Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
815/10.1TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: EMPREITADA
DEFEITOS
FACTO IMPEDITIVO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º Nº 1, 1222.º E 1223.º DO C. CIVIL
Sumário: 1. O cumprimento defeituoso do contrato de empreitada faculta ao dono da obra o direito à eliminação dos defeitos, redução do preço ou resolução do contrato e, ainda, sem exclusão de quaisquer desses direitos, o de ser indemnizado nos termos gerais.
2. Compete ao empreiteiro a prova dos factos impeditivos da sua responsabilidade cabendo-lhe, portanto, demonstrar que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado, designadamente a má utilização que este tenha feito do bem.

3. Incumbe, ainda, ao empreiteiro a prova de que o fornecimento de acessórios ao maquinismo instalado extravasava o contrato de empreitada, enquanto facto constitutivo do seu direito à indemnização.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A..., SA”, propos contra B..., SA”, acção com forma de processo ordinário, pedindo a sua condenação no pagamento da importância de € 78.878,35 acrescida de juros de mora comerciais, liquidados desde 2.3.06 até à entrada em juízo da petição inicial, no valor de € 28.396,00 e nos que vierem a vencer-se até efectivo e integral pagamento.

Alegou para tanto, em resumo, que na sequência do fornecimento à Ré de um equipamento para filtragem e prensagem de argilas efectuou trabalhos não previstos na proposta de fornecimento, reparações devido ao uso indevido do equipamento, alterações exigidas pela Ré e outros trabalhos de reparação, a que se reportam as facturas n.ºs 86.966, 86.968, 86.972, 86.973, 86.974,86.976, 86.980, 86.792 e 86.793, no valor global daquela quantia de € 78.878,35.

Citada, contestou a Ré, sustentando que, para além de não impender sobre si a obrigação de liquidação das facturas em causa, em reunião ocorrida a 19 de Abril de 2005 entre representantes da A. e da Ré, foi estabelecido um acordo em que esta assumiu a obrigação de pagar as quantias de € 3.149,60 e € 9.205,00, renunciando ao alegado direito de crédito sobre os demais montantes, já considerados em dívida, concluindo pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória (b. i.), de que houve pedido de rectificação da Ré, que foi deferido e reclamação, que foi indeferida.

Efectuada a audiência de discussão e julgamento e lida a decisão sobre a matéria de facto, de que não houve reclamação e apresentadas alegações de direito por parte da Ré, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, por não provada e a absolver a Ré do pedido.

Inconformada, a A. recorreu, apresentando alegações, que rematou com as seguintes úteis conclusões:

a) – A recorrente verificou a existência de defeitos nas instalações da recorrida, nomeadamente excesso de floculante que, a prazo, inviabilizava o funcionamento automático do equipamento, exigindo o controle permanente de um trabalhador;

            b) – A recorrente propos várias medidas para reduzir o floculante;

            c) – A recorrida comprometeu-se a regular as quantidades de floculante adicionado, o que nunca ocorreu, impedindo o funcionamento perfeito da máquina;

            d) – A recorrida recusou em 25 e 26.11.04 proceder a quaisquer novos testes para ajustar a adição do floculante, mantendo-se assim as condições deficientes de funcionamento;

            e) – A recorrida contratou um equipamento para filtrar argilas que nunca poderiam ultrapassar o diâmetro de 65 microns;

            f) – A recorrida encontrou pedras após diversas insistências para corrigir a quantidade e a qualidade do produto que alimentava a máquina;

            g) – As pedras obstruíam a passagem, destruíam as borrachas de protecção e ainda os fechos mecânicos, que trabalharam em vazio, causando danos de valor significativo;

            h) – A máquina deveria ter sido removida da instalação e transferida para outra instalação da recorrida sita em Penafiel;

            i) – A recorrida solicitou sucessivas alterações e ajustes que, na realidade, incluíam substituição de materiais nos equipamentos;

            j) – Os encargos gerados pelas alterações exigidas e não previstas no contrato inicial correm unicamente por conta da recorrida;

            l) – O contrato foi incumprido por factos unicamente imputáveis à recorrida, pelo que deve a sentença ser revogada.

            Terminou por pedir a revogação da sentença, considerando-se a mesma nula “devendo-se proceder ao merecido julgamento da matéria de facto” (sic).

            Em resposta, a Ré recorrida pugnou pela manutenção da decisão recorrida.

            Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar no recurso:

            a) – A falta de impugnação da matéria de facto;

            b) – A relação contratual estabelecida entre recorrente e recorrida;

c) - O incumprimento contratual imputado à recorrida.


*

            2. Fundamentos

            a) - De facto

            A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1. A A. dedica-se à comercialização de equipamentos industriais, para diferentes fins, sendo a engenharia fornecida concebida e construída segundo "know-how" de mais de 40 anos de experiência.

2. A Ré dedica-se à extracção de inertes.

3. Em data indeterminada do primeiro semestre de 2003, a Ré contactou o Sr. Eng.° C... sócio e gerente da sociedade D... , Lda., a quem solicitou o fornecimento (bem como a montagem e colocação em funcionamento) de um equipamento de filtragem de argilas para as suas instalações sitas em ..., Condeixa-a-Nova,

4. (…) tendo-lhe sido transmitido pelo Sr. Eng.° C... que a referida sociedade iria dar sequência à pretensão formulada pela Ré, na qualidade de agente da A.

5. A A. foi contactada por um seu agente, que opera no mercado português, para proceder a estudos e propor as soluções técnicas à Ré.

6. Após reuniões entre o Sr. Eng. E... e Sr. Eng. F...(ambos pela Ré), o Sr. Doutor Eng. G... (pela Autora) e o Sr. Eng. C... (agente em Portugal), foi decidido iniciar ensaios laboratoriais.

7. Por escrito intitulado "carta de encomenda do equipamento de filtragem e prensagem de argilas, infra-estruturas complementares a instalar na pedreira de ... em Condeixa-a-Nova", consta no capítulo epigrafado de "Garantias": "b. Fica claro, que persiste a dúvida de mesmo com cal, as lamas de Condeixa serem filtráveis. Fica nesta encomenda salvaguardada esta dúvida, e no caso extremo de não ser possível prensar as lamas seis meses após o funcionamento pleno, o filtro será deslocado para o centro de produção de Cabeça Santa em Penafiel, comprometendo-se o fornecedor do equipamento a dar apoio técnico na transferência e a manter a garantia para o novo centro."

8. Por escrito enviado em correio electrónico pela Ré à Autora, em 25.7.2003, sob o assunto "confirmação de encomenda" foi comunicado confirmar a encomenda do equipamento descrito na proposta n.º 020205-2.R10, nas seguintes condições: 30% com a adjudicação e sob garantia bancária com vencimento a 17.10.2003; 40% com a entrega dos equipamentos e sob garantia bancária com vencimento a 20.12.2003; 30% com a entrada em laboração ou a dois meses do fornecimento dos equipamentos contra a entrega de garantia bancária com vencimento a 360 dias.

9. No decurso das negociações que culminaram com a celebração do acordo entre a Autora e a Ré, a primeira informou a segunda que o equipamento que lhe iria fornecer seria idêntico ao da instalação objecto da visita.

10. A Autora comprometeu-se a proceder à montagem de todos os equipamentos e a proceder ao arranque dos mesmos, tendo assim procedido.

11. Os equipamentos encomendados foram entregues no local ajustado.

12. A Ré sugeriu à Autora que, à semelhança da instalação sita em Menorca (Espanha), a qual foi visitada por representantes de ambas as partes antes da celebração do contrato, a bomba centrífuga fosse substituída por um conjunto de bombas, uma centrífuga e uma peristáltica.

13. Os ensaios laboratoriais referidos em 6 ocorreram em momento anterior ao descrito em 8 e antes da montagem do equipamento.

14. Os equipamentos encomendados foram produzidos pela Autora.

15. Antes do momento referido em 8, a Autora fez deslocar representantes seus às instalações da Ré sitas em Condeixa, por diversas vezes, de modo a poder ficar totalmente familiarizada com a instalação onde iria ser colocado o equipamento.

16. Tendo sido delineada pela Ré uma solução que consistiu na colocação de dois depósitos.

17. Essa solução foi implementada antes do fornecimento do equipamento objecto do acordo celebrado entre a Autora e a Ré, tendo-se revelado eficaz, porquanto foi atingido o nível de densidade pretendido.

18. No âmbito dos ensaios referidos em 6, a Ré forneceu à Autora uma amostra colhida da unidade de tratamento, onde se procede à separação entre a água e a argila, e na qual é utilizado um floculante fornecido por um dispositivo automático.

19. O floculante consiste numa substância que, uma vez introduzida na mistura da água com a argila, se torna indistinguível destas, destinada a obter a separação entre a água e a argila.

20. Devido ao facto de a quantidade de água e de argila não se manter inalterável, existia um equipamento que regulava o mecanismo responsável pelo fornecimento do floculante, de modo a que este fosse efectuado em maior ou menor quantidade, ajustando-se às variações da proporção entre água e argila.

21. O floculante representa uma percentagem significativa do custo dos materiais necessários ao funcionamento da infra-estrutura tendente à separação entre a água e argila, havendo interesse económico para a Ré em o utilizar de forma comedida.

22. Aquando da conclusão dos ensaios laboratoriais, nem aquando do mencionado em 15, a Autora não transmitiu à Ré a existência de excesso de floculante.

23. O tipo e quantidade de floculante mantiveram-se os mesmos desde a entrada em funcionamento da referida unidade de tratamento (2001), tendo sido usado sempre o equipamento que o fornecido pela Autora veio substituir até 2004.

24. A Ré estava obrigada a fornecer água limpa, que era indispensável ao funcionamento dos fechos mecânicos que se encontravam nas bombas e lamas a 54-50%, previstas nos estudos e indicada nos orçamentos realizados, entregando concentrações na ordem dos 20-25%.

25. A Ré estava obrigada a fornecer água com pressão suficiente.

26. A Ré adquiriu um equipamento para filtrar argilas que nunca poderiam ultrapassar o diâmetro de 65 microns.

27. A instalação da Ré funcionava em permanência.

28. A Ré mantinha em permanência junto do equipamento de filtragem fornecido pela A. um trabalhador que procedia à monotorização genérica da infra-estrutura.

29. A tarefa atribuída a esse trabalhador consistia em retirar dos filtros o material (mistura de água e argila) que nele se acumulava em excesso, prejudicando o seu normal funcionamento.

30. A lavagem dos filtros ocorria de forma pontual e não em regime de permanência.

31. O tanque de cal destinava-se a funcionar como recurso junto ao filtro prensa e não no clarificador.

32. Ocorreram entupimentos nas tubagens da Ré.

33. Esses entupimentos ocorreram na fase de arranque do equipamento, por causa da natureza e espessura dos tubos fornecidos pela Autora.

34. Por causa do referido em 33 a Autora substituiu os tubos por outros em aço com diâmetro superior, após o que tal entupimento não voltou a suceder.

35. A A. procedeu a reparações e trabalhos de manutenção do equipamento adquirido pela Ré.

36. Em Agosto de 2004 um técnico nomeado pela A. esteve no local da instalação do equipamento e constatou a existência de falta de pressão da água.

37. Numa ocasião ocorreu o entupimento nas tubagens, noutra, o rompimento dos filtros e entrada de pedras dentro das bombas, o que causou a destruição do interior de borracha da protecção das bombas de pressão.

38. Foram encontradas pedras à entrada das bombas da Ré, as quais obstruíram a passagem e destruíram as borrachas de protecção e ainda os fechos mecânicos, pois estes trabalharam em vazio.

39. A A., perante anomalias detectadas no equipamento por si fornecido, tinha o entendimento de que as mesmas se deviam à utilização de excesso de floculante.

40. Em 07.10.2004 a Ré enviou um telefax à Autora, onde consta: "Acusamos por este meio recepção do vosso fax datado de 30-9-2004. Desde já agradecemos as vossas sugestões técnicas gratuitas para resolução do que V. Ex.as se dignam afirmar que é o fundo da questão da falta de passagem da nossa argila no filtro que vos adquirimos. Lamentamos discordar do conteúdo da mensagem pelas razões abaixo enumeradas:

1. Durante as negociações e tendo V/Ex.as colhido, analisado e feito testes laboratoriais, nunca nos foi posta a questão do efeito do floculante no vosso filtro.

2. Não nos foi posta qualquer questão de ser necessária uma concentração constante. (…).

3. A linha de filtragem que nos foi por vós indicada como modelo de funcionamento e que V. Ex.as nos levaram a visitar em Menorca (Espanha), tem diagrama de operação, diferente da nossa, é composta por uma bomba centrífuga e uma peristáltica.

4. (…)

7. Como no início desde memorando afirmamos, agradecemos todas as explicações técnicas sobre filtração mas lembramos que era este tipo de clarificador que tínhamos (quando V. Ex.as nos apresentaram o vosso filtro) que sempre funcionou bem durante 4 anos, e achamos que também foi adquirido numa firma credível mundialmente conhecida (trata-se da M.S.).

8. O tanque de cal foi por nós adquirido para funcionar, como recurso, junto do filtro prensa e não no nosso clarificador. Este equipamento faz parte do que nos foi mostrado em Menorca (instalação tipo que visitámos) e até à data ainda não foi colocado em funcionamento pela vossa firma nas nossas instalações. (...)".

41. No dia 14.10.2004 teve lugar uma reunião entre Autora e Ré, nas instalações desta, na qual estiveram presentes o Sr. I..., engenheiro da Ré, Sr. C... de D..., Srs. G... e H..., ambos da Autora, tendo a Autora informado que iria enviar uma bomba submersível.

42. Na sequência de reunião havida em 14.10.2004 entre representantes da A. e da Ré, perante o entendimento da A. em como as anomalias decorriam de excesso de floculante, a Ré comprometeu-se a contactar com a empresa responsável pelo equipamento que procedia à inserção automática de floculante.

43. A Ré, na sequência do acordado, contactou com a empresa responsável pelo equipamento que procedia à inserção automática do floculante (Ambienteágua), não tendo esta procedido a qualquer ajuste por considerar que não se justificava alterar as quantidades do floculante inserido.

44. A A. Adquiriu um equipamento não previsto que a A. destinava a ajustar os parâmetros de floculação, à "J..., Lda.", no montante de € 12.306,43, que montou nas instalações da Ré, sendo as respectivas facturas datadas de 2.11.2004.

45. A Ré não solicitou à Autora que procedesse como descrito em 44, tendo deixado bem claro que não iria suportar os respectivos custos, que correriam exclusivamente por conta da Autora.

46. A A. introduziu alterações no equipamento fornecido com vista a que o mesmo funcionasse correctamente.

47. As modificações efectuadas no equipamento foram da iniciativa da Autora.

48. Em Janeiro de 2006 o equipamento fornecido à Ré deixou de funcionar, tendo a Autora conhecimento de tal em 16.1.2006.

49. Face ao referido em 48, a Autora comprometeu-se a realizar uma intervenção em 24.1.2006, o que não fez naquela data nem posteriormente.

50. A partir de Janeiro de 2006 a A. não realizou qualquer intervenção no equipamento.

51. A A. emitiu em nome da Ré as seguintes facturas:

a) Factura n.º 86966, datada de 9.2.2006, no valor de € 1943,34, referente a fecho mecânico, colocado em 8 de Julho de 2004;

b) Factura n.º 86.968, datada de 9.2.2006, no valor de € 1.943,34, referente a fecho mecânico, entregue em 28.4.2004;

c) Factura n.º 86.972, datada de 9.2.2006, no valor de € 694,00, referente a montagem de sistema regulador de pressão de água, colocado em 31.1.2005;

d) Factura n.º 86.973, datada de 9.2.2006, no valor de € 13.732,63, referente a alterações de instalação, nos dias 19.6.2004, 20.6.2004,21 a 25.6.2004;

e) Factura n.º 86.974, datada de 9.2.2006, no valor de € 13.197,28, referente a troca de pote de entrada de lamas por decantador, em 29.10.2004 a 31.10.2004 e 2 a 4.11.2004;

f) Factura n.º 86.976, datada de 9.2.2006, no valor de € 23.613,16, referente a programação de conjunto de centrifugadora e membrana e colocação em marcha, de 11.11.2004 a 26.11.2004;

g) Factura n.º 86.980, datada de 27.2.2006, no valor de € 4.676,94, referente a borrachas;

h) Factura n.º 86.792, datada de 31.1.2005, no valor de € 3.946,00, referente a montagem de bombas;

i) Factura n.º 86.793, datada de 31.1.2005, no valor de € 15.250,00,referente a bomba de membrana.

52. Essas facturas foram remetidas à Ré que as recebeu, por via notarial, em 02.03.2006.

53. A Ré poderia ter transladado o equipamento para Penafiel.

54. Por escrito datado de 14.3.2006, dirigido pela Ré à Autora, aquela refere devolver as facturas referidas em 48 por não reconhecer qualquer dívida.

55. Por fax dirigido pela Ré a "L... Lda.", datado de 17.3.2006, aquela referiu solicitar intervenção desta para verificação de anomalia no autómato do sistema de prensagem "Tipo Best 1500" com 123 placas de 1,500 x 1,500 m, instalado nas instalações da Ré em ..., Condeixa-a-Nova.

56. Por escrito registado com AR, dirigido pela Ré à Autora, datado de 27.3.2006, sob o assunto "resposta ao v/ fax datado de 20.3.2006", aquela refere que aguardará até ao final da segunda semana de Abril pela intervenção da Autora no sentido da resolução da anomalia do equipamento, data a partir da qual recorreriam a outra empresa especializada na área, da qual referiam já ter uma proposta valorizada para o custo da reparação.

57. Por escrito datado de 5.5.2006, a Ré comunicou à " L..., Lda." adjudicar-lhe os trabalhos a efectuar na alteração do filtro de prensa no montante de € 5.000,00 mais IVA.

58. A empresa referida em 55 constatou que o equipamento fornecido e montado pela Autora era comandado à distância por esta, através de uma password que nunca foi fornecida à Ré e cuja utilização permitia inclusivamente parar o sistema, pelo que a Ré solicitou a substituição do software do equipamento.


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            b) De direito

            Como é sabido, em qualquer recurso, são as respectivas conclusões que delimitam o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, não sendo possível conhecer de matéria delas não constantes, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º- A, n.º 1, do CPC).

            Iniciando, então, o conhecimento das questões que se enunciaram, quanto à matéria de facto foi com estupefacção que ao se lerem as alegações e sendo suposto que os factos alinhados sob o respectivo ponto I correspondessem à factualidade provada (para lhes ser aplicado o direito enunciado no ponto II), tal assim não correspondeu, neles se misturando matéria provada com matéria pura e simplesmente não provada (n.ºs 22, 36), outra desvirtuada (n.ºs 13, 18,19, 20, 24, 26, 28, 32…), outra nunca antes ventilada (38, 42, 43, 46) e outra, ainda, manifestamente impertinente para o objecto da lide (54 e 55). 

            Daí a dificuldade em seleccionar, com utilidade, as conclusões recursivas.

            Quanto ao pedido formulado na parte final das alegações de “considerar nula a douta sentença devendo-se proceder ao merecido julgamento da matéria em causa”, se se pretendia um novo julgamento da matéria de facto, isso mesmo se rejeita liminarmente por total ausência de cumprimento dos ónus de concretização impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 685.º-B do CPC.

            Fixada que se encontra, assim, tal matéria, surpreende-se nela terem as partes celebrado um contrato de empreitada de montagem e colocação em funcionamento de um equipamento industrial de filtragem de argilas por parte da A., nas instalações da Ré, o qual, tendo iniciado o seu funcionamento, foi sofrendo avarias várias até à sua inoperacionalidade, por causas que a recorrente imputa à recorrida por mau uso e esta àquela por defeitos do próprio equipamento, imputando ainda a recorrente à recorrida os encargos gerados por alterações e ajustes no equipamento (trabalhos adicionais), que não constavam do contrato.

            O mau uso adviria de alegado excesso de floculante, bem como da existência de pedras na alimentação da máquina.

            O art.º 1207.º do CC (como os demais a indicar, sem menção) define o contrato de empreitada como “o contrato de empreitada como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação á outra a realizar certa obra, mediante um preço” e o art.º 1208.º que “o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato”.

            Sobre o dono da obra impendem os deveres de pagamento do preço, a efectuar, na falta de convenção ou uso em contrário, no acto de aceitação da obra (art.º 1211.º, n.º 2), colaboração necessária para que o empreiteiro possa executar o obra a que se obrigou, aceitação da obra no termo da sua conclusão.

            E sobre o empreiteiro os deveres de realização da obra, em conformidade com o convencionado e sem vícios (art.º 1207.º), fornecimento de materiais e utensílios (art.º 1212.º).

            Trata-se de um contrato sinalagmático porque dele resultam obrigações recíprocas e interdependentes, para a A. a de realizar a obra convencionada, para a Ré a de pagamento do preço acordado.

            Conforme dispõe o art.º 406.º, n.º 1, os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art.º 762.º, n.º 1).

            No âmbito das modalidades de inexecução da obrigação conta-se a execução defeituosa, na lei designada por cumprimento defeituoso (art.º 799.º, n.º 1).

            Com efeito, “na empreitada, o cumprimento ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou com vícios. As deformidades são as discordâncias relativamente ao plano convencionado (…). Os vícios são as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou o previsto no contrato (…)”.[1]

            O cumprimento defeituoso do contrato de empreitada faculta ao dono da obra o direito à eliminação dos defeitos, redução do preço ou resolução do contrato e, ainda, sem exclusão de quaisquer desses direitos, o de ser indemnizado nos termos gerais (art.ºs 1222.º e 1223.º).

            Com efeito, o cumprimento defeituoso da obrigação (art.º 799.º, n.º 1) constitui uma forma de falta de cumprimento obrigacional.

            O dono da obra, sob pena de caducidade, deve denunciar ao empreiteiro os defeitos, equivalendo, contudo, à denúncia o reconhecimento por parte deste da existência do defeito (art.º 1220.º).

            Porque ao empreiteiro cabe a prova dos factos impeditivos da sua responsabilidade (art.º 342.º, n.º 2), incumbe-lhe demonstrar que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado, designadamente a má utilização que este tenha feito do bem.[2]

            Perpassando a factualidade provada (e não provada) à luz desse quadro legal, começando pelo mau uso invocado pela recorrente, ou seja pelos defeitos de funcionamento imputados à recorrida, aquela não logrou demonstrá-los como era seu ónus (art.º 342.º, n.º 1, do CC), antes a Ré provou a sua inobservância.

            Tudo aponta, pois, para uma prestação defeituosa, mas por parte da A., enquanto empreiteira da instalação do mecanismo, cuja falta de qualidades o impediram de realizar a sua finalidade, a conferir à Ré o consequente direito à reparação e eliminação dos defeitos, que se não provou, assim, para eles ter contribuído. 

Com efeito, quanto ao floculante, resulta provado que nem aquando dos ensaios laboratoriais, nem aquando da encomenda, a A. nunca transmitiu à Ré o seu excesso (resp. quesito 29.º), sendo que para esses ensaios fora fornecida uma amostra colhida da unidade de tratamento onde tal produto era utilizado e fornecido por dispositivo automático.

Quanto à alimentação da máquina (pedras) de acordo com a resposta dada aos quesitos ou artigos de base instrutória 51.º e 52.º o entupimento das tubagens ocorreu na fase de arranque do equipamento por causa da natureza e espessura dos tubos fornecidos pela A., em consequência do que esta procedeu à sua substituição por outros em aço com diâmetro superior, após o que tal entupimento não voltou a suceder.

Quanto à instalação de equipamento não previsto no contrato inicial, o que ressalta dos factos apurados é que tal ocorreu quando à aquisição de um mecanismo de ajuste dos parâmetros de floculação, relativamente ao qual se demonstrou não ter sido a recorrida a solicitá-lo, tendo deixado claro não suportar os seus custos que correriam exclusivamente por conta da recorrente (resp. ques. 41.º).

Quanto à prestação dos demais serviços de manutenção do equipamento e das reparações efectuadas, não logrou a A. recorrente demonstrar que não estavam a coberto do contrato de empreitada do fornecimento e montagem e colocação em funcionamento do equipamento de filtragem e prensagem de argilas e cujo pagamento seria de imputar à Ré recorrida, ou seja, de que se tornara credora desta dos correspondentes valores pecuniários.

E tal circunstância, repete-se, constituía um ónus seu.

Quanto ao dever de remoção da máquina das instalações da recorrida em Condeixa para as instalações de Penafiel, a ver-se aí extinção da obrigação (art.º 790.º, n.º 1, do CC), desde logo não foi demonstrada a impossibilidade objectivo de cumprimento naquele local (“caso extremo de não ser possível prensar as lamas”) que justificasse ou impusesse tal mudança com vista ao cumprimento da obrigação neste último local.

Tanto que, após a avaria de 2006 e a reparação do maquinismo por empresa terceira, não deixou o equipamento de funcionar em Condeixa.

Em suma, a factualidade apurada não permite concluir pelo incumprimento contratual da Ré recorrida, seja quanto ao contrato de empreitada, seja quanto ao fornecimento de novos equipamentos ou prestação de serviços fora do programa desse contrato, como assim correctamente foi entendido na sentença recorrida, por isso soçobrando as conclusões recursivas.

Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º), porque ao empreiteiro cabe a prova dos factos impeditivos da sua responsabilidade (art.º 342.º, n.º 1), incumbe-lhe demonstrar que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado, designadamente a má utilização que este tenha feito do bem e, porque constitutivo do seu direito à indemnização (idem, n.º 1), a ele cabe a prova de que o fornecimento de acessórios ao maquinismo instalado extravasava o contrato de empreitada. 


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            3. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Custas pela recorrente.


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Francisco Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] Pedro Romano Martinez, “Direito das Obrigações”, 2.ª ed., pág. 468.
[2] Pedro Romano Martinez, “Cumprimento Defeituoso”, 2001, pág. 323.