Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
472/11.8TBTMR-L.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
RESTITUIÇÃO DE BENS
SEPARAÇÃO
BENS
Data do Acordão: 03/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 141, 149 CIRE
Sumário: 1. A lei permite àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os art.ºs 141º e seguintes, do CIRE, defendendo-se e acautelando-se, dessa forma, os direitos do reclamante e o procedimento de apreensão para a massa insolvente e sua (adequada) repercussão na fase da liquidação.

2. Tal reclamação para restituição ou separação constitui o único meio de reacção legalmente previsto, logo que decretada a apreensão dos bens e porventura ainda antes da sua materialização (posse material) pelo administrador da insolvência.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 

I. Em 03.10.2012, I.T.S. (…), S. A., intentou, no Tribunal Judicial de Tomar, o presente procedimento cautelar de arrolamento contra Massa Insolvente da R (…) S. A., pedindo que, sem audiência da requerida, seja decretado o arrolamento de todos os bens móveis existentes dentro da unidade de tratamento de subprodutos nas instalações da requerida sita na Zona Industrial de Tomar.

Alegou, em resumo:

- A requerente dedica-se ao aproveitamento, transformação e comercialização de produtos industriais, bem como importação e exportação de farinhas, gorduras e óleos, integrando um grupo empresarial denominado “ E(...)”;

- Em 12.8.2010 o grupo “ E(...)” celebrou três contratos com a sociedade insolvente R (…), sendo um deles um contrato-promessa de compra e venda com a requerente da totalidade do equipamento existente nas instalações da R(...) de tratamentos de subprodutos[1];

- No referido contrato a promitente vendedora prometeu vender à requerente a totalidade dos equipamentos, caso aquela viesse a reduzir ou a cessar a sua utilização, pelo preço de € 300 000, acrescido de IVA, então pago pela promitente compradora, devendo o preço ser devolvido, em singelo, se o contrato de compra e venda definitivo não fosse celebrado no prazo de um ano a contar da data da assinatura do contrato, pelo facto da R (…) não ter reduzido ou cessado a sua utilização;

- Atentas as dificuldades manifestadas pela R (…) em manter a sua actividade, foram entregues à requerente, no dia 24.02.2011, dois equipamentos – 2 depósitos de INOX - no valor total de € 1 975,90;

- Não obstante a R (…) manifestar a vontade de entregar a totalidade dos bens, por questões de logística, apenas foram transportados os referidos dois depósitos, ficando os demais nas instalações da R (…);

- Por carta dirigida em 14.6.2011 ao Administrador da Insolvência (AI) da requerida, a requerente comunicou formalmente que havia celebrado o aludido contrato-promessa de compra e venda, tendo pago o preço, e que alguns dos bens objecto do contrato já haviam sido entregues e os restantes haviam permanecido nas instalações daquela, pelo que solicitou autorização para a abertura das instalações da R(...) para retirar o restante equipamento;

- Em resposta, o AI informou que a quase totalidade dos equipamentos industriais de fábrica, designadamente aqueles que foram objecto do contrato de promessa supra mencionado, não eram nem nunca foram propriedade da insolvente R(...), sendo esta mera locatária, tendo inclusivamente aconselhado a requerente a apresentar a respectiva queixa-crime pois não poderiam os então Administradores da R(...) ter procedido à venda de bens que não lhe pertenciam;

- O inventário dos bens móveis que o AI apresentou em Tribunal, no âmbito do seu Relatório, poucos bens apresentava para além daqueles que estavam em regime de locação financeira;

- Perante este cenário, a requerente apresentou, à cautela, reclamação de créditos[2] nos termos do art.º 128º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa/CIRE[3] (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3, e na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20.4), no montante de € 298 024,10, resultante da diferença entre o valor da mercadoria que se encontra na posse da requerente e o preço global entregue à insolvente como sinal que esta deveria devolver em singelo devido a incumprimento contratual;

- A requerente ficou a aguardar que o AI fizesse o levantamento de todos os bens existentes e se pronunciasse em conformidade com o que viesse a apurar;

- Os bens móveis descritos e fotografados no citado inventário não integram qualquer dos bens que se encontravam dentro do edifício da unidade de tratamento de subprodutos;

- Depois de contactado, o AI respondeu que iria mandar inventariar todo o equipamento e chegou a visitar a unidade de tratamento de subprodutos onde teve oportunidade de ver o equipamento adquirido pela requerente, o qual ainda se encontra dentro do edifício;

- Foi transmitido à requerente em Setembro de 2012 que os bens faziam parte do edifício e não poderiam ser entregues;

- Corre-se assim o risco de os bens serem liquidados e vendidos, com prejuízo para a requerente;

- Torna-se imprescindível proceder à descrição e identificação completa de todos os bens, o que não chegou a ser feito;

- A requerente tem direito a todos os bens da unidade de subprodutos, com excepção daqueles que estão em leasing, tornando-se necessário o arrolamento de todos os bens existentes na unidade de subprodutos;

- Existe risco de extravio, ocultação e/ou dissipação por parte da requerida, com risco da requerente não os poder vir a recuperar.

Foi determinada a citação da requerida e, considerando o disposto no art.º 85º, n.º 1, do CIRE, a notificação do AI para se pronunciar e requerer a apensação do presente procedimento ao processo de insolvência n.º 472/11.8 TBTMR, por ser de toda a conveniência a discussão desta causa junto desse mesmo processo de insolvência (cf. o despacho de 10.10.2012/fls. 269).

O AI requereu tal apensação (fls. 288).

A requerida deduziu oposição, concluindo pelo indeferimento da providência, por legalmente inadmissível, e impugnou a generalidade dos factos, referindo, designadamente, em síntese:

- O CIRE constitui um conjunto de normas cuja natureza especial derroga, sem prejuízo da aplicabilidade supletiva de algumas normas do CPC, este último conjunto de disposições legais, sendo que no âmbito do CIRE, o conjunto de normas e procedimentos que o caracterizam tem natureza urgente (processo principal e apensos) pelo que o processo de Insolvência constitui, em si mesmo, medida cautelar suficiente para acautelar os interesses dos credores.

- Não há lugar nem tem qualquer cabimento legal, a instauração de um procedimento cautelar, seja ele de arrolamento, ou outro, em “matéria insolvimentar” - não havendo tal procedimento sido liminarmente indeferido, deverá sê-lo de imediato na sequência da presente oposição, posto que o próprio CIRE determina que com a decretação da insolvência se suspendem, ex vi do disposto no art.º 88º do CIRE, “quaisquer providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa Insolvente”.

- No decurso do inquérito criminal, concluiu-se que os bens detidos pela Insolvente em regime de locação financeira, não foram prometidos vender à requerente, pelo que, os bens que a esta terão alegadamente sido prometidos vender não estarão cativos de locação financeira, presumindo-se que os mesmos façam parte do acervo inventariado nos autos de processo de insolvência.

- Caberá à requerente efectuar, de forma esclarecedora e reportando-se ao contrato ou de qualquer outra forma, a identificação dos bens que alegadamente adquiriu.

- A requerente reclamou atempadamente o seu crédito - a quantia de € 298 024,10, correspondente à diferença entre o preço pago e o valor dos bens que já havia levado consigo, não resultando daquela reclamação, nem de qualquer outra comunicação, que haja reclamado a entrega do bens, ou quais os bens a entregar.

- A requerente o que pretende é o reconhecimento do crédito indicado como crédito sobre a insolvência, não havendo interpelado nem dado cumprimento ao disposto no art.º 102º, do CIRE, admitindo que o contrato não estava cumprido.

            - A simples reclamação de separação de bens da massa Insolvente determina – seja ela efectuada ao abrigo do disposto no art.º 128º, do CIRE, seja efectuada, podendo sê-lo, ao abrigo do art.º 146º do CIRE, concretamente do seu n.º 2, daquela disposição legal, a todo o tempo – a suspensão da liquidação dos bens, de titularidade controversa, nos termos do disposto no art.º 160º, do CIRE.

- Nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 151º, 81º, 149º e 153º do diploma em apreço, o AI procede à apreensão de todos os bens integrantes da massa Insolvente, com excepção dos que hajam sido aprendidos por virtude de infracção de natureza criminal ou de ilícito de mera ordenação social; o AI, cumprindo ordem emanada do tribunal, procedeu à apreensão de todos os bens móveis que se encontravam nas instalações e estabelecimento do Insolvente; não tinha nem tem de conhecer, ainda para mais num quadro de silêncio dos eventuais titulares, se os bens que se encontram nas instalações são ou não propriedade da Insolvente, sendo que, quanto aos bens detidos em regime de locação financeira cumpre às locadoras, em sede reclamação de créditos reclamá-los, e, bem assim, os direitos que promanam daqueles contratos.

- É no mínimo incompreensível e apenas se pode perceber por desconhecimento ou por má fé que se peça para arrolar, o que já está arrolado, sendo que era no processo de insolvência, prima facie, que a requerente deveria ter vindo insurgir-se, reclamar e requerer a separação de bens da massa, mormente nos bens que alega serem de sua propriedade, por os haver adquirido ou prometido adquirir e ter havido quanto a eles tradição, impugnando inclusivamente o arrolamento e deduzindo nos termos do disposto no art.º 128º, do CIRE, a defesa dos seus interesses, no que aos bens que alegadamente adquiriu concerne, requerendo a separação e a restituição dos bens.

- Não o havendo efectuado, ainda que tal direito não haja sido precludido, não o poderá fazer pela presente forma processual, posto que no que aos autos de insolvência reporta, torna-se obrigatório, para separar neste momento processual quaisquer bens da massa, que sejam ouvidos o devedor e demais credores da Insolvente, citando-se os mesmos com o formalismo legal do art.º 146º e que cumpre nas acções para verificação ulterior de créditos, maxime para separar bens da massa, ainda assim sempre se discutindo nessa acção se o direito que a requerente pretende fazer valer, após ter reclamado o crédito que reclamou, pode ou não ser efectuado, tal como cumprirá discutir se tal separação pode ser efectuada.

- Seguramente não poderá é ser efectuada pela forma como em sede da presente procedimento cautelar vem de ser peticionado.

Por sentença de 31.12.2012, o Tribunal a quo, acolhendo a argumentação da requerida, indeferiu o presente procedimento cautelar.

 Desta decisão recorreu a requerente que, visando a admissão e o prosseguimento do procedimento, formulou as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª - A sentença assenta na ideia de que o presente procedimento cautelar não é legalmente admissível na medida em que, estando a correr termos um processo de insolvência e prevendo este a existência de um inventário e da apreensão de bens, a requerente deveria ter-se socorrido do procedimento previsto no art.º 141º, n.º 1, alíneas a) e c), do CIRE, e não do procedimento cautelar de arrolamento.

2ª - Os bens que se pretendem arrolar não integram a massa insolvente nem sequer foram apreendidos nos autos de insolvência.

3ª - Se o Tribunal a quo atentasse no que foi alegado no requerimento inicial e nos documentos juntos, verificaria que o AI não apreendeu os bens em causa, admitindo até que fossem de terceiro, relegando para momento posterior uma tomada de posição quanto a esses mesmos bens; todavia, nunca o fez, nem nunca os veio a apreender, e, pior, veio a constatar-se, que pretendia liquidar e vender esses mesmos bens.

4ª - Outra alternativa não restava à apelante senão apresentar uma providência cautelar de arrolamento contra a massa insolvente, na justa medida em que os bens não pertencem à massa insolvente e não foram ainda apreendidos.

5ª - Foi o próprio AI quem escreveu no inventário de bens móveis (página 3/31) que juntou ao Relatório apresentado nos termos do art.º 155º do CIRE que: “A devedora forneceu inicialmente a informação que os bens que equipam a fábrica de subprodutos eram propriedade de terceiros, razão pela qual não foram relacionados na presente inventariação, contudo, verificou-se que os bens em causa integram um contrato de locação financeira do qual a massa insolvente é titular, pelo que estes passarão a constar do trabalho final a entregar posteriormente”. Trabalho final esse que até ao momento a apelante não tem conhecimento de ter sido elaborado e apresentado.

6ª - Os bens móveis melhor descritos e fotografados no citado inventário de fls. 418 a 443 não integram qualquer dos bens que se encontravam dentro do edifício da unidade de tratamento de subprodutos, mas antes no edifício do matadouro.

7ª - Os requisitos específicos do procedimento cautelar de arrolamento encontram-se preenchidos: a apelante alegou factos relacionados com a aquisição/pagamento de tais bens; que tais bens, que não foram apreendidos pelo AI e não compõem a massa, preparavam-se para ser liquidados e alienados por aquele, com o risco de a apelante não conseguir depois recuperá-los dado que nem tem uma identificação precisa de cada um deles; nenhum dano resultará para a apelada, uma vez que o arrolamento consiste numa mera descrição, avaliação e depósito dos bens.

8ª - Encontra-se deste modo preenchido o periculum in mora na presente providência (art.ºs 381º, n.º 1, 387º, n.º 1 e 421º, do CPC).

9ª - Ao rejeitar liminarmente o presente procedimento cautelar o Tribunal a quo violou os art.ºs 88º e 141º, do CIRE; 381º, n.º 1, 387º, n.º 1, 421º, n.º 1, 422, n.º 1 e 423, do CPC, e os art.ºs 2º, 20º, n.ºs 1, 4 e 5, e 62º, da CRP; 6º da CEDH; 1º do Protocolo I à CEDH; 17º, 41º, 47º, 51º, 52º, 53º e 54º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

A requerida não respondeu à alegação da recorrente.

O recurso, interposto a 25.01.2013 e admitido a 09.12.2013[4], foi remetido a esta Relação cerca de um ano depois daquela interposição… (cf. fls. 343, 360, 363 e 365).

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, apenas, se era lícito à requerente lançar mão do dito procedimento cautelar nominado (arrolamento).


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II. 1. Para a decisão do recurso releva o que decorre do precedente “relatório” e a seguinte factualidade:[5]

a) A sociedade R (…), S. A., foi declarada insolvente por sentença de 09.5.2011/processo de insolvência n.º 472/11.8TBTMR.

b) No âmbito do mencionado processo de insolvência, o AI apresentou o relatório a que se refere o art.º 155º do CIRE e o inventário de bens móveis, realizado a 30.5.2011, integrando mobiliário e equipamento de escritório (22 verbas), equipamentos industriais (39 verbas), meios de movimentação de cargas (7 verbas), transportes (uma verba) e bens em regime de contrato de locação financeira (16 verbas).

c) A requerente, por carta de 29.6.2011, dirigida ao AI, reclamou um crédito (de natureza comum) no valor de € 289 024,10 e que assim consta da lista provisória de credores (art.º 154º, do CIRE).

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.º 1º, n.º 1, 1ª parte).

O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código (art.º 17º).

Na sentença que declarar a insolvência, o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150º [36º, alínea g)].

O administrador da insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação (art.º 58º).

Sem prejuízo do disposto no título X [“Administração pelo devedor”], a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (art.º 81º, n.º 1).

Dentro do prazo fixado na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento dirigido ao AI, indicado o valor do crédito e os demais requisitos previstos no n.º 1 do art.º 128º.

No mesmo prazo, devem os credores da Insolvente reclamar a restituição e separação de bens (indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa), aplicando-se à restituição e separação de bens as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos, com as necessárias adaptações [art.º 141º, n.ºs 1, alíneas a) e c) e 2].

Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, nos termos do art.º 146º.

Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social [art.º 149º, n.º 1, alínea a)].

O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 839º do Código de Processo Civil (de 1961) [art.º 756º, do CPC de 2013], no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados (art.º 150º, n.º 1). A apreensão é feita mediante arrolamento, ou por entrega directa através de balanço, de harmonia com as regras previstas no n.º 4 do art.º 150º.

Se estiver pendente acção de reivindicação, pedido de restituição ou de separação relativamente a bens apreendidos para a massa insolvente, não se procede à liquidação destes bens enquanto não houver decisão transitada em julgado, salvo: a) Com a anuência do interessado; b) No caso de venda antecipada efectuada nos termos do n.º 2 do artigo 158º; c) Se o adquirente for advertido da controvérsia acerca da titularidade, e aceitar ser inteiramente de sua conta a álea respectiva (art.º 160º, n.º 1).

3. Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum [art.º 549º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) de 2013/art.º 463º, n.º 1, do CPC de 1961, na redacção conferida pelo DL n.º 180/96, de 25.9].

4. Ainda que o adjectivo tenha desaparecido da designação do Código (CIRE), o processo de insolvência continua a revestir a natureza de processo especial, pelo que permanecendo em vigor as disposições da lei processual civil geral [art.ºs 549º, n.º 1 e 551º, n.º 4 do CPC de 2013/463º, n.º 1 e 466º, n.º 3, do CPC de 1961], o citado art.º 17º (com a epígrafe “Aplicação subsidiária do Código de Processo Civil”) era desnecessário.[6]

5. Decorre do referido regime jurídico que o processo de insolvência, como processo de execução universal, tem no respectivo Código (CIRE) os preceitos especialmente talhados para o prosseguimento da sua finalidade principal, qual seja, a satisfação (do interesse) dos credores.

Em princípio, todas as questões que respeitem à massa insolvente e a interesses conexos, entre os quais, e principalmente, os dos próprios credores da insolvente, deverão ser resolvidas recorrendo ao quadro jurídico especialmente delineado para o efeito.

Por conseguinte, estando em causa a apreensão dos bens da massa insolvente, a eventual apreensão indevida de bens para a massa, a reclamação e verificação do direito de restituição (a seus donos) dos bens apreendidos para a massa insolvente, o exercício do direito a fazer separar da massa esses bens, etc., teremos, necessariamente, de verificar se aquele Código prevê os procedimentos a adoptar para o reconhecimento do direito invocado ou a finalidade a prosseguir (cf. o art.º 2º dos CPC de 1961 e 2013).

6. No apontado enquadramento jurídico e dada a materialidade assente, dúvidas não restam de que nenhuma razão assiste à recorrente, porquanto, independentemente das alegadas vicissitudes da execução do aludido contrato-promessa (antes e depois da declaração da insolvência), o meio próprio e único de reacção à (invocada) apreensão efectiva ou iminente/potencial, e indevida, em processo de insolvência é o previsto no citado art.º 141º e nas disposições seguintes - a lei permite àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os art.ºs 141º e seguintes[7] - , defendendo-se e acautelando-se, dessa forma, os direitos do reclamante e o procedimento de apreensão para a massa insolvente e sua (adequada) repercussão na fase da liquidação.

Por outro lado, a dedução de reclamação destinada à separação de bens obsta sempre à sua liquidação até o trânsito em julgado da sentença que a decidir, salvo se se verificar alguma das situações previstas nas alíneas do n.º 1 do art.º 160º, sendo que os bens apreendidos e confiados ao administrador da insolvência ficam submetidos às regras gerais do depósito e, em especial, às que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados (art.º 150º, n.º 1).

7. Não obstante as tergiversações e o exagero da alegação de recurso em análise (desde logo consideradas aquando da prolação do despacho de citação/fls. 269), é também inequívoco que a requerente dirigiu a sua pretensão contra uma apreensão material efectiva ou iminente (concretizada ou a efectivar), tanto mais que, segundo a requerente, já se perspectivava a venda/liquidação dos bens em causa [mas que, em bom rigor, ninguém soube identificar/concretizar (!), tendo em conta o conjunto dos bens/equipamentos industriais afectos ao estabelecimento da sociedade insolvente e vistos aqueles objecto de locação financeira[8]], pelo AI, no âmbito dos autos de insolvência…

E tendo ocorrido alguma anomalia no procedimento de apreensão, nada obstaria a que qualquer interessado se dirigisse ao Tribunal ou ao AI visando a correcção de eventuais erros e/ou a supressão de omissões porventura existentes, sabendo-se, desde há muito, que os sucessivos regimes jurídicos vêm definindo a transferência para o administrador da posse jurídica dos bens (do insolvente) e que o mesmo proceda à sua apreensão e inventariação e assuma a posse material, com a observância das formalidades estabelecidas para o arrolamento[9], sem prejuízo de poder e dever intervir na dilucidação de qualquer questão de algum modo ligada a tais procedimentos.

8. Dir-se-á, ainda, que, atento o arrazoado vertido na petição inicial (p. i.), sempre a recorrente poderia solicitar que os bens questionados fossem separados da massa insolvente e lhe fossem restituídos, independentemente de não estarem apreendidos à ordem dos autos de insolvência de que derivam os presentes, pois que se ainda que o estivessem o podiam ser, por maioria de razão o poderão ser não estando apreendidos, pedido esse que teria sempre de obedecer ao formalismo previsto no cit. art.º 141º, deduzindo-se a necessária reclamação, segundo as regras aplicáveis para a reclamação de créditos, sujeita ao contraditório, nos prazos e condições para tal estabelecidos e não pelo meio que a requerente decidiu escolher.[10]

9. Não colhe assim a argumentação da requerente quando diz que os bens em apreço não haviam sido apreendidos, e que só se o tivessem sido se justificaria uma actuação no âmbito dos art.ºs 141º e seguintes, sendo que, também no plano factual, tudo indicia, por um lado, que esses bens permaneceram nas instalações da insolvente, junto dos restantes bens móveis, encontrando-se, assim, desde logo, na posse jurídica do AI, e, por outro lado, que, pelo menos, alguns desses bens já constavam da relação/inventariação aludida em II. 1. b), supra; além disso, estariam em curso procedimentos para ultimar a apreensão (material) dos bens da insolvente, nada obstando, assim, à colaboração/intervenção/actuação da própria requerente, v. g., prestando a informação considerada pertinente e exercitando as faculdades e direitos que o regime jurídico da insolvência lhe confere enquanto credora e interessada (eventualmente, a coberto da previsão do art.º 102º)[11].

10. Ademais, o processo especial de separação de bens previsto no art.º 141º tem de ser deduzido contra o administrador da insolvência, e apresentado no seu domicílio profissional ou para aí remetido por via postal registada, sendo também demandados o devedor insolvente e os credores da massa insolvente.

A p. i. dos presentes autos, quer nos seus aspectos formais, quer nos substanciais, é de todo desajustada ao tipo processual que deve ser seguido.[12]

11. Concluindo, nenhuma censura merece a decisão recorrida, porquanto nada justificava ou possibilitava o recurso ao procedimento cautelar de arrolamento previsto nos art.ºs 421º e seguintes, do CPC de 1961, antes a solução de qualquer questão relativa à massa insolvente (relevante para o processo de insolvência) deveria passar pelo respectivo enquadramento adjectivo nos termos do CIRE.

Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


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18.3.2014

Fonte Ramos ( Relator)

Inês Moura

Fernando Monteiro



[1] A requerente reporta-se ao contrato reproduzido a fls. 77/162.
[2] Sublinhado nosso, como os demais a incluir no texto.
[3] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[4] Nada consta dos autos que esclareça ou justifique tamanha delonga…
[5] Tendo em atenção os documentos juntos aos autos (designadamente, a fls. 91, 93, 105/187, 137 e 152).
[6] Vide, no mesmo sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, pág. 121.
[7] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 475 e seguintes e o acórdão da RL de 19.10.2006, in CJ, XXXI, 4, 87.
   E, considerado o direito pregresso (Código de Processo Civil de 1939 - e o direito anterior - e Código de Processo Civil de 1961), defendia-se, há muito, que a natureza especialíssima do procedimento falimentar, como meio próprio para o efeito, excluía, em tais situações, a aplicação do meio comum, pelo que, em face da apreensão da coisa para a massa, o único meio de reacção era a reclamação para restituição, aplicando-se assim, necessariamente, o aludido regime de procedimento – Vide Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II (reimpresssão), Coimbra Editora, 1982, págs. 343 e seguinte (citando os acórdãos do STJ de 05.5.1936 e de 01.5.1953, publicados na RLJ, 69º, pág. 89 e 86º, págs. 78 e 121) e Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1968, págs. 326 e seguinte.
[8] Cf., v. g., os art.ºs 59º a 63º da petição inicial, fls. 3 (ab initio) do “inventário de bens móveis” reproduzido a fls. 105 e seguintes e o documento de fls. 184.
[9] Vide Pedro de Sousa Macedo, ob. e vol. cits., págs. 267 e seguinte.
[10] Cf. o acórdão da RC de 21.3.2013-processo 444/06.4TBCNT-U.C1, publicado no “site” da dgsi.
[11] Ibidem.
[12] Cf. o acórdão da RP de 12.6.2012-processo 198/12.5TVPRT.P1, publicado no “site” da dgsi.