Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2201/14.5TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: POSSE
USUCAPIÃO
SIMULAÇÃO
COMPRA E VENDA
POSSE
INSOLVÊNCIA
COMPRADOR
IMÓVEL
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1262º E 1297º DO C. CIVIL; 81º E 82º DO CIRE.
Sumário: I – A posse que justifica e permite a reclamação de reconhecimento por usucapião é apenas a que for exercida publicamente (art.s 1262º e 1297º do CC).

II - Não se pode entender como posse pública aquela que é exercida por alguém sobre um imóvel que adquiriu e tinha registado em seu nome mas que a partir de certo momento simulou vender a outrem, que o registou em seu próprio nome, para que o vendedor/simulador, que nele continuou a residir como sempre havia feito, não viesse a ver esse imóvel executado.

III - Se o simulador/comprador vier a ser declarado insolvente o simulador/vendedor pode arguir a nulidade do negócio simulado, nos termos do art. 242º, nº 1 do CC, uma vez que a massa insolvente para efeitos desta arguição não pode ser considerado terceiro de boa-fé (art. 243º CC), uma vez que a transmissão/conversão dos bens do insolvente em massa insolvente não confere a esta massa uma identidade distinta para efeitos da arguição da nulidade.

IV - Nos termos dos arts. 81º, nº 4 e 82º do CIRE, tendo o administrador a exclusiva responsabilidade para propor e fazer seguir ações, por os poderes de que o insolvente é privado lhe serem atribuídos a ele, de igual modo e por consequente lógica de razão e teleologia nas ações que sejam propostas contra o devedor/insolvente, o administrador passa a ser seu representante, podendo ser-lhe opostos todos os meios de defesa que lhe seja lícito invocar contra o insolvente, sem se poder protestar que esses meios não podem já ser invocados por a massa insolvente e o insolvente serem pessoas e patrimónios distintos.

V - Quando a propriedade sobre determinado imóvel tenha resultado de aquisição em venda judicial realizada em processo de execução, não sendo este tipo de venda um acto entre privados, por nela não relevar a vontade do proprietário mas sim intervir a autoridade pública do tribunal no acto de transmissão, io regime de anulação específico desse acto de venda é o prescrito nos arts. 838º e 839º do Código de Processo Civil.

Decisão Texto Integral:                







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

A autora M..., na qualidade de administradora da massa insolvente de A... e S..., instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a ré T...

Alegando que no exercício das suas funções de administradora da insolvência supra referida apreendeu determinada fracção autónoma designada pela letra “E” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., não logrou proceder à venda do referido prédio, atribuindo tal frustração da venda ao facto de ali residir a ré, que não possui qualquer direito para o efeito. Mais alegou a autora que a permanência da ré na dita fracção lhe está a gerar avultados danos, e que se vê privada da renda que a mesma poderia gerar, pedindo assim a condenação da ré:

- a reconhecer ser a autora proprietária da dita fracção, seja porque a adquiriu derivadamente ou, caso assim não se entenda, por usucapião;

- ser declarado nulo e sem nenhum efeito o contrato de comodato que a ré invoca como fundamento para permanecer a ocupar o imóvel em causa;

- a restituir o imóvel livre e devoluto à autora;

- a pagar a quantia indemnizatória de € 24.000,00 acrescida de juros desde a citação até integral pagamento, equivalente a quantias de rendas que a autora não recebeu  por o imóvel estar ocupado pela ré;

- a pagar a quantia indemnizatória diária de € 50,00 desde a citação até à entrega do imóvel;

- a pagar uma indemnização a liquidar em execução de sentença, relativa a danos patrimoniais e não patrimoniais causados na esfera jurídica da autora, por força da sua ocupação indevida do imóvel, assim obstaculizando o exercício de direito real de gozo por parte da autora.

A Ré contestou alegando que embora a fração em causa estivesse registada na competente Conservatória de Registo Predial em nome de A..., casado no regime da comunhão de adquiridos com S..., nunca lhes pertenceu, nem da mesma foram possuidores; que é ela a ré que há mais de 30 anos vem possuindo a dita fração, ininterruptamente, à vista de todos, sem oposição de ninguém, agindo na convicção de exercer um direito próprio, sem ofensa de direito de terceiros; que o prédio em questão foi construído pela ré e pelo, à data, seu marido, F..., que o constituíram em propriedade horizontal, tendo reservado para si uma fração que veio a ser penhorada no âmbito de ação executiva, no decurso da qual a ré e o então seu marido, F..., pagaram a totalidade da quantia exequenda. E porque celebraram acordo com os ali exequentes (...) a execução chegou à fase da venda, tendo sido adjudicada aos referidos exequentes a fração penhorada. Tal adjudicação permitiu que a fração deixasse de constar como pertencendo à ré e ao marido, e que não respondesse pelas dívidas destes.

Mas tendo o exequente exigido, mais tarde, deixar de constar no registo como titular do imóvel e, como a ré e o marido eram titulares passivos de dívidas indicaram, para o efeito, o nome do filho, A..., casado no regime da comunhão de adquiridos com S... Assim, veio a ser celebrada escritura pela qual os exequentes transmitiram ao referido filho da ré a titularidade da fração, embora não tivessem pago qualquer preço pela mesma, por se ter tratado de negócio simulado.

Concluiu a ré solicitando que fosse julgada improcedente a ação e deduzindo reconvenção pela qual solicitou:

- a declaração de que é a legítima proprietária do imóvel em questão;

- a declaração de nulidade da transmissão do imóvel para A... e esposa, S..., e o cancelamento do respectivo registo;

- a declaração de nulidade da transmissão do imóvel para o Eng. B... e esposa, O... e o  cancelamento do respectivo registo.

Realizado julgamento e proferida sentença veio a acção a ser julgada procedente e declarada a massa insolvente de A... e S... proprietária da fração autónoma designada pela letra E, que corresponde ao 1º andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no Bairro ...;

- condenada a ré no reconhecimento do referido direito de propriedade;

- condenada a ré na imediata restituição à autora do referido bem imóvel;

- condenada a ré no pagamento à autora da indemnização de € 6.175 (seis mil e cento setenta e cinco euros), acrescida da quantia mensal de € 325 (trezentos e vinte e cinco euros) por cada mês que decorra até à efectiva entrega do bem imóvel.

Absolvida a ré do demais peticionado.

E foi ainda julgada improcedente a reconvenção, e absolvida a autora do pedido reconvencional contra si formulado pela identificada ré.

Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a Ré concluindo que:

...

A autora contra alegou defendendo a confirmação da decisão recorrida.

Cumpre decidir.

 Fundamentação

O Tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

… …

Além de delimitado pelo objecto da ação, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso interposto pela Ré remete para a impugnação da matéria de facto e para a consequente alteração de direito decorrente dessa alteração da fixação da prova.

Na análise da impugnação da matéria de facto observamos que o nº 1 do art. 640 do CPC estabelece que quando haja sido feita essa impugnação o recorrente deve obrigatoriamente e sob pena de rejeição especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham a decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

E acrescenta o nº 2 do preceito que no caso de terem sido invocados meios probatórios gravados como fundamento do erro na apreciação do recurso, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens gravadas em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

São estes os requisitos de forma que a lei estabelece como imprescindíveis ao conhecimento da impugnação, não deixando dúvidas que a sua inobservância gera a rejeição da solicitação da impugnação.

Apreciando os termos da impugnação, a ré, em concreto e concretizando, apenas protesta que o ponto 27 dos factos provados deveria passar a ser julgado como não provado e isto por não haver qualquer prova testemunhal ou documental que o suporte.

Porém, quanto aos mais da impugnação, tudo o que a recorrente alega é que o depoimento do Sr. F... tem alguns aspectos importantes para o desfecho da presente acção e que as suas declarações foram erradamente valoradas pela meritíssima juiz a quo, devendo ter servido para mostrar a simulação do negócio jurídico em que o imóvel foi registado em nome do Eng.º B..., porque a este já nada era devido.

Decorre desta brevíssima súmula que de forma expressa, com excepção do facto inscrito na sentença nos provados com o número 27, a recorrente não indica os concretos pontos da matéria facto fixada na sentença como provada ou não provada que pretende ver alterados nem propõe que tipo de resposta lhe deveria ser dada limitando-se a protestar que devia ter sido dada como provada a simulação nos termos do art. 240 do CCivil sem reportar os factos concretos, entre os articulados e valorados em julgamento e sentença, que inscrevem esse conceito de simulação, sendo certo que não compete, obviamente, ao julgador escolhê-los a seu critério.

Veja-se que a sentença, quanto aos factos que poderiam, em abstracto e segundo o que a ré articulou na contestação, constituir a alegação de simulação (ou simulações sucessivas) considerou alguns como não provados e a outros não respondeu por “conterem mera impugnação, remissão para meios de prova, matéria de direito, conclusiva ou por serem inócuos para a decisão da causa”, razão acrescida para que cumprisse à recorrente a diligência de mencionar os concretos factos que queria ver provados, discernindo naqueles que a sentença considerou não provados ou a que não deu resposta.

Julgamos, pois, que a impugnação da matéria de facto realizada pela ré se encontra feita de forma deficiente por não mencionar os pontos concretos da matéria de facto que pretende ver considerados provados e por não indicar que resposta concreta deveriam merecer.

Sem embargo, e ainda que certificada a deficiência da impugnação da matéria de facto, sempre se dirá, por ser manifesto neste caso, que mesmo a ter-se por regular tal impugnação e a “obrigar-se” este Tribunal a conhecer, segundo a sua intuição do que o recorrente pretendia e não disse, ela não conduziria nunca à alteração dos factos fixados como provados e não provados na sentença.

De facto, a recorrente para tal alteração no domínio da “simulação” reclama apenas a autoridade do testemunho de F..., com quem a recorrente foi casada.

 Na análise critica de tais declarações obtemos que, se bem que a recorrente sustentasse que a testemunha F... afirmara que “Quando me divorciei, prometi-lhe deixar-lhe a casa. (…) A casa seria sempre para ela. Quando a casa estava liberta a casa era para ela, entretanto sei que fizeram a escritura para o nosso filho porque ela autorizou com certeza” e que “Esse apartamento foi sempre minha habitação e da dona T... Eu divorcieime mas ela ficou lá até hoje.”, a verdade é que a totalidade do seu testemunho revela um contexto bem diferente do reclamado e que conduz a convicção diferente daquela que a recorrente protestava

De facto, no testemunho em apreço, desde logo, F... nunca refere, mesmo quando lhe foi perguntado por duas vezes e a diferentes instâncias, que tivesse combinado com B... que embora lhe tivesse pago a dívida exequenda tenha acordado com ele que a casa ficaria registada em seu nome.

Este elemento é importantíssimo, não só para retirar relevo à transcrição que a recorrente realiza deste testemunho e que aí aparece truncado, como também para certificar que de tal testemunho se não pode extrair que a casa ficou a pertencer à ré ainda que com registo alheio.

Mais concretamente, retira-se das declarações de F... que foi nesse processo de execução que ele se desinteressou do destino da casa por se encontrar já separado (ou mesmo divorciado) e pretender que a casa ficasse para a mulher. Porém, este testemunho situa nesse mesmo momento, contemporâneo da execução o facto de a ré recusar ficar com a casa em seu nome, querendo sim que ficasse para o nome do filho. E ainda que a recorrente pretenda que fosse por causa das dívidas do casal formado por ela e por F... que a casa passou de B... para o filho, a verdade e é que o testemunho de F... não autoriza essa conclusão porque ele mesmo refere, não saber porque é que a ré quis que a casa ficasse em nome do filho, acrescentado  até, que não sabe se o filho pagou ou não alguma coisa pela casa à mãe.

Esta última afirmação tem na base a possibilidade, admitida pela testemunha, de o filho ter de facto adquirido a casa (até porque como ele diz na altura a vida do filho estava bem) e se tal era possível, não pode dizer-se como a recorrente pretende que tivesse que ficar provado que a casa era dela porque só ficou em nome do filho para evitar que viesse a ser executada.

Dos restantes testemunhos, a que a recorrente não alude, resulta também a ideia de que os vizinhos da fração sempre a viram viver no imóvel desde a sua construção tendo sido o marido quem construiu o prédio e reservou uma fração, mas desconheciam em absoluto a que título concreto ela ali se encontrava ainda viver, se como proprietária, que fora inicialmente, se a outro título, até porque, alude uma delas, a casa estaria em nome do filho, referindo outra que teria havido uma penhora da fração.

Em resumo, não merece censura alguma a fixação da matéria de facto provada e não provada realizada na sentença e como tal se deve manter sem alteração, com excepção do ponto 27 dos factos provados, cuja resposta deverá passar a ter a seguinte redacção “A ré, através do seu mandatário foi notificado da venda (artigo 38º da petição inicial)”, por não haver nos autos prova que possa consolidar mais que isso.

Quanto à decisão de direito, no confronto entre as reclamações recíprocas de propriedade de autora e ré sobre o imóvel, a decisão a proferir está dependente da alegação e prova do facto jurídico do qual deriva o direito de propriedade de que ambas se arrogam, observando-se que a autora firma esse seu direito na presunção do registo em nome dos insolventes, A... e S..., enquanto a ré faz depender a sua protestada titularidade da nulidade do negócio de compra e venda de onde resultou o registo a favor dos insolventes (e portanto da nulidade do próprio registo) e, também, da usucapião a seu favor sobre o imóvel.

Na redução à simplicidade dos seus argumentos, a autora defende que havendo registo do imóvel a favor dos insolventes isso constitui presunção de que o direito existe e que pertence ao titular inscrito, nos precisos termos definidos no registo (art.7º CRP, aplicável por força do art.29 do DL nº54/75 de 12/2), tratando-se de uma presunção juris tantum[1].

Para ilidir esta presunção seria necessário, ou fazer a prova da nulidade do registo, ou demonstrar a invalidade do negócio/acto jurídico com base no qual foi feito o registo[2] ou, ainda, que a titularidade do direito inscrito pertence a outrem, pedindo-se, simultaneamente, o respectivo cancelamento.

Ora, foi precisamente para ilidir essa presunção resultante do registo que a ré veio opor que o negócio de compra e venda que esteve na base da inscrição registral era nulo, por simulação, e como tal deveria ser tal registo cancelado, acrescentando ainda que a propriedade do imóvel deveria ser-lhe reconhecida por, desde sempre e há mais de 30 anos, o vir possuindo, ininterruptamente, à vista de todos, sem oposição de ninguém e sempre na convicção de exercer um direito próprio e sem ofensa de terceiros.

 Com este itinerário argumentativo e tendo presente a existência do registo a favor dos insolventes, o sucesso da pretensão da ré, para desvitalizar aquele registo e a sua presunção, teria de alegar, como o fez, a nulidade da venda que esteve na base do registo e, depois, a sua própria titularidade sobre o imóvel, através de um modo de aquisição originário como o é a usucapião.

Porém, tendo feito essa alegação verificamos que não fez prova, nem da simulação que pretendia provar, nem dos factos constitutivos da usucapião, ou seja, que a aquisição do imóvel, realizada por B... e sua mulher em processo de execução em que a ré e o marido eram executados e a posterior venda de tal imóvel daqueles adquirentes aos insolventes, tenham sido fictícias e sem a vontade de comprar e de vender pelos ali contraentes.

Por outro lado, de igual forma, não fez a ré prova de que tenha tido o imóvel em sua posse de forma ininterrupta e pelo tempo que alegava, em situação semelhante ao exercício do direito de propriedade, ou seja, na convicção de exercer e de dar a conhecer o exercício de um direito de propriedade próprio à vista de todos, sem oposição de ninguém e sempre na convicção, também, de exercer um direito próprio e sem ofensa de terceiros.

A circunstância provada de B... nunca ter utilizado a fração em causa, não ter lá tomado qualquer refeição, não o ter arrendado ou ali efectuado qualquer obra ou de limpeza, nunca ter tido as chaves em seu poder, ou a situação de a fração ter sido transmitida a A..., mantendo-se sempre a ré a ocupar o imóvel, não permitem configurar por si mesmos qualquer situação de posse equivalente ao exercício do direito de propriedade.

É verdade, porque a prova o certifica, que a ré há mais de 30 anos, desde a sua construção, que habita a referida fração, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, pelo menos até à data de interposição da presente acção, mantendo as respectivas chaves em seu poder e que durante todo esse período de tempo preservou e conservou a fração, fazendo as necessárias limpezas, tendo até o prédio onde se insere a fração sido construído e constituído em propriedade horizontal pela ré e pelo então seu marido, F..., que se dedicava à construção civil. Contudo, desta dimensão objectiva e naturalística de adstrição da ré ao imóvel, não decorre automaticamente, nem de forma causal, a conclusão normativa de ser ela, e ter sido sempre ela a proprietária, uma vez que a evidente existência de actos jurídicos, como a aquisição em processo de execução da fração por outrem, quebra de forma pública e aparente a posse da demandante como exercício do direito de propriedade, sem que nenhum facto provado na ação permita questionar a regularidade da aquisição realizada nesse processo de execução e através da qual, a ré e o então seu marido perderam o registo da fração.

E se a ré manteve a ocupação da fração, exteriormente com os mesmos sinais de ocupação, maximé, mantendo as respectivas chaves em seu poder e preservando-  -a, conservando-a e fazendo as necessárias limpezas, a verdade é que a partir da aquisição da fração por outrem exigia-se que houvesse publicamente, mais que actos de manutenção da ocupação, manifestações inequívocas de que essa ocupação se mantinha exactamente igual à anterior, não só na forma como também no conteúdo. Isto é, que se mantinha proprietária por a aquisição realizada por B..., em processo de execução, não ter passado de um embuste congeminado para iludir terceiros, para afectar exteriormente que já não era proprietária.

Ora, não só não se fez prova disto que enunciámos como também a própria alegação da ré veio tornar ainda mais difícil essa prova.

Em verdade, distinguindo a Lei Civil entre posse pública e oculta (art. 1262) para efeitos de usucapião determina a mesma lei que se a posse tiver sido constituída ocultamente os prazos da usucapião só começam a contar-se desde a data em que a posse se torne pública (art. 1297).

Assim, ao declarar a recorrente que a simulação, ou simulações sucessivas (se nelas incluirmos a venda da fração por B... aos insolventes) tinha como finalidade evitar que a generalidade das pessoas se apercebesse que era ela a proprietária, não pode pretender que se fizesse prova, com base no que alegou, de que à frente de toda a gente ela sempre foi reconhecida, de forma ininterrupta, e por mais de 30 anos, como proprietária da fração, o que era essencial ao reconhecimento do seu direito de propriedade com base na usucapião (arts. 1287 e 1294 do CCivil.).

Se isto se passa no âmbito da falta de prova dos requisitos consistentes no reconhecimento do direito de propriedade da ré com base na usucapião, outrossim se observa quanto à falta de prova dos requisitos da nulidade, por simulação, dos negócios registados depois do registo da titularidade da ré e seu então marido, referentes à fração.

Como se resume na sentença, a demonstração da verificação dos pressupostos da simulação (os inscritos no art. 240 do CCivil) compete a quem a invoca (art. 342º, nº 1, do CCivil) e aquele que tem direito a ver declarada a sua nulidade (art. 286 CC) tem de alegar e provar os factos que estarão na sua base e que são os constitutivos do direito pretendido.

De forma liminar, o recorrido afasta a possibilidade de se conhecer em recurso da pretensão de direito da Ré argumentando a proibição da arguição da nulidade pelo simulador, uma vez que lhe deve [a ela, autora] ser reconhecida a qualidade de terceira de boa-fé, razão pela qual nem deveria o tribunal recorrido apreciar de quaisquer outros fundamentos em concreto.

Muito brevemente, no quadro da simulação importa ter presente que o negócio simulado tanto pode interferir com interesses de terceiros aos quais importa que a simulação seja posta a descoberto, como com interesses daqueles que, situando-se em plano oposto, tendo tomado como bom o negócio simulado, são titulares de direitos que ficam afectados, na sua consistência prática ou jurídica, pela eficácia retroactiva da declaração de nulidade com que a lei sanciona o negócio simulado[3].

Sob a epígrafe “Legitimidade para arguir a simulação”, o artigo 242.º proclama que “Sem prejuízo do disposto no artigo 286.º, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta” (vide n.º 1), daqui resultando, pois, que fora das situações previstas no preceito, vale a regra geral de que a nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado, e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal.

Reconhecendo assim a lei ao terceiro interessado na revelação da simulação legitimidade para obter a declaração de nulidade do negócio simulado, no polo oposto o art.º 243 consagra a inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé. A boa fé aqui considerada assenta na concepção subjectiva, consistente na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos.

Invocando a citada disposição legal e partindo do pressuposto que aos simuladores - neste caso a ré - estava vedada a invocação da simulação, conclui a apelada pela inadmissibilidade de se conhecer das questões de direito suscitadas na Apelação, em razão desta falta de “legitimidade”.

O art. 243º nº 1 do C.C. limita-se a estabelecer um regime especial em relação ao regime geral das nulidades, mas apenas nas relações entre terceiros de boa-fé e os simuladores, não sendo a massa insolvente, no caso, terceiro de boa-fé.

Sendo a intencionalidade (dolo) que caracteriza a simulação que justifica a protecção do terceiro de boa fé, que acreditou nas aparências, contra os simuladores que fraudulentamente os criaram, é óbvio que a situação dos simuladores não é comparável à de qualquer terceiro (de boa fé) interessado na declaração de nulidade do negócio simulado nos termos gerais dos art.s 286º e 289º do C.C., posto que demonstre um interesse atendível justificativo da respectiva arguição.

O art. 243 é uma norma simplesmente limitativa ao âmbito de aplicação do art. 286 e constitui um regime especial em relação a este preceito na medida em que exclui das pessoas legitimadas para invocar a nulidade os próprios simuladores em relação a um terceiro de boa fé, com a finalidade de castigar aqueles ao não lhes permitir, nunca, a arguição da nulidade e a destruição das aparências que simulada e deliberadamente criaram e em que o terceiro de boa fé confiou.

Julgamos que no caso em estudo a ré não estava impossibilitado de arguir como o fez a nulidade por simulação, ainda que se declarasse como sendo um dos simuladores no negócio que alegou.

Para lá dos casos estudados na doutrina em que se indaga se a proibição vale tanto para os casos em que a declaração de nulidade acarreta para o terceiro um prejuízo, como para aqueles em que apenas o priva de uma vantagem, e em que a maioria se pronunciou que apenas os interesses daqueles que, em virtude da nulidade, sofrem um prejuízo, são aqui visados, só em atenção a eles tendo sido consagrada a inoponibilidade da simulação[4], a situação referenciada nos autos configura um caso distinto desses outros, em que a autora, aqui afirmada como terceiro de boa fé, é a massa insolvente de A... e S..., em cujo património se encontra registada a fracção à data da apreensão dos bens.

Neste contexto particular a conversão dos bens dos insolventes em “massa insolvente” não constitui um acto jurídico pelo qual este património ganhe uma identidade própria e distinta da dos insolventes e isto porque o próprio art. 81 nº4 do CIRE estabelecer que “ o administrador de insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, dizendo-se no art. 82 do mesmo diploma que durante a pendência da insolvência o administrador tem exclusiva responsabilidade  para propor e fazer seguir acções, ou seja, os poderes de que o insolvente é privado são atribuídos ao administrador que àquele se substitui e daí que, de forma consequente, se possa dizer que nas acções que sejam propostas contra o devedor e em que o administrador passe a ser seu representante podem ser opostos todos os meios de defesa que lhe seja lícito invocar contra o insolvente, sem se poder protestar que esses meios não podem já ser invocados por a massa insolvente e o insolvente serem pessoas e patrimónios distintos.

Isto mesmo já se decidiu neste Tribunal da Relação, se bem que num caso em que era o insolvente o demandante e não o demandado em ação em que se arguia a nulidade por simulação[5] e em que se julgou existir legitimidade da massa insolvente, representada pelo administrador, para propor a acção e em que os argumentos de tal decisão se podem transpor nos termos sobreditos para esta outra.

Assim, se a ré alegou que na venda da fracção por B... aos ora insolventes estes últimos foram, juntamente com o vendedor, simuladores, não se podia argumentar, em tese, que esses declarados insolventes eram simuladores mas que, quando representados pelo administrador, a sua massa insolvente passaria a ser terceiro de boa fé por ganhar uma outra identidade e natureza à qual se não poderia opor o que era lícito opor aos próprios insolventes.  

Posto isto, e não havendo qualquer obstáculo, em termos de legitimidade substantiva, para que a ré pudesse arguir em reconvenção contra a autora a nulidade do negócio por simulação, passamos de imediato a apreciar as restantes questões colocadas no recurso.

Precisamente no domínio da simulação e recordando o afirmado sobre o ónus da sua prova caber à ré, concluímos que nos autos a reconvinte não logrou fazer prova de que tenha existido qualquer divergência entre a vontade declarada dos outorgantes na compra e venda do imóvel em questão e a sua vontade real, nem o intuito de enganar terceiros, não se indiciando, sequer indirectamente e por presunção judicial (art. 349 e e 351) qualquer acordo nesse sentido, importa também sublinhar que o primeiro acto de aquisição discutido nos autos, decorre de uma venda judicial através do qual a propriedade foi registada em nome de B...

Como se sublinha na sentença recorrida, a venda judicial não é uma acto de compra e venda privada porquanto naquela não releva a vontade do proprietário do bem, dada a intervenção da autoridade pública do tribunal no ato de transmissão, sendo pertinente repetir o que diz Lebre de Freitas ao acentuar que, “não obstante o bem continuar, até à venda, a pertencer ao executado, (…) quem aliena é o Estado (…) no exercício de um poder de alienar que é de direito público e não se confunde com o poder de alienação do executado”[6].

Esta advertência para a especial natureza da venda judicial tem como consequência a observação do regime de anulação específico que a lei prescreve nos arts. 838º e 839º do Código de Processo Civil, e que não foi cumprido pela ré, mas de qualquer forma, em face dos elementos de prova obtidos na acção e sua subsunção ao direito, concluímos que deve improceder a reconvenção da ré e proceder a acção, na confirmação do decidido em primeira instância.

Síntese conclusiva:

- A posse que justifica e permite a reclamação de reconhecimento por usucapião é apenas a que for exercida publicamente (art. 1262 e 1297 do CC).

- Não se pode entender como posse pública aquela que é exercida por alguém sobre um imóvel que adquiriu e tinha registado em seu nome mas que, a partir de certo momento simulou vender a outrem que o registou em seu próprio nome, para que o vendedor/simulador, que nele continuou a residir como sempre havia feito, não viesse a ver esse imóvel executado.

- Se o simulador/comprador vier a ser declarado insolvente o simulador/comprador pode arguir a nulidade do negócio simulado, nos termos do art. 242 nº1 do CC, uma vez que a massa insolvente para efeitos desta arguição não pode ser considerado terceiro de boa-fé (art. 243 CC) uma vez que a transmissão/conversão dos bens do insolvente em massa insolvente não confere a esta massa uma identidade distinta para efeitos da arguição da nulidade.

- Nos termos dos arts. 81 nº4 e 82 do CIRE , tendo o administrador a exclusiva responsabilidade  para propor e fazer seguir acções, por os poderes de que o insolvente é privado lhe são atribuídos a ele, de igual modo e por consequente lógica de razão e teleologia nas acções que sejam propostas contra o devedor/insolvente, o administrador passa a ser seu representante, podendo ser-lhe opostos todos os meios de defesa que lhe seja lícito invocar contra o insolvente, sem se poder protestar que esses meios não podem já ser invocados por a massa insolvente e o insolvente serem pessoas e patrimónios distintos.

  - Quando a propriedade sobre determinado imóvel tenha resultado de aquisição em venda judicial realizada em processo de execução, não sendo este tipo de venda um acto entre privados, por nela não relevar a vontade do proprietário mas sim intervir a autoridade pública do tribunal no acto de transmissão, io regime de anulação específico desse acto de venda é o prescrito nos arts. 838º e 839º do Código de Processo Civil.

Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, conformar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

            Coimbra, 25/10/2016

Relator: Des. Manuel Capelo

J.A.: Sr. Des. Falcão de Magalhães

J.A.: Sr. Des. Pires Robalo


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[1] Ver por todos ac. STJ de 16-12-2010 no proc. 4872/07.0TBBRG.G1.S1 in dgsi.pt
[2] cf. Antunes Varela, RLJ ano 118, pág.307
[3] Cf. Carvalho Fernandes, “Estudos sobre a simulação” (simulação e tutela de terceiros), Quis Juris, 2004, pág. 70
[4] cf. Neste sentido, Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 112, 114 e 115, dando como exemplo paradigmático o preferente na simulação do preço, tendo os simuladores por finalidade ludibriar o fisco, e  com citação de outros autores, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª ed., revista e aumentada, Almedina 2001, nota 4 da pág. 417, a propósito do exercício do direito de preferência.



[5] Ac. RC de  16-6-2015 no proc. 529/10.2TBRMR-S.C1, in dgsi.pt
[6] Cf. “A Acção Executiva”, p. 283, nota 4.