Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
417/2010.2TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
VENDA DE ACÇÕES
DIREITO DE PREFERÊNCIA
LIMITAÇÃO À TRANSMISSÃO DE ACÇÕES
ADQUIRENTE DE BOA FÉ
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 01/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 328º DO CSC, 272º E ART. 830º Nº 1 DO CC
Sumário: 1- O dever de gestão processual processual não abrange a introdução pelo Juiz de factos não alegados, que não resultem da produção de prova;

2- As cláusulas previstas no art. 328 do CSC, limitativas da transmissão de acções, são sempre oponíveis a adquirentes de má fé, estejam ou não transcritas nos títulos ou nas contas de registo das acções;

3- Adquirente de má fé é aquele que não ignora que as cláusulas previstas no art. 328 do CSC devem estar transcritas nos títulos ou nas contas de registo das acções;

4- A condição acordada entre as partes do contrato-promessa de venda de acções no sentido de sujeitar a transmissão das acções alienadas ao exercício do direito de preferência de outros accionistas (não intervenientes nesse contrato-promessa), estabelecido no contrato de sociedade, é uma condição imprópria que difere da verdadeira condição prevista no art. 272 do CC;

5- Como assim, e neste caso, não tem sentido a aplicação do disposto no nº 2 do art. 275 do CC, nem a execução específica do contrato - promessa, nos termos do art. 830, nº 1 do CC;

6- O abuso de direito por parte do promitente-alienante na oponibilidade ao promitente-adquirente da cláusula (societária) de preferência a favor dos accionistas não alienantes (do conhecimento do promitente adquirente, que por isso, se encontra de má fé) não pode conduzir ao cumprimento do contrato-promessa de venda das acções por lesar os interesses dos accionistas preferentes que, assim, ficam impedidos de exercer o direito de preferência.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


*


“A..., Lda.”, com sede em Oliveira do Hospital, intentou a presente acção com processo ordinário contra B..., pedindo que este seja condenado a entregar-lhe os títulos prometidos, melhor identificados no contrato-promessa, devidamente endossados, a pagar imposto de selo e demais trâmites legais necessários para efectivar a transmissão e, ainda, a devolver-lhe a letra de câmbio entregue a título de garantia de cumprimento.

Alega, em síntese, que: por escrito particular de 16.11.2005, prometeu comprar e o Réu prometeu vender-lhe um lote de 7.144 acções nominativas da sociedade “C..., S.A.”, com o valor nominal de €.5,00 por cada acção; o contrato fazia depender a realização do negócio prometido da prévia aprovação da Assembleia Geral da C... , devendo o Réu enviar uma carta à Assembleia Geral e aos accionistas per si, para que estes em 60 dias exercessem o seu direito de preferência, conforme decorre dos estatutos; durante o prazo de 60 dias não houve qualquer pronúncia nem da sociedade, nem dos accionistas pelo que se tornou livre a transmissão de acções; com a celebração do contrato-promessa e como garantia de cumprimento, entregou uma letra de câmbio em branco; no contrato-promessa previa-se o pagamento faseado do preço, vencendo-se a última prestação com a celebração do contrato de transmissão, sendo que a Autora pagou todas as prestações, tendo o último pagamento ocorrido em 22.03.2009; que insistiu junto do Réu pela marcação do contrato de compra e venda das acções e se disponibilizou para esclarecimentos, mas nunca recebeu qualquer resposta da parte do Réu, tendo mesmo enviado uma carta a sugerir uma data para a realização do contrato prometido, mas nunca o Réu contactou ou respondeu; a obrigação tinha prazo certo e não obstante ter pago o preço e ter feito diversas interpelações ao Réu, este não cumpriu o acordado, não consentindo na marcação do contrato prometido, nem entregando os títulos, encontrando-se assim o Réu em mora; em face da mora por culpa exclusiva do Réu, pretende a execução específica do contrato.

O Réu contestou, alegando que: a Autora não alega a existência de uma deliberação da assembleia geral que autorize a propositura da acção e que se comprometa com a celebração do contrato-promessa, sendo que a falta de tal deliberação constituiu uma excepção dilatória que determina a absolvição do Réu da instância; que apenas comunicou à C... o seu propósito de vender o lote de 7144 acções, mas sem designar a pessoa do comprador, nem informar os diversos termos do negócio e essa comunicação pressupunha que a C... tivesse sujeitado a deliberação dos sócios em assembleia geral, o exercício ou não do direito de preferência da sociedade e o consentimento na cessão, o que nunca sucedeu (porque a C... nunca convocou a assembleia geral), pelo que está por verificar a condição suspensiva de que dependia a cessão das acções; acresce que não foi dado conhecimento aos accionistas de que podiam exercer o direito de preferência; em consequência, não se mostra vencida a obrigação de celebração do contrato prometido; a não convocação da assembleia geral para prestação de consentimento à cessão e exercício do direito de preferência não é uma omissão inocente, pois um dos sócios fundadores e gerente da Autora – D... – é igualmente sócio fundador da C... e era, à data do contrato-promessa, o administrador que preponderava na C... ; D... , que estava empenhado em aumentar a sua participação social na C... e porque o capital estava muito disperso, podendo os outros accionistas recusar o consentimento à cessão ou até a preferir na compra, deixou de cumprir o seu dever legal de convocar a assembleia geral necessária: já depois da celebração do contrato-promessa chegaram ao conhecimento do Réu factos referentes a operações que foram celebradas com o objectivo de prejudicar todos os demais accionistas e que têm reflexos sobre o património da C... e do valor das acções objecto do contrato-promessa, sendo que nessa sequência o Réu pediu informações sobre os alegados factos/operações; o pedido de informações foi objecto da assembleia geral da C... de 06.03.2009, sendo que as deliberações tomadas na mesma foram impugnadas e anuladas e corre actualmente acção para investidura dos órgãos sociais – incluindo do Réu no lugar de secretário da mesa da assembleia geral – sendo que com esta acção a Autora apenas pretende impedir o Réu do exercício daquele cargo social, de exercer o direito de voto na assembleia e de lhe vedar o acesso à informação pretendida e que poderão revelar erro sobre os pressupostos da decisão de vender as acções pelo preço que objecto de estipulação no contrato-promessa; recebeu todas as quantias estipuladas no contrato-promessa celebrado, mas a Autora não tem direito de exigir o cumprimento do contrato-promessa, atenta a posição que tomou na referida assembleia geral de 06.03.2009; considerando a posição da Autora na assembleia geral de 06.03.2009, na negação da prestação de informações, o pretenso direito da Autora exigir o cumprimento do contrato-promessa configura uma situação de abuso do direito; é necessário um processo especial de fixação de prazo para a celebração do contrato prometido, pelo que o Réu ainda não se encontra em mora e tem de ser absolvido do pedido; que D... começou por prometer a prestação das informações pedidas, mas mudou de opinião a partir do ano de 2007, pretendendo apenas a celebração do contrato de cessão e o recebimento da letra de câmbio; em suma, o contrato-promessa ainda não está em condições de ser cumprido, porque a produção de efeitos dependia de três condições e ainda não se verificou nenhuma delas; que a Autora não pede que o tribunal profira sentença constitutiva que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, pelo que se deve considerar a acção como uma simples acção condenatória.

Conclui pedindo que seja julgada procedente a invocada excepção de falta de autorização da assembleia geral da Autora para a aquisição das acções objecto do contrato-promessa e para a propositura da acção, absolvendo-se o Réu da instância. Ou assim não se entendendo que seja julgada procedente a excepção de não verificação da condição suspensiva, absolvendo-se o Réu do pedido. Ou quando ainda assim se não entenda, julgada a acção improcedente e não provada, absolvendo o Réu do pedido.

A Autora veio replicar, impugnando o alegado pelo Réu e defendendo que cabe no seu objecto social a celebração do contrato-promessa e a propositura da acção pelo que não se verifica a invocada falta de autorização, mas acrescentando que estranha que o Réu apenas agora – que tem de cumprir a sua obrigação – suscite tal questão, mas que não o tenha feito aquando da celebração do contrato-promessa. Mais refere que, mesmo que se verificasse uma irregularidade na deliberação da Autora, a anulabilidade não pode ser invocada por terceiros, como é o caso do Réu. Assim, em suma, a excepção deduzida pelo Réu tem de improceder.

Na audiência prévia foi decidido pelo tribunal julgar improcedente a invocada excepção de falta de deliberação, e foi relegado para final o conhecimento das outras excepções inominadas invocadas pelo Réu, nomeadamente o abuso de direito, por depender de prova a produzir. Foi fixado o objecto do litígio e os temas da prova e foi concedido aos mandatários das partes o prazo para apresentarem o rol de testemunhas e para reclamações.

A Autora veio reclamar do ponto 4 dos temas da prova, pedindo que esse ponto 4 seja substituído por outro que vise apurar o incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo Réu, nomeadamente por abuso de direito, mas tal reclamação foi julgada improcedente.

No decurso do julgamento, o Réu veio deduzir factos que considerou instrumentais em relação aos factos essenciais que alegou na contestação, e que resultam da instrução da causa, pedindo que os mesmos sejam considerados pelo tribunal nos termos do disposto no art. 5.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC (na redacção da Lei n.º 41/2013), o que mereceu decisão prévia às sentença no sentido de que o tribunal apenas atenderia aos factos que são instrumentais ou essenciais, mas complementares e concretizadores dos já invocados pelo Réu na contestação e que se enquadrem no âmbito da defesa deduzida.

Também, na pendência da audiência de julgamento, o Réu apresentou articulado superveniente, requerimento que foi rejeitado liminarmente pelo tribunal, nos termos do art. 588.º, n.º 4 do CPC.

Ainda na mesma sessão de julgamento, a Autora pediu a condenação do Réu como litigante de má fé.

Na resposta, o Réu admite que terá confundido consentimento e preferência da sociedade com preferência dos accionistas, mas que tal só sucedeu porque aquando da elaboração da contestação não tinha acesso ao livro de actas. Mais refere que estava e está convencido que teria e terá de haver nova deliberação da sociedade, sendo certo que depende da colaboração da C... e de D... pois não sabe quem são os accionistas da C... . É necessário um processo judicial de notificação para preferência. Termina dizendo que não se verificam os pressupostos para ser condenado como litigante de má-fé.

Após o julgamento, foi proferida sentença que terminou assim:

Pelo exposto, o Tribunal julga a presente acção totalmente improcedente e, em consequência:

1. Absolve o Réu B... do pedido.

2. Absolve o Réu do pedido de condenação como litigante de má fé.

3. Condena a Autora no pagamento das custas do processo.”

Desta sentença interpôs a Autora recurso, formulando, a final da sua alegação, as seguintes conclusões:

“1. Segundo o teor da cláusula 9.ª do contrato-promessa celebrado entre as partes, “este contrato (...) está sujeito à condição suspensiva de a sociedade a que respeitam os títulos consentir na cessão, e às demais obrigações legais e estatutárias que condicionarem a transmissão das acções”.

2. Relativamente às mencionadas obrigações estatutárias que condicionam a transmissão das acções, resulta dos arts. 328.º e 329.º do CSC que podem ser estabelecidos no contrato de sociedade limites à transmissão de acções nominativas.

3. Os accionistas da sociedade C... quiseram, nos termos do art. 328.º, n.º 2, alínea b) do CSC, estabelecer no contrato-promessa (art. 3.º) um direito de preferência dos outros accionistas em caso de alienação de acções nominativas, sendo este um verdadeiro limite à transmissibilidade das acções nominativas.

4. A mesma disposição legal permite que os accionistas fixem no contrato de sociedade as condições para o exercício do direito de preferência, sendo designadamente, as condições relativas à colocação do preferente em situação de poder exercer aquele direito e as relativas ao próprio exercício do direito de preferência por quem quer preferir.

5. No caso, apenas é possível o exercício do direito de preferência por parte dos accionistas, desde que a sociedade, uma vez notificada, em primeiro lugar, para exercer o seu direito de preferência, não o exerça.

6. Quem tem naturalmente o ónus de notificar os accionistas de que estão aptos a exercer, querendo, o seu direito de preferência na cessão de acções, uma vez que a sociedade, já notificada, recusou esse mesmo direito (como resulta do facto provado em 7), onde a sociedade enuncia não ter reservas para celebrar o referido negócio), é o acionista transmitente, como decorre do artº 416º do Código Civil.

7. O direito de preferência cabe não apenas à sociedade (no caso de querer exercer o seu direito) como também aos accionistas da sociedade (no caso de a sociedade, num primeiro momento, rejeitar o exercício da preferência e no caso de algum accionista querer exercer o seu direito de preferência).

8. No ponto 2.3. da ACTA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO de 15 de Dezembro de 2014, relativo à Motivação da Decisão de Facto, afirma a Meritíssima Juiz a quo que o Réu, sendo “sócio da sociedade C... desde a sua criação em 1994”, ao “dizer que não tinha conhecimento (tinha dúvidas...) sobre quem é que tinha de notificar os accionistas para exercer direito de preferência é totalmente absurdo e inconsciente.

9. A obrigação de notificar os sócios cabia única e exclusivamente ao transmitente, neste caso o Réu.

10. Não deverão, nem poderão, ser aceitáveis os argumentos invocados pelo Réu, segundo os quais o Réu tinha dúvidas relativamente a quem cabia dar a preferência aos accionistas, tendo confundido consentimento e preferência da sociedade com preferência dos accionistas, uma vez que não podia deixar de conhecer estes e outros conceitos, tendo em conta um padrão de conduta suficientemente diligentes, sagaz e informada que um accionista de uma sociedade deve ter.

11. A Meritíssima juiz a quo, que afirma não se saber quais os accionistas que se encontravam na referida assembleia geral, denota, salvo o devido respeito, um claro desvio ao dever de gestão processual plasmado no artigo 6.º do Código de Processo Civil, segundo o qual, entre outras directrizes, se prevê que o juiz, tendo o direito de seguir o processo, passa a ter igualmente o dever de procurar provas oficiosamente para se esclarecer sobre os factos que forem controvertidos, chamando, por exemplo, alguma testemunha que não foi arrolada ou pedindo a apresentação de um documento que comprove determinado facto controvertido. (No caso, bastaria a lista de presenças da Assembleia Geral).

12. Seguindo o dever de gestão processual (art. 6.º do CPC), a Meritíssima Juiz a quo podia e devia ter chamado ao processo as provas que entendesse necessárias de forma a corroborar o seu raciocínio lógico em que, mesmo não sabendo quais os accionistas presentes na assembleia geral invocada, entendeu que não estavam presentes todos os accionistas, por apenas estar presente a maioria do capital social [a maioria tanto pode ser de 50,1% como de 99,9% do capital social.

13. Além disto, e de acordo com o art. 288.º e ss. do CSC, qualquer acionista que possua acções correspondentes a, pelo menos, 1% do capital social pode consultar as convocatórias, as actas e as listas de presença das reuniões das assembleias gerais. Naturalmente, se fosse do interesse de algum(ns) accionista(s) a compra do lote de acções pertencentes ao accionista, aqui Réu, poderia(m) pedir informações, nos termos do art. 288.º e, inclusivamente, poderia(m), se para tal fosse necessário e justificável, convocar assembleia geral, nos termos do artigo 375.º, n.º 2 do CSC, no caso de possuir(em) acções correspondentes a, pelo menos, 5% do capital social.

14. Afirma a Meritíssima Juiz a quo que, nos termos do artigo 328.º, n.º 4 do CSC, as cláusulas que fixam limites à livre transmissibilidade das acções são oponíveis aos adquirentes de boa fé, desde que estejam transcritas nos títulos ou nas contas de registo das acções e, a contrario sensu, as cláusulas limitativas serão oponíveis a adquirentes de má fé, quer estejam quer não estejam transcritas nos títulos ou nas contas de registo.

15. A Juiz do Tribunal de 1.ª Instância, sem esclarecer os fundamentos que  a levaram a tal consideração, pressupõe, não tendo quaisquer elementos nesse sentido, que o adquirente, a Autora no caso sub judice, está de má fé.

16. A Meritíssima Juiz a quo generalizou, de forma inconcebível, para o caso em epígrafe o que em cima havia especificado, partindo, desde logo, de uma premissa errada: a consideração da Autora como adquirente de má fé.

17. Sem nunca referir os pressupostos que a levaram a esta consideração e sem nunca revelar, posteriormente, os fundamentos para esta especificação, a Meritíssima Juiz a quo admitiu, sem mais, que a Autora é um adquirente de má fé, construindo, a partir deste segmento, todo o seu raciocínio tendente a tornar lícita a recusa de registo e, consequentemente, a ineficácia da transmissão das acções.

18. Uma vez que “não está provado, nem tal foi alegado, se as cláusulas do contrato de sociedade que limitam a livre transmissibilidade das acções estão ou não transcritas nos título ou nas contas de registo das acções”, deveria a Meritíssima Juiz a quo ter velado pela descoberta da verdade material, actuando com base no dever de gestão processual, plasmado nos termos do artigo 6.º do CPC (e já aqui invocado para uma situação idêntica), requerendo provas necessárias para afirmar da má fé da Autora.

19. Não havendo provas relativamente à transcrição ou não, nos títulos ou nas contas de registo das acções, das cláusulas do contrato de sociedade que limitam a livre transmissibilidade das acções, requisito único e essencial para ser oponível ao adquirente de boa fé o cumprimento de tais cláusulas, não será de aceitar a oponibilidade de tais cláusulas à Autora.

20. Não se vislumbram razões para ser considerada a Autora como adquirente de má fé, mesmo conhecendo, através do contrato-promessa, da existência de cláusulas limitativas da transmissão de acções, não sendo passível de consubstanciar fundamento suficiente para se considerar a Autora como adquirente de má fé.

21. Sendo a obrigação de celebração do contrato definitivo uma obrigação de prazo certo (facto que resulta provado das cláusulas 3.ª e 8.ª do contrato-promessa), dir-se-á que essa obrigação se encontra vencida a partir da data de vencimento da última prestação da Autora, sendo desnecessária a interpelação do devedor (Réu) a cumprir, encontrando-se este em situação de mora (art. 805.º/2/a) do CC).

22. O direito da Autora à execução específica do contrato celebrado é inquestionável não só por força da lei, mas também pelo facto de as partes o terem previsto no art. 6.º do contrato-promessa.

23. Não parece haver qualquer fundamento legal para o abuso de direito da Autora, uma vez que, e pelo facto de o Réu se ter “obrigado a celebrar certo contrato e não [ter] cumpri[do] a promessa”, pode a Autora “obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso” (fundamento da execução específica do contrato, artigo 830.º do CC).

24. Ou seja, pode a Autora requerer judicialmente o cumprimento do contrato, isto é, requerer judicialmente a entrega das acções que o alienante se obrigou a transmitir-lhe (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 2007).

25. O art. 334.º do CC considera “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

26. Uma das manifestações do abuso do direito é precisamente o venire contra factum proprium.

27. A Autora e o Réu celebraram um contrato-promessa em que o Réu prometeu vender o lote de 7144 acções, sendo que a Autora prometeu comprar (1) situação objectiva de confiança); no caso, a Autora pagou as prestações na sua totalidade ao Réu sem que este tenha levantado qualquer problema (2) investimento na confiança); e, por fim, a Autora agiu sempre de boa fé, fazendo o pagamento integral correspondente à compra das acções, esperando cerca de quatro anos pela celebração do contrato definitivo, sem nunca lograr essa celebração, permanecendo com a expectativa futura de aquisição das acções, sem nunca ser informada do real objectivo do Réu: a não celebração do contrato-promessa de cessão das acções em causa (3) Boa-fé da contraparte que confiou).

28. O caso sub judice é um caso de venire contra factum proprium, uma vez que o Réu, pensando em usar contra a Autora a cláusula que exige a preferência dos accionistas, deixa passar cerca de quatro anos sem nada dizer e sem nunca referir a falta do exercício do direito de preferência dos accionistas, todavia aceitando sempre as quantias que antecipadamente a Autora foi pagando.

29. E o mais grave é que esta situação só termina quando o Réu quiser, pois se é a ele que compete cumprir a condição suspensiva (notificar os accionistas para o exercício do direito de preferência), enquanto não cumprir pode sempre invocar o próprio incumprimento para não celebrar o contrato prometido.

30. De acordo com o princípio da boa fé, invocado a propósito da transmissão de acções, não nos parece que o Réu tenha agido de forma correcta e leal, segundo os parâmetros do homem médio (artigo 762.º/2 CC), princípio basilar e fundamental no âmbito das relações negociais.

31. Assim, e citando MENEZES CORDEIRO (ob. cit.), “a pessoa que confide, legitimamente, num certo estado de coisas não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual”.

32. Refere a Meritíssima Juiz a quo a páginas da Douta Sentença que: “O dever de litigar de boa-fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do dever de probidade e de cooperação, fixados nos art.s 266.º e 266.º-A do Código de Processo Civil (actualmente arts. 7.º a 9.º) para além dos deveres que lhe são inerentes, impostos sempre às respectivas partes”.

33. Nos termos do artigo 7.º, n.º 1 do CPC, deverão as partes e os juízes cooperar entre si para que o processo realize a sua função em prazo razoável, de modo a “se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.

34. O princípio da boa fé processual vem plasmado no artigo 8.º do CPC: “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”.

35. Deste preceito poder-se-ão retirar dois sentidos, um positivo e um negativo. Relativamente ao sentido positivo, verificando-se uma obrigação de facere, poder-se-á remeter, para o artigo 7.º do CPC, que enuncia um dever de cooperação entre magistrados, mandatários judiciais e as próprias partes. Quanto ao sentido negativo, revelando uma obrigação de non facere, destacar-se-á naturalmente a proibição de dedução de pretensões ou defesas sem fundamento, alegações de factos falsos ou omissão de factos essenciais e uso anómalo dos meios processuais com um objectivo ilegal, impedindo a descoberta da verdade, entorpecendo a acção da justiça e protelando o trânsito em julgado da decisão.

36. É justamente este último sentido que prevalece na análise do artigo 542.º, n.º 2 do CPC, considerando-se como litigante de má-fé aquele que, com dolo ou negligência grave, praticar os actos supra descritos, sendo condenado em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta o pedir, nos termos dos artigos 542.º, n.º 1 e 543.º do CPC.

37. Pretende-se, com o instituto da litigância da má-fé, acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça, assegurando a moralidade e eficácia processual na medida em que com ela se reforça o respeito pelas decisões dos tribunais.

38. A litigância de má-fé constitui, assim, o reverso dos deveres de cooperação, probidade e de boa-fé processual impostos às partes.

39. O artigo 542.º, n.º 2 ,alínea b), do CPC diz ser litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.

40. O Réu, não sabendo ainda se a sociedade iria consentir na cessão e não sabendo igualmente se a mesma iria exercer o seu direito de preferência, uma vez que ainda não tinha sido realizada assembleia geral nesse sentido (que só viria a acontecer depois, em 21 de Dezembro de 2005), aceitou receber, desde logo, em 6 de Dezembro de 2005, o cheque de D... , no valor de 7.144,00€, referente à primeira prestação do pagamento do preço.

41. O Réu, a 6 de Dezembro de 2005, ao receber um cheque do promitente-comprador, com o valor acordado para a primeira prestação do pagamento do preço pela compra do lote de 7144 acções, quis, dolosamente, receber aquele e os subsequentes montantes, nunca referindo à Autora (promitente-comprador) que, naquele momento, ainda não havia sido dado consentimento da sociedade “ C... ” para a referida cessão e, igualmente, ainda não havia qualquer pronúncia da sociedade no sentido de querer exercer ou não o seu direito de preferência, facto que apenas ocorreu subsequentemente, a 21 de Dezembro de 2005.

42. Ainda que não se considere que o Réu tenha agido com dolo, o regime instituído após a última reforma do direito processual civil traduz uma substancial ampliação do dever de boa-fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má-fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva.

43. A condenação por litigância de má-fé pode fundar-se, além da situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave, situação que se identifica com o caso sub judice.

44. O conceito de negligência consubstancia-se na omissão do dever de diligência, sendo diligência exigível aquela que teria um bom pai de família em face das circunstâncias do caso – art. 487.º n.º 2 do C.Civil.

45. O Réu, na sua contestação, procurou de forma intencional e sistemática, denegrir o bom nome e reputação profissional do sócio gerente da Autora, imputando-lhe condutas que o mesmo nunca praticou, muito menos com a conotação que o Réu lhes atribui, que resultam como não provados, nas alíneas f), g) e i) da ACTA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO.

46. Na verdade, o Réu, que era quem tinha o dever de notificar os accionistas para o exercício do direito de preferência, não cumpriu esse dever e veio ainda imputar essa falta ao sócio-gerente da Autora, usando argumentação que sabia que não era verdadeira com o objectivo de colher para si vantagem e simultaneamente denegrir a imagem do sócio-gerente da Autora perante o Tribunal.

47. Em síntese, destes e de outros factos alegados nos articulados, resulta que o Réu, alterando a verdade dos factos, deliberada e conscientemente, com o fim de obter uma decisão que lhe fosse favorável e omitido factos relevantes que conhecia, ou devia conhecer, nos termos do dever de diligência supra mencionado, deve ser condenado como litigante de má fé.”

Pede, a terminar, que se revogue a sentença recorrida e se condene o Réu a entregar-lhe os títulos ou se profira nova decisão em que se declare a execução específica do contrato de cessão de acções, nos termos do artigo 830.º CC (...). Pede, ainda, que o Réu seja condenado como litigante de má fé, em multa exemplar e indemnização a favor da Autora de montante não inferior aos custos que teve se suportar com a presente acção.

O Réu respondeu sustentando a improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

A matéria de facto provada dada como provada na 1ª instância e que se aceita é a seguinte:

“1) A Autora é uma sociedade por quotas que se dedica às actividades de consultoria na área automóvel, compra e venda de veículos, imóveis e, ainda, ao arrendamento de imóveis. [art. 1.º da petição inicial]

2) São accionistas da Autora D... e a sua esposa F... , sendo ambos gerentes e obrigando-se a sociedade pela assinatura de um gerente. [arts. 28.º e 29.º da contestação]

3) Por escrito particular datado de 16 de Novembro de 2005, denominado de contrato-promessa de cessão de acções, a Autora (na qualidade de segunda outorgante) prometeu adquirir e o Réu (na qualidade de primeiro outorgante) prometeu ceder um lote de 7144 acções nominativas da sociedade “ C... , S.A.”, com o valor nominal de €.5,00 cada, tendo as partes ajustado, para além mais, que:

«1.ª) Declara o primeiro outorgante que é dono e legítimo possuidor de um lote de 7144 … acções nominativas do valor nominal de euro 5,00 cada, no capital social de “ C... , S.A.”, titular do NIPC n.º (...) (…)

2.ª) Pelo presente contrato, ele, primeiro outorgante, caso a sociedade denominada “ C... , S.A.”, a cujo capital se reportam os títulos objecto desta promessa, venha a consentir na cessão daquele lote de acções, promete vendê-lo à sociedade denominada W... (…) que promete comprá-las pelo preço global de euro 50008,00 …, a pagar em sete prestações semestrais e sucessivas, valor esse a que acrescem juros, à taxa convencionada de cinco por cento ao ano, sobre o valor das prestações que, na data de cada pagamento ficarem em dívida.

3.ª) O pagamento do preço da cessão ora prometido será feito em sete prestações mensais e sucessivas, recebendo o primeiro-cedente, a título de sinal, a primeira dessas prestações, na data em que se considere prestado o consentimento da sociedade, e as restantes prestações semestralmente, em dia idêntico do sexto, décimo segundo, décimo oitavo, vigésimo quarto, trigésimo e trigésimo sexto mês seguinte ao da prestação desse consentimento. O montante de cada uma dessas prestações, de capital e juros convencionados, nos termos que neste contrato se estipulam, fica a constar do mapa, que constitui o anexo único a este contrato, e que vai ser assinado pelos mesmos outorgantes deste contrato.

Parágrafo primeiro: a promitente cessionária poderá antecipar o pagamento de qualquer das prestações a que fica obrigada, por meio deste contrato-promessa. Caso em que o valor da prestação a pagar beneficiará da redução do juro convencionado, em função do tempo da antecipação.

“4.ª) Como garantia do cumprimento da obrigação de pagar o preço da cessão (…) a promitente-cessionária entrega nesta data ao promitente-cedente uma letra de câmbio, do aceite da promitente-cessionária, com aval prestado a favor da promitente-cessionária pelos seus sócios gerentes, D... e F... , ficando o promitente-cedente autorizado a completar o seu preenchimento (…).

6.ª) Em caso de mora ou de incumprimento de qualquer das obrigações emergentes deste contrato por parte do promitente-cedente, pode a promitente-cessionária requerer, nos termos do disposto no art. 830.º do Cód. Civil, sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.

7.ª) Até à cessão das acções ora prometida, o promitente-cedente exercerá todos os direitos inerentes à titularidade das acções.

8.ª) O contrato de cessão de acções ora prometido será celebrado na data da última prestação do preço ora convencionado, em Coimbra. As partes convencionam que o contrato prometido será reduzido a escrito; entregando o promitente-cedente à promitente-cessionária na data desse contrato, as acções de que é titular, e recebendo no mesmo acto, a última das prestações do preço ora prometido.

9.ª) Fica convencionado que este contrato, nos termos do disposto no art. 270.º e seguintes do Código Civil, está sujeito à condição suspensiva de a sociedade a que respeitam os títulos consentir na cessão, e às demais obrigações legais e estatutárias que condicionarem a transmissão das acções.

10.ª) …que este contrato fica condicionado ao respeito das normas legais e estatutárias que impõem o consentimento da sociedade; que, na falta de consentimento da sociedade manifestada válida e eficazmente, esta promessa de cessão deixará de produzir quaisquer efeitos, valendo, nas relações entre as partes, como se nunca tivesse sido celebrada. (…)», cuja cópia está junta a fls. 11 a 15 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. [arts. 2.º, 4.º e 29.º da petição inicial e arts. 7.º e 8.º da contestação]

4) Em 16.11.2005, a Autora denominava-se W... , Lda., tendo alterado a designação para A... , Lda., em 15.05.2007. [art. 3.º da petição inicial]

5) Como garantia do acordado em 2), o sócio gerente da Autora entregou ao Réu, em 16.11.2005, uma letra de câmbio em branco, a qual foi avalizada pelos dois sócios gerentes da Autora, D... e F... . [art. 10.º da petição inicial]

6) No dia 29.11.2005, o Réu enviou à “ C... , S.A.” a carta que se mostra junta a fls. 28 a 30 dos autos, a qual foi recebida em 05.12.2005, e de onde resulta, para além do mais, que:

“…A sociedade C... …tem direito de preferência na aquisição de acções que os seus accionistas pretendam vender.

Na minha qualidade de dono e legítimo possuidor de um lote de 7144…acções nominativas, do valor nominal de €5… cada, no capital social da C... … proponho vender o referido lote nas seguintes condições:

1 – Prometo vender pelo preço global de €.50.008 … a pagar em sete prestações semestrais e sucessivas, valor esse a que acrescem juros, à taxa convencionada de cinco por cento ao ano, sobre o valor das prestações que, na data de cada pagamento ficarem m dívida;

2 - O pagamento do preço da cessão ora prometido será feito em sete prestações mensais e sucessivas, recebendo o primeiro-cedente, a título de sinal, a primeira dessas prestações, assim que a sociedade decidir exercer o direito de preferência, e as restantes prestações semestralmente, em dia idêntico do sexto, décimo segundo, décimo oitavo, vigésimo quarto, trigésimo e trigésimo sexto mês seguinte ao da decisão de aquisição pela sociedade. O montante de cada uma dessas prestações, de capital e juros convencionados, nos termos que se estipulam, fica a constar do mapa, que constitui o anexo único a este ofício.

Parágrafo primeiro: a sociedade poderá antecipar o pagamento de qualquer das prestações. Caso em que o valor da prestação a pagar beneficiará da redução do juro convencionado, em função do tempo da antecipação.

3 - Como garantia do cumprimento da obrigação de pagar o preço da cessão, emergente desta promessa, a sociedade entrega ao promitente-cedente no momento em que decidir exercer o direito e preferência na compra uma letra de câmbio, da sociedade, com aval prestado a favor da promitente-cedente pelos administradores da sociedade, ficando o promitente-cedente autorizado a completar o seu preenchimento, com os montantes que estiverem em dívida, e a fixar-lhe a data e o local do vencimento. (…)

No caso de a sociedade decidir a não aquisição do lote das acções os termos propostos, solicita-se a prestação do consentimento para a respectiva venda.” [arts. 5.º e 30.º da petição inicial e arts. 9.º a 12.º da contestação]

7) No dia 21.12.2005, reuniu-se a assembleia geral da “ C... , S.A.”, para além do mais, com vista a “ 4 - Apreciar o conteúdo das missivas dirigidas à empresa pelos accionistas … B... … nas quais informar o conselho de administração da sua intenção de alienar …a totalidade das suas participações sociais. 5 – Deliberar sobre o exercício do direito de preferência, por parte da sociedade, na aquisição das acções aos accionistas supra identificados.” e onde foi deliberado “Relativamente aos pontos 4 e 5 da ordem de trabalhos e face ao último balanço aprovado …verificou-se a inexistência de reservas disponíveis que permitissem à sociedade poder exercer o direito de preferência na aquisição de acções próprias, face aos condicionalismos legais estabelecidos no Código das Sociedades Comerciais, pelo que a assembleia deliberou que os accionistas estão autorizados à negociação inter partes.”, conforme acta n.º 23, cuja cópia está junta a fls. 299 a 302 dos autos.

8) Em 06.12.2005, através do cheque n.º 8554274801, emitido por D... , no valor de €.7.144,00, foi paga a primeira prestação. [art. 11.º da petição inicial]

9) Em 21.02.2006, através do cheque n.º 483592708, no valor de €.22.445,90, foi paga a segunda prestação. [art. 12.º da petição inicial]

10) Em 21.02.2006, a Autora liquidou €.411,00, a título de juros pagos através do cheque n.º 9323949011. [art. 13.º da petição inicial]

11) Em 17.05.2006, D... entregou ao Réu o cheque n.º 0300362787, no valor de €.1.475,00. [art. 14.º da petição inicial]

12) Em 29.09.2006, D... através do cheque n.º 2454274797 pagou ao Réu o valor de €.10.000,00. [art. 15.º da petição inicial]

13) Em 13.03.2007, D... pagou ao Réu €.8.198,00 através do cheque n.º 7502596912. [art. 16.º da petição inicial]

14) Em 13.03.2007, o Réu informou o sócio gerente da Autora que pretendia receber €.1.000,00 em cheque separado, pagamento esse que foi efectuado no dia 22.03.2007 através do cheque n.º (...) . [art. 17.º da petição inicial com rectificação do ano, atendendo à cópia do cheque junta aos autos a fls. 17]

15) Uma vez que só faltava liquidar o remanescente dos juros, o sócio gerente da Autora apurou o valor de €.400,00 e efectuou a transferência desse valor para a conta do Réu. [art. 18.º da petição inicial]

16) Em 26.07.2007, a então Mandatária da Autora enviou ao Réu a carta de fls. 18 e 19, que foi recebida pelo Réu em 30.07.2007, de onde consta para além do mais “…como V. Exa. bem sabe o gerente da m/ cliente concluiu antecipadamente o pagamento do capital e respectivos juros, encontrando-se à presente data todos os montantes liquidados, não subsistindo qualquer obstáculo à realização do contrato prometido.

Acresce a este facto ….tem V. Exa. em sua posse uma letra de câmbio …sem que neste momento subsista qualquer razão para que o referido título ainda não tenha sido devolvido.

Assim sendo, requer-se a V. Exa., que no prazo de dez dias a partir da data da recepção desta carta, se digne informar da sua disponibilidade para na semana entre 20 a 24 de Agosto do corrente ano ser outorgado o referido contrato prometido e ser efectuada a entrega das acções e do título de crédito supra identificado.

Fica desde já V. Exa. informado que ultrapassado este limite temporal sem que esteja celebrado o contrato prometido, serão accionadas todas as instâncias judiciais, quer na sua vertente cível, quer criminal, sem qualquer aviso prévio, para que o mesmo seja executado.” [arts. 25.º e 26.º da petição inicial]

17) O Réu até à data nunca fez qualquer sugestão para a marcação da data de celebração do contrato. [art. 27.º da petição inicial]

18) Por escritura pública de 25.02.1994, foi constituída a sociedade “ C... , S.A.” com o capital social de 30.000.000$00 dividido em acções nominativas com o valor nominal de 1.000$00 cada uma, por E... (o qual interveio por si e na qualidade de procurador de G... e marido H... , I... , J... , L... , M... ), N... , O... , P... , Q... , R... , S... , D... (que subscreveu 3000 acções), T... , U... e B... (que subscreveu 1714 acções). [arts. 5.º e 30.º da contestação]

19) Do artigo terceiro das cláusulas acordadas na escritura aludida em 18) consta que «é livremente permitida a venda ou transmissão de acções entre accionista e seus descendentes devendo, de tal acto, ser dado conhecimento à sociedade nos quinze dias posteriores.» [art. 6.º da contestação]

20) Do artigo quarto das cláusulas acordadas na escritura aludida em 18) consta que «em quaisquer outros casos de venda ou transmissão de acções têm sempre direito de preferência, primeiro a sociedade, dentro dos limites legais e depois os restantes accionistas, para o que devem ser notificados trinta dias antes da transacção. O direito deve ser exercido nos trinta dias imediatamente posteriores à notificação.» [art. 6.º da contestação]

21) Do artigo quinto das cláusulas acordadas na escritura aludida em 18) consta que «sem prejuízo do estabelecido no parágrafo anterior, a venda ou transmissão de acções a estranhos à sociedade, exceptuados os descendentes, requer o consentimento da sociedade, por meio de deliberação da Assembleia Geral, que deverá decidir sobre o assunto nos sessenta dias posteriores à recepção de carta registada dos accionistas transmitentes solicitando tal consentimento sob pena de se tornar livre a transmissão de acordo com o estabelecido na alínea b) do número três do artigo trezentos e vinte e nove do Código das Sociedades Comerciais. Caso recuse tal consentimento, a sociedade procederá de acordo com o estabelecido na alínea c) do número três do artigo trezentos e vinte e nove do Código das Sociedades Comerciais.» [art. 16.º da contestação]

22) Não foi dado conhecimento pelo Réu do projecto do negócio aos demais accionistas, para, querendo, exercerem o direito de preferência. [art. 18.º da contestação]

23) D... era o administrador que preponderava na administração da sociedade “ C... , S.A.”. [art. 34.º da contestação]

24) Em data não concretamente apurada, mas depois da celebração do contrato-promessa e antes de 20.09.2007, o Réu teve conhecimento de factos referidos em 25) e 26) e relativamente aos quais pediu esclarecimentos. [arts. 36.º a 38.º da contestação]

25) Em 20.09.2007, realizou-se assembleia geral da “ C... , S.A.”, resultando da respectiva acta que:

(…) «Entrando no ponto um da ordem de trabalhos … B... questionou sobre o enquadramento contabilístico e legal da operação reflectida no balanço relativa à existência de prestações suplementares, no qual foi esclarecido pelo Sr. ROC de que se trata da prestações acessórias de capital com origem em empréstimos dos accionistas e membros do conselho de administração, que no balanço do exercício de 2005 figuravam como empréstimos, e que durante o ano de 2006, o conselho de administração deu ordem aos serviços contabilísticos para procederem à respectiva transformação. O Sr. ROC, ainda no âmbito da questão da operação contabilística “prestações suplementares” informou que a “ordem” acima referida deveria eventualmente ter sido autorizada em assembleia de accionistas. Esclareceu ainda o Sr. ROC, que o terreno alienado pela sociedade, denominado lote 27 – Biqueiro, descrito na Conservatória do Registo Predial com o número 1(...) … está integralmente reflectido no balanço, assim como as construções nele efectuadas pela sociedade. Esclareceu também o Sr. ROC, que os edifícios da sociedade em regime de locação estão contabilizados como activo da sociedade, independentemente da natureza periódica dos contratos que o suportam (…).» [art. 41.º da contestação]

26) Consta ainda da referida acta que «(…) passando ao ponto três da ordem de trabalhos … B... , o qual questionou o Sr. ROC sobre o impacto no balanço e capitais próprios da existência das “prestações acessórias de capital”, tendo o Sr. ROC informado de que se o conselho de administração não tivesse tomado esta medida, a sociedade apresentaria capitais próprios negativos … pelo que eventualmente poderia algum credor solicitar a sua insolvência. (…) Foi também esclarecido pelo Sr. ROC, que as referidas “prestações acessórias” no montante de €.372.420,90 estão devidamente documentadas, nomeadamente com cheques depositados nas contas bancárias da sociedade.

Foram efectuados os seguintes considerandos pelos accionistas Senhores S... e B... em que consideraram a actividade do conselho de administração merecedora de censura, sem prejuízo do uso de outros mecanismos de responsabilização legalmente aplicáveis tendo em vista o superior interesse da sociedade:

a) O conselho de administração aparenta ter criado ilegalmente formas extracontabilísticas, lesando eventualmente a sociedade e o Estado, nomeadamente através de conta bancária no grupo AA... em nome individual dos membros do conselho de administração, para operações ligadas à actividade da sociedade. Esta prática parece já ter sido seguida pelo conselho de administração em que participava nomeadamente o accionista Sr. Eng. Q... , e em que também  participava o actual Presidente do conselho de administração da C... , Sr. D... ;

b) Proceder o conselho de administração à venda do único imóvel não onerado da sociedade, à entidade bancária BB..., que por sua vez realizou operação de locação com a firma participada o capital social, predominante pelo accionista, digo detentor de quota predominante, Sr. D... – W... , Lda., e sendo simultaneamente Presidente do Conselho de Administração da C... . (…) Atendendo às elevadas dívidas da C... , a operação em causa poderá configurar uma forma de por em crise o cumprimento das obrigações de pagamento aos principais credores e eventualmente dívidas ao Estado

c) Colocam-se também dúvidas sobre os contratos com a entidade financiadora CC..., relativos ao financiamento de “obras” da C... , dado que essas obras são de difícil observação, pelo que deverão ser confrontados, nomeadamente, as respectivas facturas, os autos de medição das obras, documentos de suporte de pagamentos ao empreiteiro, contratos assim como as eventuais licenças camarárias. Em resposta o Sr. ROC informou que não tem nem nunca teve qualquer conhecimento de quaisquer contas bancárias em nome os actuais ou anteriores administradores pelos quais tenham sido efectuados movimentos respeitantes ou relacionados com a actividade da sociedade. Questionado o Sr. ROC, sobre eventuais impostos nomeadamente IRC, IVA, e IRS que possam ser devidos na eventualidade de essas contas e movimentos existirem, admite que esses impostos possam ser devidos.

Ponto 4 – Os accionistas Sr. E... e Sr. B... solicitaram ao Sr. ROC, que se pronuncie por escrito em âmbito de assembleia de accionistas (…) sobre as eventuais irregularidades do Conselho de Administração no âmbito das suas funções, e se se afigura legalmente admissível a continuação de funções dos seus membros, sem prejuízo de indemnização à C... pelos danos que se vierem a apurar.» [art. 41.º da contestação e 19.º, 20.º en 22.º do requerimento de fls. 395]

27) Na referida acta, o Réu votou contra a aprovação das contas do ano de 2006, as quais foram aprovadas por maioria. [arts. 16.º e 17.º do requerimento de fls. 395]

28) As referidas informações eram do interesse do Réu, pois o preço da cessão, foi estipulado com desconhecimento do referido em 25) e 26). [art. 42.º da contestação]

29) Em 24.04.2008 e 14.11.2008, realizaram-se duas assembleias gerais da “ C... , S.A.”, as quais foram adiadas por D... ter informado que ainda não estão disponíveis os elementos necessários para dar cumprimento à ordem de trabalhos, pelo que, em ambas propôs que a assembleia fosse suspensa e que fosse feita nova convocatória de assembleia geral em data oportuna, o que foi aprovado por unanimidade dos presentes. [art. 36.º do requerimento de fls. 395]

30) Em 06.03.2009 foi realizada uma assembleia geral da “ C... , S.A.”, sendo que as informações supra referidas constavam dos pontos 1 a 10 da ordem de trabalhos, conforme convocatória de fls. 315 e 316 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. [art. 47.º da contestação]

31) A Autora A... , Lda. fez-se representar nessa assembleia por V... o qual pediu à mesa da assembleia geral uma alteração da ordem de trabalhos, pedindo que a mesma se iniciasse pelo ponto 14 – proceder à eleição dos membros dos órgãos sociais -, sendo que o presidente da mesa da assembleia se recusou a por tal requerimento à votação. [arts. 47.º e 48.º da contestação]

32) Ainda assim, tal requerimento de alteração da orem dos trabalhos foi posto à votação por V... , o qual foi aprovado. [art. 49.º da contestação]

33) Todas as deliberações tomadas na assembleia geral de 06.03.2009 foram impugnadas judicialmente e por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.01.2011, devidamente transitado em julgado, foi deliberado que: “anular a deliberação dos accionistas da ré/recorrida, tomada na reunião da assembleia geral que teve lugar a 6 de Março de 2009, a qual, a proposta do Senhor V... , aprovou por maioria de 57,705% do capital social a alteração da ordem de trabalhos constante do concernente aviso convocatório; e consequentemente anular, outrossim, as demais deliberações tomadas, nessa mesma reunião, na sequencia de tal deliberação acima invalidada …”. [art. 52.º da contestação]

34) Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 08.01.2009, a “ C... , S.A.”, representada pelos administradores D... , X... e Y... declarou vender e o Z... , S.A. declarou comprar, pelo preço de €.1.125.000,00, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Hospital sob o n.º 9(...)/(...)e inscrito na matriz sob o artigo 2(...). [art. 1.º do requerimento de fls. 395]

35) Na mesma data – 08.01.2009 – o Z... , S.A. celebrou com a “ C... , S.A.” o contrato de locação financeira imobiliária, cuja cópia está junta a fls. 360 e ss., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, no âmbito do qual, o prédio identificado em 34) é dado pela primeira à segunda em locação financeira pelo período de 180 meses, cabendo à segunda o pagamento da 1.ª renda no valor de €.98.125,00 e as restantes no valor de €.9.818,37. [art. 1.º do requerimento de fls. 395]

36) O prédio identificado em 34) estava inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor da “ CC... , S.A.” pela apresentação n.º 1 de 15.01.1997, por compra à “ C... , S.A.” e na mesma data, pela apresentação n.º 2, está registada a locação financeira a favor da “ C... , S.A.”. [arts. 2.º e 3.º do requerimento de fls. 395]

37) Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 20.10.2006, a “ C... , S.A.”, representada pelos administradores D... , X... e Y... declarou vender e o BB... , S.A. declarou comprar, pelo preço de €.175.000,00, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Hospital sob o n.º 1(...)/(...)e inscrito na matriz sob o artigo 2.(...). [arts. 54.º e 55.º do requerimento de fls. 395]

38) Na mesma escritura, o BB... , S.A. declarou ainda dá o dito imóvel em locação financeira à W... , Lda.. [art. 56.º do requerimento de fls. 395]

39) Está averbado no registo predial do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Hospital sob o n.º 1(...)/(...)pela apresentação n.º 6 de 2006/11/10 que o BB... , S.A. deu o dito prédio em locação financeira à W..., Lda. pelo prazo de 240 meses. [art. 56.º do requerimento de fls. 395]

40) O imóvel continua a ser utilizado pela “ C... , S.A.” e é esta empresa quem paga as rendas mensais do contrato de locação financeira referido em 38) e 39). [arts. 57.º e 58.º do requerimento de fls. 395]

41) O referido em 37) e 38) não foi autorizado pela assembleia geral da “ C... , S.A.”. [art. 59.º do requerimento de fls. 395] “.

A estes há que aditar outro que resulta da acta n.º 23, referida em 7 e cuja cópia está junta a fls. 299 a 302 dos autos:

42) Na acta nº 23 referida em 7 consta a seguinte menção: “ Estiveram presentes ou representados os accionistas constantes da folha de presenças anexa, os quais perfazem a maioria do capital social”.

Por sua vez, os factos dados como não provados (decisão que também não foi questionada) foram os seguintes:

“a) O Réu notificou ou deu conhecimento a todos os accionistas para, querendo, exercerem o direito de preferência relativamente ao negócio referido em 3). [art. 5.º da petição inicial]

b) Não houve qualquer deliberação da “ C... , S.A.” na sequência da notificação referida em 6). [art. 6.º da petição inicial]

c) A “ C... , S.A.” nunca convocou uma assembleia geral para deliberar sobre a preferência na cessão prometida nem para decidir sobre a prestação do consentimento à cessão. [art. 14.º da contestação]

d) A Autora, representada pelo seu sócio gerente, enviou uma carta ao Réu onde o informava do pagamento já efectuado e a disponibilizar-se para lhe esclarecer qualquer dúvida que pudesse levantar-se quanto ao pagamento e juntando comprovativo da realização da transferência sendo que até à data não recebeu qualquer resposta do Réu. [arts. 19.º a 22.º da petição inicial]

e) Mais tarde a Autora, novamente representada pelo sócio gerente, endereçou uma carta ao Réu, onde requeria a marcação do contrato prometido e a devolução da letra de câmbio. [art. 23.º da petição inicial]

f) O Conselho de Administração da “ C... , S.A.” face à comunicação referida em 6) omitiu o dever de requerer ao presidente da assembleia geral da dita sociedade a convocação de assembleia geral com tal finalidade. [arts. 24.º e 25.º da contestação]

g) A omissão referida em f) correspondeu ao desígnio de D... , que, por interesses pessoais, não desejava dar a conhecer aos demais accionistas o projecto de cessão. [arts. 34.º, 35.º e 88.º da contestação]

h) As informações referidas em 25) e 26) foram pedidas na pendência dos pagamentos das prestações do preço estipuladas no contrato-promessa. [art. 41.º da contestação]

i) A Autora pretende com a presente acção impedir o Réu do exercício do seu cargo social e de participar e exercer o direito de voto em assembleia geral, bem como vedar o acesso à informação. [art. 55.º e 56.º da contestação]

j) Com base em facturas pretensamente demonstrativas da realização de obras no imóvel identificado em 29), o imóvel foi reavaliado pela CC... e em consequência dessa avaliação, a referida entidade financiou a C... em €.372.420,90 mais IVA. [arts. 4.º a 7.º do requerimento de fls. 395]

k) O valor referido em j) foi entregue pela CC... à “ C... , S.A.”, mas tal quantia foi dividida em quatro partes iguais e foi depositada nas contas bancárias pessoais dos accionistas – D... , X... , K... e Y... , que se apropriaram da mesma. [arts. 8.º a 10.º do requerimento de fls. 395]

l) Após, os quatro accionistas referidos em k) disponibilizaram a quantia de €.372.420,90 à “ C... , S.A.”, como se tal capital lhes pertencesse, escriturando a dita sociedade tais quantias como “suprimentos”, sendo que mais tarde D... ordenou que esses mesmos valores fossem contabilizados como “prestações suplementares”. [arts. 11.º a 14.º do requerimento de fls. 395] “

Do Direito:

         Na sentença, a Sr.ª Juiz, considerando que a sociedade C... prestou o consentimento à transmissão das acções do Réu para a Autora, sublinhou, no entanto, que não foi dado conhecimento do projecto de negócio pelo Réu aos accionistas da C... para exercerem a preferência (facto 22), sendo que apenas se sabe que, na assembleia geral da C... , estavam presentes accionistas que representavam a maioria do capital social, o que significa que, não estando presentes todos os accionistas, não se pode senão concluir que a obrigação de dar preferência a todos os accionistas, imposta pelo contrato de sociedade da C... , não foi cumprida. Como assim, considerou subsistir a limitação à transmissão das acções que decorre do incumprimento da cláusula que impõe ao accionista alienante a obrigação de dar preferência aos outros accionistas, uma vez que a referida cláusula (ainda que não transcrita nos títulos ou nas contas de registo das acções) é, nos termos do art. 328, nº 4 do Cód. das Sociedades Comerciais (CSC), sempre oponível a um adquirente de má fé, como é a Autora (que sabia da existência dessa cláusula limitativa da transmissão das acções), o que significa que, sendo lícita a recusa do registo da transmissão nos termos do art. 102, nº 1 do Código dos Valores Mobiliários (CVM), a transmissão será sempre ineficaz.

Objecta a apelante que a Sr.ª Juiz, ao considerar que não estavam presentes todos os accionistas, devia ter-se certificado de que assim era, pelo que, não o tendo feito, violou o dever de gestão processual plasmado no art. 6 do CPC.

Porém, não existe a alegada violação (cujas consequências não foram sequer esclarecidas).

Com efeito, se de acordo com o art. 6 do CPC, sobre o Juiz recai o dever de procurar provas, sobre ele já não recai, em princípio o dever de introduzir factos que não foram alegados no processo, a não ser que resultem da produção da prova (Miguel Mesquita, O Princípio de Gestão Processual, RLJ nº 3995, pág. 91). A investigação dos factos (e a demanda de provas) pressupõe, portanto, a alegação dos factos, como decorre do princípio da auto-responsabilidade das partes. Ora, a Autora não alegou (e por isso não pôde ser provado) que os accionistas, todos eles, tiveram conhecimento do projecto de “cessão” das acções na assembleia geral da C... .

Acresce que o não uso do dever de gestão processual material, se acaso se impusesse à Sr.ª Juiz, devia ter sido primeiro objecto de arguição de nulidade e só, depois, do despacho que sobre essa arguição recaísse, é que podia ter sido interposto recurso (Miguel Mesquita, artigo citado, pág. 105).

O que não sucedeu. E, por isso, não pode a recorrente invocar o não uso dos poderes de gestão material do processo para evitar que a Juiz retire consequências (seja da falta de alegação de factos seja da falta de prova).

Invoca, ainda, a apelante o disposto no art. 288, nº 1 do CSC para alegar que qualquer accionista não presente, que possuísse, pelo menos, 1% do capital social, podia pedir informações (sendo que aqueles que tivessem, pelo menos, 5% de capital podiam até convocar uma assembleia geral, nos termos do art. 375, nº 2 do CSC).

No entanto, não se descortina em que medida o direito dos accionistas à informação pode suprir a falta de notificação dos accionistas não presentes para exerceram o direito de preferência relativamente à transmissão (e, sobretudo, se é ao promitente-alienante que, nos termos do art. 416, nº 1 do CC, cabe notificar os outros accionistas), Aliás, os accionistas não presentes só poderiam pedir informação (partindo do princípio de que tinham, pelo menos, 1% do capital, cada um deles), e assim, suprir o incumprimento da obrigação de comunicação que impendia sobre o Réu, se tivessem algum princípio de informação sobre o projecto de negócio (o que nem sequer está demonstrado).

Em resumo: não se pode considerar, a nenhuma luz, que os accionistas tiveram conhecimento do projecto de venda das acções através da assembleia (ou que tinham sequer possibilidades de ter esse conhecimento). Na verdade, constando apenas da acta que se encontravam os accionistas que representam a maioria do capital (e nada mais) não se pode, naturalmente, concluir que todos e cada um dos accionistas da C... tiveram conhecimento do projecto de negócio (e de todas as cláusulas deste, incluindo a identidade da promitente-adquirente, que não constava, sequer, da missiva que o Réu dirigiu à assembleia).

Como assim, não tendo a Autora não logrado provar que o Réu notificou, deu conhecimento directo ou indirecto a todos os accionistas do seu projecto de negócio (e dos elementos deste) para eles poderem exercer o seu direito de preferência, verifica-se, consequentemente, uma limitação à transmissão das acções, que decorre da cláusula 4ª do contrato de sociedade C... (cfr. factos 20 e 21) cláusula essa que é oponível à Autora e impede o recurso à execução específica do contrato-promessa (admitindo que o pedido de entrega dos títulos prometidos supõe, afinal, o cumprimento do contrato-promessa).

Com efeito, segundo o art. 328, nº 4 do CSC “ as cláusulas previstas neste artigo devem ser transcritas nos títulos ou nas contas de registo das acções, sob pena de serem inoponíveis a adquirentes de boa fé”. O que significa que as cláusulas que foram incluídas no contrato de sociedade são, nos termos da lei, sempre oponíveis a um adquirente de má fé (como é a Autora).

Argumenta a recorrente que não pode ser considerada uma adquirente de má fé para os efeitos do art. 328, nº 4 do CSC. E, por isso, não pode a cláusula que impõe a preferência dos accionistas na transmissão das acções ser-lhe oponível, a ela que está de boa fé.

Porém, o adquirente de boa fé é apenas aquele que ignorava, ao adquirir as acções, que lesava o direito de outrem (ou seja o direito da sociedade ou dos accionistas). O adquirente de má fé é aquele não ignorava, pelo contrário, tem conhecimento da falta de direito do alienante (Alexandre de Soveral Martins, Cláusulas do Contrato de Sociedade que limitam a transmissibilidade das acções, 2006, pág. 332 e 333).

Ora, revertendo ao caso concreto, verifica-se que a Autora não ignorava nem ignora os limites à transmissibilidade das acções, designadamente o de que o alienante não pode transmitir as acções sem dar preferência aos restantes accionistas.

O que significa que, como decorre do art. 328, nº 4 do CSC, “ a contrario”, lhe são oponíveis as cláusulas limitativas (a da preferência dos accionistas, em especial) e isto independentemente de tais cláusulas se mostrarem ou não transcritas nos títulos ou nas contas de registo.

Argumenta a recorrente que também aqui a Sr.ª Juiz devia ter velado pela descoberta da verdade material, actuando com base no dever de gestão processual, plasmado nos termos do art. 6.º do CPC “requerendo” as provas necessárias à demonstração da sua (dela, Autora) má fé.

Porém, também aqui, e à semelhança do que atrás se disse, não se justificava qualquer iniciativa oficiosa do juiz e, mesmo que assim fosse, nunca o não exercício dessa iniciativa poderia beneficiar a Autora (designadamente no jogo de repartição do ónus da prova).

De modo que, não estando provada a existência ou não da transcrição, nos títulos ou nas contas de registo das acções, das cláusulas do contrato de sociedade que limitam a livre transmissibilidade das acções, e sendo a Autora adquirente de má fé, o não cumprimento da cláusula que estabelece o direito de preferência a favor dos accionistas é oponível à Autora.

Mas pode dizer-se que, ao não proceder à notificação dos accionistas para preferirem, o Réu impediu, contra as regras da boa fé, a verificação da condição suspensiva, que fazia depender a efectivação do negócio do cumprimento das obrigações legais e estatutárias (cláusula 9.ª do contrato-promessa), designadamente daquela que estabeleceu o direito de preferência dos outros accionistas em caso de venda ou transmissão de acções (art. 4º do contrato de sociedade, facto 20)? E que, por isso, se deve ter, nos termos do art. 275, nº 2 do CC, tal condição por verificada?

Entendeu a Sr.ª Juiz a quo que não se podia ter tal condição por verificada, uma vez que a norma que concede o direito de preferência aos accionistas protege não apenas o Réu promitente, mas também os interesses da sociedade e dos demais accionistas (Soveral Martins, ob. cit., pág. 499 e segs), pelo que não fará sentido, assim, a prolação de sentença que produza os efeitos da declaração negocial do Réu faltoso ao abrigo do nº 1 do art. 830 do CC.

Cremos, até, que é possível ir mais longe: a cláusula 9ª do contrato-promessa não será, em rigor, uma verdadeira condição na acepção do art. 270 do CC mas antes uma condição imprópria, uma condição legal, na medida em que faz depender a eficácia do negócio não propriamente da vontade dos negociantes (art. 405 do CC) mas da vontade do legislador, que permite que, nos termos do art. 328 do CSC, seja consagrada, como foi, nos estatutos da sociedade, um direito de preferência dos accionistas (Universidade Católica Portuguesa, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, pág. 662; cfr., ainda, Ac. STJ de 10.12.2009, Moreira Alves, em www.dgsi.pt).

A cláusula inserta no contrato-promessa resulta, portanto, dos estatutos da sociedade, que prevalecem sobre qualquer disposição negocial, não podendo as partes dispor em contrário. E, por isso, a referida cláusula não tem origem negocial, não é uma verdadeira condição acordada entre as partes. Mesmo que não figurasse no contrato, as partes estariam sempre sujeitas a ela.

Não tem aqui, pois, aplicação o disposto no nº 2 do art. 275 do CC.

Ainda em ordem a sustentar a possibilidade da execução específica do contrato-promessa, argumenta a recorrente que, sendo a obrigação de celebração do contrato definitivo uma obrigação de prazo certo (facto que resulta provado das cláusulas 3.ª e 8.ª do contrato-promessa), essa obrigação se encontra vencida a partir da data de vencimento da última prestação da Autora, sendo desnecessária a interpelação do devedor (Réu) a cumprir, encontrando-se este em situação de mora (art. 805, nº 2, al. a) do CC).

No entanto, não se pode sustentar a existência de uma obrigação de prazo certo quando o prazo está dependente da verificação de uma condição estatutária (que impõe a notificação dos accionistas para exercerem o direito de preferência), de verificação futura e incerta, e cuja inobservância impede a execução específica do contrato celebrado.

Considera, ainda, a apelante que o Réu agiu com abuso de direito, na modalidade venire contra factum proprium, na medida em que o Réu, pensando em usar contra a Autora a cláusula que exige a preferência dos accionistas, deixou passar cerca de quatro anos sem nada dizer e sem nunca referir a falta do exercício do direito de preferência dos accionistas, todavia aceitando sempre as quantias que antecipadamente a Autora foi pagando.

Assim, por exemplo, o Réu, não sabendo ainda se a sociedade iria consentir na cessão e não sabendo igualmente se a mesma iria exercer o seu direito de preferência, uma vez que ainda não tinha sido realizada assembleia geral nesse sentido (que só viria a acontecer depois, em 21 de Dezembro de 2005), aceitou receber, desde logo, em 6 de Dezembro de 2005, o cheque de D... , no valor de 7.144,00€, referente à primeira prestação do pagamento do preço.

Na perspectiva da apelante, se bem se entende, a conduta do Réu ao receber as quantias previstas, sem invocar a falta do exercício do direito de preferência dos accionistas teria criado, assim, a convicção na Autora de que o Réu nunca lhe oporia o incumprimento da cláusula que concedia preferência aos accionistas.

No entanto, não está provado nem resulta dos factos provados que a Autora tenha ficado com a convicção legítima de que o Réu não lhe colocaria tal problema ao cumprimento do contrato.

Aliás, e olhando para o contrato, verifica-se que estava prevista a possibilidade de antecipação do pagamento da 1ª prestação e das outras prestações, não dependia do consentimento do Réu (cfr. cláusula 3ª, parágrafo primeiro, do contrato, descrita no facto 3). E, por isso, não era exigível que o Réu recusasse o recebimento das prestações do preço com o fundamento de que os accionistas ainda não tinham sido notificados para exercer o seu direito de preferência.

No entanto, mesmo que se admitisse que a conduta do Réu tinha criado na Autora a convicção de que o Réu nunca lhe oporia o incumprimento da cláusula de preferência, nunca o abuso de direito poderia conduzir ao cumprimento do contrato.

É que se a cláusula limitativa do contrato de sociedade em causa serve, como se disse, para proteger os interesses dos accionistas, não faria sentido enveredar por uma solução (a do cumprimento do contato) que lesasse esses interesses. O eventual abuso do direito do Réu de opor à Autora o incumprimento da dita cláusula não poderia conduzir à paralisação desse direito e, subsequentemente, ao cumprimento do contrato-promessa, em prejuízo dos accionistas, que assim veriam subtraído o seu direito de preferência na aquisição das acções. A sanção para o abuso de direito não poderia ser, pois, essa, que não se adequaria à situação (v. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, notas ao art. 334 do CC, Universidade Católica Portuguesa, ob. cit., pág. 788).

Finalmente, a questão da absolvição do Réu do pedido de condenação como litigante de má fé.

Refere a apelante que o Réu, na sua contestação, procurou de forma intencional e sistemática, denegrir o bom nome e reputação profissional do sócio gerente da Autora, imputando-lhe condutas que o mesmo nunca praticou, muito menos com a conotação que o Réu lhes atribui, que resultam como não provados, nas alíneas f), g) e i) dos factos não provados.

Assim, o Réu disse (falsamente) que a não convocação da assembleia geral não era inocente uma vez que o administrador da Autora preponderava na C... (art. 27 da contestação), e que ele estava empenhado em aumentar a sua participação social na C... e porque o capital estava muito disperso, podendo os outros accionistas recusar o consentimento à cessão ou até preferir na compra, deixou de cumprir o seu dever legal de convocar a assembleia (art. 32 da contestação).

Todavia, a circunstância de os factos das referidas alíneas terem sido dados como não provados não significa que se tenha dado como provado o seu contrário, que esteja demonstrado o oposto

E, por isso, não se evidencia, neste particular aspecto, a má fé do Réu, em qualquer das modalidades previstas no nº 2 do art. 542 do CPC.

Em síntese:

1- O dever de gestão processual processual não abrange a introdução pelo Juiz de factos não alegados, que não resultem da produção de prova;

2- As cláusulas previstas no art. 328 do CSC, limitativas da transmissão de acções, são sempre oponíveis a adquirentes de má fé, estejam ou não transcritas nos títulos ou nas contas de registo das acções;

3- Adquirente de má fé é aquele que não ignora que as cláusulas previstas no art. 328 do CSC devem estar transcritas nos títulos ou nas contas de registo das acções;

4- A condição acordada entre as partes do contrato-promessa de venda de acções no sentido de sujeitar a transmissão das acções alienadas ao exercício do direito de preferência de outros accionistas (não intervenientes nesse contrato-promessa), estabelecido no contrato de sociedade, é uma condição imprópria que difere da verdadeira condição prevista no art. 272 do CC;

5- Como assim, e neste caso, não tem sentido a aplicação do disposto no nº 2 do art. 275 do CC, nem a execução específica do contrato - promessa, nos termos do art. 830, nº 1 do CC;

6- O abuso de direito por parte do promitente-alienante na oponibilidade ao promitente-adquirente da cláusula (societária) de preferência a favor dos accionistas não alienantes (do conhecimento do promitente adquirente, que por isso, se encontra de má fé) não pode conduzir ao cumprimento do contrato-promessa de venda das acções por lesar os interesses dos accionistas preferentes que, assim, ficam impedidos de exercer o direito de preferência.

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.


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Coimbra, 19 de Janeiro de 2016


António Magalhães (Relator)
Ferreira Lopes
Freitas Neto