Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
405/10.9GBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DO RESULTADO
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 412.º, 428.º E 431.º, DO CPP; ARTIGO 137.º, N.º 1, DO CP
Sumário: I - Na reapreciação da matéria de facto dada como provada e/ou não provada na sentença recorrida, o tribunal da relação não está vinculado nem pelos juízos que fundamentaram a decisão nem pelos argumentos em que se estriba a análise do recorrente.

II - Precisamente porque o sistema processual penal não é de verdade formal, o tribunal da relação, uma vez solicitada a reapreciação da prova, terá de lançar mão de todos os meios ao seu alcance para formular um definitivo juízo relativo à matéria de facto fixada, podendo mesmo alterá-la, verificados que sejam os pertinentes pressupostos.

III - O estabelecimento de relação causal (adequada) entre uma taxa de álcool no sangue e um evento estradal civil ou criminalmente relevante não opera automaticamente; antes terá de ser afirmado através da prova produzida em cada caso concreto.

IV - Perante os seguintes factos provados:

- a viatura automóvel tripulada pelo arguido invadiu a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário;

- no local, a estrada, que estava seca, configura-se em curva para a direita, em ligeira rampa descendente;

- quando ocupava a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, o veículo conduzido pelo arguido entrou em derrapagem, tendo deslizado sobre as rodas do lado esquerdo em curva para a direita, percorrendo, assim, 100,7 metros até sair do asfalto, e ainda 14,8 metros no campo contíguo à via, vindo a imobilizar-se apenas depois de ter embatido numa oliveira;

- o descrito acontecimento ocorreu durante a madrugada, cerca das 04h45m, numa ocasião em que não havia nenhum trânsito na faixa de rodagem contrária à do arguido;

- os ocupantes da viatura tinham ingerido antes do evento, durante cerca de 4 horas, diversas cervejas;

- às 07h05m, mais de duas horas e meia após o termo do período durante o qual ingeriu a dita bebida alcoólica, o arguido (ainda) apresentava uma TAS de 0,70 g/l;

deles decorrem duas consecutivas demonstrações da incapacidade de o arguido controlar o veículo; a primeira, quando invade a “contramão”; a segunda, quando tenta regressar à sua “mão” de trânsito.

IV - Conhecidas as consequências do exercício da condução sob o efeito do álcool, negar a influência desse elemento na causalidade subjacente ao acidente em causa equivale a negar o óbvio. Esta conclusão atinge-se por presunção judicial, assente nos factos objectivamente provados e amparada no conhecimento (científico) sobre a influência negativa do álcool na condução automóvel, sem que se verifiquem qualquer “salto” lógico ou premissas indemonstradas.

V - Havendo a registar, em resultado do acidente, a morte de um dos ocupantes da viatura, o arguido, ao actuar nos termos descritos, incorreu na autoria de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do CP.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

“(…)

  Pelo exposto, condena-se o arguido A... como autor material de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º nº 1 do C.P na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 6€ num total de € 1.500 (mil e quinhentos Euros).

Mais se condena pela prática da contra-ordenação p. p. pelo art. 81º nº1 e 2 do CE na coima de 500 € (quinhentos Euros) e inibição de conduzir pelo período de 1 (um) ano.
Vai ainda o arguido condenado a pagar as custas do processo, fixando-se em 2UC a taxa de justiça.

(…)”.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. O recorrente circunscreve o presente recurso à decisão sobre a matéria criminal relativa à sua condenação como autor material de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do CP.

2. O recorrente impugna os pontos [6] (na parte "por distracção, permitiu"), [7], [8], [14], [16], [17], [18] e [19] da matéria de facto, uma vez que não foi produzido qualquer elemento de prova que pudesse atestar tal factualidade.

3. Para se fundar a condenação do arguido, haveria que provar a existência de nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia de 0,7 g/l e o dano. Ou seja, tem de ser provado que o acidente em questão se deu por diminuição das capacidades discernitivas e/ou reflexivas do condutor/arguido decorrentes da influência química do álcool previamente ingerido.

4. Do simples facto de o arguido conduzir sob o efeito do álcool não é lícito presumir a existência de um nexo causal entre tal estado e a produção de um acidente.

5. Nenhuma jurisprudência admite que, só por si, a existência de taxa proibida fundar juízo sério e inequívoco sobre a verificação do nexo de causalidade. Importará, assim, lançar mão de outros factos concretos e provados para que possa funcionar a regra da experiência comum de acordo com a qual se possa retirar que a distracção rodoviária foi produtora de um acidente e ainda que aquela distracção derivou da taxa de alcoolemia proibida

6. No caso dos autos, o Tribunal decidiu com base no funcionamento automático do silogismo "taxa de alcoolemia proibida - causa adequada do acidente produtor do resultado danoso", sem que outros elementos probatórios pudessem sustentar e comprovar tal lógica.

7. No caso dos autos, provada que está a existência de taxa de alcoolemia de 0,7 g/l, nenhum outro facto se deu como provado que pudesse sustentar a existência de nexo de causalidade entre aquele valor e o acidente e a morte.

8. O julgamento da matéria de facto quanto aos pontos impugnados assentou meras suposições não sustentadas em qualquer elemento de prova produzido, mas em meras presunções ou, pior do ponto de vista metodológico, em presunções assentes noutras presunções.

9. Dos depoimentos das únicas testemunhas que depuseram sobre os referidos factos [B...- depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 12:11:15 e as 12:27:45 e [2ª parte] entre as 12:27:47 e as 12:44:16 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12-03- 2012; C... , - que foi o autor dos relatórios técnicos de fls. 171 e 55. em depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 11:21:36 e as 11:52:47 e [2ª parte] entre as 11:52:49 e as 12:25:48 - acta de audiência de discussão e julgamento de 29-03-2012); D... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 11:16:59 e as 11:33:11 e [2ª parte] entre as 11:33:13 e as 11:45:21 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12-03-2012); E... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre [1ª parte] as 12:46:12 e as 13:01:45 e [2ª parte] entre as 13:01:47 e as 13:12:05 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12-03-2012) e F... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre as 13:13:09 e as 13:24:01 - acta de audiência de discussão e julgamento de 12- 03-2012) não resultam provado nenhum dos factos impugnados.

10. Por outro lado, nenhuma das referidas testemunhas, colocada perante o cenário do acidente foi capaz de afastar como causa da sua produção a eventual existência de avaria mecânica, antes afirmando tal cenário como possível, considerando a especificidade do rastro e do estado dos pneus.

11. Aliados aos elementos escritos constantes dos relatórios técnicos de fls. 169 e ss. e 409 e ss. do depoimento da testemunha G... (gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre as 12:27:05 e as 12:43:37 - acta de audiência de discussão e julgamento de 29-03-2012) e dos esclarecimentos prestados pelo perito H... (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Cantanhede, entre as 15:27:07 e as 15:35:26 - acta de audiência de discussão e julgamento de 27-04-2012) resulta que o acidente pode, com elevado grau de probabilidade, ter sido causado por avaria mecânica traduzida no esvaziamento do pneu traseiro esquerdo e/ou por possível bloqueio da respectiva roda.

12. Em face da prova produzida e atentos os elementos existentes quanto à derrapagem ou a o estado do pneu esquerdo traseiro, ficaria, pelo menos, objectivamente no ar a dúvida quanto à real influência do álcool na produção do acidente.

13. Dúvida que a própria Senhora Juiz acaba por reconhecer quando a p. 10 da sentença sente necessidade de suportar o seu juízo num facto inexistente consubstanciado numa errada leitura do relatório técnico de fls. 171 e do relatório de fls. 409 afirmando que o veículo circulava em ponto morto para poupar combustível o que dificultou o respectivo controlo.

14. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32º, nº 2, 1ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal, agora o de recurso, tem de decidir pro reo.

15. Em súmula, atenta a prova produzida não se podem dar como provados os factos que supra se impugnaram, designadamente que exista nexo causal entre a TAS e a produção do evento, pelo que, consequentemente, deveria o arguido ter sido absolvido do crime por que veio acusado que, na verdade, não cometeu.

16. Violou o Tribunal as normas contidas nos artigos 1º, nº 1, 10º, nº 2, 15º e 137º nº 1 do Código Penal e o artigo 32º, nº 2, da CRP.

            Também o assistente interpôs recurso que, no entanto, veio a ser rejeitado.

            Na resposta ao recurso, o M.P. pronunciou-se pela manutenção do decidido.

            Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões a decidir restringem-se à impugnação do julgamento de facto e ao funcionamento do princípio in dubio pro reo.

                                                           *          *          *         

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:

No dia 28 de Julho de 2010 cerca das 00h 30m o arguido encontrava-se no recinto da Expofacic em Cantanhede, na companhia do seu irmão I... e dos seus amigos B (...) e J (...).

Durante o tempo que ali permaneceram, até perto das 4h 30m o arguido e os seus amigos e irmãos ingeriram algumas cervejas.

Cerca das 4h 30m decidiram sair do local e ir para casa do arguido.

O arguido, consciente que havia ingerido bebidas alcoólicas, iniciou a condução do veículo ligeiro de passageiros, marca Opel, modelo Astra, de matrícula 21-47-ZI seguindo como passageiros a vítima mortal J (...), que ocupava o banco dianteiro, B (...), no banco traseiro, lado direito e I (...) no banco traseiro, lado esquerdo.

Na deslocação para a Mealhada utilizavam a Estrada Nacional nº234.

Pelas 4h 45m e encontrando-se em Murtede, Cantanhede, ao Km 25,8 daquela Estrada Nacional, o arguido que circulava na sua via de trânsito, por distracção, permitiu que o veículo invadisse a via de trânsito de sentido oposto.

Ao aperceber-se que o veículo circulava na via de trânsito de sentido contrário, o arguido tentou repô-lo na sua via de trânsito.

Contudo, ao fazê-lo, devido à condução sob influência do álcool, ao cansaço e à pouca atenção que colocava na condução, fê-lo duma forma repentina, permitindo que o veículo entrasse em sobreviragem.

 De seguida o arguido perdeu o controlo sobre o veículo que conduzia, o qual entrou em despiste e se atravessou na faixa de rodagem, indo embater com a lateral esquerda numa oliveira que se encontrava nuns terrenos anexos, lado direito, sentido Cantanhede/Mealhada, arrancando-a. Prosseguiu em despiste, arrancando mais duas oliveiras de pequeno porte.

Após embater nas oliveiras o veículo capotou e ficou imobilizado com as rodas para cima. Como consequência directa e necessária do despiste, B (...) e I (...) sofreram ferimentos ligeiros e a vítima J... sofreu lesões traumáticas torácicas que lhe provocaram a morte.

À data do acidente, no local do despiste, existiam duas vias de trânsito no sentido Mealhada/Cantanhede e uma via no sentido Cantanhede/Mealhada, tendo a faixa de rodagem a largura de 9,60 metros, configurando uma curva de boa visibilidade.

O piso, betuminoso, estava em bom estado de conservação.

No local não existia iluminação pública mas a visibilidade era boa, condicionada à iluminação do veículo por ser de noite.

O arguido não procedeu com o cuidado e atenção devidos e que lhe eram exigíveis, razão pela qual permitiu que o veículo por si conduzido invadisse a via de trânsito de sentido contrário e ao tentar repô-lo na sua via, o fez duma forma repentina, permitindo que o veículo entrasse em sobreviragem e perdesse o controlo sobre o mesmo, o que foi causal do acidente em apreço e da morte de J (...), demonstrando com tudo inconsideração pela segurança rodoviária, inexperiência e imprudência no exercício da condução automóvel.

Acresce que o arguido foi submetido a exame toxicológico a fim de determinar a quantidade de etanol no sangue, tendo acusado uma TAS de 0,7 g/l.

O estado de embriaguez em que o arguido se encontrava diminuiu a sua destreza na condução, afectando o seu sentido de orientação e retardando os seus reflexos, facto que foi determinante para a produção do acidente.

O arguido colocou-se voluntariamente naquelas condições através da ingestão de álcool e assumiu a condução do referido veículo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade excessiva e que, em tais condições, não lhe era permitido conduzir veículos na via pública, bem sabendo das consequências legais da sua conduta.

Ao conduzir da forma descrita, sabendo que antes de iniciar a condução tinha ingerido uma quantidade de bebidas alcoólicas que impediam o discernimento e lucidez necessários ao exercício da condução rodoviária e, tendo efectuado aquela manobra repentina a fim de se colocar novamente na sua via de trânsito duma forma desnecessária e exagerada, fazendo com que o veículo entrasse em despiste, o arguido revelou uma total e completa falta de cuidado que o dever geral de previdência aconselha e que podia e devia ter para evitar um resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto.

O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal e contra-ordenacional.

O arguido não tem antecedentes criminais.

É estudante da FDUC e é sustentado pelos pais.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:

Para a formação da convicção do Tribunal foi determinante a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e ainda a prova pericial (relatório de patologia forense de fls 63 - onde se conclui que a morte de J (...) ficou a dever-se às lesões torácicas aí descritas, produzidas por instrumento contundente ou actuando como tal/ bem como os relatórios de perícia toxicológica do arguido e da vítima – fls 35 e 65) e documental constante dos autos ( fls 11/12- participação do acidente de viação; fls 13 – ficha CODU do IMEM de verificação do óbito, relatório de ocorrência de fls 128, auto de exame directo ao veículo de fls 171/172; auto de exame directo ao local (fls 169/170) reportagem fotográfica de fls 173 a 187 conjugados com croquis de fls 188 e relatório final de fls 189 a 195.  De referir ainda o RIC e CRC do arguido de fls 101 e 198, bem como as fotografias da viatura sinistrada a fls 295 a 314.
O arguido, ouvido, declarou não se lembrar do sucedido e esclareceu que esteve duas semanas em coma após o acidente, sendo que o último facto de que tem memória é uma saída que fez para a Expofacic em data antes ao acidente. Segundo o relatório clínico de fls 148 o arguido sofreu traumatismo craniano e aí vem relatado o estado de amnésia mencionado pelo próprio.
Instado, o arguido esclareceu que o carro que conduzia no dia tem controlo de estabilidade. Mais disse que frequentou consultas de psiquiatria e passou por momentos difíceis, dado que a vítima era para si como um irmão e explicou que não teve coragem de contactar os pais da vítima, tendo deixado um bilhete no cemitério com um pedido de desculpa.
Na sequência do acidente, o próprio arguido segundo relatou, ficou com a omoplata calcificada, teve duas fracturas na bacia e ficou com dificuldades de concentração e de aprendizagem (estudo).
Neste momento está a estudar na FDUC, sendo sustentado pelos pais.
No que concerne à prova testemunhal D (...), militar da GNR relatou que na noite do acidente estava de serviço. Quando chegou ao local havia um grande aparato de bombeiros e a sua preocupação foi manter a regularidade do trânsito, tendo sido necessário proceder a desencarceramento.
Confirmou as circunstâncias espacio-temporais do acidente.
Descreveu a posição e estado da viatura: encontrava-se fora da via, capotado, junto a umas árvores arrancadas, sendo pelo menos uma oliveira. O estado da via era bom e quanto à visibilidade esclareceu que era de noite, não havia nevoeiro, e não tem a certeza sobre a existência de iluminação pública.
A curva onde pensa ter ocorrido o despiste é à direita, atento o sentido de trânsito do arguido, tem boa visibilidade, pensando ser o limite de velocidade de 90 km/h, sem certeza.
Uma equipa de peritos da BT deslocou-se ao local porque existiam dúvidas sobre a marca encontrada no piso, se seria de travagem ou derrapagem, mas os vestígios apontaram para esta última, Não se recorda da extensão do rasto, mas lembra-se que a fita métrica de que dispõem tem 30m e tiveram fazer várias vezes uso dela para efectuarem a medição.
Não tem indicação de que a zona seja de acidentes, a curva é fácil de executar e pensa que à velocidade de 90km/h se circula em segurança na via. Pelos vestígios existentes no local pensa que a perda de controle do veículo começa na curva. Desconhece se existiu falha técnica mas esclareceu, instado que quando ocorre ma travagem a marca do rodado fica direita ao passo que se for derrapagem é oblíqua, como sucede in casu.
Confirmou ainda o teor da participação junta aos autos e certificou que não foi elaborada à escala.
Instado revelou não ter formação para saber se a derrapagem é do rodado traseiro ou dianteiro e disse que só avistou vestígios de um rodado, do lado esquerdo.
L.... bombeiro, que foi chamado ao local para proceder ao desencarceramento, revelou que encontrou o carro totalmente capotado, com uma vítima encarcerada, outro indivíduo que pensa ser o condutor inconsciente, já fora da viatura e dois outros indivíduos que andavam pelo seu próprio pé, conscientes mas desorientadas. O veículo estava fora da faixa de rodagem, junto a umas oliveiras arrancadas pelo impacto da viatura. Teve mesmo que ser retirada uma oliveira, que estava junto á porta, para proceder ao desencarceramento, sendo que a vítima não apresentava qualquer sinal vital.
Esclareceu que há pouca iluminação pública no local e pelo estado da viatura o choque terá sido extremamente violento. A porta do condutor estava aberta e a do passageiro teve de ser cortada, estando o carro assente na oliveira. Pelo estado da viatura ocorreu choque frontal, mas o lateral foi mais violento.
B (...), amigo do arguido, é testemunha presencial, pois era passageiro da viatura, mas tem uma memória pouco esclarecedora do evento, o que é compreensível atento o potencial traumático do mesmo.
Esclareceu que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação foram à Expofacic e aí ingeriram cerca de 4 a 5 cervejas e depois de terminados os concertos regressaram no carro do A (...), sendo ele o condutor.
A vítima seguia ao lado do condutor, e esta testemunha atrás, confirmando o sentido de trânsito descrito na acusação. O acidente terá ocorrido na Zona Industrial mas não se recorda sequer do embate, por ter perdido os sentidos. Só tem memória de acordar capotado e, depois de sair do carro, de ver este envolto numa oliveira partida. Descreveu o ambiente antes do acidente como tranquilo e esclareceu que estava a enviar sms quando tudo sucedeu. Não se recorda de se terem cruzado com outra viatura, mas apenas de estarem com falta de gasolina. Instando esclareceu que quando foram para a Expofacic já iam na reserva, tentaram abastecer em várias bombas e não conseguiram.
A primeira memória que tem do evento é do descontrole da viatura, uma sensação de despiste. Depois do acidente saiu pela porta do lado do condutor e, conjuntamente com o I (...), retirou o condutor, o A (...) da viatura, pensa que pelo vidro, mas não tem a certeza, recordando-se apenas que ele estava preso pelo cinto e que não o conseguiam retirar.
Instado esclareceu que tinha confiança na condução do A (...).
O irmão do arguido I (...) advertido, do direito que lhe assistia de se recusar a depor, fez uso do mesmo e remeteu-se ao silêncio.
E (...), militar da GNR, descreveu o estado em que encontrou a viatura, capotada sobre umas oliveiras, precisando que, pelo menos uma oliveira, estava arrancada. Mais disse que a vítima estava encarcerada e os outros ocupantes já estavam a receber assistência médica. Descreveu ainda o local do acidente, como uma curva descendente, atento o sentido de trânsito da viatura, estando o piso em bom estado.
Confirmando na íntegra o teor da participação por si elaborada, disse que a marca de derrapagem que encontraram tinha mais de 100m e iniciava-se em contra-mão, não tendo encontrado quaisquer vestígios de óleo ou areias na estrada que justificassem a derrapagem.
Saliente-se porém no que concerne às marcas encontradas no piso, que as fotografias de fls 182 (captadas durante o dia) e confirmadas pelo Cabo C (...) atestam a existência de três rastos de derrapagem (um do rodados do lado direito e dois dos rodados do lado esquerdo da viatura) que se nos afigura que não seriam visíveis de noite (cfr decorre da fotografia de fls 181 – imagem captada de noite). 
A imagem de fls 181 a nosso ver atesta que ocorreu a aludida sobreviragem, muito contestada pela defesa em julgamento, na medida em que os dois rastos de derrapagem situados do lado esquerdo  indiciam, fazendo apelo às regras de experiência comum, que o rasto mais curto do lado esquerdo é do rodado da frente, tendo pois o rodado traseiro “ultrapassado” o da frente.
Mas, voltando aos depoimentos, F (...), que estava no seu local de trabalho - um armazém que fica em frente ao local do acidente - viu uma nuvem, fumo e apercebeu-se que alguma coisa tinha entrado pelo campo dentro. A viatura acidentada estava fora da faixa de rodagem e havia derrubado uma oliveira.
Esta testemunha relatou que, naquele local o carro ganha muita velocidade porque a descida é acentuada e a curva à direita é propícia ao despiste. Instado disse não se recordar de ver as marcas mais ténues de derrapagem que estão na fotografia de fls 181.
O depoimento da mãe da vítima, M....(com todo o respeito pela sua dor, indubitavelmente indescritível, pela perda do seu filho) não teve qualquer relevância para a boa decisão da causa, tendo apenas esclarecido que no aludido dia o seu filho já estava de pijama e só saiu depois de um telefonema do arguido, o que foi confirmado por G (...) que se encontrava na casa da vítima.
N...., que era namorada da vítima, relatou que a vítima preferia dar boleia à testemunha porque o arguido gostava de acelerar, não obstante só se recordar de ter andado de carro com ele uma vez.
O... , amigo do arguido, descreveu-o como um rapaz calmo, ponderado e de bons princípios. O arguido vive com os pais, que têm algumas limitações em termos económicos (apesar de já terem vivido acima da média) e é por eles sustentado, estando a estudar na FDUC, sendo os pais que o levam à Universidade. Pensa que a vítima era o melhor amigo do arguido e, à data como via o A (...) cerca de uma vez por semana, notou nele após o acidente ansiedade, intranquilidade, tendo mesmo frequentado um psiquiatra.
P... , que tem relacionamento de amizade com o pai do arguido, (existindo convívio entre as famílias) descreveu o arguido como tendo aproveitamento escolar, frequentando o ensino superior e sendo sustentado pelos pais.
Conviveu com o A (...) após o acidente, cerca de uma a duas semanas após o seu regresso a casa e notou-o muito agitado, com um discurso por vezes incoerente, parecendo-lhe que existia um transtorno causado pelo acidente.
Quanto à situação económica revelou saber que a empresa do pai do arguido (denominada Home Sweet Home) entrou em insolvência.
 Q... descreveu o arguido como um aluno responsável. A mãe desta testemunha trabalha nos HUC e por esse motivo todos os dias recebia informação sobre a situação clínica do A (...) quando esteve internado após o acidente, sabendo que esteve algum tempo em coma. Do que conversou com ele, posteriormente, este revelou não se recordar do acidente.
R... atestou que o arguido sofreu muito com o acidente, porque a vítima era o seu melhor amigo, sendo considerado pelo arguido como um irmão. Disse que o arguido é sustentado pelos pais, não conduz e após o acidente ficou com problemas nas costas e dificuldades de concentração.
Por último, de referir o depoimento do Cabo C (...) que confirmou o teor do relatório elaborado, descrevendo a viatura como um Astra Station Wagon, munida com sistema de controlo de estabilidade, destinado a evitar o despiste.
Relatou o estado da via, o local, descrevendo-o como curva à direita de boa visibilidade em rampa descendente atento o sentido do veículo, onde velocidade máxima permitida era 90 Km/h.
No caso concreto, admite que o arguido possa ter adormecido ou ter-se distraído, pois tinha uma percepção de 50m. As marcas indiciam que o condutor deixou flectir o veículo para a esquerda, invadindo a faixa contrária (o rasto inicia-se na faixa contrária) sendo que o arguido ao aperceber-se que ia fora de mão tenta recolocar a viatura na sua mão e, ao fazê-lo de forma repentina provocou o descontrole da mesma.
O que detectou foram marcas de derrapagem, não detectou marcas de travagem, mais concretamente duas marcas de derrapagem, de duas rodas, sendo que mais abaixo aparece mais uma linha. A viatura bateu segundo os danos visíveis (perceptíveis nas fotografias juntas aos autos) primeiro do lado do condutor. Embateu segundo a testemunha em duas oliveiras, atento o que viu no local, primeiro numa de maior porte que arrancou e depois noutra menor. O primeiro embate ocorre do lado do condutor, sendo que nessa altura, segundo a testemunha, a viatura já estava invertida, atentos os danos visíveis na mesma.
Do lado do passageiro a porta estava cortada para socorro da vítima.
Fazendo apelo aos seus conhecimentos técnicos a testemunha sustentou que o condutor, ao tentar retomar a sua faixa de rodagem, guinou o volante de uma forma pouco suave, e foi “de lado” perdendo o controle.
Não conseguiu tecer qualquer consideração sobre a velocidade a que seguia a viatura na medida em que não analisou nem o betuminoso, nem o tipo de pneus (borracha), o que seria essencial para fundamentar qualquer conclusão sobre a velocidade. Admitiu, porém, como provável que o dano causado na oliveira (arrancamento) indicia que o arguido conduzia a mais de 90Km/h mas sem certezas.
Inexistiam no local quaisquer indícios de travagem pelo que nem sequer se pode concluir que não foi capaz de parar no espaço livre e visível à sua frente.
Esclareceu, instado, que há sobreviragem quando a roda de trás passa a da frente, sendo uma derrapagem não controlada. Precisou ainda que não foram feitos estudos de velocidade por inexistirem marcas de travagem no local.
Descreveu ainda que o habitáculo do condutor estava recolhido, não sabendo explicar como é que este sobreviveu. Ora a sobrevivência de três ocupantes, aliada à inexistência de rasto de travagem, leva a concluir que a viatura embateu à velocidade a que circulava (acrescida do impulso da derrapagem) pelo que, não obstante os danos visíveis na viatura e os danos e arrancamento da oliveira, não é possível concluir que a velocidade (relativa) fosse excessiva.
Esta testemunha esclareceu ainda que não fez exame aos travões porque os vestígios indiciavam que o veículo entrou em despiste.
Mais disse que o pneu do lado esquerdo estava vazio mas que tal, provavelmente teria sucedido ao passar na valeta, pois se tivesse vazado antes do embate, ficava muito mais danificado por rolar vazio 100m (que é o rasto de derrapagem).
Esta testemunha confirmou a existência das marcas de derrapagem visíveis nas fotografia de fls 181, sendo que - repita-se  na nossa óptica, tais marcas no pavimento atestam ter ocorrido a invocada sobreviragem.
Mais referiu a testemunha que, se as rodas bloqueassem numa curva o carro ia em frente e a ter ocorrido um bloqueio tinha de existir forçosamente uma marca de travagem, que in casu não existia.
G (...)avançou com a tese de que poderia ter existido um bloqueio de uma roda para explicar apenas uma marca de derrapagem, esquecendo porém que existem outras marcas de derrapagem.  

Não tendo sido efectuada qualquer peritagem aos travões, nem existindo nos autos quaisquer elementos técnicos que permitissem perceber os efeitos da falta total de gasóleo -eventual bloqueio da direcção ou do sistema de travagem - como tais questões foram levantadas pela defesa, foi ordenada a realização de perícia para concluir ou excluir a razoabilidade da dúvida.
Foi junto o relatório pericial onde se por ler que o carro ainda tinha combustível e não foi possível analisar os travões atento o estado de degradação da viatura. O perito H (...) prestou esclarecimentos em sede de julgamento referindo que o bloqueio de uma roda teria deixado marcas no pneu, que não existem.
Assim, as hipóteses levantadas pela defesa de falta de gasolina e subsequente bloqueio ficaram a nosso excluídas pelo relatório pericial.
Mais se diga que é nossa convicção, atenta a conjugação do teor de fls 171 - auto de exame directo – a viatura não tinha velocidade engrenada/ conjugada com a declaração da testemunha que referiu que iam na reserva, é nossa convicção que o arguido retirou a mudança para aproveitar a descida, assim reduzindo o consumo de  combustível, o que também terá contribuído para o descontrole da viatura na curva – fuga para a faixa oposta.
Diga-se ainda que, segundo o relatório de peritagem de fls 409, o circuito de travagem hidráulico continha óleo necessário ao seu funcionamento, existem indícios nos pneus de escorregamento lateral mais evidente no pneu traseiro esquerdo, provavelmente devido a pressão insuficiente, a viatura tem combustível, e não foi sido possível analisar se alguma roda estaria bloqueada, atenta a oxidação entre as partilhas e o disco da jante.
Por todo o exposto entendemos que foi feita prova dos factos descritos na acusação.
De referir, por último, os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela defesa, que descreveram a personalidade e situação sócio-profissional do arguido.

                                                           *          *          *

            O recorrente impugna o que se teve por assente nos parágrafos 6, na parte “por distracção, permitiu”, 7, 8, 14, 16, 17, 18 e 19 da matéria de facto, centrando a sua impugnação na circunstância de o tribunal ter concluído que a morte da vítima teve com único nexo causal a condução com uma TAS proibida por lei. Alega para o efeito que não foi produzida prova que permita ter por assente aquela factualidade, que não pode decorrer de forma automática da circunstância de o arguido conduzir com uma TAS de 0,7 g/l, antes havendo que demonstrar que o acidente se deu por diminuição da capacidade do condutor decorrente da influência química do álcool previamente ingerido.

            Diga-se no entanto e desde já que não temos a mais pequena dúvida quanto à correcção da conclusão alcançada pelo tribunal recorrido, ainda que porventura a correspondente fundamentação se revele insuficiente. Para o caso, essa constatação é irrelevante, posto que vem pedida pelo próprio arguido a reapreciação da prova gravada, o que abre caminho à reapreciação de toda a prova produzida em julgamento, considerando-se também como tal (i. é, como produzida em audiência) toda a prova documental constante dos autos.

Retenha-se, já agora, que o tribunal ad quem está condicionado pelas questões suscitadas nas conclusões do recurso interposto, mas não pelos juízos que conduziram à decisão no sentido que veio a ser alcançado pela primeira instância. Aliás, o que se pede ao tribunal de recurso na reapreciação da prova é, precisamente, que analise os factos à luz de um outro juízo, de uma outra argumentação, tida pelo recorrente como mais consentânea com a prova produzida e com as regras da experiência. O tribunal de recurso não está, no entanto, vinculado nem pelos juízos que fundamentaram a decisão nem pelos argumentos em que se estriba a análise do recorrente. Precisamente porque o sistema processual penal não é um sistema de verdade formal, o tribunal de 2ª instância, uma vez solicitada a reapreciação da prova, não terá senão que lançar mão de todos os meios ao seu alcance para formular um definitivo juízo relativo à matéria de facto fixada, podendo mesmo alterá-la, verificados que sejam os pertinentes pressupostos.

  Ora, no caso vertente, a motivação do provado não esgrime aquele que quanto a nós é um dos elementos decisivos para a comprovação da inegável influência do álcool na eclosão do acidente a que se reportam os autos. Na verdade, resulta da matéria de facto e nem sequer é questionado em sede de recurso que no dia 28 de Julho de 2010 cerca das 00h 30m o arguido se encontrava no recinto da Expofacic em Cantanhede, na companhia do seu irmão I (...) e dos seus amigos B (...) e J (...) e que durante o tempo que ali permaneceram todos eles ingeriram algumas cervejas, até que cerca das 4h 30m decidiram sair do local e ir para casa do arguido. Ou seja, o arguido permaneceu no recinto da Expofacic durante cerca de quatro horas e a ingestão de cervejas em quantidade não apurada ocorreu necessariamente durante esse período de tempo.

Assim, a primeira constatação que inelutavelmente se impõe e que se virá a revelar de importância fundamental na análise da correcção do provado é que a ingestão de bebidas alcoólicas pelo arguido teve lugar, no máximo, até cerca das 04h30 daquele fatídico dia 28 de Julho de 2010.

Uma segunda constatação, igualmente relevante e que o arguido pacificamente aceita, é que o acidente ocorreu cerca das 04h45m, ou seja, cerca de 15 minutos após ele e os seus acompanhantes terem abandonado o recinto da Expofacic (recinto onde, repete-se, durante cerca de quatro horas haviam permanecido, ingerindo um número não apurado de cervejas).

A terceira constatação, também ela pacificamente aceite pelo recorrente, é que foi submetido a exame para determinação da taxa de álcool no sangue, tendo revelado uma TAS de 0,70g/l .

A partir daqui, as coisas complicam-se, isto para a perspectiva sustentada em recurso pelo arguido. Na verdade, uma quarta constatação esta, não constante do elenco dos factos provados (nem tinha que constar) nem considerada na motivação do provado (quando o deveria ter sido, por se tratar de elemento relevante) – é que esta TAS de 0,70 g/l foi verificada através de análise ao sangue (método consabidamente mais rigoroso do que a determinação da taxa de álcool no ar expirado, tanto assim que é admitido como contraprova) em colheita efectuada às 07h05m do dia do acidente (cfr. relatório do Serviço de Toxicologia Forense do IML – Delegação do Centro, a fls. 156).

A relevância desta última constatação está precisamente no facto de mais de duas horas e meia após o termo do período durante o qual o arguido ingeriu bebidas alcoólicas (fê-lo até às 04h30), este ainda apresentar uma TAS de 0,70 g/l. E como à luz da experiência comum não é razoável admitir que todas as cervejas ingeridas pelo arguido o tenham sido momentos antes de ter abandonado o recinto da Expofacic – o mais razoável é que o tenham sido ao longo do tempo em que ali permaneceu – aliando essa conclusão ao conhecimento de que os efeitos de ingestão de bebidas alcoólicas se começam a produzir imediatamente a seguir à sua ingestão e que o processo de absorção do álcool demora aproximadamente uma hora, atingindo um valor máximo num período de tempo que varia entre 30 minutos a duas horas, consoante as características pessoais de quem o ingere e as condições em que a absorção se processa (maior ou menor desidratação, ingestão isolada ou acompanhando alimentos, fadiga, consumo de café, tabaco, etc.) e que o organismo inicia de imediato o processo de eliminação do álcool, diminuindo a TAS a uma média de 0,1 a 0,2 por hora, não é difícil alcançar que no momento do acidente o arguido teria sem margem para dúvidas uma TAS superior à que veio a acusar no exame que lhe foi efectuado.

Os estudos mais recentes sobre o tema revelam que o álcool, sendo um depressor do sistema nervoso central, afecta a capacidade de condução, e os seus efeitos são tanto mais perniciosos quanto maior é a quantidade ingerida. Apenas uma percentagem marginal é directamente eliminada através da urina. A parcela não eliminada entra na corrente sanguínea e é transportada para os diversos órgãos do corpo, afectando progressivamente as capacidades físicas e psíquicas – e logo, o exercício da condução – à medida que vai atingindo o cérebro. Os efeitos provocados pelo consumo do álcool no exercício da condução são os mais diversos e ainda que variem de condutor para condutor, assumem essencialmente as seguintes características:

- Diminuição da capacidade de reacção, nomeadamente, perante eventos inesperados; entorpecimento;

- Descoordenação psicomotora, perceptível em travagens bruscas, golpes de volante, etc;

- Redução da capacidade de análise de eventos exteriores (diminuição da capacidade de avaliar a velocidade do próprio veículo, diminuição da capacidade de avaliar a distância de obstáculos e a velocidade de aproximação de outros veículos);

- Redução da capacidade de seguir linearmente uma trajectória;

- Instala-se o excesso de confiança, indutor de comportamentos imprudentes e muitas vezes aumenta a agressividade (tanto a agressividade social como a agressividade da própria condução); sensação de bem-estar e ilusória sensação de aumento das suas capacidades, que na verdade se encontram diminuídas;

- Redução do campo de visão e da visão periférica.

Por outro lado, em função dos estudos que vêm sendo feitos sobre a matéria, a comunidade científica está tendencialmente de acordo relativamente à influência e relação entre o exercício da condução após consumo de álcool e o risco de envolvimento em acidente mortal, que aumenta exponencialmente à medida que cresce a concentração de álcool no sangue. Vem sendo considerado em diversos artigos publicados sobre o tema o seguinte rácio:

 TAS                       aumento do risco de acidente mortal

0,50g/l ....................o risco aumenta 2 vezes

0,80g/l ............... …………. ……….4 vezes

0,90g/l ...............................................5 vezes

1,20g/l ..............................................16 vezes

Sobre o tema, para além de uma vastidão de artigos disponíveis na internet e nas revistas do ACP (Segundo um artigo do ACP datado de 20/12/2010, “os condutores mais jovens e sem grande experiência ao volante ao conduzirem com uma alcoolemia de 0,50 g/l correm um risco 2,5 vezes superior àquele a que estão expostos os condutores mais idosos e experientes”) e da Prevenção Rodoviária Portuguesa, veja-se “Direito Penal Rodoviário – Os crimes dos Condutores”, P.U.C., 2007, págs. 144 e ss.

Diz o arguido na motivação do recurso que “(…) o tribunal decidiu com base no funcionamento automático do silogismo ‘taxa de alcoolemia proibida – causa adequada do acidente produtor do resultado danoso’, sem que outros elementos probatórios pudessem sustentar e comprovar tal lógica, designadamente no que toca ao valor da própria taxa que, in casu, sendo proibida, é reduzida (0,70 g/l), o que sempre imporia maiores cautelas no recurso às ditas regras da experiência”.

Esta afirmação sobre a TAS que o arguido apresentava no momento em que foi submetido à colheita de sangue para análise não traduz uma constatação de cariz científico. Trata-se apenas de uma afirmação tendente a eximir o arguido da sua responsabilidade penal, mas que conflitua com todas as considerações que deixámos expressas sobre a relevância daquela taxa e que se orientam precisamente no sentido inverso.

De todo o modo, a argumentação desenvolvida no recurso é todo ela orientada no sentido da inexistência de prova que permita estabelecer um nexo de causalidade entre o acidente ocorrido e a taxa de alcoolemia apresentada pelo arguido.

Mas como se prova, afinal, essa relação causal?

Essa prova não é, normalmente, uma prova directa. Claro que para as TAS mais elevadas é possível que a mera visualização do descontrole psicomotor do condutor, percepcionado após o acidente, permita sem dificuldade estabelecer a inaptidão para o exercício da condução e, portanto, sem necessidade de mais rebuscadas considerações, ficará estabelecida uma relação causal entre a influência do álcool e o acidente.

Os condutores mais perigosos são, no entanto, aqueles que não têm sequer a consciência de que estão afectados pelo álcool. São esses os condutores que adoptam atitudes mais agressivas ao volante, precisamente porque se encontram na fase da perda de inibições e da sensação de euforia. Para usar uma frase muito em voga há alguns anos atrás em campanhas de publicidade da Prevenção Rodoviária Portuguesa, o condutor que se encontra nessa fase “sente-se o melhor condutor do mundo”. Nesta fase, a relevância da influência do álcool na condução não é consciencializada pelo próprio nem é normalmente apercebida pelos acompanhantes do condutor, mas tende a revelar-se em concreto na ocorrência de qualquer evento anómalo que suceda no exercício da condução. A prova da influência do álcool em tais situações será sempre uma prova indirectamente obtida, decorrente da análise do evento concreto, da forma como este se desenrolou e do comportamento do condutor no seu decurso. Assim, e meramente a título de exemplo, se porventura um condutor é interveniente num despiste e se determina uma causa mecânica, como o fortuito rebentamento dum pneu, não há como estabelecer, só por isso, uma relação entre este evento e uma TAS ilícita de que porventura fosse portador; se um condutor é interveniente numa colisão em que se demonstra que outro veículo lhe surge inopinadamente pela frente, desrespeitando sinalização de prioridade, mais uma vez não será possível estabelecer a relação entre a TAS do primeiro e o evento verificado; se um condutor circula, ainda que com velocidade algo superior à legalmente permitida no local e efectua uma travagem que por força de areia ou óleo existentes no pavimento lhe provoca uma derrapagem seguida de despiste ou do atropelamento de um peão, ainda assim não será possível imputar à TAS excessiva com que exerça a condução, a causa do evento. O estabelecimento da relação causal entre uma taxa de álcool no sangue e um evento estradal civil ou criminalmente relevante não opera automaticamente através dum silogismo do tipo álcool = nexo de causalidade, assistindo plena razão ao recorrente quando o alega. Esse nexo causal terá sempre que ser estabelecido através da prova concretamente produzida.

Vejamos então os aspectos mais relevantes dos depoimentos recolhidos em audiência:

A testemunha D (...), militar da GNR que compareceu no local na ocasião do acidente referiu que no local havia marcas de derrapagem. Esclareceu, aliás, que na altura ficaram todos (os militares da GNR que ali se deslocaram) com a ideia de que as marcas deixadas pelo rodado da viatura despistada eram marcas de derrapagem e não de travagem. Eram marcas visíveis numa extensão muito grande, na ordem dos 100 metros. Chegaram a essa conclusão porque na travagem a fundo a marca da travagem fica a direito e as marcas no local davam a sensação de que o carro foi de lado para a berma, como se fosse de rojo, o que não sucederia se se tratasse de uma travagem.

Do depoimento da testemunha B (...), que era um dos ocupantes do veículo, amigo do arguido, e que revelou ao longo de todo o interrogatório uma cirúrgica falta de memória relativamente às condições em que ocorreu o acidente, resulta essencialmente o seguinte:

- O arguido terá bebido 4 ou 5 cervejas no recinto da feira;

- No momento do acidente, a testemunha ia no banco de trás, a enviar mensagens com o telemóvel;

- A música ia alta;

- Não se cruzaram com qualquer outro veículo; a estrada estava vazia;

- O carro entrou em despiste; não se lembra de qualquer travagem.

A testemunha E (...), militar da GNR, referiu também a sua convicção de que as marcas que ficaram no local eram marcas de derrapagem que começava na contramão, atendendo ao sentido seguido pelo veículo. É a circunstância de o carro seguir em derrapagem que justifica que haja marcas no pavimento de largura superior à largura do pneu. Tudo leva a crer que o carro fez a derrapagem em diagonal.

F (...), que estava no seu local de trabalho, num armazém que fica perto do local onde o veículo se imobilizou e que chamou os socorros, referiu que o veículo arrancou uma oliveira existente naquele campo, esclarecendo que aquela oliveira era “bastante forte”.

Do depoimento da testemunha C (...), cabo da GNR que elaborou os relatórios de fls. 169 e ss. e o “croquis” de fls. 188, resulta no essencial, o seguinte:

- Verificou a existência de marcas de derrapagem na estrada; afirmou que não houve travagem, apenas derrapagem; vestígios de derrapagem referentes a duas rodas (supõe que das duas rodas do lado esquerdo), numa extensão de 100,7 metros (até sair da via). Não foi feito qualquer exame aos travões porque em momento algum foi referido que tivesse havido uma falha de travões ou que as rodas tivessem bloqueado. Referiu ainda, pormenor relevantíssimo, que o pneu terá esvaziado no decurso da derrapagem, porque se tivesse esvaziado antes estaria todo moído. Foi assertivo na afirmação de que as marcas são de derrapagem e não de travagem, por não haver vestígios de bloqueio de rodas.

Voltemos então à matéria do recurso:

Diz o recorrente que nenhuma das testemunhas de acusação, colocada perante o cenário do acidente, foi capaz de, em consciência, afastar como causa da sua produção a eventual existência de avaria mecânica, antes afirmando tal cenário como possível, nomeadamente, em função da especificidade do rastro e do estado dos pneus.

Perdoe-se-nos o jogo de palavras, mas ao alegar nestes termos o arguido não se está verdadeiramente a socorrer da prova nem procura demonstrar factos reais. Pelo contrário, está a tentar socorrer-se da «não prova» de «não factos» para construir uma situação de dúvida. Como claramente se percebe pela gravação da audiência, em momento algum qualquer das testemunhas aventou espontaneamente a possibilidade de verificação de avaria mecânica como causa do acidente, excepção feita à testemunha G (...), perito de seguros. Mas mesmo esta testemunha foi inicialmente confrontada com uma fotografia em que verifica um só rasto de bloqueio, atribuindo-o ao bloqueio de uma só roda por avaria mecânica, depoimento que não está de acordo com os depoimentos dos militares da GNR que apontam dois rastos de derrapagem lateral, o que já é perfeitamente razoável, como se explica através de noções de física elementar (forças e vectores). Na verdade, se um veículo entrar em derrapagem lateral (como se indicia ter sucedido no caso vertente, pelo facto de o rasto ter largura superior à largura do pneu – assim o disse a testemunha E (...)), a força cinética de que o veículo se encontra animado nessa trajectória tenderá a projectar o peso para cima das rodas do lado sobre o qual o veículo derrapa (o lado externo, considerado este como o lado em cuja direcção se efectua o movimento de derrapagem) e o veículo como que se levanta, perdendo aderência, do lado oposto, do lado interno, que é aquele a partir do qual actua a força cinética. É precisamente por essa razão que se o movimento for demasiado intenso, o veículo tenderá a rolar sobre si próprio – aquilo a que se chama correntemente o capotamento.

A testemunha prosseguiu com a sua teoria de bloqueio de uma só roda em função da actuação de órgão de travagem que aperte a roda e a não liberte após o fim da travagem, mas acabou por reconhecer que não efectuou qualquer inspecção aos órgãos de travagem, em função do estado em que se encontravam como decorrência do acidente. O que em momento algum equacionou foi a derrapagem lateral, apontada pelos militares da GNR, versão que, repete-se, se oferece como a mais razoável, até porque a testemunha a que agora nos reportamos nem sequer foi ao local do acidente, apenas viu o carro e viu as fotografias em audiência.

A defesa do arguido foi construindo ao longo do julgamento hipóteses abstractas, assim como foi insistindo com as testemunhas, esforçando-se para que estas as admitissem como prováveis ou, pelo menos, como possíveis, o que até se compreende. Simplesmente, para aventar hipóteses e construir conjecturas não são necessárias testemunhas. A função da testemunha é apenas e tão-só a de depor sobre factos concretos de que tenha conhecimento. Conjecturas, se razoáveis e admissíveis em função da prova produzida, serão equacionadas pelo tribunal em sede de sentença, na valoração crítica da prova, podendo a acusação ou a defesa equacioná-las nas alegações que produzirem. As considerações avulsas sobre o tema, baseadas em meras hipóteses que não encontrem acolhimento pelo menos num indício, num “princípio de prova”, são totalmente irrelevantes para efeitos probatórios.

O que a prova produzida verdadeiramente permite concluir em termos objectivos é que a viatura tripulada pelo arguido invadiu a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário (assim o indicam os vestígios no asfalto documentados no “croquis” e nas fotografias, confirmadas pelos militares da GNR que estiveram no local, descreveram o que viram e interpretaram os vestígios à luz da sua experiência). No local, a estrada configura-se em curva para a direita em ligeira rampa descendente (idem). Quando ocupava a parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, o veículo tripulado pelo arguido entrou em derrapagem, tendo deslizado sobre as rodas do lado esquerdo em curva para a direita (idem), percorrendo assim 100,7 metros até sair do asfalto (idem), percorrendo ainda 14,8 metros no campo contíguo à via, vindo a imobilizar-se apenas depois de ter embatido numa oliveira ali existente, que arrancou totalmente (idem), factos que sucederam durante a madrugada, cerca das 04h45m do dia 28 de Julho de 2010, numa ocasião em que o piso se encontrava seco (idem, e ainda depoimentos das testemunhas F (...) que se apercebeu do acidente e chamou os socorros, quanto à hora e arrancamento da oliveira e B (...), um dos ocupantes do veículo, quanto à derrapagem e subsequente despiste). Nessa ocasião não havia trânsito na via em sentido contrário, estando a estrada totalmente livre (depoimento de B (...)). Os ocupantes do veículo vinham da Expofacic, onde tinham estado durante cerca de 4 horas, bebendo diversas cervejas (4 ou 5, segundo a testemunha B (...)) e a música vinha alta (idem). Às 07h05m foi efectuada colheita de sangue ao arguido, que veio a revelar uma TAS de 0,70 g/l (cfr. relatório do Serviço de Toxicologia Forense do IML – Delegação do Centro, a fls. 156).

Isto é o que objectivamente resulta da prova. Simplesmente, o provado, isto é, aquilo que o tribunal pode dar como assente em função da prova, não se limita a esta realidade atomisticamente considerada. A par da isolada valoração de cada um dos meios de prova produzidos, o tribunal procede à sua valoração crítica, numa perspectiva de conjugação e interacção das diversas provas. É precisamente a valoração crítica da prova que constitui o núcleo essencial da fase decisória, sendo através dela que o julgador aprecia o facto em correlação com a prova produzida. Daí que a parte final do nº 2 do art. 374º imponha o “…exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. A conjugação desta última norma com o disposto no art. 127º desenha o modo de fixação da matéria de facto, levando a que o provado se ofereça como o resultado depurado dos meios de prova produzidos em audiência ou levados aos autos nos termos legais. Não podendo esse produto final resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente, em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos.

A componente fundamental da valoração crítica desenvolvida no âmbito da livre apreciação da prova é a presunção judicial. Na verdade, a actividade jurisdicional não está estritamente vinculada às afirmações e negações dos declarantes e das testemunhas, assim como não pode prescindir da valoração dos depoimentos à luz de um juízo crítico, considerando as regras da experiência. É esse trabalho de análise crítica que consolida a livre convicção do tribunal, permitindo-lhe considerar como provados os factos merecedores de uma certeza judiciária e como não provados todos aqueles que sejam inegavelmente desmentidos pelas regras da experiência ou que não se mostrem comprovadamente demonstrados. É esse convencimento racional, lógico-dedutivo e fundamentado, desde que devidamente explicitado, que permite ao juiz afirmar a verdade do caso concreto, fixando a correspondente matéria de facto, assim se efectivando a “livre apreciação da prova” consagrada no art. 127º do CPP.

A certeza judiciária subjacente ao provado afirma-se através de uma presunção judicial inserida no processo de formação da livre convicção do julgador por apelo a juízos que não ponham em causa as máximas da experiência, exigindo, no entanto, a verificação de uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge, sem “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas. Essa presunção conduz a um facto real que assim se firma como facto provado desde que não se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado atingido e sem que o funcionamento da presunção colida com o princípio in dubio pro reo.

De que modo influenciam estas considerações o caso agora em apreço?

Manifestamente, não foi por avaria mecânica que o veículo invadiu a mão contrária. Antes do rasto de derrapagem iniciado nessa via, nada indicia que a viatura estivesse descontrolada. Assim, qualquer que tenha sido a razão, fosse por pura negligência, por cansaço, por incapacidade de adequar a marcha do veículo às condições da via, por incapacidade de manter a trajectória ou por falta de percepção da existência de uma curva no local, certo é que o veículo saiu da parte da via destinada ao seu sentido de trânsito. Não sabemos qual foi a razão concreta, mas temos a certeza judiciária de que se tratou de causa imputável ao condutor pois não há notícia de causa externa – a via estava desimpedida. Sabemos, por outro lado, que existe uma relação directa e cientificamente demonstrada entre este tipo de situações e o consumo de álcool. A isso nos referimos supra e para lá remetemos.

Razoavelmente, o arguido terá tentado retomar a sua mão. Embora conduzisse com álcool – tinha ingerido cervejas em quantidade não concretamente apurada, mas que a testemunha B (...) diz terem sido 4 ou 5 – não era perceptível uma incapacidade de exercer a condução, o que de resto é compatível com uma TAS superior à verificada nos autos. Certo é que já a TAS verificada implicaria, sobretudo num indivíduo jovem (resulta dos autos que nasceu em 16-04-1988), condutor menos experiente, a horas avançadas da madrugada, em que o cansaço já se faria naturalmente sentir, uma diminuição dos reflexos e da capacidade de reagir consistentemente a qualquer evento anómalo.

Quando o veículo tripulado pelo arguido ocupa a contramão entra em derrapagem. Que essa derrapagem ocorre quando o arguido tenta regressar à sua mão, é facto que se alcança através das regras da experiência comum aplicadas aos vestígios objectivamente verificados e à demais prova produzida. Fosse qual fosse a razão – um súbito golpe de volante, uma velocidade excessiva para as condições da via, ou qualquer outra – tratou-se de uma manobra desajustada à situação, tanto mais que a via estava livre, não havendo trânsito em sentido contrário que reclamasse uma brusca manobra de emergência. Repare-se, já agora, que também a imperícia evidenciada nesta manobra é compatível (mais do que isso, é consequência cientificamente verificada para o comum das situações…!!!) com o exercício da condução sob o efeito do álcool e retenha-se ainda, vista a posição assumida pela defesa ao longo do julgamento, que não se encontrou qualquer evidência de avaria mecânica.

Em resumo:

- Temos um condutor jovem que circula a altas horas da madrugada após ter ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma TAS superior à permitida, num veículo com a música em tom elevado;

- Esse condutor perde o controle da viatura, permitindo que ela invada a mão contrária;

- E ao tentar recuperar a sua mão, entra em derrapagem e despista-se.

O que aqui temos, na verdade, são duas consecutivas demonstrações de incapacidade por parte do arguido de controlar o veículo que dirigia. Uma primeira quando invade a contramão e uma segunda quando tenta regressar à sua mão de trânsito.

Conhecidas as consequências do exercício da condução sob o efeito do álcool nos termos em que as expusemos supra, negar a influência do álcool na causalidade subjacente ao acidente a que se reportam os autos equivale a negar o óbvio. A conclusão de que assim sucedeu atinge-se por presunção judicial assente nos factos objectivamente provados e amparada no conhecimento científico sobre o tema, sem que se verifique qualquer “salto” lógico (a conclusão está imediatamente a montante das premissas em que se funda) e sem que existam premissas indemonstradas (a presunção assenta em factos concretamente verificados). Por outro lado, não se demonstra qualquer circunstância de facto que obste ou colida com o funcionamento da presunção nos termos em que foi aplicada nem são de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim alcançado (as hipóteses de avaria mecânica sucessivamente aventadas pela defesa – meras hipóteses nem sequer indiciadas, portanto, puramente especulativas). E por fim, não colhe o argumento da violação do princípio in dubio pro reo, que in casu é desmentido pela força da evidência, obstando também ao tratamento de favor que decorreria do in dubio…. Como se refere no Ac. do STJ de 08/11/2007 [1], “…«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que elida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal». Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (repete-se: «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador»). Palavras que pela sua pertinência e adequação ao caso se reproduzem por estarem em perfeita sintonia com as razões que antes apontámos e que evidenciam a justeza do facto presumido. É verdade que ao longo do julgamento a defesa foi insistindo em sucessivas possibilidades de avaria mecânica; bloqueio de rodas, pneu vazio, falha nos travões, falha da direcção. Simplesmente, tratou-se de meras hipóteses adiantadas em abstracto e como já antes dissemos, na sua averiguação da verdade o tribunal não estava obrigado a considerar como possível toda e qualquer hipótese abstracta susceptível de afastar a responsabilidade do arguido, valorando-as na vertente do princípio in dubio pro reo. Apenas as hipóteses que, em função dos factos inequivocamente assentes, se oferecessem como verosímeis dadas as circunstâncias do caso, poderiam ser equacionadas nessa perspectiva. Ora, a normalidade dos factos, a experiência comum, aplicada ao caso vertente, diz-nos que as coisas se passaram nos termos descritos e a prova produzida aponta toda ela nesse mesmo sentido, sem que se tenha apurado qualquer circunstância que permita considerar como verosímil, naquelas circunstâncias, qualquer outra opção fáctica consistente e susceptível de suscitar dúvidas ao julgador, em termos tais que devesse obstar à consideração como provado do que se teve por assente. De resto, tal como a certeza judiciária não é uma certeza contra todas as possibilidades, mas uma certeza lógica e racional fundada num equilibrado sentido da vida e da normalidade das situações, também a dúvida relevante em processo penal não é toda e qualquer dúvida, mas apenas aquela que se afirma como dúvida metódica e racional, fundada na razoabilidade das situações da vida e na impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de um determinado facto. Donde se segue que o recurso necessariamente improcede.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.

Por ter decaído integralmente no recurso interposto, condena-se o recorrente na taxa de justiça de 5 UC.

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                       (Jorge Miranda Jacob - Relator)

                       (Maria Pilar de Oliveira)

[1] - Disponível em http://www.dgsi.jstj, doc. nº SJ200711080031645