Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
903/19.9T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 03/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.618 CC
Sumário: O prazo de caducidade de cinco anos para o exercício do direito de impugnação pauliana conta-se, como expressamente refere o art.º 618.º do CC., a partir da data do ato impugnável, não consentindo essa norma interpretação extensiva, no sentido de tal prazo só correr a partir da data do conhecimento do ato pelo credor.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



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I – Relatório

P (…) e esposa, M (…), com os sinais dos autos,

intentaram ([1]) ação declarativa com processo comum ([2]) contra

1.ºs – A (…) e esposa, H (…), e

2.ª – M (…),

estes também com os sinais dos autos,

alegando factos e alinhando razões para pedir que seja a escritura de mútuo e dação em pagamento outorgada em 05/06/2006, celebrada entre os 1.ºs RR. e a 2.ª R. (mãe da 1.ª R. mulher e sogra do 1.º R. marido), declarada ineficaz em relação aos AA., permitindo-se a estes últimos executar o quinhão hereditário dos 1.ºs RR., referente à herança deixada por morte de A (…) de que são herdeiros, na medida do interesse dos mesmos AA..

Os RR., em contestação conjunta, vieram, para além do mais, excecionar a caducidade do direito invocado, alegando que, por o ato objeto de impugnação (aquela escritura) ter ocorrido em 05/06/2006, aquando da propositura desta ação de impugnação pauliana (em 30/05/2019) já estava caducado aquele direito, pelo decurso do prazo legal de caducidade (de cinco anos, a que alude o art.º 618.º do CCiv.), obrigando à absolvição do pedido.

Os AA., em resposta, concluíram pela improcedência daquela matéria de exceção.

Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador-sentença, julgando procedente aquela exceção perentória de caducidade, com a consequente absolvição dos RR. do pedido.

Inconformados, recorrem os AA., apresentando alegação e as seguintes

Conclusões:

«1. Os AA apenas em Janeiro de 2019 tiveram conhecimento da realização da escritura de 05 de Junho de 2016, junta aos autos;

2. Assim que tiveram conhecimento da realização da escritura, a (pouca) confiança que ainda havia nos credores foi abalada;

3. A única forma de protecção perante os devedores era lançar mão da impugnação pauliana,

4. Sendo este o único instituto que tem como finalidade proteger os credores de negócios simulados e/ou ruinosos que prejudiquem que coloquem o credor numa posição de impossibilidade de obter integral satisfação do crédito em causa.

5. Sendo o único instituto que permite ao credor reagir a este tipo de negócios, sobre a letra da lei sempre terá de ser feita uma interpretação extensiva,

6. Interpretação essa que passa obrigatoriamente por se entender que os cinco anos da caducidade começam a contar não desde a celebração do negócio,

7. Nem do seu registo,

8. Mas somente do conhecimento da celebração do acto que se revela ruinoso.

9. Este já era o entendimento postulado no Código de Seabra,

10. E tem de ser o pensamento que vigora hoje.

11. Sendo certo que houve alteração na letra da lei, o que se entende é apenas que o legislador quer tabelar o tempo em que o credor pode reagir,

12. Mas nunca pretendeu que o mesmo fosse impossibilitado de reagir,

13. E muito menos que fosse impossibilitado de reagir inclusive antes de ter qualquer conhecimento de que algum negócio tenha sido celebrado.

14. De igual forma não pode o argumento da necessidade de protecção dos terceiros colher aceitação dado que, tal situação, dizemos a protecção dos terceiros, vem de forma clara e expressa prevista no artigo 617.º do Código Civil.

15. Ora, assim, fica a tese defendida sem qualquer suporte para ser sustentada, não podendo ser outro entendimento que não seja o da interpretação extensiva da letra da lei.

16. Recaindo tal entendimento no sentido de que os cinco anos previstos para a caducidade da acção apenas se contam após o conhecimento do negócio que se pretende atacar.

17. Assim, a presente acção foi intentada a 30 de Maio de 2019, no prazo de 5 meses após o conhecimento da realização da referida escritura;

18. O prazo de cinco anos plasmado no artigo 618.º do Código Civil, deve começar a contar-se da tomada de conhecimento da realização da escritura.

19. Concluindo-se apenas que a acção foi interposta tempestivamente,

20. Motivo pelo qual deveria a invocada excepção ser julgada improcedente,

21. E assim, ordenar o prosseguimento dos autos até final,

22. Assim decidindo far-se-ia justiça.

Assim se Fazendo Justiça

JUSTIÇA.».

Não foi junta contra-alegação de recurso.


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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantido o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. –, importa saber:

a) Se deve proceder-se a uma interpretação extensiva da norma do art.º 618.º do CCiv., de molde a que o prazo de caducidade ali estabelecido só deva ser contado a partir da data do conhecimento, por parte do impugnante, da realização do ato impugnado;

b) Obrigando à revogação da decisão recorrida e ao consequente prosseguimento dos autos.


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III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi (apenas) considerada – sem controvérsia – a seguinte factualidade como provada (por acordo e com base documental):

«1. Os AA. P (…) e esposa M (…), intentaram contra os RR. A (…) e esposa H (…) e M (…), a presente acção de impugnação pauliana, peticionando que seja a escritura de Mútuo e Dação em Pagamento declarada ineficaz em relação aos AA, permitindo-se aos mesmos executar o quinhão hereditário dos 1ºs RR na medida do interesse dos mesmos AA.

2. A escritura supra referida, de Mútuo e Dação em Pagamento de Quinhão Hereditário, foi outorgada em 05 de Junho de 2006, a fls. 136 do livro 13-F, no Cartório Notarial de (…).

3. A presente acção foi instaurada em 30 de Maio de 2019.».


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B) Substância jurídica do recurso

Da interpretação do disposto no art.º 618.º do CCiv. e da (im)procedência da exceção de caducidade do direito de impugnação

A decisão recorrida, ao perspetivar a exceção deduzida da caducidade do direito de impugnação pauliana, considerou que o prazo legal de caducidade se conta a partir da data do ato objeto da impugnação, tal como literalmente previsto no art.º 618.º do CCiv..

Já a parte recorrente pugna por uma interpretação extensiva desse preceito, de modo a que, onde consta “(…) cinco anos, contados da data do ato impugnável”, passe a ler-se, por via interpretativa, contados da data do conhecimento pelo impugnante do ato impugnável.

É incontroverso nos autos que estamos perante ação de impugnação pauliana, intentada em 30/05/2019, e que o ato impugnado (escritura pública) ocorreu em 05/06/2006.

Não há, pois, a menor dúvida de que decorreram muito mais de cinco anos entre a data de tal ato impugnado e a data da instauração da ação.

Também é inequívoco dispor o aplicável art.º 618.º do CCiv. que o direito de impugnação caduca ao fim de cinco anos, contados da data do ato impugnável.

Mas ter-se-á o legislador expressado mal, em termos de ter dito menos do que aquilo que pretendia?

Isto é: quereria dizer que o prazo se conta a partir do conhecimento da realização do ato impugnável quando o impugnante só teve conhecimento desse ato em tempo posterior à sua ocorrência?

Ao ponto de afastar a caducidade um conhecimento ocorrido, por exemplo, várias décadas após a data do ato impugnável, por só assim ficar adequadamente protegido o interesse do credor?

Ou, diversamente, expressou-se o legislador corretamente, ponderando todos os interesses relevantes em presença, ao aludir ao próprio ato impugnável como início do fixado prazo de caducidade de cinco anos?

Vejamos.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, há “uma diferença sensível” entre o texto do mencionado preceito do atual CCiv. “e o do artigo 1045.º do anterior Código”: «Agora estabelece-se um prazo de caducidade (e não de prescrição), sujeito, portanto, ao regime dos artigos 328.º e seguintes. Já, porém, no domínio do velho Código se entendia que, em rigor, deveria o prazo ser considerado de caducidade.» ([4]). E prosseguem os mesmos Autores:

«(…) o novo prazo, de cinco anos (era de um ano, no Código de 1867), conta-se, não a partir da verificação judicial da insolvência, mas a partir da data do acto impugnável. É mais lógico que assim seja. O prazo de um ano do antigo direito poderia transformar-se num prazo muito longo, tornando incerto, por muito tempo, o acto impugnável» ([5]).

No mesmo sentido se pronuncia M. J. Almeida Costa ([6]), salientando que a solução do Código anterior levava a que “pudesse prolongar-se demasiado tempo o estado de incerteza sobre o acto sujeito a impugnação, com prejuízo para a desejável segurança jurídica”.

Semelhante entendimento, perfilha Luís de Menezes Leitão, ao enfatizar que houve “significativa alteração de regime (…) em relação ao prazo de exercício da impugnação pauliana”, por comparação ao CCiv. de 1867. Neste âmbito, refere que essa “alteração é justificada uma vez que a solução anterior poderia prolongar por tempo excessivo a incerteza sobre o acto sujeito a impugnação”, concluindo que se trata de “um prazo relativamente longo, mas tal justifica-se uma vez que o seu início é fixado na data do acto impugnável (e não do seu conhecimento pelo credor) e, sendo o actual prazo de caducidade, em princípio não se suspende nem interrompe (art. 328.º).” ([7]).

Dúvidas não restam, pois, de dever o prazo de caducidade do art.º 618.º do atual CCiv. contar-se – de acordo com a melhor doutrina – a partir da data do ato impugnável, e não do seu conhecimento pelo credor.

Por isso se fixou um prazo relativamente longo de cinco anos, com início de contagem na data do ato impugnável, como expressamente consta da norma legal.

Assim se atendeu ao interesse do credor (estabelecendo-se, em seu benefício, um prazo alargado), mas também, por outro lado, ao interesse da certeza e segurança jurídicas, consabido poderem os adquirentes no ato impugnável entretanto ter transmitido o bem a outrem, que, por sua vez, pode já ter transmitido também.

Daí que os cinco anos do prazo se contem a partir da realização do ato impugnável, não relevando a data do conhecimento desse ato pelo credor.

A interpretação pretendida pelos AA. poderia deixar incerto o ato impugnável por várias décadas, até que o credor tomasse conhecimento do ato de transmissão, com prejuízo para os eventuais terceiros sucessivos adquirentes, que podem estar de boa-fé.

Quer dizer, estabelecido um prazo legal alargado, protegido fica, de forma adequada, o interesse do credor, que deve adotar uma posição ativa – em vez de se remeter a uma postura de longa passividade quanto ao seu crédito – na defesa dos seus interesses creditórios, havendo, a partir daí, de proteger-se os interesses contrapostos ligados à certeza e segurança jurídicas, designadamente os interesses de terceiros adquirentes.

Doutro modo, poderia – na interpretação por que se batem os AA./Recorrentes – pretender-se exercer o direito de impugnação várias/muitas décadas após a realização do ato impugnável, prolongando por tempo intoleravelmente excessivo a incerteza sobre o ato sujeito a impugnação, em claro prejuízo de terceiros que poderiam ver os seus interesses sacrificados quando já não era de esperar uma reação do credor.

Em suma, não se vê que o legislador se tenha equivocado ao estabelecer o termo inicial do prazo de caducidade em questão, antes tendo procedido a uma equilibrada ponderação de interesses, que a solução legal consagra, termos em que não seria adequado nem defensável optar pela pretendida interpretação extensiva da norma sob análise.

No mesmo sentido também se vem pronunciando a jurisprudência, podendo mencionar-se, inter alia, os arestos citados na decisão recorrida.

Assim, o Ac. TRL de 05/05/2016 ([8]), em cujo sumário pode ler-se:

“- O prazo da caducidade do direito de impugnação pauliana, que a lei fixa como ocorrendo ao fim de cinco anos, conta-se a partir da data da celebração da respectiva compra e venda, não podendo o autor invocar o facto de o referido registo ter sido efectuado em data posterior ou a falta de conhecimento anterior da existência da referida escritura pública de compra e venda.

- De outro modo, seria permitir a alegação de um fundamento que se traduziria num verdadeiro prolongamento do prazo de caducidade, prolongamento que a lei não consente, pois estabelece no artigo 618º do Código Civil que os cinco anos para a caducidade do direito de impugnação são contados da data do acto impugnável e não da data do conhecimento desse acto”.

E, igualmente, o Ac. STJ de 29/05/2007 ([9]), segundo o qual o prazo de cinco anos, durante o qual é possível ao credor impugnar o ato celebrado em seu prejuízo, conta-se sempre a partir da data da sua celebração – ainda que o ato impugnado esteja sujeito a registo, o prazo de cinco anos da caducidade da pauliana conta-se a partir da celebração do ato e não da sua inscrição no registo ([10]).

Resta, então, concluir que, tendo o ato sob impugnação tido lugar em 05/06/2006 e vindo a ação de impugnação pauliana a ser intentada apenas em 30/05/2019, é manifesto que caducou o direito dos aqui AA./Recorrentes, como sentenciado pela 1.ª instância, por terem decorrido muito mais de cinco anos desde a prática do ato impugnável.

Donde que, salvo sempre o devido respeito, nada haja a censurar à decisão recorrida, a dever, por isso, ser mantida, improcedendo as conclusões dos Apelantes em contrário.

                                                 ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

O prazo de caducidade de cinco anos para o exercício do direito de impugnação pauliana conta-se, como expressamente refere o art.º 618.º do CCiv., a partir da data do ato impugnável, não consentindo essa norma interpretação extensiva, no sentido de tal prazo só correr a partir da data do conhecimento do ato pelo credor.

                                                 ***

V – Decisão
Pelo exposto, julgando-se improcedente a apelação, mantém-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos AA./Apelantes.

                                                 ***
Coimbra, 17/03/2020

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Em 30/05/2019 (cfr. fls. 29 do processo físico).
([2]) De impugnação pauliana.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Dispunha o mencionado art.º 1045.º do CCiv. anterior que ocorria prescrição se a ação não fosse intentada dentro de um ano a contar da verificação judicial da insolvência do devedor.
([5]) V. Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed. revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 636.
([6]) Cfr. Direito das Obrigações, 11.ª ed. revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 2008, p. 875.
([7]) V. Direito das Obrigações, Vol. II, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 313, com itálico aditado.
([8]) Proc. 2201-14.5TBVFX-A.L1-8 (Rel. Ilídio Sacarrão Martins), em www.dgsi.pt.
([9]) Proc. 07A1374 (Cons. Azevedo Ramos), em www.dgsi.pt.
([10]) Podendo ler-se na respetiva fundamentação jurídica: «Com efeito, o art. 618 do C.C. estabelece que o direito de impugnação pauliana caduca ao fim da cinco anos, contados da data do acto impugnável. // Atentos os prejuízos que a impugnação pauliana causa aos credores do adquirente e considerada mesmo a relativa severidade do seu regime em face dos próprios adquirentes, a impugnabilidade do acto caduca decorrido o prazo de cinco anos. // A relativa extensão deste prazo, quando comparada com o prazo de um ano, aplicável à anulação do acto com base em erro, dolo ou coacção, é compensada com a circunstância da sua contagem se fazer a partir da data do acto impugnável. // Outra era a solução fixada no art. 1045 do C.C. de Seabra, onde se estabelecia o prazo de um ano. // Tal prazo contava-se, não da data do acto, mas do momento da verificação judicial da insolvência do devedor, o que podia permitir que se tornasse muito prolongada a situação de incerteza em torno do acto impugnável.».