Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2057/16.3T9STR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
INDICAÇÃO DAS QUESTÕES RELEVANTES À INVESTIGAÇÃO
Data do Acordão: 11/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JI CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 271.º DO CPP
Sumário: I - Na tomada de declarações para memória futura, o juiz não está vinculado a qualquer delimitação do objeto feito pelo Ministério Público.

II - O juiz está vinculado aos factos fornecidos pelos autos, a investigar, que se indiciam e que constituem o objeto da investigação.

III - Sendo permitido ao Ministério Público, aos mandatários, do assistente e das partes civis e ao defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.


I

1. Nos autos de processo (inquérito) supra referenciados, o Ministério Público requereu que se tomem declarações para memória futura a A... , nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos:

“Nos presentes autos, o arguido B... está indiciado da prática de crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171.°, n.º 1 e não[1] 2 do Código Penal.

De acordo com o art. 271°, nº 2 do CPP, no caso de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.

Assim, em face do supra exposto, atendendo aos factos denunciados, ao resultado das diligências de inquérito já levadas a cabo, à idade da vítima e considerando que o bem jurídico protegido pela incriminação do artigo 171º, nº 1, do CP é precisamente a liberdade de autodeterminação sexual da criança, isto é, do menor de idade, considera-se encontrarem-se reunidos os requisitos da tomada de declarações para memória futura, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 271°, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal. Afigurando-se ser necessário, desde já, a tomada de declarações à mesma, o que assim se requer, remeta os autos ao Meritíssimo JIC, nos termos do disposto no artigo 271°, n°s 1 e 2, 269°, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, com a proposta que se tomem declarações para memória futura a A... , a qual deverá ser questionada sobre a factualidade constante do relatório policial de fls. 39 a fls. 43, bem como a constante do relatório pericial constante de fls. 73 a fls. 82.

*

2. Por despacho judicial de 14.9.2017, foi esta diligência indeferida, sendo o seguinte, o teor do despacho então proferido:

“O Ministério Público veio requerer que se proceda à tomada de declarações para memória futura à ofendida A... a qual nasceu no dia 13 de Abril de 2005, contando actualmente com 12 anos de idade.

 De acordo com a promoção do M.P. investigam-se nestes autos factos susceptíveis de integrarem em abstracto a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nº. 1 do Código Penal, sendo suspeito da prática de tais factos B... , o qual não foi  ainda constituído como arguido nos presentes autos.

            Requer o M.P. que a menor seja questionada sobre a factualidade constante no relatório policial de fls. 39 a 43, bem como sobre a factualidade constante no relatório pericial de fls. 73 a 82. Ora de acordo com o disposto no art. 271º, nº. 1 do CPP “ 1 – Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos caso de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o Juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.”

 Nos termos do nº. 2 da mesma disposição legal “ 2 - No caso de processo por crime  contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à  inquirição  do ofendido, no decurso do inquérito, desde que a vitima não seja ainda maior”.

            O carácter excepcional da tomada de declarações para memória futura advém do facto de a prestação das mesmas constituir uma excepção ao princípio constitucional da imediação. 

            A tomada de declarações para memória futura tem natureza excepcional e só deve ser determinada quando se encontrem verificados os pressupostos legais da diligência.

A circunstância de ainda não haver constituição de arguido não invalida só por si a realização da diligência promovida, uma vez que a sua realização é presidida pelo Juiz de instrução e na sua realização deverá ser assegurado o contraditório possível com a presença do defensor nomeado.

 No entanto e para que tal contraditório seja assegurado e a diligência assuma utilidade, tendo em vista a recolha de prova e a necessidade de evitar que a menor seja sujeita a vários interrogatórios, impõe-se que o objecto da diligência se encontre minimamente determinado, nomeadamente por referência aos factos em investigação, às circunstâncias de tempo e lugar em que os mesmos ocorreram, ao grau de participação nos mesmos por parte do suspeito, mesmo que essa referência seja feita em termos genéricos face ao estado actual da investigação e se ainda não for possível a sua concretização.

            Do relatório policial constante de fls. 39 e ss elaborado pelo inspector da polícia judiciária consta uma descrição das diligências já realizadas no inquérito, sendo feito um resumo das declarações prestadas pelas testemunhas já inquiridas.

            Tendo por fundamento os depoimentos já prestados é sugerido que se proceda à realização de exame pericial a incidir sobre a personalidade da menor e que a mesma preste declarações para memória futura.

            O exame pericial constante de fls. 74 e ss apresenta uma descrição da avaliação feita à menor e do seu percurso de vida, com referência a alguns episódios relacionados com a investigação em curso, sendo que com base nessa análise foram elaboradas pelo perito médico as conclusões que constam de fls. 80 a 81.

Do exposto resulta que para a realização da diligência promovida se impõe que previamente o MP determine o objecto da diligência a realizar, indicando as questões que importa colocar à menor e que assumam relevância para a investigação em curso.
         Resulta do que se deixa exposto que essa determinação não se encontra feita.

Pelo exposto entende-se que não se encontram reunidas as condições para que se proceda à realização da diligência nos termos em que a mesma foi promovida, razão pela qual se indefere a sua realização, sem prejuízo de nova ponderação caso o MP indique os factos sobre os quais deverá incidir o depoimento da menor e susceptíveis de integrarem a prática do crime em investigação.


**

         Notifique e após devolva ao DIAP competente”.

3. Deste despacho judicial recorre o Ministério Público que formula as seguintes conclusões:

1. A Meritíssima Juiz de Instrução Criminal devolveu os autos ao Ministério Público, na sequência do despacho do Ministério Público de 11.09.2017 que requereu a tomada de declarações para memória futura à menor A... , vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, por falta de descrição da factualidade integradora do crime de abuso sexual de criança, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 171°, n.º 3, alínea, a) e 177°, n.º 1 alínea. a), ambos do Código Penal, e que deveria ser objeto da tomada de declarações para memória futura,

2. O Ministério Público discorda desta decisão, por considerar, em suma que nos inquéritos em que esteja em causa o cometimento de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores a tomada de declarações para memória futura do(a)(s) ofendido(a) (s) menor(es) é obrigatória, desde que ainda não tenha(m) atingido a maioridade (conforme estabelece o artigo. 27 1°, n.º 2 do Código de Processo Penal), sendo tal diligência de inquirição realizada pelo Juiz de Instrução, e limitando-se o Ministério a formular perguntas adicionais (cfr. artigo. 271°, n.ºs 1, 2 e 5 do Código de Processo Penal);

3. A falta de tomada de declarações para memória futura do menor constitui uma nulidade sanável ao abrigo do disposto no artigo 120°, n.º 2 alínea. d) do CPP, por se tratar de ato legalmente obrigatório do inquérito;

4. Encontram-se reunidos nos autos indícios da prática pelo suspeito, contra a ofendida menor, de crimes de abuso sexual de crianças na forma agravada, p. e p. pelos artigos 17 1°, n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Penal, não tendo, ainda, a ofendida atingido a maioridade, pelo que estão cumpridos todos os requisitos legais para que seja deferida a tomada de declarações desta

5. Não podia a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal fundamentar a decisão recorrida com base no pressuposto de que no requerimento do Ministério Público não é descrita factualidade que possa ser configurada como integradora do tipo legal indicado;

6. O artigo. 271° do Código de Processo Penal não prevê qualquer conteúdo obrigatório quanto ao requerimento do Ministério Público, para declarações de memória futura, (diferentemente do que sucede com a acusação), bastando que seja o mesmo fundamentado, de facto e de direito, de acordo com o previsto no artigo. 97°, n.º 5 do CPP;

7. Quem deve delimitar o objeto e formular perguntas é a M. Juiz de Instrução. Aliás, esclareça-se, da conjugação dos artigos 271º, n.º 4 do CPP e do artigo 349.° do mesmo diploma legal, compete ao Presidente (in casu Juiz de Instrução) inquirir as testemunhas menores de 16 anos, findas as quais, os jurados, o Ministério Público, o defensor, advogados dos assistentes e das partes civis, podem pedir esclarecimentos, formulando perguntas adicionais.

8. O requerimento apresentado pelo Ministério Público, encontra-se suficiente e devidamente fundamentado, tanto do ponto de vista factual, de facto e de direito (artigos 171°, n.º 3 alínea, a) e 1770, n.º 1 alínea a) do Código Penal e 271º, n.ºs 1 e 2, e 269°, n.º 1 alínea. f) do Código de Processo Penal).

8. Ao decidir como decidiu, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 48°,
1200, n.º 2 alínea. d), 262°, n.º 1, 263°, n.º 1, 267°, 269°, n.º 1, alínea. 1), 271°, n.ºs 1, 2 e
5 do CPP, e o artigo. 32°, n.º 5, Constituição da República Portuguesa.

Termos em que, deverão V. Exas. julgar procedente o presente recurso e, por via dele, revogar
a decisão de que ora se recorre e ordenar a prolação de nova decisão que ordene a tomada de
declarações para memória futura da menor A... , ao abrigo dos artigos
2710, n.ºs 1 e 2 e 269°, n.º 1 alínea. f), ambos do Código de Processo Penal, sobre a factualidade
relatada no relatório policial de fis. 39 a 43, bem como considerando o teor do relatório pericial de lis.
73 a fls. 82, assim se fazendo melhor JUSTIÇA!

4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido que o recurso deve ser provido.         

            6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.


II

            Questão a apreciar:

            A necessidade ou obrigatoriedade legal, de o Ministério Público, no seu requerimento, indicar as questões que importa colocar à menor e que assumam relevância para a investigação em curso, sob pena de não serem tomadas as declarações para memória futura.

                                                          


III

Cumpre apreciar:

1. Em processo penal vigora o princípio da imediação. Pelo que só excecionalmente as declarações de uma testemunha devem ser prestadas fora da audiência de julgamento – artigo 318º, do Código de Processo Penal.

Do mesmo modo, também a prestação de declarações de testemunha para memória futura, reveste natureza excecional, tendo que se verificar os requisitos do artigo 271º, do mesmo diploma legal.

Ora, a verificação destes requisitos, não está em causa nem foi suscitada/questionada na decisão recorrida.

Outrossim, a decisão recorrida reconhece e afirma todos esses requisitos:

Reconhece desde logo que esta tomada de declarações para memória futura tem natureza excecional.

E reconhece ainda que:

- A ofendida A... nasceu no dia 13 de Abril de 2005, contando atualmente com 12 anos de idade.

- De acordo com a promoção do M.P. investigam-se factos suscetíveis de integrarem em abstrato a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, nº. 1 do Código Penal[2].

Estes dois requisitos satisfazem desde logo as exigências do nº 2, do artigo 271º, do Código de Processo Penal[3].

Mais resulta dos autos e é afirmado no despacho que “é suspeito da prática de tais factos B... , o qual não foi ainda constituído como arguido”.

 Para logo de seguida concluir que “a circunstância de ainda não haver constituição de arguido não invalida só por si a realização da diligência promovida, uma vez que a sua realização é presidida pelo Juiz de instrução e na sua realização deverá ser assegurado o contraditório possível com a presença do defensor nomeado”.

Assim é, na verdade, segundo o nosso entendimento e da jurisprudência maioritária conhecida.

Sobre este aspeto, nas anotações ao artigo 271º, do Código de Processo Penal, no site da Procuradoria Distrital de Lisboa, pode ler-se nas orientações do Ministério Público resultantes da reflexão e conclusão do Encontro da Rede de Magistrados do MP dos Tribunais de Família e Menores de 27/11/2008:

“Ainda que alguns defendam posição contrária, conhece-se jurisprudência no sentido de que 'a tomada de declarações para memória futura pode ter lugar numa altura em que ainda não há arguido constituído '(cfr. ACRP de 01.02.06, P.0515949, Rel.:-Jorge França, disponível em www.dgsi.pt). Nesse sentido, cfr. também ACRP de 12.10.05 (P.0544648, Rel.:-Pinto Monteiro, disponível em www.dgsi.pt) e ainda ACSTJ de 19.04.99 (P.41 428-3ª.). Cfr. ainda, nesse sentido o ACRP de 13.07.05 (P.0540595, Rel.:-António Gama, disponível em www.dgsi.pt), sumariado no sentido de que 'É possível a recolha de declarações para memória futura mesmo que o inquérito não corra contra pessoa determinada', aí se sublinhando que 'O interesse na realização da justiça e a descoberta da verdade tem como consequência que, mesmo na hipótese de o inquérito correr contra pessoa ainda não determinada, tenha lugar e se leve a cabo a produção de prova para memória futura [Neste sentido Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 18 de Abril de 2001, CJ XXVI, Tomo II, pág. 228]'.

Acontece, na verdade, que 'a norma processual, como todas as normas de cariz adjectivo, é elaborada para a normalidade das situações, ou seja, no caso concreto, do conteúdo da norma em causa resulta que ela foi pensada para aqueles casos em que existe já arguido constituído. Dada a natureza excepcional da norma em questão, ( ), logo se constata que o que determina a possibilidade dessa valoração é a ocorrência de um periculum in mora que poderá levar à perda dessa prova - doença incapacitante ou ausência que se prevê se prolongue até ao julgamento' (cfr. referido ACRP de 01.02.06) ou, acrescentaríamos nós, a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi alvo, fortemente perturbadores da sua intimidade e integridade sexual”.

Esta posição é defendida também por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, em anotação ao respetivo artigo, fls. 702 (anotação 9), dizendo:

“Mas não é requisito da lei que o arguido esteja já indiciado ou acusado pela prática destes crimes. As declarações para memória futura podem ser prestadas quando não há ainda pessoa constituída como arguido ou nem todos os suspeitos estão constituídos como arguidos – ac. do TRL de 18.4.2001, CJ, XXVI, 2, 228”.

Também no Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros Conselheiros do STJ, 2014, Almedina, fls. 965, se afirma, na nota 15, que “ é admissível a diligência ainda que não haja arguido constituído e mesmo quando o autor do crime não tenha ainda sido identificado”.

Recentemente, pronunciou-se o Ac. do TRL de 04-05-2017, nestes termos:

I - Mesmo com a actual redacção do art.º 271º do CPP, a tomada de declarações para memória futura pode ser feita, verificadas determinadas circunstâncias ( nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste) antes de haver Arg. constituído, sem que isso ponha irremediavelmente em causa o direito ao contraditório, desde que ao Arg. seja posteriormente dada a real possibilidade de contraditar e/ou confrontar o autor de tais declarações”.

Sendo esta a posição dominante, todavia uma exigência é fundamental, a observância e o respeito pelo contraditório que, não havendo ainda  arguido constituído, dever ser assegurado por defensor e, posteriormente, nomeadamente em audiência de julgamento, já com a presença daquele.

2. Sobre este aspeto do contraditório refere a decisão recorrida:

“No entanto e para que tal contraditório seja assegurado e a diligência assuma utilidade, tendo em vista a recolha de prova e a necessidade de evitar que a menor seja sujeita a vários interrogatórios, impõe-se que o objecto da diligência se encontre minimamente determinado, nomeadamente por referência aos factos em investigação, às circunstâncias de tempo e lugar em que os mesmos ocorreram, ao grau de participação nos mesmos por parte do suspeito, mesmo que essa referência seja feita em termos genéricos face ao estado actual da investigação e se ainda não for possível a sua concretização.

Do exposto resulta que para a realização da diligência promovida se impõe que previamente o MP determine o objecto da diligência a realizar, indicando as questões que importa colocar à menor e que assumam relevância para a investigação em curso.
         Resulta do que se deixa exposto que essa determinação não se encontra feita.

Pelo exposto entende-se que não se encontram reunidas as condições para que se proceda à realização da diligência nos termos em que a mesma foi promovida, razão pela qual se indefere a sua realização”.

3. É esta, pois, a questão essencial do objeto do recurso.

É reconhecido e aceite que a tomada de declarações para memória futura a menor em crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, pretende evitar que a menor seja sujeita a vários interrogatórios.

Segundo o ac. do TRL de 30-06-2011,

“A admissão de declarações para memória futura, no caso previsto no nº2, do art.271, do Código de Processo Penal, visa a protecção do menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, poupando-o ao trauma de reviver vezes sem conta os acontecimentos e ao constrangimento inerente à solenidade e formalismo de uma audiência de julgamento”.

E também se aceita (sendo mesmo exigido), que para o efetivo exercício do direito ao contraditório pelo arguido, da diligência, o mesmo é dizer, da tomada de declarações para memória futura, juntamente com outros ou demais elementos de prova do processo, se descrevam e imputem as “circunstâncias de tempo e lugar em que os mesmos (factos) ocorreram e ao grau de participação nos mesmos por parte do suspeito

O que não pode é o Sr. Juiz de instrução fazer depender a tomada de declarações para memória futura à menor, da indicação de todo esse circunstancialismo pelo Ministério Público, indeferindo a diligência se o Ministério Público não o fizer. Como foi o caso.

Desde logo, como bem aponta o recorrente, este não é um requisito legalmente exigido.

Não o exige o artigo 271º do Código de Processo Penal nem qualquer outra disposição legal.

“A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais”, dispõe o nº 5 do artigo 271º.

Se assim dispõe este preceito para as situações nele abrangidas que se estende ao depoimento não só de menor mas também de maiores - nas outras situações previstas - , também nos termos do artigo 349º, do Código de Processo Penal, esta inquirição teria que ser obrigatoriamente feita apenas pelo Juiz Presidente (devendo adaptar-se esta norma quer aos julgamentos com intervenção do juiz singular quer a outro atos processuais, fora do julgamento, como é o caso desta tomada de declarações).

É certo que vigora na nossa lei o principio do acusatório (artigo 32º, nº5, da CRP), estando o Juiz vinculado à alegação dos factos pela acusação. É o designado princípio da vinculação temática, com aplicação não só nas situações de abertura de instrução pelo assistente quando o Ministério Público não deduz acusação, arquivando os autos bem como em fase de julgamento – neste, sempre sem prejuízo do recurso a eventual alteração substancial ou não substancial dos factos, dos artigos 358º e 359º, do Código de Processo Penal.

  O principio do acusatório tem reflexos visíveis na exigência do ter da acusação, estipulando o nº 3, do artigo 283, co Código de Processo Penal, o que deve conter, sob pena de nulidade. Entre tais elementos, contam-se:

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis;

Mas o processo de inquérito está numa fase de investigação ainda sem arguido constituído e sem a dedução da acusação e, como já se afirmou, esta tomada de declarações, reveste natureza excecional.

E se o nº 5 do artigo 271º possibilita ao Ministério Público, advogados do assistente e das partes civis e ao defensor, formular perguntas adicionais, significa desde logo que quem dirige a inquirição, é o Juiz. De onde se pode/deve inferir que o juiz não está vinculado a qualquer delimitação do objeto feito pelo Ministério Público para a tomada de declarações.

O juiz está, outrossim, vinculado aos factos fornecidos pelos autos, a investigar, que se indiciam e que constituem o objeto da investigação. Mas para deles ter conhecimento efetivo não necessita da “muleta” do Ministério Público. Ainda que por meio de referência feita em termos genéricos.

Do mesmo modo que este Tribunal de recurso tem acesso aos elementos dos autos, de onde constam as diligências essenciais,  também o tribunal recorrido o tem. Em maior amplitude, diga-se, pois a certidão remetida não integra o relatório policial constante de fls. 39 e ss elaborado pelo Sr. Inspetor da Polícia Judiciária onde consta uma descrição das diligências já realizadas no inquérito, sendo feito um resumo das declarações prestadas pelas testemunhas já inquiridas.

Constando, todavia, a comunicação ao Ministério Público da CPCJ de da (...) e o depoimento de algumas testemunhas já ouvidas.

De entre elas destacam-se:

E... , professora de educação visual na Escola EB 2,3 e Secundária da (...) , que a dado momento declara:

Esclareceu então que nas férias do Natal de 2015, quando se encontrava na casa da sua mãe, juntamente com a sua irmã F... , o padrasto costumava ir ter consigo à cama e mexia-lhe na zona genital.

 Perante isto, a depoente pediu-lhe que esclarecesse melhor o que se tinha passado e então ela disse que tal acontecia pela manhã, quando a mãe ainda estava deitada na cama e ele se levantava, antes de ir para o trabalho, ia ao seu quarto e a empurrava contra a parede e depois lhe mexia, enfiando “os dedos nos buraquinhos”.

 Segundo a A... , ele apenas lhe enfiava um dedo na vagina, fazendo-o por vários dias, não conseguindo especificar quantas. Referiu que ele nunca fez isso á irmã. A A... contou que ele nunca a ameaçou que lhe fazia mal se contasse a alguém. Disse que contou isso á mãe e que esta ralhou com o B... , dizendo-lhe para não voltar a fazer mais aquilo. Ficou com a ideia que a mãe não ficou muito zangada, mas que apenas ralhou com ele.

A A... teve esta conversa na frente da madrasta, voltando a manter tal conversa algumas semanas depois, confirmando os mesmos factos que foram coincidentes com o que anteriormente lhe tinha relatado”.
                        C... , companheira do pai da menor, D... , que afirma:

“Acerca dos factos em investigação nos presentes autos, disse que teve conhecimento dos mesmos em setembro de 2016, numa altura em que comprou umas argolas de prata para a A... e ela começou a chorar e a dizer que não queria usar argolas porque o B... também usava tais objetos e ela não queria ser como ele.

Nessa altura ela verbalizou-lhe que o B... lhe tinha mexido “com os dedos no pipi” e que lhe puxava o braço para tocar nele, mas que ela não o fazia, relatando também que ele a tentava beijar na boca. Segundo a A... tal passou-se mais que uma vez, mas não sabe indicar quantas vezes aconteceu. Não sabe indicar quando tal possa ter acontecido, uma vez que a A... não lho disse.

Para além desta ocasião, a A... nunca mais voltou a falar sobre estes assuntos com a depoente, apesar de já por várias vezes ter tentado abordar a situação com ela, mas verifica que a menina desvia a conversa e por isso, nada mais conseguiu saber do que se passou.

Sabe que a A... também verbalizou este assunto com a diretora de turma”. Por sua vez, resulta do exame pericial de fls. 74 e seguintes sobre a avaliação psicológica da menor, que esta tem capacidade para prestar depoimento e ainda que:

“Evidencia uma idade aparente compatível à sua idade real, com uma apresentação cuidada e com um discurso diferenciado, claro e organizado, pormenorizado e com comentários afetivos espontâneos no que diz respeito a dados do seu quotidiano. Na abordagem da temática abusiva demonstrou sentimentos de humilhação/vergonha, sem capacidade para conseguir controlar a instabilidade emocional.

- No que respeita à adaptação à realidade, situa-se no tempo e no espaço e demonstra ter conhecimentos adequados sobre a sua vida familiar, escolar e social. Não se observaram alterações ao nível do pensamento.

- Ao nível dos afetos, evidencia capacidade de reconhecer e exprimir emoções.

Quanto aos quesitos específicos, cumpre-nos referir:

- quesito 1: “avaliação dos alegados factos e da credibilidade do relato...;”

Procedendo a uma análise do relato da A... à luz dos indicadores de credibilidade salientados pela literatura (validade e veracidade das alegações), verificamos que aquele apresenta características encontradas em relatos verdadeiros”.

Finalmente, o próprio despacho recorrido reconhece que:

“Do relatório policial constante de fls. 39 e ss elaborado pelo inspector da polícia judiciária consta uma descrição das diligências já realizadas no inquérito, sendo feito um resumo das declarações prestadas pelas testemunhas já inquiridas.

            Tendo por fundamento os depoimentos já prestados é sugerido que se proceda à realização de exame pericial a incidir sobre a personalidade da menor e que a mesma preste declarações para memória futura.

            O exame pericial constante de fls. 74 e ss apresenta uma descrição da avaliação feita à menor e do seu percurso de vida, com referência a alguns episódios relacionados com a investigação em curso, sendo que com base nessa análise foram elaboradas pelo perito médico as conclusões que constam de fls. 80 a 81”.

                        Em suma, tem o Sr(a). Juiz a quo disponíveis e ao seu alcance todos os elementos para realizar a diligência. Sabendo-se que esta reveste natureza dinâmica, que apenas no momento, durante o próprio ato, se afigura esclarecer um ou outro facto relevante.

                        Ainda que o Ministério Público se tivesse disponibilizado a cumprir o desiderato do Sr. Juiz, tal indicação genérica não seria vinculativa, pois o Juiz tem poderes para, dentro do objeto processual em causa e a investigar, dirigir a inquirição segundo o seu melhor entendimento. E, como se afirmou já, no final, permitir ao Ministério Público, aos advogados do assistente e das partes civis e ao defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

V

Decisão

Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, decide-se revogar a decisão recorrida e determinar a prolação de nova decisão que ordene a tomada de declarações para memória futura da menor A... , nos termos decididos.

Sem tributação.

Coimbra, 22 de Novembro de 2017

(Luís Teixeira – relator)

(Vasques Osório – adjunto)


[1] Deve existir com certeza lapso, pretendendo-se dizer “e nº 2”.
[2] Sendo certo que o Ministério Público integra ainda os factos no disposto no nº 2, do preceito.
[3] Transcrito na decisão recorrida.


Ao Mm° JIC, Instância Central de Leiria, para apreciação”.