Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
34/09.0TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
BANCO
REVOGAÇÃO
CHEQUE
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 32.º DA LUC E AUJ N.º 4/2008, DE 28.2.
Sumário: a) – A invocação de falso extravio de cheques pelo sacador perante o Banco sacado, para que este os não pagasse, no respectivo prazo de apresentação a pagamento, falsidade que o banco conhecia, não constitui causa justificativa de não pagamento e de revogação dos cheques, não obstante a conta sacada não apresentar, então, provisão bastante;

b) – A conduta do Banco equivale à revogação pura e simples dos cheques e faz incorrer o banco sacado em responsabilidade civil extracontratual por perdas e danos perante o portador dos cheques, nos termos do art.º 32.º da LUC e do AUJ n.º 4/2008, de 28.2.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

            “A... ”, empresa de direito italiano, com sede em ...., Itália, propos a presente acção com forma de processo sumário contra o “Banco..., S.A.”, com sede na ...., Porto, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 14.053,14, acrescida de juros vincendos à taxa comercial supletiva sobre o capital e despesas, desde a propositura da acção até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, em consequência da conduta ilícita do R., que recusou, com indicação de “revogado com justa causa” – “extravio”, informação esta falsa, o pagamento de 5 cheques de que a A. era portadora e por ela apresentados a pagamento dentro do prazo legal e no âmbito de uma “operação transfronteiriça executada no mesmo hemisfério”, sendo que o R. aceitou a revogação por extravio a fim de “ajudar” o sacador C..., seu cliente, impedindo que decorresse o pagamento por este devido à A. por fornecimento de artigos de vestuário e/ou evitar, em relação a ele, outras eventuais nefastas consequências.

O R. contestou, alegando ter sido legítima a recusa do pagamento dos cheques, invocando que cumpriu instruções do sacador dos cheques, a quem questionou sobre as razões da sua revogação, por sua vez lhe transmitindo o sacador que “tinha sido ludibriado pela entidade a quem tinha entregue os cheques”, mais acrescentando que actuou conforme orientações do Banco de Portugal, através do SICOI, e não se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar, em sede de responsabilidade civil extracontratual, tanto mais que a conta do cliente sobre a qual foram sacados os cheques ora em causa não tinha provisão quando foram apresentados a pagamento, pelo que a A. nunca receberia a quantia aposta nos cheques, acabando por concluir pela improcedência da acção com a consequente absolvição do pedido.

A A. apresentou resposta, pugnando pela procedência da acção, alegando ainda, contrariamente ao sustentado pelo R., que existe nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, bem como a actuação do Banco réu, por culposa, não poderá, em suma, deixar de ser considerada ilícita.

Foi proferido despacho saneador, no qual se afirmou a validade e a regularidade da instância e onde, face à simplicidade da matéria de facto controvertida, se absteve de fixar a base instrutória.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e, proferida decisão sobre a matéria de facto, não foi objecto de reclamação.

Preferida sentença, veio a acção a ser julgada procedente e o R. condenado no pagamento à A. da quantia de € 14.053,14, acrescida de juros de mora vencidos e dos vincendos, às taxas anuais comerciais sucessivamente em vigor, até integral pagamento.

Inconformado, recorreu o R., formulando nas alegações as seguintes conclusões:

a) – A decisão relativa à matéria de facto é nula, na parte em que decidiu dar por provado que os cheques aludidos em A) e B) da fundamentação de facto foram devolvidos em 26.4.07, 9.5.07, 17.5.07, 11.6.07 e 18.7.07;

b) – Tal nulidade decorre da circunstância de a ora apelada se ter limitado a alegar que os cheques foram apresentados a pagamento dentro do prazo legal, o que é manifestamente uma conclusão e, até, matéria de direito e da circunstância de a apelada nada ter alegado quanto à data da devolução dos mesmos cheques;

c) – A sentença recorrida não podia ter colmatado e preenchido a omissão por parte da apelada de cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos constituídos do seu direito;

d) – Os factos que veio dar indevidamente por provados não são factos instrumentais, antes constituindo factos integrantes e essenciais da causa de pedir da pretensão da apelada;

e) – A nulidade tem por consequência que deverá ser ignorada e de todo desconsiderada tal matéria de facto – a data de devolução dos cheques em causa, e encontrada a decisão de direito que daí decorra;

f) – O montante aposto no cheque n.º .... datado de 30.6.07, não poderá ser considerado para efeitos de fixação da indemnização a arbitrar à apelada já que o mesmo foi apresentado a pagamento e devolvido a 18.7.07, depois de ultrapassado o prazo de 8 dias após a data nele aposta;

g) – O comportamento do Banco apelante não pode ter-se por ilícito uma vez que o extravio – que foi o motivo indicado pelo sacador dos cheques em causa – não se insere no âmbito de aplicação da disposição do art.º 32.º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUC), não podendo ser tido como revogação desses cheques;

h) – Nem a tal obsta o facto de se ter por provado ser falsa essa indicação dada ao Banco apelante, uma vez que se não sabe em que data teve o mesmo conhecimento de tal falsidade, sendo certo que a ilicitude deverá ser apreciada à data em que ocorreu a recusa do pagamento dos cheques e não em função de factos apenas conhecidos em momento posterior;

i) – A disposição da parte final do art.º 14.º do Decr. n.º 13004, se não foi revogada pelo art.º 32.º da LUC, foi revogada pelo art.º 3.º do DL n.º 47 344, de 25.11.66, que aprovou o Código Civil;

j) – O Banco apelante, por outro lado, agiu seguramente sem culpa, que nem sequer foi alegada e que se não presume;

l) – O Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária, embora não constitua fonte imediata de direito, não pode deixar de ser tomado em conta na apreciação que se faça sobre a natureza culposa do procedimento de qualquer entidade bancária;

m) – Não é irrelevante que o Banco tenha cumprido integralmente todo o conjunto de regras e instruções constante de tal diploma regulamentar;

n) – Não ocorreu nexo de causalidade entre o dano invocado e a conduta do Banco apelante, já que a conta do cliente/sacador dos cheques em causa não estava provisionada para o pagamento dos cheques, sendo certo que a existência e irrelevância negativa da causa virtual pressupõe a existência de dois pressupostos causais distintos, sendo que um deles é prejudicado e interrompido pela ocorrência e finalização do outro;

o) – O que aconteceu no caso dos presentes autos foi que, confrontado com a apresentação a pagamento dos cheques, o Banco sacado teve que optar pela devolução com invocação da instrução recebida ou falta de provisão,

p) – Situação que nada tem que ver com a existência de dois processos distintos, conducentes, ambos, com total independência, à produção do dano:

q) – A sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação as disposições dos art.ºs 264.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 201.º, n.º 1, do CPC, bem como as dos art.ºs 483.º, n.º1, do Cód. Civil e 32.º da LUC.

Concluiu pela revogação da sentença recorrida.

A apelada respondeu, no sentido da manutenção do decidido.

O tribunal a quo pronunciou-se pela inexistência de qualquer nulidade.

Cumpre apreciar, sendo que são questões a decidir:

a) – A nulidade da sentença por violação do princípio do dispositivo;

b) – A reapreciação do mérito da causa quanto à falta de causa justificativa para a revogação dos cheques.


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2. Fundamentação

2.1 De facto

Foi a seguinte a factualidade dada como provada pela 1.ª instância:

A – A autora é legítima portadora dos cheques n.ºs ...., ...., ...., ...., .... emitidos por C...., a que foram apostos respectivamente as datas de 23.04.2007, 01.05.2007, 15.05.2007, 06.06.2007 e 30.06.2007, sacados sobre o Banco réu, de, respectivamente, 2.156,60 €, 971,30 €, 3.717,00 € , 4.020,40 € e 1.065,40 €;

B – Os cheques descritos em A), quando apresentados a pagamento, no prazo de vinte dias, foram os mesmos devolvidos com a indicação de “revogado com justa causa” – “extravio”, tendo o sacador dado instruções de revogação ao Banco sacado, aqui réu, com fundamento no motivo indicado;

C – Os cheques descritos em A) estão todos passados à ordem da autora, sem rasuras;

D - Os cheques descritos em A) foram entregues pelo sacador, C... à autora em pagamento de mercadoria por esta última fornecida, a saber, calças de ganga e demais artigos de vestuário juvenil de marca, pertença da autora;       

E - Sendo falsa a informação dada pelo sacador dos cheques ao banco sacado, aqui réu;

F - O Banco réu conformou-se com a ordem recebido pelo sacador sem ter efectuado averiguação quanto à sua veracidade junto da autora, nomeadamente através dos bancos intermediários, a fim de esclarecer a que título estava a apresentar a pagamento cheques dados como extraviados, o que fez por cinco vezes no espaço de trinta e sete dias;

G - O Banco réu não examinou os cheques revogados, a fim de ver quem era o beneficiário, a sua forma de preenchimento, (ausência de rasuras, preenchimento da mesma caneta), presença de rasuras que indiciassem ilícitas apresentações a pagamento;

H - A autora até à presente data não recebeu a importância titulada pelos cheques descritos em A), no montante global de 11.788,00 €;

I - Os cheques aludidos em A) e B) foram devolvidos em 26.04.2007, 09.05.2007, 17.05.2007, 11.06.2007 e 18.07.2007, respectivamente;

J - Em virtude do descrito em B), a autora suportou a quantia de 104,00 € a título de despesas cobradas pelos bancos intermediários;

L - Por escrito datado de 20.04.2007, C.... solicitou ao banco sacado o não pagamento do cheque com o n.º .... aludido em A);

M - Por escrito datado de 30.04.2007, C.... solicitou ao banco sacado o não pagamento do cheque com o n.º .... aludido em A);

N - Por escrito datado de 16.05.2007, C.... solicitou ao banco sacado o não pagamento do cheque com o n.º .... aludido em A);

O - Por escrito datado de 08.06.2007, C.... solicitou ao banco sacado o não pagamento do cheque com o n.º .... aludido em A);

P - Por escrito datado de 17.06.2007, C.... solicitou ao banco sacado o não pagamento do cheque com o n.º .... aludido em A);

Q - Em todos os escritos aludidos em L) a P) vinha expressamente referido que a razão de tal pretensão de não pagamento de tais cheques era a invocação da justa causa de extravio;

R -O Banco réu ignorava, quando recebeu as solicitações por escrito do sacador, a data da emissão dos cheques;

S -As solicitações descritas em L) a P) foram introduzidas no sistema informático do Banco réu por forma a que os cheques em causa não fossem liquidados quando fossem, e se fossem, apresentados a pagamento no sistema de compensação interbancário;

T - O Banco réu questionou o seu cliente e sacador dos cheques em causa da revogação do primeiro dos cheques descritos em A) e B) e por este foi-lhes transmitido que havia efectuado uma encomenda de mercadoria à autora, a qual não lhe foi entregue conforme acordado pelo que estava a tentar negociar com a autora o sucedido;

U - Após o descrito em T) o Banco réu conformou-se mecanicamente com as ordens recebidas pelo sacador;

 V - Todos os cheques descritos em A) haviam sido sacados sobre a conta de que C.... era titular no banco réu, na agência de ...., sendo que a mesma não tinha provisão quando eles foram apresentados a pagamento;

Mais resultou provado, por documento, ao abrigo do artigo 659º, n.º3 do Código de Processo Civil:

X – Os cheques descritos em A) foram apresentados à compensação, em Lisboa, pelo Banco S...., respectivamente, em 24.04.2007, 08.05.2007, 16.05.2007, 08.06.2007 e 17.07.2007.


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            2.2. De direito

            a) – A nulidade processual da decisão sobre a matéria de facto vertida na sentença por violação do princípio do dispositivo ínsito no art.º 264.º do CPC.

            Nas alegações e conclusões de recurso suscita o Banco recorrente a questão da nulidade processual por o tribunal a quo haver praticado acto que a lei não admite (art.º 201.º do CPC), qual seja, ter considerado provado, na sentença, que os cheques em causa foram apresentados a pagamento “em 24.4.07, 8.5.07, 16.5.07, 8.6.07 e 17.7.07”, quando a A., na petição inicial, se limitara à alegação conclusiva e de cariz jurídico que “os referidos cheques foram apresentados a pagamento dentro do prazo legal”, tratando-se, assim, de factualidade essencial e integrante da própria causa de pedir, não alegada e sobre a qual nenhuma manifestação de vontade a A. expressou para que pudesse ser considerada na decisão a proferir, nos termos do n.º 3 do cit. art.º 264.º

            Que dizer?

            - De acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 desse preceito legal às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e, em princípio, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.

            Trata-se da afirmação do princípio do dispositivo que mitigadamente caracteriza o nosso direito processual civil, na sua vertente do princípio do pedido ou da controvérsia.[1]

            A questão a dilucidar está, antes de mais, em saber se as concretas datas de apresentação a pagamento dos cheques que envolvem a causa de pedir podem ou não considerar-se alegadas pela A.

            Revertendo à petição inicial e ao seu art.º 3.º, alegou a A. que, “acontece que, quando os referidos cheques foram apresentados a pagamento, dentro do prazo legal, foram os mesmos devolvidos com a indicação de “revogado por justa causa – extravio” (v. verso dos docs. 1 a 5)”.

            De acordo com a jurisprudência de há muito fixada, mormente quando o princípio do dispositivo pendia mais para a verdade formal, que actualmente, os documentos juntos com a petição inicial (ou com a contestação) devem considerar-se parte integrante do articulado, suprindo as lacunas de que eventualmente enferme.[2]

            As datas de apresentação dos cheques a pagamento enunciadas na fundamentação de facto da sentença constam, obviamente, dos cheques correspondentes àqueles docs. n.ºs 1 a 5 juntos com a petição inicial (p. i.) para onde a A. remeteu.

            Relativamente a tal factualidade, o R., no art.º 1.º da sua contestação, aceitou expressamente o teor daquele art.º 3.º da p. i. (art.ºs 490.º, n.º 2 e 505.º do CPC e 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, do CC).

            Dispondo o n.º 3 do art.º 659.º do CPC que o juiz, na sentença, tomará em consideração os factos admitidos por acordo e/ou provados por documentos, normativo em que se louvou a Ex.ma Juíza para consignar as datas de apresentação a pagamento dos cheques juntos com a p. i., o tribunal a quo cumpriu o que expectável legalmente devia cumprir.

            Assim sendo, não incorreu na nulidade processual arguida, que se indefere e com ela as pertinentes conclusões recursivas, mantendo-se incólume a factualidade que encerra a fundamentação de facto da sentença recorrida.


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            b) – A responsabilidade civil extracontratual do R. Banco – O “extravio” dos cheques.

            A 2.ª questão trazida pelo recorrente respeita à inobservância, no caso, dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (ilicitude, culpa, dano e nexo causal), previamente suscitando a questão da exclusão da discussão o cheque n.º .... datado de 30.6.07, do montante de € 1.065,40 (doc. fls. 17) por, uma vez apresentado a pagamento a 17.7.07, ultrapassou o prazo de 8 dias em que a sua revogação não seria legalmente admissível (art.º 32.º da LUC).

            Será?

            1. No art.º 19.º da p. i. alegou a A. que, “no caso em análise, tratando-se de uma operação transfronteiriça executada no mesmo hemisfério, o prazo legal de apresentação a pagamento [dos cheques] era, nos termos do art.º 29.º, n.º 2, da LUC, de 20 dias”.

            Mais uma vez perscrutando a contestação, tratou-se de matéria não impugnada (v. art.ºs 1.º, 2.º e 3.º).

            Porque não impugnada, à luz dos mencionados art.ºs 490.º, n.º 2 e 505.º e ainda 487.º, n.º2, todos do CPC, porque o cheque em causa, como os demais, embora passado em Portugal seria para obter pagamento “além fronteiras” e no mesmo hemisfério, ou seja, “na mesma parte do mundo” (v. art.º 29.º da LUC), isto é, em Itália e através do banco intermediário (BES), era de 20 dias o prazo dentro do qual poderia ser apresentado a pagamento, prazo esse que foi cumprido.

            Improcede também tal questão prévia.


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            2. Reapreciando agora os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do R., pela revogação dos cheques em causa e recusa do respectivo pagamento, com base em causa de justificação de extravio, que se provou ser falsa e do conhecimento do Banco R., face à amplitude do debate em redor de tal matéria, que culminou com a prolação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ n.º 4/2008, de 28 de Fevereiro[3], bem poderíamos lançar mão do n.º 5 do art.º 713.º do CPC e sumariamente decidir a questão, no sentido da confirmação da douta sentença, que se mostra proficientemente fundamentada, ou remetê-la para esse ou qualquer um dos demais acórdãos que continuam a pronunciar-se sobre ela.[4]

            a) - Correndo o risco da repetição de argumentos, importará dar por adquirido que, sendo o Banco sacado estranho à relação cambiária (o sacado não é obrigado cambiário) a sua obrigação relativamente ao portador de um cheque não decorrerá de nenhum negócio jurídico atinente à convenção do cheque, antes da lei, mormente do art.º 32.º da LUC e da 2.ª parte do art.º 14.º do Dec. N.º 13004, de 12.1.57 (embora o recorrente defenda a sua revogação) pelo que a sua responsabilidade pela revogação ilegítima dos cheques só poderá ser valorada em sede de responsabilidade civil extracontratual, nos termos dos art.ºs 483.º, n.º 1 e 562.º e 563.º, do CC.

            Por outro lado e de acordo com o disposto no art.º 32.º da LUC, embora a ineficácia da revogação do cheque operada dentro do prazo da apresentação a pagamento suponha um revogação pura e simples do sacador, isto é, excluem-se à partida as situações de extravio, ou quaisquer outras de apropriação fraudulenta de cheques, importa, contudo, atentar que, no caso em apreço, estamos face a um extravio aparente, na medida em que o mesmo foi invocado pelo sacador com vista a obstar ao pagamento dos cheques encapotando uma situação de incumprimento contratual de fornecimento de artigos de vestuário da A. ao sacador e para cujo pagamento emitira tais cheques.

            Porque o Banco sacado, desde logo aquando da revogação do 1.º cheque (e confessadamente dos demais – v. art.º 19.º da sua contestação) soube que, afinal, não tinha havido qualquer extravio dos cheques, à pergunta que formulara nas alegações de que “perante tal iniciativa [questionar o cliente sobre a razão do cancelamento dos cheques] e a resposta que teve [incumprimento contratual] que mais seria de exigir ao Banco ora apelado?” só poderia responder-se que deveria abster-se de revogar os cheques, por inexistência, afinal, de justa causa, antes proceder ao seu pagamento ou na iminência de falta de provisão bastante observar o disposto no art.º 1.º -A do DL n.º 459/91 de 28.12 (aditado pelo DL n.º 316/97, de 19.1), ou seja, notificar o sacador para em 30 dias consecutivos regularizar a situação.

            Só assim se desobrigaria da responsabilidade de pagamento.

            Ora, face à falsidade da comunicação de extravio dos cheques, de que o Banco sacado tomou conhecimento, ainda assim, optando indevidamente pela revogação dos cheques, caímos inexoravelmente numa situação de revogação pura e simples, sem justa causa, que o referido AUJ n.º 4/2008 apreciou e que decidiu assim:

            - “ Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art.º 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos art.ºs 14.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil”.

Nesse aresto foram apreciados os pressupostos da responsabilidade extracontratual em termos que importa acatar, atenta a autoridade que o mesmo supõe, pese embora os votos de vencido a ele acoplados.

Com efeito, “assinalando a posição assumida pelo órgão de cúpula da ordem jurisdicional relativamente a determinada questão, o acórdão de uniformização implica uma natural adesão dos demais órgãos jurisdicionais (efeito persuasivo) e do próprio Supremo se e enquanto a respectiva doutrina não caducar por via de modificação legislativa por elaboração de outro acórdão da mesma natureza”.[5]

Assim sendo e obviamente em ordem aos valores da certeza e segurança jurídicas e enquanto esses circunstancialismo se mantiver, haverá que respeitar, obrigatoriamente, a jurisprudência fixada.

Ainda assim e no âmbito da ilicitude da conduta do R. Banco importa, sem prejuízo do dever de acatamento da jurisprudência obrigatória, repetimos, quanto à vigência do preceito da 2.ª parte do art.º 14.º do Decr. n.º 13.004[6], referir o seguinte.

O recorrente apresenta, agora, um argumento que não foi tido em conta pelo AUJ n.º 4/2008, nem antes pelo Assento n.º 4/2000, de 19 de Janeiro de 2000[7] (agora com força de acórdão unificador de jurisprudência), nem vimos tratado em concreto, quanto à revogação da 2.ª parte do art.º 14.º do Decr. n.º 13.0004 pelo diploma preambular que aprovou o Código Civil (DL n.º 47 344 de 25.11.66).

Dispõe aquele incisivo que “no decurso do mesmo prazo [de apresentação do cheque a pagamento] o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento da referida revogação”.

E o art.º 3.º daquele DL n.º 47 344 que “desde que principie a vigorar o novo Código Civil, fica revogada toda a legislação civil relativa às matérias que esse diploma abrange, com ressalva da legislação especial a que se faça expressa referência”.

Reconhecendo, embora, pertinência ao argumento, quer-nos parecer que aquele preceito, inserto em lei especial, tutela uma matéria que não obstante atinente á responsabilidade civil extracontratual não foi abrangida, nem muito menos se choca com o quadro geral da responsabilidade civil, na vertente extracontratual, que o actual Código Civil, revogando o Código de Seabra, passou a regular e, por isso a deixou incólume, porque, ao fim e ao cabo, trata-se de uma norma remissiva para as normas gerais do então novel diploma respeitantes à responsabilidade civil extracontratual.

A importância prática do argumento perde acutilância se aderirmos, como aderimos, à tese do douto acórdão do STJ de 28.4.10[8] no sentido de “mesmo a ter-se por revogada a 2.ª parte daquele art.º 14.º, não passaria a ser lícita a revogação pura e simples do cheque durante o período da apresentação a pagamento. Durante esse período, a ineficácia da revogação manter-se-ia, conforme determina o art.º 32.º da LUCH, de modo que o acatamento pelo banco sacado, de uma tal ordem de revogação e consequente recusa de pagamento, continuaria a constituir uma acto ilícito por violação desse preceito legal, implicando responsabilidade extracontratual, nos termos gerais de direito comum (art.ºs 483.º e 487.º, do CC)”.[9]

Do exposto resulta a reafirmação da ilicitude do comportamento do ora recorrente, pela inobservância daquelas regras de protecção do portador do cheque, enquanto título cambiário à ordem, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo ordem de pagamento incondicionada.


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            b) – Quanto à culpa, é sabido que esta se reconduz ao nexo de imputação subjectiva do facto ao agente, em termos de poder afirmar-se não só que o facto ilícito foi obra sua, mas também que podia e devia ter agido, nas circunstâncias, de modo diverso.[10]

            Indiscutível que a recusa de pagamento dos cheques ao R. se deveu, ao ser confrontado com a ordem de revogação dos cheques baseada em motivo (extravio) que sabia não ser verdadeiro, inexistindo, assim, também, justa causa com previsão no Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária, e não podendo ignorar que poderia incorrer em responsabilidade extracontratual perante o portador dos cheques, se apresentados a pagamento dentro do prazo legal, o que se lhe exigia era que informasse nesses termos o seu cliente, só acatando a solicitação no caso de apresentação dos cheques depois de findo esse prazo.

            Não procedendo como nas circunstâncias podia e devia, o R. actuou, pois, com culpa, grave até, carecendo o recorrente de razão quando aduz que a A. se absteve de a alegar, como se extrai, aliás, designadamente do art.º 14.º da p. i.


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            c) – Quanto à causalidade, não obstante a falta de provisão do cheque, também a sentença recorrida decidiu com acerto, desde logo porque o motivo por que o R. recusou o pagamento não foi a falta de provisão, mas a aceitação da revogação dos cheques.

Existe causalidade sempre que o facto seja condição sine qua non do resultado que, face às circunstâncias do caso e de acordo com as regras da experiência, era provável que o resultado fosse consequência desse facto.

Entre a revogação dos cheques operada pelo Banco com base em falso motivo, seu conhecido – o facto ilícito culposo – e o seu não pagamento – dano – existe nexo causal: aquele foi causa adequada deste.

Acresce que o facto de a conta sacada não dispor de provisão à data da apresentação dos cheques não permite concluir, sem mais, que os mesmos não poderiam ser pagos, caso o Banco ignorasse a comunicação de revogação, sendo de equacionar que os bancos permitem, por vezes, movimentos a descoberto e, por outro lado, nada garante que, se não fossem revogados os cheques, estes não pudessem ser novamente apresentados e lograr pagamento.

Nesta sede, afigura-se, aliás, que, sob pena de constituir uma “probatio diabolica” para o portador do cheque, ao Banco sacado caberia o ónus da prova de que os cheques nunca poderiam obter pagamento.[11]

Finalmente, contrariamente ao sustentado, em que se nega o nexo causal entre o dano e a conduta do Banco e a irrelevância da causa virtual por a situação não envolver dois processos causais, o que está em causa é a interrupção de um nexo causal. O dano não foi produzido de uma maneira (causa virtual), foi produzido antecipadamente de outra.

Não será, portanto, de excluir que a falta de provisão, constituindo causa virtual do dano, de forma alguma poderia sobrepor-se à causa real de recusa de pagamento com base na revogação da ordem de pagamento dos cheques.

Seguindo aqui de perto o decidido no douto acórdão do STJ de 15.3.05[12], na esteira das lições de Almeida e Costa[13] e Antunes Varela[14], a responsabilidade do Banco sacado não poderia ser afastada já que a causa virtual do dano, em que se traduzia a falta de provisão, não afastaria a responsabilidade resultante da causa real de recusa a pagamento fundada na revogação da ordem de pagamento dos cheques.[15]

E, à pergunta que aquele Mestre formulou se o autor da causa real pode exonerar-se da obrigação de indemnização, no todo ou em parte, invocando a causa virtual que produziria o mesmo dano, será de acompanhar a resposta de que a causa real é efectivamente a causa do dano, não obstante ele sempre se produzir em resultado da causa virtual. “A causa virtual não possui relevância negativa, pois em nada afecta o nexo causal entre o facto operante e o dano: sem o facto operante o lesado teria sofrido um dano idêntico, mas não aquele dano”.[16]

Conclui-se, assim, tal como a sentença recorrida, pela verificação do nexo causal entre o facto ilícito e o dano.

Em suma, contrariamente ao sustentado nas conclusões recursivas, na sentença recorrida apreciaram-se todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do ora recorrente que estiveram na base da definição do dano cujo valor não vem discutido e na condenação ao pagamento deste à A. recorrida.

Na improcedência das conclusões importa, assim, manter a sentença recorrida.


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            3. Sumariando (art.º 713.º, n.º 7, do CPC):

            a) – A invocação de falso extravio de cheques pelo sacador perante o Banco sacado, para que este os não pagasse, no respectivo prazo de apresentação a pagamento, falsidade que o banco conhecia, não constitui causa justificativa de não pagamento e de revogação dos cheques, não obstante a conta sacada não apresentar, então, provisão bastante;

            b) – A conduta do Banco equivale à revogação pura e simples dos cheques e faz incorrer o banco sacado em responsabilidade civil extracontratual por perdas e danos perante o portador dos cheques, nos termos do art.º 32.º da LUC e do AUJ n.º 4/2008, de 28.2.


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4. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente.

Francisco Caetano (Relator)
António Magalhães
Freitas Neto


[1] V. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil, Anot.”, I, 2.ª ed., pág. 506.
[2] Acs. STJ de 22.4.04, Proc. 04B652, 2.11.04, Proc. 04A3451, 9.5.02, Proc. 1173/02-6.ª, Sum., 5/02, in www.dgsi.pt.
[3] Publicado no DR, I, n.º 67, de 4.4.08.
[4] V., por mais recentes, os Acs. STJ de 12.10.10, Proc. 2336/07.0TBPNF.L1.S1 ou RP de 16.3.10, Proc. 827/07.2TVPRT.P1, in www.dgsi.pt.
[5] Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2.ª ed., pág. 366.
[6] O que tem vindo a ser reafirmado, entre muitos outros, pelos Acs. do STJ de 24.4.08, Proc. 07A4768, 12.10.10, Proc. 2336/07.0TBPNF.L1.S1, 29.4.10, Proc.4511/07.9TBLRA.C1.S1 e RC de 1.6.10, Proc. 310/09.1TBPCV.C1, todos in www.dgsi.pt.
[7] DR, I-A, n.º 40, de 17.2.00.
[8] Proc. 4511/07.9TBLRA.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[9] Ponto v do sumário.
[10] Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 3.ª ed., pág. 384.
[11] Neste sentido, v. Ac. RP de 4.1.11, Proc. 4348/08.8TBSTS.P2.
[12] Proc. 05A380, www.dgsi.pt.
[13] Ob. cit., pág. 521.
[14] “Das Obrigações em Geral”, I, 2.ª ed., pág. 774 e ss.
[15] V., também, Acs. RP de 16.3.10, cit., 4.1.11, cit. e 26.10.10, Proc. 120/08.3TVPRT.P1.
[16] Ob cit., pág. 524.V. também, Pereira Coelho, “O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil”, 1988, reimp., em cuja “Nota Prévia” (Março de 1998), portanto à luz do actual Código Civil, sintetiza que “o autor da causa real do dano não pode invocá-la para se liberar da obrigação de indemnizar o dano causado; a obrigação de indemnizar não visa então reparar o dano, pois não há aí um dano como “diferença” no património, mas sancionar e prevenir a violação de direitos ou de bens juridicamente protegidos”.