comércio a retalho de produtos alimentares em estabelecimentos especializados.
7. - Aquando da sua constituição, o capital social ficou dividido entre os sócios da seguinte forma:
a) M (…), casada com M (…), na comunhão geral de bens, com uma quota de €6.000,00;
b) A (…), casado com J (…), no regime da comunhão de adquiridos, com uma quota de €2.000,00 e
c) J (…), aqui R., casado com A (…), na comunhão de adquiridos, com uma quota de €2.000,00.
8. - Na sequência do processo de inventário instaurado pela ora A., para partilha dos bens comuns do extinto casal, foram as partes remetidas para os meios comuns quanto à propriedade da quota de €2.000,00.
9. - Processo esse que correu termos em Pombal – Instância Central – 2.ª Sec. Família e Menores – J3 da Comarca de Leiria com o n.º 2572/13.0TBLRA.
10. - Tendo a referida decisão sido proferida em 18.03.2015.
11. - Isto porque a A. reclamou a quota como bem comum do extinto casal e o Réu não aceitou tal inclusão na relação de bens.
12. - Sucede que aquela quota foi adquirida na constância do matrimónio.
13. Quem entrou com o capital necessário para a aquisição da quota em nome do Réu foi o seu pai.
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B. O Direito.

1. Se é de reconhecer a participação social como um bem comum do dissolvido casal.

 A sentença recorrida negou a pretensão da autora a ver reconhecida como bem comum do casal a participação social adquirida na constância do casamento, com base na seguinte fundamentação:

- tendo o réu integrado a sociedade com uma quota de 2.000,00 € desde a sua constituição, a qualidade de sócio não se transmite ao cônjuge nos termos do artigo 8º, nº2, CSC;

- não tendo resultado provado que a quota tivesse sido adquirida com dinheiro do casal, não pode considerar-se que a quota seja bem comum do dissolvido casal.

Insurge-se a apelante contra o decidido alegando, por um lado, que era ao réu que incumbia ilidir a presunção de a quota ser bem comum do casal e, por outro lado, a forma de aquisição da quota não reuniria nenhum dos elementos da doação tal como vem definida nos arts. 940º e ss., do Código Civil.

Quanto ao primeiro argumento avançado, pelos motivos já adiantados em sede de impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto, é de dar razão à apelante.

É o seguinte o teor do nº2 do artigo 8º, do Código das Sociedades Comercias, invocado na sentença recorrida:

Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participaçºao tenha advindo ao casal”.

Do teor de tal norma extraem-se duas conclusões:

- a participação social será bem comum aos dois cônjuges quando tal resultar do regime matrimonial de bens (1ª parte);

- sendo bem comum do casal, a qualidade de sócio radica naquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou naquele por quem a participação tenha advindo ao casal, não se comunicando ao cônjuge.

Ou seja, tal disposição não aporta qualquer achega para a determinação da natureza de uma participação social como bem próprio ou comum do casal – para a qual regem as regras respeitantes ao regime matrimonial de bens constantes do Código Civil –, limitando-se a afirmar que ainda que a participação social integre a massa comum, se apenas um deles teve intervenção no ato jurídico através do qual a participação foi adquirida, apenas esse adquire a qualidade de sócio, impedindo o cônjuge de exercer os direitos pessoais do outro cônjuge[5].

Vigorando entre os cônjuges o regime da comunhão de adquiridos – regime supletivo de bens desde 1 de junho de 1967, data da entrada em vigor do Código Civil de 1966 – a principal nota caraterizadora de tal regime reside no facto de os bens trazidos para o casamento pelos cônjuges, ou posteriormente por eles adquiridos a título gratuito por doação ou sucessão, se manterem na propriedade exclusiva do cônjuge que os trouxe ou recebeu (artigo 1722º e 1723º CC), integrando-se apenas no património comum do casal os bens resultantes do esforço e da colaboração de ambos na sua obtenção, designadamente os adquiridos onerosamente no decurso do matrimónio e os rendimentos dos bens próprios (artigo 1724º CC)[6].

Do disposto na al. b) do artigo 1724º, segundo o qual fazem parte da comunhão “os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei”, extrai-se a conclusão de que, na falta de recondução do bem a uma norma jurídica que dite a sua qualificação como bem próprio de um dos cônjuges, o mesmo será qualificado como comum.

Desta norma, resulta, desde logo, uma primeira presunção de comunhão que vale para os bens adquiridos na constância do casamento, na medida em que caberá ao cônjuge que pretenda demonstrar a qualidade de bem próprio o ónus de provar o contrário por verificação de uma das exceções previstas na lei (arts. 1722º, 1723º, 1726º, p. ex.)[7].

Por sua vez, o artigo 1725º CC, consagra expressamente uma segunda presunção de comunhão, ilidível, agora relativamente aos bens móveis, por causa da usual inexistência de elementos documentais relativos à sua aquisição: “Quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns”.

Se vigorar entre os cônjuges o regime de comunhão de adquiridos, a participação social adquirida com a intervenção de apenas um dos cônjuges será comum, desde que a sua aquisição a título oneroso, ou a constituição da sociedade em causa, sejam posteriores à celebração do casamento, e desde que a respetiva entrada seja preenchida por bens comuns[8].

Assim como, por força da referida presunção de comunicabilidade, será de considerar bem comum se, tendo sido adquirida na constância do casamento, nada se tiver apurado sobre o modo de preenchimento da sua entrada.

No caso em apreço, a sociedade na qual foi atribuída uma participação social ao aqui réu, foi constituída na constância do matrimónio, tendo o réu alegado e logrado provar que, quem entrou com o capital necessário para a aquisição da quota em nome do aqui Réu, foi o pai deste, invocando a seu favor o disposto no art. 1722º, nº1, al. d).

Segundo o disposto na al. b) do citado artigo 1722º, são considerados bens próprios dos cônjuges “Os bens que lhe advierem depois do casamento por sucessão ou doação”.

Os bens adquiridos por estas formas não resultam do esforço partilhado dos cônjuges que justifica a comunhão de adquiridos[9].

Ou, nas palavras de Rute Teixeira Pedro, nesta alínea b), o elemento de referência é o da gratuidade da aquisição[10].

E, em nosso entender, o facto ter sido o pai do réu quem deu o dinheiro necessário para o capital social da sociedade, integrará o conceito de doação, uma vez que foi o dinheiro do pai que veio preencher o capital social que na escritura de constituição da sociedade é atribuído ao réu.

Com efeito, no caso em apreço, o ato do pai de dar o dinheiro para o preenchimento da quota social em nome do seu filho integra uma doação, preenchendo os três requisitos exigidos pelo artigo 940º Código Civil: i) a produção de uma vantagem patrimonial a favor do donatário; ii) a verificação de uma desvantagem patrimonial relativamente ao doador e, ainda, a inspiração do ato por mera liberalidade por parte do doador[11].

Ou, caso assim se não entenda, poderá ainda defender-se, como sustenta Remédio Marques, a aquisição da natureza de bem comum por força do preenchimento da al. c) do artigo 1723 º – “bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges”:

“Ocorrem situações em que a participação social, não obstante ter sido adquirida, onerosamente, na constância do casamento, desfruta da natureza de bem próprio do cônjuge que outorgou o contrato da sociedade. Será por exemplo a hipótese do artigo 1723º, al. c) do CCivil, quando os valores utilizados na aquisição da participação social (v.g. dinheiro que constituiu a obrigação de entrada na sociedade) provieram do património de um deles (v.g., porque um dos seus ascendentes lhe doara o dinheiro ou a obrigação de entrada foi efetuada com dinheiro ou valores de que era titular já antes do casamento).[12]

Tal autor, tal como a jurisprudência dominante, sustenta ainda que a falta de menção da proveniência de dinheiro ou valores, que servem para cumprir a obrigação de entrada, no ato de constituição da sociedade, não obsta à proveniência do dinheiro, porquanto estas exigências formais não fazem sentido no quadro dos litígios situados nas relações internas entre cônjuges ou ex-cônjuges, onde não haja de proteger interesses patrimoniais de terceiros.

Conclui-se, assim, ter o réu demonstrado a natureza de bem próprio da participação social em causa.

A apelação é de improceder, confirmando-se a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pela apelante.

                                                                Coimbra, 19 de março de 2019

 

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC

1. No regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos na constância do matrimónio presumem-se comuns.

2. A participação social resultante da intervenção de apenas um dos cônjuges na constituição de uma sociedade e em que a respetiva entrada foi feita com dinheiro do pai do único cônjuge interveniente, constitui bem próprio deste.


Maria João Areias ( Relatora )
Alberto Ruço
Vítor Amaral


[1] Cfr., António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 127.
[2] Iremos partir do pressuposto de que este segundo “não” está a mais, resultando de um lapso material.
[3] Rute Teixeira Pedro, “Código Civil Anotado”, Vol. II, Ana Prata (Coord.), Almedina, p.632.
[4] José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum, à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4ª ed., GESLEGAL, pp.229-230.
[5] J. P. Remédio Marques, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Vol. I, Jorge Coutinho de Abreu (Coord.), pp.147 e 155.
[6] Cláudia Sofia Antunes Martins, “Efeitos Patrimoniais do Casamento nos Regimes de Comunhão: Cônjuges Titulares de Participações Sociais em Sociedades por Quotas ou Comerciantes”, p. 188, nota, 3, file:///C:/Users/MJ01318/Downloads/750-Article%20Text-498-2-10-20171207%20(1).pdf
[7] Rute Teixeira Pedro, “Código Civil Anotado”, Ana Prata (Coord.), Vol. II – 2017, Almedina, p.632.
[8] Maria Rita Lobo Xavier, “Reflexões sobre a posição do cônjuge meeiro em sociedades por quotas”, Boletim da Faculdade de Direito da UC, Suplemento Vol. XXXIII – Coimbra 1983, pp.16-17.
[9] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, p. 512.
[10] “Código Civil Anotado”, Vol. II – 2017, Coord. Ana Prata, Almedina, p.627.
[11] Rute Teixeira Pedro, Código “Civil Anotado”, Vol. I - 2017, (Coor. Ana Prata), Almedina, p. 1157.
[12] “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Vol. II, p. 147, nota 22.