Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
487/11.6TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
REGIME
PROIBIÇÃO
Data do Acordão: 01/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 577º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I - Os créditos cuja cessão se encontra proibida pelo disposto no art.º 577º, n.º 1, in fine, do C. Civil, são aqueles que respeitam a uma prestação de tal modo inerente à pessoa do credor primitivo que a sua transmissão para outro titular determina­ria uma alteração do seu conteúdo, sendo por isso manifestamente desrazoável que se impusesse ao devedor a sua vinculação perante outra pessoa.

II - Estão nesta situação os créditos que visam a satisfação de necessidades pessoais do credor, aqueles de onde resulte uma dependência pessoal entre credor e devedor, os que tomem em consideração as qualidades ou condições do credor, ou aqueles cuja satisfação exige uma colaboração infungível do credor.

III – Não se encontra nessas condições um crédito relativo ao preço duma empreitada.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A… intentou a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra M…, pedindo que seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 36.289,88, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tanto, em suma, que:
- A Ré celebrou, em 19.01.2010, com a sociedade V…, Lda. um contrato de empreitada em que era dona da obra a Ré e empreiteira a referida sociedade;
- Durante a execução do referido contrato de empreitada a Ré não efectuou o pagamento de algumas facturas, nomeadamente as facturas n.º 448, 449, 397, 401, 402 e 440, à sociedade V…, Lda.;
- Facturas que foram emitidas e enviadas à Ré na sequência de serviços de empreitada executados na obra sita na …, a que corresponde o referido contrato de empreitada;
- Encontrando-se assim em dívida à sociedade V…, Lda., o montante de € 41.844,59 (com IVA incluído);
- Em 09.09.2011, a referida sociedade V…, L.da cedeu, por contrato, ao Autor o crédito que detinha sobre a Ré;
- Ficando assim o Autor sub-rogado nos direitos de crédito que a referida sociedade detinha sobre a devedora, aqui Ré, no montante de € 36.289,88 (valor das facturas sem IVA).

A Ré, citada para os termos da acção, ofereceu articulado de contestação, onde além de impugnar os factos invocados pelo Autor, sustentou, em síntese, que:
- A Ré não é devedora de qualquer quantia pecuniária, com origem no Con­trato de Empreitada celebrado em 19.01.2010, ou seja a que título for, de V…, Lda.
- A Ré não é devedora de qualquer quantia pecuniária, com origem no con­trato de empreitada celebrado em 19.01.2010, ou com origem em um outro qualquer contrato “simulado”, ou seja a que título for, do Autor, pessoa que desconhece;
- O “suposto” contrato celebrado entre V…, Lda. e o Autor é nulo, porquanto, se trata de um “estratagema” frustrado, delineado pelos “amigalhaços” …, numa qualquer secretária de um escritório, no sentido de extorquir uma quantia pecuniária a ora Ré;
- Os trabalhos descritos nas facturas cujo valor é peticionado não correspon­dem aos trabalhos efectivamente efectuados em obra sem vícios ou defeitos, não se encontrando junto a estas o respectivo auto de medição assinado, não correspondendo à verdade o seu descritivo;
- A Ré celebrou em 19.01.2011 com V…, L.da, um Con­trato de Empreitada, mas a partir do mês de Novembro de 2010 aquela sociedade negligenciou, culposamente, o bom cumprimento e execução do mesmo;
- Durante o mês de Dezembro do ano de 2010, não foram efectuados pela empreiteira quaisquer trabalhos na obra, e os trabalhos efectuados durante o mês de Novembro de 2010, foram unicamente o assentamento/aplicação de cerca de 50 m2 de tijolo cerâmico interior no edifício, apresentando-se as paredes de tijolo cerâmico no interior no edifício desaprumadas e fora da esquadria;
- Durante o mês de Novembro de 2010, a empreiteira deveria ter realizado trabalhos de relevo na obra, tais como: a colocação/aplicação de toda a rede de tubagem inerente ao projectado a nível de electricidade; a colocação/aplicação de toda a rede de tubagem inerente ao projecto de ITED; a colocação/aplicação de toda a rede de tubagem inerente ao projecto águas limpas e águas sujas; a colocação/aplicação de toda a rede de tubagem inerente ao projecto de detecção de incêndios;
- Relativamente as facturas n.º (s) 0448, 0449, 0397, 0401, 0402 e 0440, emi­tidas pela Empreiteira, não foram efectuados quaisquer trabalhos que justificassem a emissão das mesmas;
- O Sócio e Gerente … recusava-se a atender o seu telemóvel, não se apresentando na obra, não prestando os esclarecimentos necessários à fiscalização da obra;
- Da parte da empreiteira – V…, L.da - não comparecia ninguém às reuniões previstas no contrato, ou outras, após o eng. … ter-se despedido da empreiteira;
- Era completamente impossível o contacto pessoal quer telefónico com o Sócio e Gerente …, o qual não comparecia na obra e não atendia, não prestando os esclarecimentos solicitados e devidos à dona de obra;
- A empreiteira – V…, L.da - abandonou a empreitada, sem justa causa, no início do mês de Maio de 2011, deixando de ter trabalhadores na obra;
- Em seguimento ao abandono da obra, nos meses seguintes, a empreiteira – V…, L.da - desmantelou integralmente o estaleiro da obra, retirando todos os materiais da obra, quer do estaleiro, quer do interior da obra, não realizando qualquer outro trabalho na obra;
- A empreiteira – V…, L.da -, violou culposamente o Con­trato de Empreitada e no estrito cumprimento das cláusulas contratuais do Contrato de Empreitada a ora Ré não é devedora de uma qualquer quantia pecuniária junto de V…, Lda.
Concluiu pela improcedência da acção.

O Autor replicou, mantendo a posição assumida na p.i., defendendo a vali­dade do contrato de cessão de créditos, afirmando que a obra realizada não sofre de quaisquer defeitos e alegando que cumpriu escrupulosamente o contratado, apenas tendo resolvido o contrato quando a Ré não cumpriu a sua obrigação de pagar os serviços realizados.
Concluiu pela improcedência das excepções e pela procedência da acção.
A Ré apresentou tréplica, mantendo a posição assumida na contestação.
Foi proferido despacho saneador, com valor de sentença, que conheceu do mérito da acção, julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré do pedido formulado.
Inconformado com esta decisão o Autor interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
Conclui pela procedência do recurso.
Não foi apresentada resposta.
1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelo conteúdo das conclusões das alegações do recorrente, cumpre apreciar a seguinte questão:
A cessão de créditos do empreiteiro a terceiro relativa ao pagamento do preço da obra é válida?
2. Os factos

O direito aplicável
Com a presente acção o Autor pretendia cobrar um crédito, relativo ao paga­mento parcial do preço de uma empreitada, que lhe havia sido cedido pela empreiteira.
A decisão recorrida julgou improcedente esta pretensão com fundamento em que, encontrando-se o crédito cedido ligado à pessoa do credor, essa cessão foi nula, face à proibição contida no art.º 577º, n.º 1 do C. Civil.
Sendo um crédito um bem económico que pode ser objecto de circulação jurídica, tem o credor, em regra, a faculdade de disposição sobre esse bem, podendo cede-lo a terceiro mediante contrato.
É essa transmissibilidade que se encontra regulada nos art.º 577º e seg. do C. Civil.
O n.º 1 deste preceito, na sua parte final, proíbe, contudo, a cessão de créditos que, pela própria natureza da prestação, estejam ligados à pessoa do credor.
Esta proibição abrange os créditos que respeitam a uma prestação de tal modo inerente à pessoa do credor primitivo que a sua transmissão para outro titular determina­ria uma alteração do seu conteúdo, sendo por isso manifestamente desrazoável que se impusesse ao devedor a sua vinculação perante outra pessoa. São créditos, relativamente aos quais não é indiferente a pessoa do credor, pelo que, não podendo a cessão do crédito determinar uma alteração do seu conteúdo, uma vez que não necessita do acordo do devedor, é proibida a sua cessão.
Estão nesta situação, designadamente, os créditos que visam a satisfação de necessidades pessoais do credor, aqueles de onde resulte uma dependência pessoal entre credor e devedor, os que tomem em consideração as qualidades ou condições do credor, ou aqueles cuja satisfação exige uma colaboração infungível do credor[1].
Neste caso foi cedido um crédito relativo ao preço duma empreitada.
O seu credor era o empreiteiro e o devedor era o dono da obra.
Este crédito não se encontra entre aqueles que acima se referiu, em que a pes­soa do credor influi no seu conteúdo.
Na verdade, para o dono da obra é indiferente a pessoa a quem deve pagar o preço da empreitada, uma vez que continua a ser o empreiteiro por si contratado que continua vinculado à realização da obra, continuando a poder exercer sobre ele todos os direitos relativos a essa prestação, assim como poderá excepcionar perante o novo credor qualquer meio de defesa destinado a evitar o pagamento do preço da empreitada, nos termos do art.º 585º do C. Civil.
É certo que, muitas vezes, a especial natureza da obra exige a sua realização pelo empreiteiro contratado, mas o carácter infungível dessa prestação apenas impedirá a transmissão da obrigação a que se vinculou o empreiteiro, nada obstando à cessão do seu crédito.
Por estas razões não se revela proibida a cessão de créditos que é invocada como fundamento da presente acção, pelo que o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida.
Tendo ficado prejudicada a apreciação das demais questões do presente litígio pela solução dada pela decisão recorrida, mas estando ainda controvertidos os factos necessários à apreciação dessas questões, não pode este Tribunal delas conhecer, nos termos do art.º 715º, n.º 2 do C. P. Civil, devendo o processo prosseguir os seus termos na 1.ª instância para apuramento dos factos necessários à decisão da causa.
Decisão
Pelo exposto julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento da acção.
Custas pela parte vencida a final.
           
Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino


[1] Neste sentido, Vaz Serra, em Cessão de créditos ou outros direitos, no B. M.J. n.º especial, pág. 89-94, e Menezes Leitão, em Cessão de crédi­tos, pág. 311, ed. 2005, da Almedina.