Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
204/10.8GASRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS TÍPICOS
Data do Acordão: 01/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JL CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 152.º, N.º 1, AL. B), DO CP; ART. 283.º, N.º 3, AL. B), DO CPP
Sumário: I - O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada, e falando a norma em maus tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais.

II - Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.

III - O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.

IV - Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.

V – Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.

VI – No crime de violência doméstica, o conceito de maus tratos, de que fala a norma, exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.

VII - A norma que prevê e pune o crime de violência doméstica não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos.

VIII - Não se pode ter como acusação, no sentido adoptado, a imputação de factos genéricos, vagos, que não permita ao acusado localizar, no tempo e espaço, as acções que lhe são atribuídas.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


   1.

  O arguido A... foi condenado nas penas de 2 anos e 2 meses de prisão e 160 dias de multa, à taxa diária de 10 €, pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de violência doméstica, do art. 152º, nº 1, al. a), e 2, do Código Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, dos art. 2º, nº 1, al. a), 3º, nº 6, al. c), e 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23/2.

Feito o cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de 2 anos e 2 meses de prisão e 160 dias de multa, à taxa diária de 10 €.

A execução da pena de prisão foi suspensa por 2 anos e 2 meses.

O arguido foi, também, condenado a pagar à vítima, B... , 700 € a título de indemnização, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a data da sentença até pagamento.

Foram declaradas perdidas a favor do Estado uma arma de fogo longa com a marca Winchester e o número K48086E, calibre 12, com o comprimento total de 111 cms e de cano de 69,5 cms, e uma arma de fogo longa, com marca e número de série desconhecidos, calibre 12, com o comprimento total de 110,5 cms e 69,5 cms de cano.

2.

O arguido recorreu e apresentou as seguintes conclusões:

1. O conteúdo dos pontos 4. e 6. dos factos provados é conclusivo;

2. Padece de nulidade a acusação e por consequência a sentença que a ratifica, pois não concretiza o tempo e lugar da prática dos factos, nos termos do artº 283º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal;

3. Um episódio integrador do crime de injúria e/ou ameaça, praticado num só momento, não perde a qualificação primária e imediata que a lei penal, desde sempre, lhe despendeu, integrando, desde logo e sem mais, a previsão legal mais gravosa do crime de violência doméstica pela circunstância de se dirigir ao cônjuge;

4. Relativamente ao imputado crime de violência doméstica, não se provou o elemento volitivo, porque não se provou que, ao actuar da forma e nas situações descritas, o arguido sabia que estava a maltratar física e psicologicamente, de forma reiterada, a sua mulher, e a violar os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir da forma por que o fez;

5. O tribunal a quo não dispunha de prova para ter por assente que era o arguido o detentor das armas, que estavam num local onde não vive e ao qual não tem acesso;

6. A expressão “fora das condições legais”, do artº 86, nº 1, al. c) da Lei 5/2006, de 23/2, é de tal forma aberta e equívoco que não pode basear um tipo legal, que se exige acessível e claro;

7. Perante a previsão legal qualquer cidadão conclui que a expressão «detenção de arma proibida» se reporta à arma e não às condições da sua detenção;

8. As armas cuja detenção determinou a condenação não são proibidas: são duas armas de classe D, destinadas a uso venatório, para o uso das quais o arguido estava legalmente habilitado, com a respectiva licença de uso e porte de arma.

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu dizendo que os factos dos pontos 1 a 6 não são referência genéricas e conclusivas, que a conduta violenta do arguido se prolongou no tempo, desde 1977 a 2010, de forma reiterada, e que os termos em que a acusação foi deduzida permitiram ao arguido defender-se, por a matéria imputada estar suficientemente concretizada.

Quanto ao crime de detenção de arma proibida disse não ser admissível o arguido, caçador, alegar não saber que tinha que legalizar as armas que comprava.

O sr. P.G.A. emitiu parecer no mesmo sentido. Defendeu que as expressões não datadas apenas pretenderam dar conta da relação conjugal e do comportamento do arguido nessa relação e não imputar-lhe um concreto crime. Quanto à alegada falta de consciência da ilicitude relativamente ao crime de detenção de arma proibida, disse não ter sentido defender-se desta forma uma vez que possuía outras armas que registou.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

  4.

  Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.


*

FACTOS PROVADOS

5.

Foram julgados provados os seguintes factos:

«1 – O arguido e B... celebraram entre si casamento em (...) de 1977;

2 – E encontram-se separados desde data não concretamente determinada, anterior ao mês de Agosto, do ano de 2010;

3 – Dessa união nasceram dois filhos:

a) C... , em (...) 1978; e

b) D... , em (...) 1986;

4 – Desde data não concretamente determinada, o arguido, por diversas vezes, molestou, física e verbalmente, B... ;

5 – Chamando-lhe “puta” e “vaca”;

6 – Por diversas vezes, o arguido anunciou a B... que atentaria contra a vida dos seus familiares e, de seguida, se mataria a ele próprio;

7 – No dia 10 de Agosto de 2010, o arguido dirigiu-se à casa do casal composto por si e por B... , em Portugal, sita na Rua (...) ;

8 – Onde se encontrava B... e D... ;

9 – Nessa ocasião, pretendia levar consigo três armas de sua propriedade;

10 – Perante a recusa de B... , o arguido, perante o filho D... , chamou àquela “puta” e “vaca”;

11 – E disse: “Deito fogo à casa e ao carro… fodo-vos a todos”;

12 – Desde data não concretamente determinada, até ao dia 12 de Agosto de 2010, o arguido detinha, na referida residência do casal:

a) Uma arma de fogo longa com a marca Winchester e o número K48086E, calibre 12, com o comprimento total de 111 cms e de cano de 69,5 cms, em bom estado de conservação e aparentando condições para efectuar disparos;

b) Uma arma de fogo longa, com marca e número de série desconhecidos, calibre 12, com o comprimento total de 110,5 cms e 69,5 cms de cano, em mau estado de conservação e funcionamento;

13 – Tais armas não se encontravam registadas nem manifestadas.

14 – O arguido conhecia a natureza e as características das armas que detinha;

15 – O arguido sabia que a posse e a detenção, naquelas circunstâncias, das referidas armas, eram proibidas;

16 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;

17 – O arguido é pedreiro de profissão, encontrando-se, presentemente, em situação de incapacidade, auferindo pensão no valor mensal de cerca de € 1.500,00;

18 – O arguido vive com uma companheira;

19 – O arguido tem averbada ao seu registo criminal uma condenação, proferida em (...) 2012, pelo Tribunal Correctionnel de (...) , da República Francesa, pela prática, em (...) 2012, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 6 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, com regime de prova».

6.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«… Quanto aos filhos do casal composto pelo arguido e B... , o Tribunal considerou os depoimentos prestados pelos próprios, C... e D... , relevando, igualmente, o depoimento daqueloutra testemunha.

No que respeita aos comportamentos do arguido, o Tribunal fundou a sua convicção nos espontâneos e consentâneos depoimentos prestados pelas referidas testemunhas, B... , C... e D... , que descreveram o que presenciaram, justificando as respectivas razões de ciência, referindo a testemunha C... que a sua mãe e o seu irmão se haviam deslocado a Portugal, para a residência do casal neste país, narrando B... e D... , de forma concordante e coerente, o desenrolar dos eventos ocorridos no dia 10 de Agosto de 2010.

Tais depoimentos, em articulação com o teor do termo de recebimento, a fls. 16, e com o auto de apreensão, a fls. 17, relevaram para a determinação da posse das armas, pelo arguido, na residência do casal.

As características das armas assentaram-se com base no auto de exame directo, a fls. 18, e nos autos de exame, a fls. 236 e 237.

A subjectividade presente no arguido retira-se do próprio circunstancialismo em como decorreram os eventos, não se afigurando crível que o mesmo agisse sem ser por livre determinação da sua vontade, nem se descobrindo – maxime, pela repetição dos comportamentos – outro propósito que não o deliberado. Ademais, a sancionabilidade dos comportamentos da natureza dos descritos é do geral conhecimento dos cidadãos e, concomitante e necessariamente, também, do arguido, mostrando-se pouco plausível que o desconhecesse, sendo certo, por outro lado, que, dedicando-se o mesmo à actividade venatória, conforme reconhecido unanimemente pelas testemunhas inquiridas, e sendo possuidor de licença de caça, de licença de uso e porte de arma de caça (cfr. fls. 50 e 51), bem como de outra arma manifestada e registada (cfr. fls. 48 e ss.), teria, forçosamente, que saber ser necessário o manifesto e o registo respeitante àquelas em discussão nos presentes autos, bem como da censurabilidade penal da sua ausência.

No que respeita aos antecedentes criminais, foi considerado o certificado de registo criminal junto aos autos.

As condições pessoais do arguido retiraram-se dos depoimentos das referidas testemunhas, B... , C... e D... , que revelaram conhecimento directo de alguns aspectos atinentes à actual vivência do arguido e justificaram as respectivas razões de ciência, depondo, ademais, com espontaneidade.

Escasso relevo tiveram os depoimentos das testemunhas E... , F... e G... , pouco conhecimento demonstrando da relação conjugal do arguido e da ofendida e apenas, essencialmente, sabendo de que se dedicava à caça e era possuidor de armas destinadas a tal prática».


*

DECISÃO

Considerando o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., as questões a decidir respeitam à impugnação da decisão da matéria de facto e ao relevo jurídico dos factos julgados provados.


*

  São duas as formas de impugnar uma decisão sobre a matéria de facto:

- a partir do texto da decisão recorrida relativamente aos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do C.P.P., que não carecem de alegação, por serem de conhecimento oficioso;

- com recurso às provas produzidas no processo, seja pela sua reapreciação, por do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão, ou por via do mecanismo previsto nos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.P., seja com recurso à renovação da prova.

A indagação dos vícios referidos no art. 410º só pode ser feita através da leitura da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta do texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constantes do processo.

No segundo caso a reapreciação parte da análise da prova invocada no recurso, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto.

No entanto, também aqui há limitações ao conhecimento amplo (vide acórdão do S.T.J. de 12-6-2008, processo 07P4375):

- uma limitação decorrente da necessidade de observância dos requisitos formais da motivação do recurso, impostos por lei, com a delimitação precisa e concretizada dos pontos controvertidos que o recorrente considere incorrectamente julgados e especificação das provas, com indicação concreta do conteúdo dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida;

- ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, a limitação decorrente da falta de oralidade e imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o contacto com as provas ao que consta das gravações;

- limites à reponderação dos factos, porque a relação não faz um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição não visa a repetição do julgamento, agora na 2ª instância, cingindo-se a actividade da relação a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto invocados pelo recorrente;

- a juzante, o último limite tem a ver com a circunstância de a reapreciação só poder determinar uma alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem decisão diversa e não apenas que permitem essa alteração.

  O arguido pretende a alteração da decisão de facto mas, porém, não se socorre de nenhuma destas vias, sendo certo que, quanto aos vícios do art. 410º do C.P.P., este tribunal também não detectou a sua existência.

  Assim, e neste particular, improcede o recurso.


*

  Avançando para o conhecimento do segundo fundamento do recurso, quanto ao crime de violência doméstica o arguido alegou que os factos descritos na sentença recorrida são insuficientes à condenação porque:

- o conteúdo dos pontos 4 e 6 é conclusivo;

- a acusação e a sentença não localizam no espaço e no tempo os factos, em violação do art. 283º, nº 3, al. b), do C.P.P.;

- o dolo do tipo legal em causa não se provou;

- um episódio que consubstancia o crime de injúria ou o crime de ameaça não se transmuda em violência doméstica por ser dirigir ao cônjuge.

  Nos termos do art. 152º, nº 1, al. b), do Código Penal, comete o crime de violência doméstica, punível com prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, «quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge …».

  O preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, mormente análoga à da conjugalidade, actual ou entretanto terminada, e falando a norma em maus tratos físicos ou psíquicos, castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais, percebe-se que o bem tutelado – como é comummente apontado -, seja a pessoa e a sua dignidade humana, compreendendo nesta a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, de tal forma que a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta.

Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.

O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc. É aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade. Por via do quadro legal estas acções ilícitas mantêm-se mas perdem autonomia, daí que ocorra concurso aparente entre estes vários crimes e o crime de violência doméstica.

Mas uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.

Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa (acórdão da Relação de Lisboa de 5-7-2016, processo 662/13.9GDMFR).

Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.

  Dado que o tipo legal pressupõe uma relação de proximidade afectiva entre o agente e a vítima, que persista ou entretanto terminada, percebe-se que o bem tutelado seja, como já dissemos, a pessoa e a sua dignidade humana, compreendendo nesta a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, de tal forma que a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta.

Por isso a distinção entre o crime de violência doméstica, enquanto tal e por um lado, e o concurso dos crimes de ofensas, ameaça, injúria, etc., que as concretas acções podem configurar, por outro, faz-se com recurso ao conceito de maus tratos de que fala a norma, e o conceito de maus tratos exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações.

Nos casos em que o tipo se preenche com uma acção isolada este domínio por parte do agente pode não se verificar. Há situações excepcionais em que bastará uma acção isolada para preencher o tipo legal, desde que este único acto «assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal», quando a «gravidade intrínseca do mesmo preencha o tipo de ilícito» (TRC processo 835/13.4GCLRA, de 20-1-2016).


*

Um assunto recorrentemente abordado a propósito do crime de violência doméstica respeita aos termos em que as acusações/pronúncias/sentenças descrevem os factos integradores do ilícito, mais concretamente no relevo conferido à imputação de factos genéricos.

  Se há os que entendem que desde que esteja balizado o período em que o comportamento criminoso persistiu, com indicação do início e termo, resulta cumprida a exigência de concretização não havendo, por isso, violação de qualquer direito do arguido (acórdão da Relação de Guimarães de 23-9-2013, processo 1631/12.1PBBGR), outros há que entendem que sempre que a reiteração e intensidade da acção estão no centro da definição de tipos penais muito amplos, como é o caso dos maus-tratos, da violência doméstica, do tráfico de droga, a precisão e concretização dos factos necessários à integração de tais tipos é essencial à imputação, por um lado, e ao respeito pelo direito de defesa, por outro. Se este rigor é sempre necessário, por maioria de razão o é neste tipo de crimes, dada a sua enorme amplitude (acórdão da Relação de Évora de 1-10-2013, processo 948/11.7PBSTR).


Nos termos do art. 283º, nº 3, al. b), do C.P.P. «a acusação contém, sob pena de nulidade:

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

  Como interpretar esta norma? Uma vez que a lei não o exige, é dispensável indicar o lugar e o tempo da prática dos vários factos que preenchem o ilícito?

  Antes de continuar temos que atentar no que acima dissemos: se há casos em que tal indicação poderá ter-se como dispensável, sempre que a reiteração e intensidade da acção estejam no centro da definição de tipos penais muito amplos a precisão e concretização dos factos necessários à integração de tais tipo é essencial à imputação, por um lado, e ao respeito pelo direito de defesa, por outro.

  Perante um tipo legal com a estrutura do crime de violência doméstica a aceitação da imputação de factos genéricos, sem qualquer concretização, significaria a multiplicação da imputação deste tipo legal uma vez que bastaria ao seu preenchimento cobrir toda uma vida em comum com a nuvem da violência, bastando para tanto dizer que o agente desde sempre/desde o casamento deu pontapés na vítima, lhe chamou vaca, etc.

  O resultado é que seria muito mais fácil acusar e condenar pelo crime de violência doméstica – por dispensar qualquer esforço de concretização e localização -, do que pelos crimes em que o mesmo se decompõe, menos graves do que aquele. E daqui resultaria a tentação de enquadrar todas as agressões físicas e verbais perpetradas num determinado contexto no tipo da violência doméstica.

  Ou seja, aquela norma não pode ter-se como dispensando, sem mais, a concretização dos factos.

  Muitas têm sido as decisões proferidas pelo S.T.J. neste sentido.

Já em 6-5-2004, no acórdão proferido no processo 04P908, o S.T.J. decidiu não serem «"factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.)» porque não sendo susceptíveis de contradita inviabilizavam o direito de defesa.

  De forma ainda mais incisiva decidiu aquele tribunal em 21-2-2007, no processo 06P3932, que «o arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender», pois «ninguém pode contestar, eficazmente, a imputação de uma situação abstracta ou vaga, muito menos validamente contraditar a prova de uma tal situação … sendo que a aceitação das afirmações genéricas como «factos» inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da CRP», tendo-se decidido que integrava esta situação o caso em que se julgou provado que o arguido tinha vendido haxixe e cocaína, por conta própria, com intenção de obter contrapartida económica.

 

Este entendimento repetidamente afirmado pelo S.T.J. quanto ao crime de tráfico de droga foi, também, referido de forma expressa a propósito do crime de maus-tratos no acórdão de 2-4-2008, processo 07P4197, que decidiu que «resultando da matéria de facto apurada apenas que … após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, "continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas", agrediu aquela "com bofetadas" e que com "frequência era chamada a Polícia àquela residência", impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências …».

O nosso direito acolheu o princípio do processo justo e equitativo, quer por imposição constitucional, decorrente do art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, quer por via do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Por só um processo equitativo assegurar todas as garantias de defesa do arguido é que ele se tornou em princípio fundamental revelador da preeminência do Direito numa sociedade democrática como é a nossa [1].

O processo equitativo exige que cada um dos intervenientes tenha a possibilidade de defender os seus interesses e que o faça em condições de igualdade com os demais.

Trata-se de um conceito complexo, que vai ganhando vida à medida que se compõe o seu conteúdo, integrado por princípios vários, uns que consubstanciam aquisições recentes, outros que estão adquiridos há, já, longos anos.

Um destes princípios, antigos, que o integram e sem o qual ele não vive, é o princípio do contraditório, que também merece consagração expressa na nossa Constituição da República Portuguesa, no nº 5 do art. 31º.

Pelo princípio do contraditório garante-se a cada uma das partes do processo que exponha as suas razões, ofereça as suas provas e se pronuncie sobre as razões e provas apresentadas pelos demais. Do mesmo modo, na sua formulação negativa, este princípio proíbe qualquer limitação do direito de defesa, designadamente o direito de se pronunciar sobre elementos juntos ao processo.

Do exposto resulta que o arguido em processo crime tem o direito de se pronunciar sobre todas as suspeitas que impendam sobre si. E para se pronunciar tem que conhecer os factos cuja autoria lhe seja atribuída, porque só conhecendo todos esses factos é que os pode rebater, ou seja, é que se pode defender convenientemente.

E então estamos perante mais um dos princípios integradores do processo equitativo, qual seja o direito que o arguido tem de ser informado dos factos cuja prática lhe é imputada (art. 6º, nº 3, al. a), da C.E.D.H.).

Daí que não se pode ter como acusação, no sentido adoptado, a imputação de factos genéricos, vagos, que não permita ao acusado localizar, no tempo e espaço, as acções que lhe são atribuídas [2].

Se as imputações genéricas não são factos, se violam os direitos de defesa do arguido violam, por isso, o princípio do processo equitativo, resultando daqui que não podem sustentar uma condenação penal.

A propósito do exercício do direito de defesa perante factos genéricos diremos, citando o acórdão da Relação de Évora de 17-9-2013, processo 97/11.8PFSTB, que eles não podem ter-se como relevantes e aceitáveis: «Aceitáveis desde logo em termos de permitir o contraditório. Relevante, nessa mesma sequência, o contraditório, mas também porque nada significam em termos penais e apenas se destinam a mascarar a pretensão de “sair” de um crime simples e tradicional (as ofensas corporais, injúrias e/ou as ameaças) para “concretizar” a pretensão de preenchimento de um crime pleno de modernidade, a violência doméstica”.

… os factos que devem ser/são o “objecto do processo” têm que ter a característica da “falsificabilidade” popperiana, já não como critério essencial para a caracterização das teorias científicas, sim com o sentido de que a sua concretude pode ser declarada falsa … o que não pode ser declarado não provado por falta de concretização ou por ridículo, não pode ser declarado provado.

Mas não é, apenas, a ausência de factos e/ou prova que se pretendem ultrapassar com este tipo de “alegação”.

Alegando-se de forma genérica está-se a tentar ultrapassar dificuldades processuais. Deixa de haver preocupações processuais comezinhas: a natureza do crime? Público, semi-público, particular? Existência de queixa? Caducidade desse direito? Prescrição? …

Trata-se de violência doméstica, o crime “borracha” que apaga preocupações processuais e dispensa grande rigor na linguagem, investigação, instrução e prova nos autos.

As dificuldades de investigação, instrução e prova podem ser relevantes neste tipo de crime ocorrido entre paredes. Para isso deve haver compreensão. Não pode haver compreensão para uma universalizada generalização que perverte os princípios penais e processuais penais.

…a própria dificuldade teorética de enquadramento do tipo de crime face a crimes tradicionais que lhe ocupam um campo de previsão sincrónico, o uso pleno de conceitos indeterminados, as dificuldades inerentes aos conceitos de “modo reiterado ou não” e “maus tratos físicos ou psíquicos”, impõem uma clara e precisa – concreta – exposição de factos a inserir no tipo.

Tudo neste tipo é incompatível com uma generalização factual sob pena de futura ineficácia do tipo, para além da presente violação dos mais elementares direitos de defesa, um intolerável achincalhamento do contraditório.

… maus-tratos significa o exercício de violência. Mas o conceito necessita de ser escalpelizado … “O tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de activar a reacção penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado “… a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de actos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade”».

Se é verdade que o crime de violência doméstica pode consumar-se com um único acto ou no âmbito de uma relação de curta duração, em que a datação dos actos será relativamente fácil, casos há em que o crime se prolonga por muito tempo, décadas até, em que os actos são repetidamente praticados e em que a concretização do lugar e do tempo já é muito difícil.

E aqui quid iuris? Nesta situação será razoável exigir à vítima, que o foi ao longo de tanto tempo, que date cada um dos comportamentos ofensivos que sofreu?

As regras da experiência ensinam-nos que há factos especialmente relevantes que permanecem indeléveis na memória mas relativamente aos quais muitos pormenores se apagam, por exemplo a data da respectiva ocorrência.

No entanto, e como já avançámos, entendemos, contrariamente ao que por vezes se defende, que a expressão «se possível» que consta do art. 283º, nº 3, al. b), do C.P.P. não pode interpretar-se como permitindo a dispensa total de investigação quanto às circunstâncias em que as acções que constituem o crime ocorreram porque, recordando, «Tudo neste tipo é incompatível com uma generalização factual».

A vítima tem direito à tutela penal e o arguido, por outro lado, tem direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos que fundamentam a condenação.

Há, pois, que tentar alcançar o equilíbrio entre estes direitos.

Sendo certo que termos que ter em conta a natureza do crime, também não podemos aceitar generalizações que podem desembocar num apagamento das preocupações processuais de investigação e consequente inoperância de certos institutos de direito penal, como a constatação da existência de factos que ao tempo da sua prática não eram punidos, da verificação da prescrição relativamente a outros e, até, de relevar comportamentos da vítima reveladores de superação/perdão de comportamentos do agente.

Por isso a solução tem que se encontrar caso a caso, atendendo sempre às eventuais dificuldades de datação dos factos quando estas se revelem compreensíveis, mas também aos direitos do arguido.

Numa aproximação à solução que defendemos diremos que não é aceitável ter-se como legal dar como provado, por exemplo, que «desde o casamento até à separação - ocorrida 10, 20, 30 anos depois -, o arguido deu socos e pontapés à esposa e chamou-lhe puta», ou que «deu socos e chamou puta muitas vezes», ou outras formulações semelhantes.

Ter como legal uma imputação deste teor, aceitar este tipo de descrição factual, significaria o abandono de todo o rigor na investigação e prova dos factos neste tipo de crime, tal como foi salientado no acórdão da relação de Évora.

Depois se, por via disso, se concluísse que o agente cometeu um tal crime durante, por exemplo, 20 anos, pensamos que seria incompreensível, em regra, suspender a execução da pena de prisão que se aplicasse.

Para além disso sempre estaria arredada a possibilidade de configuração de concurso de crimes.

Mas também não podemos exigir que a vítima mantenha uma contabilidade de todos os actos de violência que sejam cometidos sobre si para, depois, os fazer verter numa acusação que relate todos os pormenores de cada um deles.

Assim, admitindo-se que possa haver as imputações não concretizadas, sempre terá que haver alguma concretização de forma a ser possível localizá-las no tempo e situá-las no espaço com alguma precisão.

Por isso temos como aceitável que se diga, por exemplo, que o agente deu um murro na vítima na altura em que esta sofreu a intervenção cirúrgica X, ou que lhe deu um pontapé que determinou a sua ida ao hospital para receber tratamento, pois em ambos os casos é possível apurar em que altura é que os referidos actos tiveram lugar.

Trata-se de uma conclusão a tirar caso a caso, perante os termos em que os factos geradores de condenação estejam descritos.

Quanto à consequência de serem dados como provados factos genéricos, vagos e sem possibilidade de qualquer concretização, tratando-se de factos insusceptíveis de fundarem uma condenação entendemos, como muitas outras decisões têm entendido, que os mesmos se têm por não escritos.

Pelas razões acima expostas temos por não escritos os pontos nº 4, 5 e 6 da matéria de facto julgada provada.

Persistem, porém, os factos descritos nos pontos 7 a 11 e 16, cujo conteúdo é o que segue:

«7 – No dia 10 de Agosto de 2010, o arguido dirigiu-se à casa do casal composto por si e por B... , em Portugal, sita na Rua (...) ;

8 – Onde se encontrava B... e D... ;

9 – Nessa ocasião, pretendia levar consigo três armas de sua propriedade;

10 – Perante a recusa de B... , o arguido, perante o filho D... , chamou àquela “puta” e “vaca”;

11 – E disse: “Deito fogo à casa e ao carro … fodo-vos a todos”;

16 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei».

Estes factos poderiam configurar a prática, desde logo, de um crime de injúria na pessoa de B... .

Porém, estando o procedimento criminal por este crime dependente de acusação particular – art. 50º do C.P.P. e 181º e 188º do Código Penal -, e não se tendo a ofendida constituído assistente nem deduzido acusação particular, não é possível conhecer do crime de injúria.

Do mesmo modo que aconteceria se desde o início os factos tivessem sido enquadrados no tipo das injúrias, em caso de alteração do enquadramento legal todos os pressupostos da configuração do crime terão que ocorrer para se poder proceder a essa alteração de qualificação.

  Resta, então, a expressão proferida «deito fogo à casa e ao carro, fodo-vos a todos», sendo que «o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei».

  Nos termos do art. 153º, nº 1, do Código Penal comete o crime de ameaça «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação …».

Diz, depois, o nº 1 do art. 155º que se estes factos forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena aplicável, ao invés da prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, como sucede naquela situação, será de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e acção e as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa ameaçada, afectam a paz individual essencial à verdadeira liberdade.

Sobre as características objectivas do tipo, são três:

- o objecto da ameaça é um mal dos previstos na norma, ou seja, a perpetração de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;

- o mal ameaçado é futuro, iminente ou não;

- a sua ocorrência depende da vontade do agente.

  Quanto à possibilidade de o entendimento de mal iminente enquadrar ainda o crime de ameaça gerar confusão com a tentativa de um crime, por exemplo de homicídio, isso pode acontecer, sendo certo que em tal caso sempre continuaria a haver ameaça, por um lado, e por outro o crime tentado consumiria o crime de ameaça.

Tudo depende da intenção do agente.

Visando o tipo proteger a liberdade de decisão e acção, as ameaças, ao gerarem insegurança, intranquilidade ou medo, afectam a paz individual, essencial à liberdade, da pessoa ameaçada.

Por isso a ameaça tem que ser adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação, tem que ser susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação, embora sem carecer de afectar, em concreto, a liberdade de determinação da pessoa ameaçada, pois que agora o crime está configurado como de mera acção ou de perigo.

Quanto à adequação da ameaça à criação de medo ou inquietação, a análise assenta num critério objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa/critério do “homem comum”; individual, porque devem relevar as características da pessoa ameaçada/relevância das “sub-capacidades” do ameaçado ou, inversamente, das “sobre-capacidades”. A ameaça adequada é, portanto, aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não intimidado (Taipa de Carvalho, comentário à norma in Comentário Conimbricense do Código Penal, 2ª ed., pág. 552 e segs.).

  Tendo em conta todo o exposto entendemos que os factos residuais acima realçados não configuram o crime de ameaça, por inexistência do elemento subjectivo.


*

  Continuando, o arguido foi, também, condenado pelo crime de detenção de arma proibida e quanto a este alega que a expressão «fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente» contida na norma do art. 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23/2, «é abstracta, vaga e suficientemente aberta para dentro dela caber o que quisermos que nela caiba».

  Diz a norma que comete o crime de detenção e arma proibida «quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo …».

  Portanto a norma pune, para além do mais, a detenção das armas especificadas que não estejam legalizadas e também a detenção de armas, legalizadas ou não, por agente não autorizado, ou seja, a ausência de licença e/ou a ausência de autorização, arma indocumentada e/ou agente indocumentado.

 

  Já no tempo do D.L. nº 275-A/75, de 17/4, integrava o crime de detenção de arma proibida a detenção de arma não proibida que não estivesse manifestada e registada, bem como a detenção de arma registada por parte de pessoa não titular de autorização ou licença.

  Este diploma foi expressamente revogado pelo D.L. nº 400/82, de 23/9, que aprovou o Código Penal de 1982 e que passou a prever, no art. 260º, o crime de arma proibida nos seguintes termos:

- «A importação, fabrico, guarda, compra, venda ou cedência por qualquer título, bem como o transporte, detenção, uso e porte de armas proibidas, engenhos ou materiais explosivos ou capazes de produzir explosões nucleares, radioactivos ou próprios para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes, serão punidos com prisão até 3 anos ou multa de 100 a 200 dias».

  No âmbito desta norma surgiu, aliás, um assento do S.T.J., o 5/89, que decidiu que a detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6,35 milímetros, não manifestada nem registada, constituía o crime do art. 260º do Código Penal.

  E assim continuou a acontecer depois da alteração de 1995.

  Portanto, a expressão legal impugnada tem décadas. É muito antiga e com suficiente tempo decorrido para ter, já, sido assimilada.

  Concedemos que será de difícil apreensão por parte do cidadão comum o que seja o crime de arma proibida.

Mas neste particular dir-se-ia que o arguido estaria especialmente habilitado para saber em que termos podia deter armas de fogo.

E se não estava, como alegou, isto significa não falta de consciência da ilicitude relevante, uma vez que o conceito legal é muito antigo, mas, ao invés, desconsideração censurável das regras legais em vigor.

  Foi julgado provado que:

«12 – … o arguido detinha …

a) Uma arma de fogo longa com a marca Winchester e o número K48086E, calibre 12, com o comprimento total de 111 cms e de cano de 69,5 cms, em bom estado de conservação e aparentando condições para efectuar disparos;

b) Uma arma de fogo longa, com marca e número de série desconhecidos, calibre 12, com o comprimento total de 110,5 cms e 69,5 cms de cano, em mau estado de conservação e funcionamento;

13 – Tais armas não se encontravam registadas nem manifestadas.

14 – O arguido conhecia a natureza e as características das armas que detinha;

15 – O arguido sabia que a posse e a detenção, naquelas circunstâncias, das referidas armas, eram proibidas;

16 – O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei».

  Cometeu, portanto, o crime de detenção de arma proibida.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na procedência parcial do recurso decide-se:

1º - considerar não escritos os pontos nº 4, 5 e 6 da matéria de facto julgada provada;

2º - absolver o arguido A... do crime de violência doméstica;

3º - absolver o arguido do pagamento da indemnização atribuída oficiosamente à ofendida;

4º - manter a sentença recorrida quando ao mais.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 2018-1-17

                                     

Olga Maurício (relatora)

                                              

Luís Teixeira (adjunto)


[1] Vide Ireneu Cabral Barreto, in A Convenção Europeia dos Direitos do Homem anotada, 3ª ed., pág. 113.
[2] Acórdãos do S.T.J. de 15-11-2007, processo 07P3236, e de 2-7-2008, processo 07P3861.