Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE JACOB | ||
Descritores: | HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DO RESULTADO | ||
Data do Acordão: | 06/05/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 412.º, 428.º E 431.º, DO CPP; ARTIGO 137.º, N.º 1, DO CP | ||
Sumário: | I - Na reapreciação da matéria de facto dada como provada e/ou não provada na sentença recorrida, o tribunal da relação não está vinculado nem pelos juízos que fundamentaram a decisão nem pelos argumentos em que se estriba a análise do recorrente. II - Precisamente porque o sistema processual penal não é de verdade formal, o tribunal da relação, uma vez solicitada a reapreciação da prova, terá de lançar mão de todos os meios ao seu alcance para formular um definitivo juízo relativo à matéria de facto fixada, podendo mesmo alterá-la, verificados que sejam os pertinentes pressupostos. III - O estabelecimento de relação causal (adequada) entre uma taxa de álcool no sangue e um evento estradal civil ou criminalmente relevante não opera automaticamente; antes terá de ser afirmado através da prova produzida em cada caso concreto. IV - Perante os seguintes factos provados: - a viatura automóvel tripulada pelo arguido invadiu a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário; - no local, a estrada, que estava seca, configura-se em curva para a direita, em ligeira rampa descendente; - quando ocupava a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, o veículo conduzido pelo arguido entrou em derrapagem, tendo deslizado sobre as rodas do lado esquerdo em curva para a direita, percorrendo, assim, 100,7 metros até sair do asfalto, e ainda 14,8 metros no campo contíguo à via, vindo a imobilizar-se apenas depois de ter embatido numa oliveira; - o descrito acontecimento ocorreu durante a madrugada, cerca das 04h45m, numa ocasião em que não havia nenhum trânsito na faixa de rodagem contrária à do arguido; - os ocupantes da viatura tinham ingerido antes do evento, durante cerca de 4 horas, diversas cervejas; - às 07h05m, mais de duas horas e meia após o termo do período durante o qual ingeriu a dita bebida alcoólica, o arguido (ainda) apresentava uma TAS de 0,70 g/l; deles decorrem duas consecutivas demonstrações da incapacidade de o arguido controlar o veículo; a primeira, quando invade a “contramão”; a segunda, quando tenta regressar à sua “mão” de trânsito. IV - Conhecidas as consequências do exercício da condução sob o efeito do álcool, negar a influência desse elemento na causalidade subjacente ao acidente em causa equivale a negar o óbvio. Esta conclusão atinge-se por presunção judicial, assente nos factos objectivamente provados e amparada no conhecimento (científico) sobre a influência negativa do álcool na condução automóvel, sem que se verifiquem qualquer “salto” lógico ou premissas indemonstradas. V - Havendo a registar, em resultado do acidente, a morte de um dos ocupantes da viatura, o arguido, ao actuar nos termos descritos, incorreu na autoria de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do CP. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO:
Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos: “(…) Pelo exposto, condena-se o arguido A... como autor material de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º nº 1 do C.P na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 6€ num total de € 1.500 (mil e quinhentos Euros). Mais se condena pela prática da contra-ordenação p. p. pelo art. 81º nº1 e 2 do CE na coima de 500 € (quinhentos Euros) e inibição de conduzir pelo período de 1 (um) ano. (…)”.
Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões: 1. O recorrente circunscreve o presente recurso à decisão sobre a matéria criminal relativa à sua condenação como autor material de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do CP. 2. O recorrente impugna os pontos [6] (na parte "por distracção, permitiu"), [7], [8], [14], [16], [17], [18] e [19] da matéria de facto, uma vez que não foi produzido qualquer elemento de prova que pudesse atestar tal factualidade. 3. Para se fundar a condenação do arguido, haveria que provar a existência de nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia de 0,7 g/l e o dano. Ou seja, tem de ser provado que o acidente em questão se deu por diminuição das capacidades discernitivas e/ou reflexivas do condutor/arguido decorrentes da influência química do álcool previamente ingerido. 4. Do simples facto de o arguido conduzir sob o efeito do álcool não é lícito presumir a existência de um nexo causal entre tal estado e a produção de um acidente. 5. Nenhuma jurisprudência admite que, só por si, a existência de taxa proibida fundar juízo sério e inequívoco sobre a verificação do nexo de causalidade. Importará, assim, lançar mão de outros factos concretos e provados para que possa funcionar a regra da experiência comum de acordo com a qual se possa retirar que a distracção rodoviária foi produtora de um acidente e ainda que aquela distracção derivou da taxa de alcoolemia proibida 6. No caso dos autos, o Tribunal decidiu com base no funcionamento automático do silogismo "taxa de alcoolemia proibida - causa adequada do acidente produtor do resultado danoso", sem que outros elementos probatórios pudessem sustentar e comprovar tal lógica. 7. No caso dos autos, provada que está a existência de taxa de alcoolemia de 0,7 g/l, nenhum outro facto se deu como provado que pudesse sustentar a existência de nexo de causalidade entre aquele valor e o acidente e a morte. 8. O julgamento da matéria de facto quanto aos pontos impugnados assentou meras suposições não sustentadas em qualquer elemento de prova produzido, mas em meras presunções ou, pior do ponto de vista metodológico, em presunções assentes noutras presunções. 9. Dos depoimentos das únicas testemunhas que depuseram sobre os referidos factos [B...- depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 12:11:15 e as 12:27:45 e [2ª parte] entre as 12:27:47 e as 12:44:16 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12-03- 2012; C... , - que foi o autor dos relatórios técnicos de fls. 171 e 55. em depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 11:21:36 e as 11:52:47 e [2ª parte] entre as 11:52:49 e as 12:25:48 - acta de audiência de discussão e julgamento de 29-03-2012); D... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 11:16:59 e as 11:33:11 e [2ª parte] entre as 11:33:13 e as 11:45:21 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12-03-2012); E... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 12:46:12 e as 13:01:45 e [2ª parte] entre as 13:01:47 e as 13:12:05 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12-03-2012) e F... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre as 13:13:09 e as 13:24:01 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12- 03-2012) não resultam provado nenhum dos factos impugnados. 10. Por outro lado, nenhuma das referidas testemunhas, colocada perante o cenário do acidente foi capaz de afastar como causa da sua produção a eventual existência de avaria mecânica, antes afirmando tal cenário como possível, considerando a especificidade do rastro e do estado dos pneus. 11. Aliados aos elementos escritos constantes dos relatórios técnicos de fls. 169 e ss. e 409 e ss. do depoimento da testemunha G... (gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre as 12:27:05 e as 12:43:37 - acta de audiência de discussão e julgamento de 29-03-2012) e dos esclarecimentos prestados pelo perito H... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre as 15:27:07 e as 15:35:26 - acta de audiência de discussão e julgamento de 27-04-2012) resulta que o acidente pode, com elevado grau de probabilidade, ter sido causado por avaria mecânica traduzida no esvaziamento do pneu traseiro esquerdo e/ou por possível bloqueio da respectiva roda. 12. Em face da prova produzida e atentos os elementos existentes quanto à derrapagem ou a o estado do pneu esquerdo traseiro, ficaria, pelo menos, objectivamente no ar a dúvida quanto à real influência do álcool na produção do acidente. 13. Dúvida que a própria Senhora Juiz acaba por reconhecer quando a p. 10 da sentença sente necessidade de suportar o seu juízo num facto inexistente consubstanciado numa errada leitura do relatório técnico de fls. 171 e do relatório de fls. 409 afirmando que o veículo circulava em ponto morto para poupar combustível o que dificultou o respectivo controlo. 14. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, 1ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal, agora o de recurso, tem de decidir pro reo. 15. Em súmula, atenta a prova produzida não se podem dar como provados os factos que supra se impugnaram, designadamente que exista nexo causal entre a TAS e a produção do evento, pelo que, consequentemente, deveria o arguido ter sido absolvido do crime por que veio acusado que, na verdade, não cometeu. 16. Violou o Tribunal as normas contidas nos artigos 1º, nº 1, 10º, nº 2, 15º e 137º nº 1 do Código Penal e o artigo 32º, nº 2, da CRP. Também o assistente interpôs recurso que, no entanto, veio a ser rejeitado. Na resposta ao recurso, o M.P. pronunciou-se pela manutenção do decidido. Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se também pela improcedência do recurso. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões a decidir restringem-se à impugnação do julgamento de facto e ao funcionamento do princípio in dubio pro reo.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos: No dia 28 de Julho de 2010 cerca das 00h 30m o arguido encontrava-se no recinto da Expofacic em Cantanhede, na companhia do seu irmão I... e dos seus amigos B (...) e J (...). Durante o tempo que ali permaneceram, até perto das 4h 30m o arguido e os seus amigos e irmãos ingeriram algumas cervejas. Cerca das 4h 30m decidiram sair do local e ir para casa do arguido. O arguido, consciente que havia ingerido bebidas alcoólicas, iniciou a condução do veículo ligeiro de passageiros, marca Opel, modelo Astra, de matrícula 21-47-ZI seguindo como passageiros a vítima mortal J (...), que ocupava o banco dianteiro, B (...), no banco traseiro, lado direito e I (...) no banco traseiro, lado esquerdo. Na deslocação para a Mealhada utilizavam a Estrada Nacional nº234. Pelas 4h 45m e encontrando-se em Murtede, Cantanhede, ao Km 25,8 daquela Estrada Nacional, o arguido que circulava na sua via de trânsito, por distracção, permitiu que o veículo invadisse a via de trânsito de sentido oposto. Ao aperceber-se que o veículo circulava na via de trânsito de sentido contrário, o arguido tentou repô-lo na sua via de trânsito. Contudo, ao fazê-lo, devido à condução sob influência do álcool, ao cansaço e à pouca atenção que colocava na condução, fê-lo duma forma repentina, permitindo que o veículo entrasse em sobreviragem. De seguida o arguido perdeu o controlo sobre o veículo que conduzia, o qual entrou em despiste e se atravessou na faixa de rodagem, indo embater com a lateral esquerda numa oliveira que se encontrava nuns terrenos anexos, lado direito, sentido Cantanhede/Mealhada, arrancando-a. Prosseguiu em despiste, arrancando mais duas oliveiras de pequeno porte. Após embater nas oliveiras o veículo capotou e ficou imobilizado com as rodas para cima. Como consequência directa e necessária do despiste, B (...) e I (...) sofreram ferimentos ligeiros e a vítima J... sofreu lesões traumáticas torácicas que lhe provocaram a morte. À data do acidente, no local do despiste, existiam duas vias de trânsito no sentido Mealhada/Cantanhede e uma via no sentido Cantanhede/Mealhada, tendo a faixa de rodagem a largura de 9,60 metros, configurando uma curva de boa visibilidade. O piso, betuminoso, estava em bom estado de conservação. No local não existia iluminação pública mas a visibilidade era boa, condicionada à iluminação do veículo por ser de noite. O arguido não procedeu com o cuidado e atenção devidos e que lhe eram exigíveis, razão pela qual permitiu que o veículo por si conduzido invadisse a via de trânsito de sentido contrário e ao tentar repô-lo na sua via, o fez duma forma repentina, permitindo que o veículo entrasse em sobreviragem e perdesse o controlo sobre o mesmo, o que foi causal do acidente em apreço e da morte de J (...), demonstrando com tudo inconsideração pela segurança rodoviária, inexperiência e imprudência no exercício da condução automóvel. Acresce que o arguido foi submetido a exame toxicológico a fim de determinar a quantidade de etanol no sangue, tendo acusado uma TAS de 0,7 g/l. O estado de embriaguez em que o arguido se encontrava diminuiu a sua destreza na condução, afectando o seu sentido de orientação e retardando os seus reflexos, facto que foi determinante para a produção do acidente. O arguido colocou-se voluntariamente naquelas condições através da ingestão de álcool e assumiu a condução do referido veículo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade excessiva e que, em tais condições, não lhe era permitido conduzir veículos na via pública, bem sabendo das consequências legais da sua conduta. Ao conduzir da forma descrita, sabendo que antes de iniciar a condução tinha ingerido uma quantidade de bebidas alcoólicas que impediam o discernimento e lucidez necessários ao exercício da condução rodoviária e, tendo efectuado aquela manobra repentina a fim de se colocar novamente na sua via de trânsito duma forma desnecessária e exagerada, fazendo com que o veículo entrasse em despiste, o arguido revelou uma total e completa falta de cuidado que o dever geral de previdência aconselha e que podia e devia ter para evitar um resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal e contra-ordenacional. O arguido não tem antecedentes criminais. É estudante da FDUC e é sustentado pelos pais.
A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos: Para a formação da convicção do Tribunal foi determinante a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e ainda a prova pericial (relatório de patologia forense de fls 63 - onde se conclui que a morte de J (...) ficou a dever-se às lesões torácicas aí descritas, produzidas por instrumento contundente ou actuando como tal/ bem como os relatórios de perícia toxicológica do arguido e da vítima – fls 35 e 65) e documental constante dos autos ( fls 11/12- participação do acidente de viação; fls 13 – ficha CODU do IMEM de verificação do óbito, relatório de ocorrência de fls 128, auto de exame directo ao veículo de fls 171/172; auto de exame directo ao local (fls 169/170) reportagem fotográfica de fls 173 a 187 conjugados com croquis de fls 188 e relatório final de fls 189 a 195. De referir ainda o RIC e CRC do arguido de fls 101 e 198, bem como as fotografias da viatura sinistrada a fls 295 a 314.
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O recorrente impugna o que se teve por assente nos parágrafos 6, na parte “por distracção, permitiu”, 7, 8, 14, 16, 17, 18 e 19 da matéria de facto, centrando a sua impugnação na circunstância de o tribunal ter concluído que a morte da vítima teve com único nexo causal a condução com uma TAS proibida por lei. Alega para o efeito que não foi produzida prova que permita ter por assente aquela factualidade, que não pode decorrer de forma automática da circunstância de o arguido conduzir com uma TAS de 0,7 g/l, antes havendo que demonstrar que o acidente se deu por diminuição da capacidade do condutor decorrente da influência química do álcool previamente ingerido. Diga-se no entanto e desde já que não temos a mais pequena dúvida quanto à correcção da conclusão alcançada pelo tribunal recorrido, ainda que porventura a correspondente fundamentação se revele insuficiente. Para o caso, essa constatação é irrelevante, posto que vem pedida pelo próprio arguido a reapreciação da prova gravada, o que abre caminho à reapreciação de toda a prova produzida em julgamento, considerando-se também como tal (i. é, como produzida em audiência) toda a prova documental constante dos autos. Retenha-se, já agora, que o tribunal ad quem está condicionado pelas questões suscitadas nas conclusões do recurso interposto, mas não pelos juízos que conduziram à decisão no sentido que veio a ser alcançado pela primeira instância. Aliás, o que se pede ao tribunal de recurso na reapreciação da prova é, precisamente, que analise os factos à luz de um outro juízo, de uma outra argumentação, tida pelo recorrente como mais consentânea com a prova produzida e com as regras da experiência. O tribunal de recurso não está, no entanto, vinculado nem pelos juízos que fundamentaram a decisão nem pelos argumentos em que se estriba a análise do recorrente. Precisamente porque o sistema processual penal não é um sistema de verdade formal, o tribunal de 2ª instância, uma vez solicitada a reapreciação da prova, não terá senão que lançar mão de todos os meios ao seu alcance para formular um definitivo juízo relativo à matéria de facto fixada, podendo mesmo alterá-la, verificados que sejam os pertinentes pressupostos. Ora, no caso vertente, a motivação do provado não esgrime aquele que quanto a nós é um dos elementos decisivos para a comprovação da inegável influência do álcool na eclosão do acidente a que se reportam os autos. Na verdade, resulta da matéria de facto e nem sequer é questionado em sede de recurso que no dia 28 de Julho de 2010 cerca das 00h 30m o arguido se encontrava no recinto da Expofacic em Cantanhede, na companhia do seu irmão I (...) e dos seus amigos B (...) e J (...) e que durante o tempo que ali permaneceram todos eles ingeriram algumas cervejas, até que cerca das 4h 30m decidiram sair do local e ir para casa do arguido. Ou seja, o arguido permaneceu no recinto da Expofacic durante cerca de quatro horas e a ingestão de cervejas em quantidade não apurada ocorreu necessariamente durante esse período de tempo. Assim, a primeira constatação que inelutavelmente se impõe e que se virá a revelar de importância fundamental na análise da correcção do provado é que a ingestão de bebidas alcoólicas pelo arguido teve lugar, no máximo, até cerca das 04h30 daquele fatídico dia 28 de Julho de 2010. Uma segunda constatação, igualmente relevante e que o arguido pacificamente aceita, é que o acidente ocorreu cerca das 04h45m, ou seja, cerca de 15 minutos após ele e os seus acompanhantes terem abandonado o recinto da Expofacic (recinto onde, repete-se, durante cerca de quatro horas haviam permanecido, ingerindo um número não apurado de cervejas). A terceira constatação, também ela pacificamente aceite pelo recorrente, é que foi submetido a exame para determinação da taxa de álcool no sangue, tendo revelado uma TAS de 0,70g/l . A partir daqui, as coisas complicam-se, isto para a perspectiva sustentada em recurso pelo arguido. Na verdade, uma quarta constatação – esta, não constante do elenco dos factos provados (nem tinha que constar) nem considerada na motivação do provado (quando o deveria ter sido, por se tratar de elemento relevante) – é que esta TAS de 0,70 g/l foi verificada através de análise ao sangue (método consabidamente mais rigoroso do que a determinação da taxa de álcool no ar expirado, tanto assim que é admitido como contraprova) em colheita efectuada às 07h05m do dia do acidente (cfr. relatório do Serviço de Toxicologia Forense do IML – Delegação do Centro, a fls. 156). A relevância desta última constatação está precisamente no facto de mais de duas horas e meia após o termo do período durante o qual o arguido ingeriu bebidas alcoólicas (fê-lo até às 04h30), este ainda apresentar uma TAS de 0,70 g/l. E como à luz da experiência comum não é razoável admitir que todas as cervejas ingeridas pelo arguido o tenham sido momentos antes de ter abandonado o recinto da Expofacic – o mais razoável é que o tenham sido ao longo do tempo em que ali permaneceu – aliando essa conclusão ao conhecimento de que os efeitos de ingestão de bebidas alcoólicas se começam a produzir imediatamente a seguir à sua ingestão e que o processo de absorção do álcool demora aproximadamente uma hora, atingindo um valor máximo num período de tempo que varia entre 30 minutos a duas horas, consoante as características pessoais de quem o ingere e as condições em que a absorção se processa (maior ou menor desidratação, ingestão isolada ou acompanhando alimentos, fadiga, consumo de café, tabaco, etc.) e que o organismo inicia de imediato o processo de eliminação do álcool, diminuindo a TAS a uma média de 0,1 a 0,2 por hora, não é difícil alcançar que no momento do acidente o arguido teria sem margem para dúvidas uma TAS superior à que veio a acusar no exame que lhe foi efectuado. Os estudos mais recentes sobre o tema revelam que o álcool, sendo um depressor do sistema nervoso central, afecta a capacidade de condução, e os seus efeitos são tanto mais perniciosos quanto maior é a quantidade ingerida. Apenas uma percentagem marginal é directamente eliminada através da urina. A parcela não eliminada entra na corrente sanguínea e é transportada para os diversos órgãos do corpo, afectando progressivamente as capacidades físicas e psíquicas – e logo, o exercício da condução – à medida que vai atingindo o cérebro. Os efeitos provocados pelo consumo do álcool no exercício da condução são os mais diversos e ainda que variem de condutor para condutor, assumem essencialmente as seguintes características: - Diminuição da capacidade de reacção, nomeadamente, perante eventos inesperados; entorpecimento; - Descoordenação psicomotora, perceptível em travagens bruscas, golpes de volante, etc; - Redução da capacidade de análise de eventos exteriores (diminuição da capacidade de avaliar a velocidade do próprio veículo, diminuição da capacidade de avaliar a distância de obstáculos e a velocidade de aproximação de outros veículos); - Redução da capacidade de seguir linearmente uma trajectória; - Instala-se o excesso de confiança, indutor de comportamentos imprudentes e muitas vezes aumenta a agressividade (tanto a agressividade social como a agressividade da própria condução); sensação de bem-estar e ilusória sensação de aumento das suas capacidades, que na verdade se encontram diminuídas; - Redução do campo de visão e da visão periférica. Por outro lado, em função dos estudos que vêm sendo feitos sobre a matéria, a comunidade científica está tendencialmente de acordo relativamente à influência e relação entre o exercício da condução após consumo de álcool e o risco de envolvimento em acidente mortal, que aumenta exponencialmente à medida que cresce a concentração de álcool no sangue. Vem sendo considerado em diversos artigos publicados sobre o tema o seguinte rácio: TAS aumento do risco de acidente mortal 0,50g/l ....................o risco aumenta 2 vezes 0,80g/l ............... …………. ……….4 vezes 0,90g/l ...............................................5 vezes 1,20g/l ..............................................16 vezes Sobre o tema, para além de uma vastidão de artigos disponíveis na internet e nas revistas do ACP (Segundo um artigo do ACP datado de 20/12/2010, “os condutores mais jovens e sem grande experiência ao volante ao conduzirem com uma alcoolemia de 0,50 g/l correm um risco 2,5 vezes superior àquele a que estão expostos os condutores mais idosos e experientes”) e da Prevenção Rodoviária Portuguesa, veja-se “Direito Penal Rodoviário – Os crimes dos Condutores”, P.U.C., 2007, págs. 144 e ss.
Diz o arguido na motivação do recurso que “(…) o tribunal decidiu com base no funcionamento automático do silogismo ‘taxa de alcoolemia proibida – causa adequada do acidente produtor do resultado danoso’, sem que outros elementos probatórios pudessem sustentar e comprovar tal lógica, designadamente no que toca ao valor da própria taxa que, in casu, sendo proibida, é reduzida (0,70 g/l), o que sempre imporia maiores cautelas no recurso às ditas regras da experiência”. Esta afirmação sobre a TAS que o arguido apresentava no momento em que foi submetido à colheita de sangue para análise não traduz uma constatação de cariz científico. Trata-se apenas de uma afirmação tendente a eximir o arguido da sua responsabilidade penal, mas que conflitua com todas as considerações que deixámos expressas sobre a relevância daquela taxa e que se orientam precisamente no sentido inverso. De todo o modo, a argumentação desenvolvida no recurso é todo ela orientada no sentido da inexistência de prova que permita estabelecer um nexo de causalidade entre o acidente ocorrido e a taxa de alcoolemia apresentada pelo arguido. Mas como se prova, afinal, essa relação causal? Essa prova não é, normalmente, uma prova directa. Claro que para as TAS mais elevadas é possível que a mera visualização do descontrole psicomotor do condutor, percepcionado após o acidente, permita sem dificuldade estabelecer a inaptidão para o exercício da condução e, portanto, sem necessidade de mais rebuscadas considerações, ficará estabelecida uma relação causal entre a influência do álcool e o acidente. Os condutores mais perigosos são, no entanto, aqueles que não têm sequer a consciência de que estão afectados pelo álcool. São esses os condutores que adoptam atitudes mais agressivas ao volante, precisamente porque se encontram na fase da perda de inibições e da sensação de euforia. Para usar uma frase muito em voga há alguns anos atrás em campanhas de publicidade da Prevenção Rodoviária Portuguesa, o condutor que se encontra nessa fase “sente-se o melhor condutor do mundo”. Nesta fase, a relevância da influência do álcool na condução não é consciencializada pelo próprio nem é normalmente apercebida pelos acompanhantes do condutor, mas tende a revelar-se em concreto na ocorrência de qualquer evento anómalo que suceda no exercício da condução. A prova da influência do álcool em tais situações será sempre uma prova indirectamente obtida, decorrente da análise do evento concreto, da forma como este se desenrolou e do comportamento do condutor no seu decurso. Assim, e meramente a título de exemplo, se porventura um condutor é interveniente num despiste e se determina uma causa mecânica, como o fortuito rebentamento dum pneu, não há como estabelecer, só por isso, uma relação entre este evento e uma TAS ilícita de que porventura fosse portador; se um condutor é interveniente numa colisão em que se demonstra que outro veículo lhe surge inopinadamente pela frente, desrespeitando sinalização de prioridade, mais uma vez não será possível estabelecer a relação entre a TAS do primeiro e o evento verificado; se um condutor circula, ainda que com velocidade algo superior à legalmente permitida no local e efectua uma travagem que por força de areia ou óleo existentes no pavimento lhe provoca uma derrapagem seguida de despiste ou do atropelamento de um peão, ainda assim não será possível imputar à TAS excessiva com que exerça a condução, a causa do evento. O estabelecimento da relação causal entre uma taxa de álcool no sangue e um evento estradal civil ou criminalmente relevante não opera automaticamente através dum silogismo do tipo álcool = nexo de causalidade, assistindo plena razão ao recorrente quando o alega. Esse nexo causal terá sempre que ser estabelecido através da prova concretamente produzida. Vejamos então os aspectos mais relevantes dos depoimentos recolhidos em audiência: A testemunha D (...), militar da GNR que compareceu no local na ocasião do acidente referiu que no local havia marcas de derrapagem. Esclareceu, aliás, que na altura ficaram todos (os militares da GNR que ali se deslocaram) com a ideia de que as marcas deixadas pelo rodado da viatura despistada eram marcas de derrapagem e não de travagem. Eram marcas visíveis numa extensão muito grande, na ordem dos 100 metros. Chegaram a essa conclusão porque na travagem a fundo a marca da travagem fica a direito e as marcas no local davam a sensação de que o carro foi de lado para a berma, como se fosse de rojo, o que não sucederia se se tratasse de uma travagem. Do depoimento da testemunha B (...), que era um dos ocupantes do veículo, amigo do arguido, e que revelou ao longo de todo o interrogatório uma cirúrgica falta de memória relativamente às condições em que ocorreu o acidente, resulta essencialmente o seguinte: - O arguido terá bebido 4 ou 5 cervejas no recinto da feira; - No momento do acidente, a testemunha ia no banco de trás, a enviar mensagens com o telemóvel; - A música ia alta; - Não se cruzaram com qualquer outro veículo; a estrada estava vazia; - O carro entrou em despiste; não se lembra de qualquer travagem. A testemunha E (...), militar da GNR, referiu também a sua convicção de que as marcas que ficaram no local eram marcas de derrapagem que começava na contramão, atendendo ao sentido seguido pelo veículo. É a circunstância de o carro seguir em derrapagem que justifica que haja marcas no pavimento de largura superior à largura do pneu. Tudo leva a crer que o carro fez a derrapagem em diagonal. F (...), que estava no seu local de trabalho, num armazém que fica perto do local onde o veículo se imobilizou e que chamou os socorros, referiu que o veículo arrancou uma oliveira existente naquele campo, esclarecendo que aquela oliveira era “bastante forte”. Do depoimento da testemunha C (...), cabo da GNR que elaborou os relatórios de fls. 169 e ss. e o “croquis” de fls. 188, resulta no essencial, o seguinte: - Verificou a existência de marcas de derrapagem na estrada; afirmou que não houve travagem, apenas derrapagem; vestígios de derrapagem referentes a duas rodas (supõe que das duas rodas do lado esquerdo), numa extensão de 100,7 metros (até sair da via). Não foi feito qualquer exame aos travões porque em momento algum foi referido que tivesse havido uma falha de travões ou que as rodas tivessem bloqueado. Referiu ainda, pormenor relevantíssimo, que o pneu terá esvaziado no decurso da derrapagem, porque se tivesse esvaziado antes estaria todo moído. Foi assertivo na afirmação de que as marcas são de derrapagem e não de travagem, por não haver vestígios de bloqueio de rodas. Voltemos então à matéria do recurso: Diz o recorrente que nenhuma das testemunhas de acusação, colocada perante o cenário do acidente, foi capaz de, em consciência, afastar como causa da sua produção a eventual existência de avaria mecânica, antes afirmando tal cenário como possível, nomeadamente, em função da especificidade do rastro e do estado dos pneus. Perdoe-se-nos o jogo de palavras, mas ao alegar nestes termos o arguido não se está verdadeiramente a socorrer da prova nem procura demonstrar factos reais. Pelo contrário, está a tentar socorrer-se da «não prova» de «não factos» para construir uma situação de dúvida. Como claramente se percebe pela gravação da audiência, em momento algum qualquer das testemunhas aventou espontaneamente a possibilidade de verificação de avaria mecânica como causa do acidente, excepção feita à testemunha G (...), perito de seguros. Mas mesmo esta testemunha foi inicialmente confrontada com uma fotografia em que verifica um só rasto de bloqueio, atribuindo-o ao bloqueio de uma só roda por avaria mecânica, depoimento que não está de acordo com os depoimentos dos militares da GNR que apontam dois rastos de derrapagem lateral, o que já é perfeitamente razoável, como se explica através de noções de física elementar (forças e vectores). Na verdade, se um veículo entrar em derrapagem lateral (como se indicia ter sucedido no caso vertente, pelo facto de o rasto ter largura superior à largura do pneu – assim o disse a testemunha E (...)), a força cinética de que o veículo se encontra animado nessa trajectória tenderá a projectar o peso para cima das rodas do lado sobre o qual o veículo derrapa (o lado externo, considerado este como o lado em cuja direcção se efectua o movimento de derrapagem) e o veículo como que se levanta, perdendo aderência, do lado oposto, do lado interno, que é aquele a partir do qual actua a força cinética. É precisamente por essa razão que se o movimento for demasiado intenso, o veículo tenderá a rolar sobre si próprio – aquilo a que se chama correntemente o capotamento. A testemunha prosseguiu com a sua teoria de bloqueio de uma só roda em função da actuação de órgão de travagem que aperte a roda e a não liberte após o fim da travagem, mas acabou por reconhecer que não efectuou qualquer inspecção aos órgãos de travagem, em função do estado em que se encontravam como decorrência do acidente. O que em momento algum equacionou foi a derrapagem lateral, apontada pelos militares da GNR, versão que, repete-se, se oferece como a mais razoável, até porque a testemunha a que agora nos reportamos nem sequer foi ao local do acidente, apenas viu o carro e viu as fotografias em audiência. A defesa do arguido foi construindo ao longo do julgamento hipóteses abstractas, assim como foi insistindo com as testemunhas, esforçando-se para que estas as admitissem como prováveis ou, pelo menos, como possíveis, o que até se compreende. Simplesmente, para aventar hipóteses e construir conjecturas não são necessárias testemunhas. A função da testemunha é apenas e tão-só a de depor sobre factos concretos de que tenha conhecimento. Conjecturas, se razoáveis e admissíveis em função da prova produzida, serão equacionadas pelo tribunal em sede de sentença, na valoração crítica da prova, podendo a acusação ou a defesa equacioná-las nas alegações que produzirem. As considerações avulsas sobre o tema, baseadas em meras hipóteses que não encontrem acolhimento pelo menos num indício, num “princípio de prova”, são totalmente irrelevantes para efeitos probatórios. O que a prova produzida verdadeiramente permite concluir em termos objectivos é que a viatura tripulada pelo arguido invadiu a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário (assim o indicam os vestígios no asfalto documentados no “croquis” e nas fotografias, confirmadas pelos militares da GNR que estiveram no local, descreveram o que viram e interpretaram os vestígios à luz da sua experiência). No local, a estrada configura-se em curva para a direita em ligeira rampa descendente (idem). Quando ocupava a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, o veículo tripulado pelo arguido entrou em derrapagem, tendo deslizado sobre as rodas do lado esquerdo em curva para a direita (idem), percorrendo assim 100,7 metros até sair do asfalto (idem), percorrendo ainda 14,8 metros no campo contíguo à via, vindo a imobilizar-se apenas depois de ter embatido numa oliveira ali existente, que arrancou totalmente (idem), factos que sucederam durante a madrugada, cerca das 04h45m do dia 28 de Julho de 2010, numa ocasião em que o piso se encontrava seco (idem, e ainda depoimentos das testemunhas F (...) que se apercebeu do acidente e chamou os socorros, quanto à hora e arrancamento da oliveira e B (...), um dos ocupantes do veículo, quanto à derrapagem e subsequente despiste). Nessa ocasião não havia trânsito na via em sentido contrário, estando a estrada totalmente livre (depoimento de B (...)). Os ocupantes do veículo vinham da Expofacic, onde tinham estado durante cerca de 4 horas, bebendo diversas cervejas (4 ou 5, segundo a testemunha B (...)) e a música vinha alta (idem). Às 07h05m foi efectuada colheita de sangue ao arguido, que veio a revelar uma TAS de 0,70 g/l (cfr. relatório do Serviço de Toxicologia Forense do IML – Delegação do Centro, a fls. 156). Isto é o que objectivamente resulta da prova. Simplesmente, o provado, isto é, aquilo que o tribunal pode dar como assente em função da prova, não se limita a esta realidade atomisticamente considerada. A par da isolada valoração de cada um dos meios de prova produzidos, o tribunal procede à sua valoração crítica, numa perspectiva de conjugação e interacção das diversas provas. É precisamente a valoração crítica da prova que constitui o núcleo essencial da fase decisória, sendo através dela que o julgador aprecia o facto em correlação com a prova produzida. Daí que a parte final do nº 2 do art. 374º imponha o “…exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. A conjugação desta última norma com o disposto no art. 127º desenha o modo de fixação da matéria de facto, levando a que o provado se ofereça como o resultado depurado dos meios de prova produzidos em audiência ou levados aos autos nos termos legais. Não podendo esse produto final resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente, em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos. A componente fundamental da valoração crítica desenvolvida no âmbito da livre apreciação da prova é a presunção judicial. Na verdade, a actividade jurisdicional não está estritamente vinculada às afirmações e negações dos declarantes e das testemunhas, assim como não pode prescindir da valoração dos depoimentos à luz de um juízo crítico, considerando as regras da experiência. É esse trabalho de análise crítica que consolida a livre convicção do tribunal, permitindo-lhe considerar como provados os factos merecedores de uma certeza judiciária e como não provados todos aqueles que sejam inegavelmente desmentidos pelas regras da experiência ou que não se mostrem comprovadamente demonstrados. É esse convencimento racional, lógico-dedutivo e fundamentado, desde que devidamente explicitado, que permite ao juiz afirmar a verdade do caso concreto, fixando a correspondente matéria de facto, assim se efectivando a “livre apreciação da prova” consagrada no art. 127º do CPP. A certeza judiciária subjacente ao provado afirma-se através de uma presunção judicial inserida no processo de formação da livre convicção do julgador por apelo a juízos que não ponham em causa as máximas da experiência, exigindo, no entanto, a verificação de uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge, sem “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas. Essa presunção conduz a um facto real que assim se firma como facto provado desde que não se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado atingido e sem que o funcionamento da presunção colida com o princípio in dubio pro reo. De que modo influenciam estas considerações o caso agora em apreço? Manifestamente, não foi por avaria mecânica que o veículo invadiu a mão contrária. Antes do rasto de derrapagem iniciado nessa via, nada indicia que a viatura estivesse descontrolada. Assim, qualquer que tenha sido a razão, fosse por pura negligência, por cansaço, por incapacidade de adequar a marcha do veículo às condições da via, por incapacidade de manter a trajectória ou por falta de percepção da existência de uma curva no local, certo é que o veículo saiu da parte da via destinada ao seu sentido de trânsito. Não sabemos qual foi a razão concreta, mas temos a certeza judiciária de que se tratou de causa imputável ao condutor pois não há notícia de causa externa – a via estava desimpedida. Sabemos, por outro lado, que existe uma relação directa e cientificamente demonstrada entre este tipo de situações e o consumo de álcool. A isso nos referimos supra e para lá remetemos. Razoavelmente, o arguido terá tentado retomar a sua mão. Embora conduzisse com álcool – tinha ingerido cervejas em quantidade não concretamente apurada, mas que a testemunha B (...) diz terem sido 4 ou 5 – não era perceptível uma incapacidade de exercer a condução, o que de resto é compatível com uma TAS superior à verificada nos autos. Certo é que já a TAS verificada implicaria, sobretudo num indivíduo jovem (resulta dos autos que nasceu em 16-04-1988), condutor menos experiente, a horas avançadas da madrugada, em que o cansaço já se faria naturalmente sentir, uma diminuição dos reflexos e da capacidade de reagir consistentemente a qualquer evento anómalo. Quando o veículo tripulado pelo arguido ocupa a contramão entra em derrapagem. Que essa derrapagem ocorre quando o arguido tenta regressar à sua mão, é facto que se alcança através das regras da experiência comum aplicadas aos vestígios objectivamente verificados e à demais prova produzida. Fosse qual fosse a razão – um súbito golpe de volante, uma velocidade excessiva para as condições da via, ou qualquer outra – tratou-se de uma manobra desajustada à situação, tanto mais que a via estava livre, não havendo trânsito em sentido contrário que reclamasse uma brusca manobra de emergência. Repare-se, já agora, que também a imperícia evidenciada nesta manobra é compatível (mais do que isso, é consequência cientificamente verificada para o comum das situações…!!!) com o exercício da condução sob o efeito do álcool e retenha-se ainda, vista a posição assumida pela defesa ao longo do julgamento, que não se encontrou qualquer evidência de avaria mecânica. Em resumo: - Temos um condutor jovem que circula a altas horas da madrugada após ter ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma TAS superior à permitida, num veículo com a música em tom elevado; - Esse condutor perde o controle da viatura, permitindo que ela invada a mão contrária; - E ao tentar recuperar a sua mão, entra em derrapagem e despista-se. O que aqui temos, na verdade, são duas consecutivas demonstrações de incapacidade por parte do arguido de controlar o veículo que dirigia. Uma primeira quando invade a contramão e uma segunda quando tenta regressar à sua mão de trânsito. Conhecidas as consequências do exercício da condução sob o efeito do álcool nos termos em que as expusemos supra, negar a influência do álcool na causalidade subjacente ao acidente a que se reportam os autos equivale a negar o óbvio. A conclusão de que assim sucedeu atinge-se por presunção judicial assente nos factos objectivamente provados e amparada no conhecimento científico sobre o tema, sem que se verifique qualquer “salto” lógico (a conclusão está imediatamente a montante das premissas em que se funda) e sem que existam premissas indemonstradas (a presunção assenta em factos concretamente verificados). Por outro lado, não se demonstra qualquer circunstância de facto que obste ou colida com o funcionamento da presunção nos termos em que foi aplicada nem são de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim alcançado (as hipóteses de avaria mecânica sucessivamente aventadas pela defesa – meras hipóteses nem sequer indiciadas, portanto, puramente especulativas). E por fim, não colhe o argumento da violação do princípio in dubio pro reo, que in casu é desmentido pela força da evidência, obstando também ao tratamento de favor que decorreria do in dubio…. Como se refere no Ac. do STJ de 08/11/2007 [1], “…«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que elida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal». Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (repete-se: «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador»). Palavras que pela sua pertinência e adequação ao caso se reproduzem por estarem em perfeita sintonia com as razões que antes apontámos e que evidenciam a justeza do facto presumido. É verdade que ao longo do julgamento a defesa foi insistindo em sucessivas possibilidades de avaria mecânica; bloqueio de rodas, pneu vazio, falha nos travões, falha da direcção. Simplesmente, tratou-se de meras hipóteses adiantadas em abstracto e como já antes dissemos, na sua averiguação da verdade o tribunal não estava obrigado a considerar como possível toda e qualquer hipótese abstracta susceptível de afastar a responsabilidade do arguido, valorando-as na vertente do princípio in dubio pro reo. Apenas as hipóteses que, em função dos factos inequivocamente assentes, se oferecessem como verosímeis dadas as circunstâncias do caso, poderiam ser equacionadas nessa perspectiva. Ora, a normalidade dos factos, a experiência comum, aplicada ao caso vertente, diz-nos que as coisas se passaram nos termos descritos e a prova produzida aponta toda ela nesse mesmo sentido, sem que se tenha apurado qualquer circunstância que permita considerar como verosímil, naquelas circunstâncias, qualquer outra opção fáctica consistente e susceptível de suscitar dúvidas ao julgador, em termos tais que devesse obstar à consideração como provado do que se teve por assente. De resto, tal como a certeza judiciária não é uma certeza contra todas as possibilidades, mas uma certeza lógica e racional fundada num equilibrado sentido da vida e da normalidade das situações, também a dúvida relevante em processo penal não é toda e qualquer dúvida, mas apenas aquela que se afirma como dúvida metódica e racional, fundada na razoabilidade das situações da vida e na impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de um determinado facto. Donde se segue que o recurso necessariamente improcede.
* * *
III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso. Por ter decaído integralmente no recurso interposto, condena-se o recorrente na taxa de justiça de 5 UC.
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(Jorge Miranda Jacob - Relator)
(Maria Pilar de Oliveira)
[1] - Disponível em http://www.dgsi.jstj, doc. nº SJ200711080031645 |