Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4054/11.6TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO POR USUCAPIÃO
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
CONCEITO JURÍDICO
JUÍZO DE PROPORCIONALIDADE ACTUALIZADO
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1569.º/2 DO CÓDIGO CIVIL E 2279.º DO CÓDIGO DE SEABRA
Sumário: 1 - A desnecessidade capaz de conduzir à extinção da servidão (que tenha sido constituída por usucapião ou legalmente) tem de ser objectiva do prédio dominante; mas não tem forçosamente que resultar duma alteração verificada em momento superveniente à respectiva constituição e que tenha retirado toda e qualquer a utilidade à servidão.

2 - Embora seja imanente e essencial à servidão que a mesma traga proveito ao prédio dominante, esse proveito pode não se justificar face à dimensão do encargo que resulta para o prédio serviente e à utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante; nesta hipótese, há que efectuar um juízo de proporcionalidade actualizado sobre os interesses em jogo e caso haja alternativa – caso, com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, esteja garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente – deve permitir-se a extinção, por desnecessidade, da servidão.

3 - Não basta pois (para a extinção da servidão por desnecessidade) que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que esse outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não desproporcionalmente agravadas.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... e esposa B..., residentes na Rua (...), Coimbra, intentaram a presente acção declarativa, com a forma sumária (agora, forma única) do processo comum, contra o Condomínio do prédio sito na Rua C..., Coimbra (representado pela administradora D...), E... solteiro, maior, D..., divorciada, F...e G...e esposa H..., todos residentes na Rua (...), Coimbra, pedindo que:

1) Sejam os réus condenados a reconhecer que os autores são os legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano descrito no art. 1.º da p.i.;

2) Seja declarada extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem de pé antes identificada, nomeadamente no art. 16.º da p.i., constituída por usucapião sobre o referido prédio urbano propriedade dos autores a favor do prédio identificado em 2 e 3 da p.i.;

3) Sejam os réus condenados a reconhecer que têm possibilidade de acesso igualmente cómodo para as fracções autónomas e logradouro comum do prédio identificado nos art.. 2 e 3, da p.i., através da entrada/porta localizada na fachada principal do mesmo, localizada a norte junto à via pública;

4) sejam os réus condenados a reconhecer que o exercício da servidão de passagem a pé sobre o prédio dos autores tem inconvenientes para o prédio destes e que a extinção traz vantagens para o mesmo prédio; e

5) absterem-se de passar pelo prédio dos autores.

Alegaram para tal, em síntese, que por sentença homologatória de transacção de 28/03/2008, transitada em julgado, proferida em processo anteriormente havido entre as partes, foi reconhecida, sobre o prédio dos AA. e a favor do prédio dos RR., a existência duma servidão de passagem a pé corporizada numa faixa de terreno com o comprimento de 12 m e a largura de 2,10 m no topo sul dessa faixa e de 3,15 m. no seu topo norte; servidão essa que, segundo razões aduzidas pelo AA. e em termos conclusivos, não é necessária, uma vez que o prédio dos RR. confina directamente e em excelentes condições de utilização, a norte, com a via pública, junto à qual se localiza o acesso principal ao prédio dos RR..

Os RR. contestaram, invocando, no essencial, que as circunstâncias que conduziram à realização da transacção em 2008 e ao reconhecimento da servidão de passagem se mantêm, não tendo ocorrido qualquer facto superveniente a justificar a pretendida extinção da serventia[1].

Concluem pois pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador – em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa e instruído o processo.

Após o que, realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que julgou totalmente procedente a acção.

Inconformados com tal decisão, interpõem os RR. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que não declare extinta, por desnecessidade, a servidão.

Terminam a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. Em causa está uma servidão de passagem, entre o prédio dominante dos Réus/apelantes e o prédio serviente dos Autores.

2. Servidão essa alvo de acção judicial, que correu termos no 3º Juízo Cível de Coimbra sob o n.º 3254/07.8TJCBR, onde os ora Réus eram ali Autores e pretendiam ver a mesma reconhecida e constituída por usucapião.

3. Acontece que o referido processo findou com acordo entre as partes, homologado pelo juiz.

4. É entendimento consensual que a transacção judicial tem a mesma força que uma sentença judicial, residindo a diferença no disposto na mesma, que, naquela situação, reflecte a vontade das partes, sem interferência exterior.

5. Por conseguinte, as servidões constituídas por acordo gozam de natureza peculiar que advém desta forma de constituição, o que se reflecte na sua forma de extinção.

6. Deste modo, não podem as servidões constituídas por acordo ser extintas por desnecessidade.

7. Ainda que assim não se entenda, a desnecessidade não se verifica in casu.

8. A servidão em causa é a forma de acesso, às fracções e ao logradouro do prédio a que aquelas pertence, mais rápida, cómoda, útil e vantajosa, sendo de uso reiterado à vista de todos.

9. Não obstante a existência de outra forma de acesso ao referido logradouro, que sempre existiu, conhecida à data da transacção, o certo é que a servidão é a via mais fácil, cómoda, objectivamente mais prática, menos penosa.

10. É por ali que os condóminos habitualmente acedem às suas fracções, bem como as suas visitas e até o padeiro.

11. É também por ali que descarregam material de construção, quando necessitam fazer obras nas suas habitações.

12. É ainda ali que armazenem e arrumam mobílias de maior porte, mercadorias e outros bens insusceptíveis de armazenar nas suas fracções, quer por questões de espaço, quer de facilidade e arrumação.

13. É ali que se encontram lavadouros e estendais de roupa, necessários e essenciais à vida doméstica.

14. Lançando mão do princípio da proporcionalidade, não se vislumbra qualquer alteração fáctica entre a presente actualidade e a data de celebração da transacção judicial, muito menos com relevo significativo que implique a desnecessidade da servidão de passagem.

15. A referida servidão não representa qualquer prejuízo, desvantagem ou incómodo para os Autores.

16. A prova pericial revelou sem margem para questões que o trajecto a realizar através da servidão é o mais curto e com menor número de obstáculos.

17. Os depoimentos colhidos em sede de audiência são unânimes no que toca ao uso constante da servidão e suas vantagens objectivas.

18. Face à prova produzida, tudo apontaria para uma decisão em diferente direcção à escolhida, mais, com o devido respeito, adequada às exigências da situação em mãos.

19. Desta forma, deve a acção ser julgada improcedente por não provada (…)

Os AA. responderam, defendendo a manutenção do decidido.

Terminam a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 – A servidão em causa nos presentes autos não foi constituída por acordo/transação, mas sim constituída por usucapião e reconhecida posteriormente no âmbito do processo n.º 3254/07.8TJCBR., que correu termos no 3.º juízo cível de Coimbra, por via de transação homologada em sentença, conforme resulta dos próprios termos da transação – “Autor e réus reconhecem que, sobre o prédio identificado na alínea B) dos Factos Assentes está constituída… uma servidão de passagem….” – e conforme é reconhecido pelos próprios apelantes nas suas alegações – “Não obstante a mesma ter sido inicialmente constituída por usucapião…Dúvidas não há que a servidão foi reconhecida pelas partes”!

2 – No presente caso entre as partes foi reconhecida a existência de uma servidão de passagem, cuja constituição se deveu ao reconhecimento (entre as partes) da ocorrência de atos de posse, alegados na providência cautelar, na causa de pedir e no pedido no âmbito do respetivo processo, atos esses mantidos ao longo dos tempos e representativos do exercício desse direito de passagem – trata-se do reconhecimento da existência de uma servidão voluntária de passagem, adquirida por usucapião, nos termos dos artigos 1287.º, 1543.º; 1544.º, 1547.º, 1548.º à contrário e 1550.º, à contrário, todos do Código Civil.

3 – Assim sendo e nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 1569.º do C.C., a servidão em causa nos presentes autos, constituída por usucapião, podia ser judicialmente declarada extinta, como foi, desde que se mostrasse, como se mostrou, desnecessária ao prédio dominante.

4 – Apesar de, normalmente, a situação jurídica de desnecessidade resultar duma alteração das circunstâncias do prédio dominante, nada impede que essa situação já ocorresse no momento da constituição da servidão por usucapião, e nada justifica que, nesses casos, o proprietário do prédio serviente não possa requerer a extinção de um encargo para o seu prédio que não tem justificação2.

5 – Efetivamente, o próprio texto do 1569.º, n.º 2 do Código Civil ao utilizar a expressão se “mostrem” desnecessárias, em vez de se “tornem” desnecessárias, confirma que a desnecessidade da servidão pode e deve ser avaliada e sopesada quer seja originária quer seja superveniente à luz da realidade objetiva actual.

6 – Para que o tribunal a quo pudesse julgar não preenchido o requisito da desnecessidade da servidão deveriam os apelantes ter impugnado a decisão relativa à matéria de facto, mais concretamente a matéria de facto contida nos transcritos pontos 49 e 50, tudo nos termos do artigo 640.º do C.P.C.

7 – Ao não impugnarem a matéria de facto contida nos referidos pontos 49 e 50 da matéria assente, os ora apelantes aceitaram que a acessibilidade às frações e ao logradouro pela porta principal tem as mesmas ou melhores condições do que pela serventia e que acedem por esta apenas por hábito ou por gosto, não podendo, agora, pretender que o tribunal ad quem julgue necessária a servidão de passagem em causa nos presentes autos.

8 – A desnecessidade de uma servidão corresponde a uma falta de justificação objetiva para a manutenção de um encargo para o prédio serviente, atenta a inutilidade ou escassa utilidade que a existência da servidão representa para o prédio dominante;

9 – A presente servidão não possui qualquer utilidade para os ora apelantes, porquanto: Podem aceder às suas habitações e ao respetivo logradouro através da porta principal em condições iguais ou ainda melhores do que pela serventia, sendo certo que a porta principal e as portas da frente e traseiras das habitações, que dão acesso ao logradouro, são mais largas do que a serventia que tem um “s” de 90 graus (sendo muito mais simples acederem ao tal logradouro pela porta das traseiras do que dar toda a volta apenas para irem pela serventia no caso de estarem dentro das suas habitações);

As portas viradas a sul das quatro frações autónomas propriedades dos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º réus permitem a entrada e saída, de forma cómoda, de quaisquer objetos ou materiais, mesmo dos mais volumosos e em melhores condições funcionais e de manobra do que a porta lateral existente no alçado lateral ao qual se acede através da mencionada servidão de passagem a pé (conforme ficou provado, nos pontos 42 a 44), não constando da matéria assente que fossem armazenadas mobílias, mercadorias ou outros bens insuscetíveis de armazenar nas suas frações nos arrumos que justifiquem a utilidade da serventia

10 – A presente servidão causa elevados prejuízos aos autores/apelados, não só porque o seu prédio fica devassado e o seu uso e fruição limitados – com a consequente desvalorização do mesmo –, mas também devido aos maus tratos constantes a que são sujeitos pelos 3.º, 4.º e 5.º réus, quando fazem uso da dita faixa de terreno, com consequências graves ao nível da saúde e bem-estar dos autores, até porque, conforme ficou assente no ponto 39), “entre os autores e os 3.º, 4.º e 5.º réus existe um clima de má vizinhança derivada da existência da servidão de passagem”.

11 – O acesso direto e de dimensões razoáveis (superiores à da serventia) da porta principal, que confronta com a via pública, torna objetivamente, atendendo ao princípio da proporcionalidade, desnecessária a serventia que passa pelo prédio dos apelados e o desvaloriza, sendo que a existência de más relações de vizinhança por causa dessa passagem em nada também abona a sua manutenção.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II. – Fundamentação de Facto:

Estão provados os seguintes factos:

1) Os autores são os únicos donos e os legítimos possuidores do prédio urbano a confrontar de norte com estrada pública, sul com serventia, nascente com S (...) e poente com herdeiros de (...), inscrito na respectiva matriz sob o artigo x(...), da freguesia de S. Martinho do Bispo, e descrito na 2ª Conservatória do R.P. de Coimbra sob o nº y(...)/20070515.

2) Na referida estrada pública situa-se um outro edifício para habitação, composto de rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, que se encontra inscrito na respectiva matriz sob o art. w(...), da freguesia de S. Martinho do Bispo, e descrito na 2ª C.R. Predial de Coimbra sob o nº k(...)/19960211.

3) Nas traseiras situadas a sul deste prédio, referido em 2), localiza-se o respectivo logradouro, que abrange os estendais, os arrumos e os lavadouros.

4) O prédio descrito em 2)e 3) confronta a norte com a estrada nacional, a nascente com GG.. (actualmente com o prédio dos autores supra descrito na alínea A.), a sul com serventia pública e a poente com herdeiros de M (... ).

5) O prédio encontra-se constituído sob o regime de propriedade horizontal, sendo composto por quatro fracções autónomas destinadas a habitação e designadas pelas letras “A”,”B”,”C” e “D”.

6) Os réus segundo, terceiro, quarto e quinto são os titulares a favor de quem se encontram inscritas as referidas fracções autónomas, seus atuais proprietários e condóminos.

7) A fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo, do prédio identificado nas alíneas B. e C., é propriedade do segundo réu, filho dos autores, E....

8) A terceira ré, D..., é dona e legítima possuidora da fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra “B”, correspondente ao rés-do-chão direito do prédio identificado nas alíneas B. e C..

9) A quarta ré F...é dona e legítima possuidora da fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra “C”, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio identificado nas alíneas B. e C..

10) Sendo esta última a actual administradora do primeiro réu, Condomínio do Prédio sito na Rua C...Casais do Campo (fracção C).

11) Os quintos réus, G...e esposa H..., são donos e legítimos possuidores da fracção autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar direito do prédio identificado nas alíneas B. e C..

12) O prédio propriedade dos autores confronta a poente com o prédio identificado nas alíneas B. e C..

13) Encontrando-se a respectiva estrema assinalada pela linha recta, que passa pelos pontos assinalados com as letras “A e B”, no croqui junto aos autos como doc. 5, a fls. 41.

14) Os dois referidos prédios confrontam a norte com a estrada nacional (EN 110-2) alcatroada e que permite o trânsito automóvel e de peões nos dois sentidos.

15) Por sentença datada de 28-03-2008, transitada em julgado e proferida no âmbito da acção sumária nº 3254/07.8TJCBR, que correu termos no 3º Juízo cível de Coimbra, foi homologada transacção celebrada entre os autores e o primeiro réu Condomínio.

16) Nos termos da qual as partes reconhecem que, encostada à parede nascente do edifício supra identificado nas alíneas 2) e 3) e sobre o prédio dos ora autores, supra identificado na alínea 1), se encontra constituída a favor do dito prédio supra identificado nas alíneas 2) e 3) “ uma servidão de passagem a pé, corporizada numa faixa de terreno com o comprimento de 12 metros e a largura de 2,10 metros no topo sul dessa faixa e de 3,15 metros no seu topo norte”.

17) Comprometendo-se os ali réus, ora autores, a manter a dita faixa de terreno, que se encontra assinalada com as letras “C e D” no croqui junto aos autos como doc. 5, a fls. 41, limpa e desobstruída de quaisquer obstáculos ao exercício de passagem.

18) Da transacção supra referida ficou também a constar que, se os condóminos do prédio supra identificado nas alíneas 2) e 3), os ora segundos, terceiros, quatros e quintos réus tiverem necessidade de fazer passar na dita servidão objectos como lenha, peças de mobiliário e materiais de construção, os ali réus, ora autores, não se opõem a que façam passar na serventia veículos motorizados precedendo prévia autorização deles réus (ora autores).

19) A referida servidão parte da estrada nacional, com a qual confrontam a norte os dois prédios urbanos, conforme pontos assinalados com as letras “A e C” no croqui junto aos autos como doc. 5, a fls. 41.

20) A servidão prolonga-se ao longo da confrontação poente do prédio dos autores com o prédio dos réus, orientada no sentido norte/sul, até aos pontos assinalados com as letras “D e E” no croqui junto aos autos como doc.5, a fls. 41.

21) Encontrando-se implantado no topo norte dessa faixa, junto à estrada pública, um portão de ferro.

22) Encontrando-se implantado no topo sul da dita faixa de terreno um outro portão em ferro, mais alto.

23) Junto ao topo sul da dita faixa de terreno (assinalado com as letras “D e E” no croqui junto aos autos como doc. 5, a fls. 41), na parede nascente do edifício descrito nas alíneas B. e C. que confina com a descrita servidão de passagem a pé, encontra-se uma porta lateral com cerca de 90 cm de largura (porta que se encontra assinalada com a letra “E” no croqui junto aos autos como doc. 5, a fls. 41), que deita directamente sobre a referida faixa de terreno.

24) Porta a partir da qual se desenvolve um corredor com cerca de 75 cm de largura em toda a sua extensão (que se encontra assinalado com as letras “F e G” no croqui junto aos autos como doc. 5, a fls. 41), o qual se situa já no prédio supra identificado nas alíneas 2) e 3) e que dá acesso ao logradouro do dito prédio sito nas traseiras do mesmo.

25) A dita porta lateral permite apenas uma passagem a pé por parte dos réus proprietários das fracções autónomas que compõem o prédio supra identificado nas alíneas 2) e 3).

26) No fim do referido corredor existem alguns degraus de acesso ao logradouro sito nas traseiras de tal prédio.

27) A dita servidão de passagem a pé, e que se encontra constituída sobre o prédio dos autores a favor do prédio supra identificado nas alíneas 2) e 3), não é único acesso a este último.

28) A entrada principal do prédio descrito nas alíneas 2) e 3) deita directamente para a estrada pública, com a qual o prédio confronta a norte (ponto assinalado com a letra “H” do croqui junto aos autos como doc. 5 a fls. 41).

29) Tendo essa porta cerca de 95 cm de largura e aí se iniciando um corredor de acesso às fracções autónomas com a medida de 1,18 m de largura.

30) A entrada principal (referida na alínea BB) dá acesso directo das quatro fracções autónomas do prédio supra identificado nas alíneas 2) e 3), propriedade dos segundos, terceiros, quatros e quintos réus, à via pública.

31) No final do corredor interior que dá acesso directo às fracções dos réus (mencionado no ponto 4. da inspecção ao local) existem quatro degraus de acesso ao patamar de descanso das fracções dos r/c (esq. e dt.).

32) O acesso às fracções do 1º andar (esq. e dt.) faz-se através dos dezasseis degraus, intervalados, entre pisos, com um patamar de descanso.

33) Cada fracção, do prédio identificado em 2., tem na parte virada a sul uma porta que dá acesso directo às traseiras do dito prédio e, assim, ao respectivo logradouro comum com os estendais, arrumos e lavadouro aí situados.

34) Entrando pela porta principal, os 2º e 4º réus (r/c esq. e 1º andar esq.), para irem para a cozinha, têm de passar pelo hall de entrada, seguida de uma sala e, só então, se chega à cozinha (pontos 7. e 9. da inspecção ao local).

35) Entrando pela porta principal, os 3º e 5º réus (r/c dt. e 1º andar dt.), para irem para a cozinha, têm de passar pelo hall de entrada, viram à esquerda e, só então, chegam à cozinha (pontos 8. e 10. da inspecção ao local).

36) Ou seja, os 2º, 3º, 4º e 5º réus têm de atravessar várias divisões da respectiva fracção, não só para acederem à cozinha, como também às traseiras do prédio identificado em B. e, assim, ao respectivo logradouro comum.

37) A porta lateral, existente na parede nascente do edifício descrito em 2) e 3), e que dá acesso a um estreito corredor, que, por sua vez, finda no logradouro comum do prédio dos réus, é efectuado num ângulo de 90º.

38) Os autores acedem à sua garagem e ao logradouro sito nas traseiras do seu prédio, que cultivam e onde têm animais domésticos, através da faixa de terreno supra referida.

39) A servidão de passagem constituída a favor do prédio dos réus e que onera o prédio serviente dos autores deverá ser mantida sempre limpa e desobstruída de obstáculos.

40) É pela mencionada entrada principal e pela serventia referida em 16) que os réus, bem como os respectivos familiares, amigos e demais pessoas que frequentam as suas habitações, entram e saem diariamente, com qualquer tipo de bagagem, sacos de compras e demais mercadorias.

41) Antes da construção do prédio referido em 2), onde os 2º, 3º, 4º. e 5ºs. réus hoje habitam, existiam três casas antigas que, na parte de trás, onde agora se situa o logradouro desse prédio, com os estendais, arrumos e lavadouros, mantinham animais em currais, sendo pela dita serventia (referida em 16)) que tal gado passava.

42) Por ocasião da construção desse prédio (descrito em 2) e 3)), foi pela porta que constitui a entrada principal do mesmo e que deita para a via pública, assim como pela serventia mencionada em 16), que deram entrada os materiais de construção e demais máquinas e trabalhadores afectos aos trabalhos.

43) As portas viradas a sul das quatro fracções autónomas propriedades dos 2º, 3º, 4º e 5º réus permitem a entrada e saída, de forma cómoda, de quaisquer objectos ou materiais, mesmos dos mais volumosos.

44) E em melhores condições funcionais e de manobra do que a porta lateral existente no alçado lateral nascente do prédio descrito em 2), ao qual se acede através da mencionada servidão de passagem a pé.

45) O trajecto efectuado pela servidão até ao logradouro comum tem o comprimento de 25,50 metros; a distância entre a entrada da servidão e a porta principal é de 7,70 metros (v. fls. 265 e seguintes).

46) O prédio identificado em 2) teve outras duas entradas, a sul e pelo beco da padaria, mas que foram eliminadas antes dos 2º, 3º, 4º e 5ºs. réus começarem a habitar as respectivas fracções.

47) O referido em 38) constitui o único acesso dos autores a esses locais.

48) Entre os autores e os 3º, 4º e 5º réus existe um clima de má vizinhança derivada da existência da servidão de passagem identificada em 16).

49) A acessibilidade efectuada pelos 2º a 5º réus nos termos referidos em 30 a 36 permitem as mesmas ou melhores condições às respectivas fracções autónomas e ao mencionado logradouro comum.

50) Os 3º, 4º e 5ºs. réus também acedem ao prédio descrito em 2) pela serventia de passagem a pé, antes mencionada, por questões de hábito e/ou por gosto.

*

III – Fundamentação de Direito

A apreciação do recurso, delimitado pelas conclusões da alegação dos RR/apelantes (art. 635º/3 e 639º/1 do NCPC), centra-se, como não podia deixar de ser, sobre a questão da desnecessidade da servidão; declarada na sentença recorrida.

Sustentam os RR/apelantes que a “desnecessidade” não é motivo de extinção para a servidão em causa; e, ainda que assim não se entenda, que também não ficou demonstrada a sua “desnecessidade”.

Vejamos:

Quanto à 1.ª questão:

Segundo os RR/apelantes, a servidão de passagem em causa é uma servidão constituída por acordo/contrato e para poder ser extinta por desnecessidade teria que ser constituída por usucapião (ou legal, independentemente do título da sua constituição).

Não têm os RR./apelantes, antecipando a solução, qualquer razão.

É verdade – ponto em que assiste razão aos RR/apelantes – que as servidões constituídas por contrato não podem ser extintas por desnecessidade; é o que claramente resulta da economia do art. 1569.º/2 e 3 do C. Civil, reflectindo a “interpretação autêntica”, do Prof. Pires de Lima, nos trabalhos preparatórios: “ O n.º 2 (do art. 30.º do Anteprojecto) corresponde ao § único do art. 2279.º, introduzido em 1930. Nada tenho a dizer à doutrina em si, que se harmoniza com a ideia generalizada de que deve ser libertada a terra, sempre que possível. É certo que, com mais um passo, se englobariam na disposição todas as servidões prediais, qualquer que tenha sido o título constitutivo. No entanto, há uma certa diferença entre as servidões constituídas por prescrição ou por contrato. Nas primeiras foram os factos que as impuseram e são agora os factos que justificam a sua extinção; nas segundas há um acordo a respeitar e nem sempre se conhecem as razões que determinaram os interessados a aceitá-lo. Praticamente, a aplicação do princípio às servidões constituídas por contrato ou por testamento, seria negar o direito à sua constituição quando não fossem necessárias ao prédio dominante, já que, uma vez constituídas, podiam ser declaradas extintas, a todo o tempo, por vontade unilateral.”[2]

Sucede, porém – ponto em que não assiste razão aos RR/apelantes – que a servidão de passagem em causa não foi constituída por contrato.

O que aconteceu foi, bem diferentemente, que a servidão de passagem foi reconhecida pelos RR/apelantes numa transacção judicial (factos 15 e ss deste acórdão) obtida no início da audiência do julgamento de anterior acção havida entre as partes; anterior acção em que, consultando as suas peças (fls. 42 a 49), verificamos que os ali AA. (e aqui RR/apelantes) invocavam como modo de constituição da mesma a usucapião[3] e que, mais do que isto, apenas estava controvertida (entre as partes) a extensão da servidão, ou seja, findos os articulados, logo ficou assente (cfr. factos alíneas L) a O) dos factos assentes de tal anterior acção) que estava constituída a servidão de passagem por usucapião, circunscrevendo-se assim e em boa verdade a transacção, obtida e homologada, à mera definição do seu exacto conteúdo, extensão e exercício.

Dito de outro modo, em harmonia com a substância do anterior processo[4], a transacção da anterior acção limitou-se a, não ultrapassando o direito que ali estava controvertido, declarar/reconhecer a existência duma servidão de passagem já constituída por usucapião e a definir/concretizar o seu exacto conteúdo e extensão; daí que, como resulta da própria letra da transacção, se haja dito que “reconhecem (…) que está constituída (…) uma servidão de passagem de pé (…)” e não que constituem uma servidão de passagem de pé.

Em síntese, a servidão de passagem em causa, sobre o prédios dos RR. e a favor do prédio dos AA., embora reconhecida numa transacção judicial (e em definitivo assente entre as partes, por força do caso julgado material decorrente da sentença que homologou tal transacção), constituiu-se por usucapião, podendo assim ser extinta por desnecessidade.

Quanto à 2.ª questão:

Sustentam os RR/apelantes, como já se referiu, que não ficou demonstrada a “desnecessidade” da servidão de passagem reconhecida na transacção judicial acabada de referir.

Também aqui, a nosso ver e com o devido respeito, sem razão; embora, aqui, a solução, seja ela qual for, não seja juridicamente tão pacífica e indiscutível.

Vejamos:

Dispõe o artigo 1569º/2 do CC, que “as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”; acrescentando no seu n.º 3 que “o disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição (…)”.

Solução legal esta inteiramente compreensível.

Efectivamente, consistindo a servidão predial, segundo a noção dada pelo artigo 1543º do CC, “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (…)”, aumentando ou podendo aumentar o valor do prédio dominante, através do qual são gozadas as utilidades objecto da servidão, em detrimento do valor do prédio serviente (cfr. art. 1544º do C. C.), tornando-se desnecessária essa utilização, por razões ligadas à regular utilização do prédio dominante, é compreensível que a servidão possa/deva cessar.

Dito de outro modo, representando o encargo/servidão uma excepção ao princípio geral do conteúdo tendencialmente ilimitado do direito de propriedade (cfr. art. 1305º do CC), é compreensível que se extinga, enquanto excepção/compressão de tal princípio geral, se desnecessária, de molde a que o direito de propriedade retome a plenitude da sua vocação originária.

Enfim, o artigo 1569º/2 e 3 do CC parte da ideia[5] de que devem ser “libertados” os prédios onerados de encargos desnecessários que os desvalorizam, sem que, em contrapartida, valorizem o prédio dominante; considera que onde não há necessidade não se justifica o encargo, que, em princípio, é causa de prejuízos para o prédio serviente.

Ideia esta, da “desnecessidade”, que, enquanto causa de extinção de servidões, teve por fonte o § único (acrescentado pela Reforma de 16 de Dezembro de 1930) do art. 2279º do C. Civil de Seabra[6], não sofrendo, na passagem para o actual C. Civil, qualquer alteração conceitual; razão pela qual se mantém actual o estudo sobre a “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais” (publicado na Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Ano 1964), da autoria do Prof. Oliveira Ascensão, invariavelmente citado nos nosso tribunais quando uma questão de desnecessidade de servidão tem que ser apreciada e decidida.

E em que é consistia, para o Prof. Oliveira Ascensão, a desnecessidade?

Dizia ele: “a desnecessidade tem de ser objectiva, típica e exclusiva da servidão, não se confundindo com a desnecessidade subjectiva, que assentaria na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito. A servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta, graças a uma utilização "latu sensu" de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante surge-nos a figura da desnecessidade” (ob. citada, pág. 10). E continuando, acrescentava mais à frente: “a desnecessidade, que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança na situação, não no prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização, sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante.” (ob. citada, pág. 12).

Partindo daqui – e fazendo a exegese de tais ensinamentos – uma parte significativa da nossa jurisprudência[7] passou a considerar que a desnecessidade capaz de conduzir à extinção da servidão tem de se caracterizar por uma mudança objectiva no prédio dominante (em virtude da qual a servidão deixou de se revestir de qualquer utilidade para tal prédio dominante) e, além disto, de se verificar em momento posterior e superveniente à respectiva constituição.

Tese esta a que, com o devido respeito, não aderimos inteiramente.

Pelo seguinte:

Previa o já referido § único do art. 2279º do Código de Seabra – que, como já referimos, é a fonte do actual 1569.º/2 – três hipóteses em que a desnecessidade da servidão se podia verificar:por terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio, por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo”.

Hipóteses que o actual art. 1569º/2 deixou de prever, porém – é o ponto de partida do nosso raciocínio divergente com a referida corrente jurisprudencial – não o fez por entender que as mesmas não constituam casos de desnecessidade, mas sim, bem diferentemente, por entender que tal previsão se apresenta como redutora enquanto enumeração taxativa, e desinteressante, como indicação exemplificativa[8].

Ou seja, pode/deve continuar a considerar-se que se verifica a desnecessidade duma servidão (constituída por usucapião) se a utilidade que ela proporciona pode ser obtida por outro meio igualmente cómodo; a ratio legis – como resulta da transcrição efectuada – foi a de dar maior liberdade de apreciação aos tribunais e não a inversa; foi a de não espartilhar numa enumeração taxativa (como a do § único do art. 2279º do Código de Seabra) a apreciação dos tribunais.

Normalmente – não custa reconhecê-lo – a “desnecessidade” resultará duma alteração das circunstâncias do prédio dominante, porém, tal não pode/deve impedir, caso tal situação já ocorresse no momento da constituição da servidão por usucapião, que o proprietário do prédio serviente requeira a extinção de um encargo para o seu prédio que não tem justificação.

A desnecessidade, como causa ou fundamento da extinção da servidão – ponto em que se concorda com a corrente jurisprudencial citada – tem sempre que ser objectiva, típica e exclusiva do prédio dominante, não se confundindo com a desneccessidade subjectiva, que assenta na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito.

E será mesmo, via de regra, superveniente.

Porém, não tem que ser sempre superveniente, uma vez que o que a lei pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvedrio do julgador tal avaliação, segundo um juízo de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo.

Juízo de proporcionalidade que deve ser encontrado na ponderação das circunstâncias concretas de cada caso; na existência de alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, permite eliminar o encargo incidente sobre o prédio serviente, uma vez que, v. g., está garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente.

Antevê-se, naturalmente, ao que se acaba de dizer, a seguinte crítica:

A servidão predial, como já se referiu, pode ter como objecto quaisquer utilidades do prédio serviente; sendo essencial e imanente à servidão predial/real a possibilidade de essas utilidades serem gozadas por intermédio do prédio dominante e a este trazerem proveito.

E justamente porque é assim – por ter que haver utilidades do prédio serviente a ser gozadas por intermédio do prédio dominante e a este trazerem proveito – a válida constituição do tipo legal do direito de servidão supõe “ab initio” a “necessidade”, pelo que a “desnecessidade” (duma servidão validamente constituída) tem forçosa e logicamente que ser superveniente[9].

Trata-se, todavia, a nosso ver e com todo o respeito, duma crítica algo sofística.

As “utilidades” que preenchem o conteúdo atípico do direito real de servidão e que trazem proveito ao prédio dominante – proveitos que, como já referimos, não têm que ter natureza económica – nem sempre são estritamente indispensáveis e necessárias ao prédio dominante.

Casos semelhantes ao dos autos/recurso são disto elucidativos.

Recorrentemente, deparamo-nos nos processos com situações em que a servidão de passagem, constituída por usucapião, é a favor dum prédio que sempre confinou com estradas e caminhos[10].

Se os proprietários do prédio serviente se não opuseram à posse duma tal servidão durante o tempo que a mesma conduziu à usucapião – se apesar da existência de outros caminhos ou servidões consentiram na utilização do seu prédio para acesso ao outro – é porque entenderam ou admitiram que tal era útil e proveitoso ao prédio dominante.

Porém, uma coisa é a utilidade e o proveito (que o proprietário do prédio dominante entendeu e admitiu) e outra, diversa, a necessidade.

É susceptível de integrar o válido conteúdo duma servidão a “mera” utilidade (do prédio serviente a ser gozada por intermédio do prédio dominante); a “necessidade”, naturalmente e por maioria de razão, também integra o conteúdo válido duma servidão (em certos casos, até dá lugar à constituição coerciva da servidão), todavia, para o nosso raciocínio, interessa reter que basta a “mera” utilidade.

Efectivamente, não se vê como possa deixar de dizer-se, em relação a um prédio que, v. g., só tem um caminho/acesso, que o estabelecimento dum segundo caminho/acesso é algo que não é útil; não será porventura necessário – em face das circunstâncias concretas (do segundo caminho) pode nem ser muito vantajoso – mas inútil é que não se pode dizer que seja e, neste contexto, não parece que ela possa ser considerado inteiramente desnecessário e que se verifique uma “desnecessidade originária”.

Enfim – é onde pretendemos chegar – a “desnecessidade originária” (que conduz à nulidade do acto constitutivo da servidão por violação do princípio da tipicidade) não pode ter o mesmo recorte conceitual da “desnecessidade”, como causa de extinção das servidões, prevista no art. 1569.º/2 do C. Civil; aquela tem que ser mais severa e exigente e exprimir uma ideia de total e absoluta inutilidade e esta, sim, “contentar-se” e “ficar-se” por uma ideia de dispensabilidade.

Por outras palavras, se se pode constituir por usucapião um caminho/servidão que não é totalmente necessário e imprescindível ao prédio dominante, não se deve depois exigir, na apreciação da sua extinção, a sua total inutilidade; e muito menos circunscrevê-la à que for superveniente (à constituição da servidão), pois que, naturalmente, se “ab initio” não é totalmente necessário, será sempre difícil divisar e destrinçar a parte da desnecessidade que resulta e é reportável ao seu recrudescimento superveniente.

É justamente por tudo isto que não aderimos à tese da desnecessidade da servidão ter forçosamente de radicar numa alteração objectiva verificada em relação ao prédio dominante após a constituição da servidão e de molde a retirar-lhe toda a utilidade.

Embora uma servidão traga proveito ao prédio dominante – é este o seu requisito existencial – esse proveito pode não se justificar face à dimensão do encargo que resulta para o prédio serviente e à utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante

E, nesta hipótese, quando alguém adquiriu, por usucapião, um direito de servidão sobre outro prédio em que a sua utilidade não justifique esse encargo, deve ser concedido, ao proprietário do prédio onerado, o direito de requerer a extinção de tal encargo, por desnecessidade deste; desnecessidade, como fundamento da extinção da servidão, que deve assim aferir-se em relação ao momento da introdução da acção em juízo (ao momento do exercício do direito potestativo extintivo).

Repetindo o que supra se escreveu[11], o que a lei pretende é uma ponderação actualizada da necessidade do encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvedrio do julgador tal avaliação, segundo um juízo de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo; em que devem ser ponderadas as circunstâncias concretas de cada caso, a existência de alternativa que sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante – na medida em que esteja garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente – permite eliminar o encargo incidente sobre o prédio serviente.

O que significa que não basta (para a extinção da servidão por desnecessidade) que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que este outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não, desproporcionalmente, agravadas.

É no fundo, encurtando palavras e razões, algo semelhante à 3.ª hipótese prevista no § único do antigo art. 2279º do Código de Seabra, isto é, a desnecessidade da servidão verifica-se por “o proprietário dominante poder fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo”.

E, revertendo aos autos/recurso, é justamente este o caso.

Resulta da descrição factual sobre o conteúdo, extensão e modo de exercício da servidão o que, em síntese e como epílogo (de tudo o que antes se havia factualmente descrito), se fez constar do facto 49, isto é, que “a acessibilidade efectuada pelos 2º a 5º réus nos termos referidos em 30 a 36 (ou seja, por dentro das fracções dos RR.) permitem as mesmas ou melhores condições às respectivas fracções autónomas e ao mencionado logradouro comum”.

Aliás, o essencial da referida descrição factual é o mero registo em linguagem verbal escrita do que as fotografias juntas aos autos espelham[12], ou seja, que o prédio dos RR. (um edifício para habitação, em propriedade horizontal, com um logradouro nas traseiras) tem uma entrada/porta para a estrada principal (a norte) a meio do mesmo (fotografia de fls. 57), situando-se/iniciando-se a servidão nessa mesma estrada principal, na estrema nascente do prédio dos RR. e a 7,70 metros da referida entrada/porta (fotografia de fls. 50), desenvolvendo-se então no sentido norte/sul durante 12 metros sobre os prédio dos AA (junto à estrema poente deste) até que, no seu topo sul encontra a porta lateral (fotografia de fls. 51) com cerca de 90 cm de largura, a partir da qual, já no prédio dos RR., se desenvolve num corredor com cerca de 75 cm de largura em toda a sua extensão (fotografia de fls. 52 e 53), que dá acesso ao logradouro nas traseiras do prédio dos RR.; porta lateral que dá aceso ao referido corredor num ângulo de 90.º, permitindo apenas que se passe a pé[13].

Efectuando-se pois a avaliação/ponderação, em termos de comodidade, entre tal concreta servidão e o acesso que os RR. também têm ao logradouro por dentro das suas próprias fracções.

Razão pela qual, com o devido respeito, não vemos qualquer diferença significativa entre a servidão e o acesso interior; não vemos senão vantagens (na servidão) que sejam insignificantes e, para tal insignificantes vantagens, existe uma alternativa (para o prédio dominante) sem ou com um mínimo de prejuízo para este.

Efectivamente, analisando os factos provados e olhando para as fotografias de fls. 51 a 53, a ideia segura com que se fica é que o modo como a servidão se exerce se assemelha, em termos funcionais, ao acesso por dentro das fracções; uma vez que se inicia (já no prédio dos RR.) com um cotovelo de 90.º e percorre depois um estreito corredor com 75 cm de largura.

Daí que – após se dizer que as portas viradas a sul (viradas para o logradouro) das fracções autónomas permitem a entrada e saída, de forma cómoda, de quaisquer objectos ou materiais, mesmos dos mais volumosos – se tenha dado como provado que tais portas permitem melhores condições funcionais e de manobra do que a porta lateral existente no alçado lateral nascente do prédio dos RR., ao qual se acede através da mencionada servidão de passagem a pé.

Sendo certo, quanto à comodidade/incomodidade decorrente duma maior distância a percorrer, que também a resposta não desfavorece o acesso interior; uma vez que ambos os acessos se desenvolvem em linha recta, de forma paralela, a uma distância relativa de 7,70 metros; não favorecendo a comodidade da servidão o maior número[14] de degraus existentes no acesso interior (designadamente, para as duas fracções do 1.º andar).

Naturalmente, em linha com o que em tese supra se expôs e defendeu, não se diz e conclui que a servidão seja de todo inútil para o prédio dos RR.; é – poderá ser – sempre útil ter um segundo acesso (e não apenas um único acesso), haverá sempre um dia em que se trazem objectos que podem sujar o interior das fracções e, então, será útil ter um acesso exterior disponível.

Só que, insiste-se, não é este o nosso ponto de vista sobre o juízo a fazer sobre a “desnecessidade”, enquanto causa de extinção de servidão.

A nosso ver, repete-se, uma servidão pode trazer proveito ao prédio dominante, mas a manutenção desse proveito, pela sua exiguidade, pode não se justificar, em face do encargo que resulta para o prédio serviente e da utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante; nesta hipótese, quando a utilidade não justifica o encargo, a servidão pode/deve ser extinta por desnecessidade[15].

Como? Efectuando-se a ponderação actualizada da “necessidade” de tal servidão, ponderando todas as circunstâncias concretas do caso, designadamente, se existe uma alternativa que garanta uma acessibilidade, com idêntica comodidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente, deve ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente

Foi o que acabou de ser feito.

Como se escreveu no Ac desta Relação de 15/05/2005, “(…) estando em causa uma restrição ao exercício tendencialmente pleno do direito real de propriedade, como acontece com o encargo decorrente duma servidão de passagem, não se nos afigura correcta uma interpretação da norma do art. 1569°, de que resulte que a mesma seria aplicável apenas aos casos em que a servidão perdeu toda e qualquer utilidade para o prédio dominante. (…) A compressão de cerne de qualquer direito, v. g. de um direito real de gozo, só deverá em princípio considerar-se legítima até onde o "sacrifício", ónus ou encargo imposto sobre a coisa se revele necessária para assegurar a terceiro uma fruição "normal" do seu próprio direito; não assim se tal sacrifício se revelar exorbitante ou anómalo, face ao quadro objectivo de circunstâncias que em dado momento se verifique. O que a lei no fundo pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvedrio do julgador avaliar se no momento considerado - e segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo - haverá ou não outra "alternativa" que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente”.

É, insiste-se, o caso dos autos/recurso.

A vantagem/utilidade que a servidão confere ao prédio dominante (dos RR.), em face da existência de outro acesso identicamente cómodo, não legitima que se mantenha a compressão/sacrifício que a servidão representa para o prédio dos AA..

Sendo assim, havia, como fez a sentença recorrida, que declarar extinta por desnecessidade a servidão (descrita nos factos 16 e ss.), o que, conduzindo à procedência da acção, leva, em consequência, à total improcedência do presente recurso dos RR..

*

IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelos AA/apelantes.

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Coimbra, 13/05/2014

(Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)

[1] “Pedem” também que os AA. sejam condenados em multa e indemnização como litigantes de má fé; ao que os AA. responderam. “Pedido” que não deu lugar a uma específica apreciação na sentença recorrida, o que, porém, não faz parte da divergência recursiva dos RR..
[2] Cfr. Anteprojecto (ao actual C. Civil) das Servidões Prediais (Bol. 64, pág. 34/5).
[3] Ou seja, a questão em apreciação encerra um evidente “venire contra factum proprium” dos aqui RR/apelantes; que, na anterior acção, invocavam a usucapião como modo de constituição da servidão e que, aqui e agora, vêm argumentar que foi por acordo – por contrato de transacção – que a mesma se constitui.
[4] Em harmonia com as posições processuais assumidas no anterior processo.
[5] Expressa na transcrição a seguir efectuada da nota oficiosa do Min. da Justiça.
[6] Dizia-se na nota oficiosa do Min. da Justiça, relativa ao Dec. n.º 19.126 que se “tem em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias ou impraticáveis que desvalorizam os prédios servientes sem que valorizem os prédios dominantes.”

[7] Cfr., v. g., Ac. Rel. Coimbra de 25/10/1983, in CJ, Tomo IV, pág. 62/4; Ac. Rel. Porto de 07/03/1989, in CJ, Tomo II, pág. 189/90; Ac. Rel. Coimbra de 30/01/2001; Ac. Rel. Coimbra de 13/06/1995, in CJ Online, Ref. 10847/1995; Ac. Rel. Coimbra de 16/04/2002, in CJ Online, Ref. 8625/2002; Ac. Rel. Coimbra de 20/04/2010, in CJ Online, Ref. 3241/2010; Ac. Rel. Porto de 26/11/2002, in CJ Online, Ref. 6952/2002; Ac. Rel. Évora de 22/09/2011, in CJ Online, Ref. 8753/2011.

[8] São disto elucidativas as palavras do Prof. Pires de Lima, no Anteprojecto (do actual C. Civil) das Servidões Prediais (Bol. 64, pág. 34/5): “Na redacção deste artigo omiti as 3 hipóteses previstas na parte final do § único do art. 2279.º - « ou por terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio, ou por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo». Como enumeração taxativa, parece-me perigosa a especificação; como enumeração exemplificativa, deixa de ter interesse, e é preferível que os tribunais gozem de maior liberdade de apreciação”.

[9] Se há desnecessidade originária – dizem, v. g. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, pág. 511/2; Alberto Vieira, Direitos Reais, pág. 852; e Carvalho Fernandes, Direitos Reais, pág. 457 e 470 – nunca esta funcionará como causa de extinção da servidão, uma vez que, antes disso, haverá nulidade do acto constitutivo da servidão (enquanto direito real) por violação do princípio da tipicidade.

[10] Com o que, sublinha-se, não temos em vista dizer e concluir – longe disso – que basta a existência de um caminho (ou outra servidão) a dar acesso ao prédio dominante para se julgar extinta, por desnecessidade, uma determinada servidão de passagem.

[11] E que corresponde ao que vemos defendido, v. g., no Ac. STJ, de 27-5-99, in BMJ nº 487, pág. 313 e ss.; no Ac. STJ de 21/03/2013, in CJ Online, Ref. 1489/2013; no Ac. Rel. Coimbra de 06/12/2005, in CJ Online, Ref. 8198/2005; e no Ac. Rel. Coimbra de 15/05/2005, in CJ Online, Ref.. 8004/2005
[12] Os RR/apelantes aludem, nas suas alegações, ao conteúdo de depoimentos testemunhais, todavia, não impugnam a decisão de facto; uma vez que não dizem em momento algum quais os factos que foram mal fixados, as razões do erro de julgamento e o que, em substituição, devia ter sido dado como provado. Mas, verdadeiramente, ainda que o fizessem, seria bastante inútil; uma vez que a descrição factual da extensão e modo de exercício da servidão é algo que resulta objectivamente da inspecção ao local (fls. 205/6), das diversas fotografias juntas e do exame pericial.

[13] Aliás, a servidão reconhecida na anterior acção é apenas uma “servidão de passagem a pé”; e se calhar – não passa duma conjectura – nem terá sido exactamente assim que a posse que conduziu ao direito de servidão (e que justificou a não oposição dos donos do prédio serviente) se iniciou, a julgar pelo facto de se haver dado como provado (facto 41) que “antes da construção do prédio onde os réus hoje habitam, existiam três casas antigas que, na parte de trás, onde agora se situa o logradouro desse prédio, com os estendais, arrumos e lavadouros, mantinham animais em currais, sendo pela dita serventia que tal gado passava”; se calhar até temos aqui – embora isto não tenha sido alegado/invocado pelos AA/apelados – a mudança objectiva e superveniente no prédio dominante, isto é, cessou a utilidade/necessidade que era gozada por intermédio do prédio dominante – deixou de haver currais no prédio dominante e deixou de haver a passagem dos animais (que, naturalmente, não passariam por dentro das 3 casas) e a utilidade/vantagem conferida pela servidão ao prédio dominante.
[14] Dizemos maior número, uma vez que na servidão também há degraus – cfr. fotografia de fls. 51 e facto 26.
[15] A utilidade consistente em evitar o transporte de coisas (de quando em vez) que possam sujar o interior das fracções não justifica, só por si, que se mantenha a servidão.