Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CHANDRA GRACIAS | ||
Descritores: | RELATÓRIO PERICIAL RECLAMAÇÃO SEGUNDA PERÍCIA INTEMPESTIVIDADE | ||
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Data do Acordão: | 06/24/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 149.º, N.º 1, 484.º, N.º 1, E 485.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
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Sumário: | I – Apresentado o relatório pericial, as partes têm a oportunidade processual de, caso entendam que o mesmo enferma de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, ou que as suas conclusões não estão devidamente fundamentadas, formular as suas reclamações em dez dias (arts. 149.º, n.º 1, 484.º, n.º 1, e 485.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil).
II – A reclamação ao relatório pericial não configura um pressuposto obrigatório e sem o qual não se pode pedir a realização de uma 2.ª perícia. III – É intempestivo o pedido de feitura de uma 2.ª perícia se o Recorrente a solicita quando sabe estarem em curso diligências para a obtenção de esclarecimentos ao (primitivo) relatório pericial. IV – Os argumentos literal, teleológico e sistemático das normas legais depõem neste sentido, bem como os princípios da economia, celeridade, concentração dos actos processuais e da proibição da prática de actos inúteis, os quais implicam que se aguarde pela completude do relatório pericial para só posteriormente se poder efectuar, a pedido ou ex officio, um juízo sobre a pertinência e/ou alcance de uma 2.ª perícia. V – Esta conclusão em nada colide com os direitos de defesa, na sua dimensão do direito à prova que não é um direito absoluto; com efeito, o Recorrente não viu o seu direito a requerer a realização da 2.ª perícia coarctado, apenas não o formulou no momento processual próprio. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação
Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Viseu/Juízo Local Cível de Viseu (J1) Recorrente: AA
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…)
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I. Em 12 de Setembro de 2022, BB e mulher, CC, propuseram acção declarativa visando a resolução do contrato de arrendamento e a restituição do locado, bem como o pagamento das rendas vencidas (Autos Principais[2]), contra AA, todos ali melhor identificados. Perante a redacção do Despacho Saneador[3], o R. pediu se efectuasse prova pericial e os AA. aceitaram-na, ainda que a tenham restringido parcialmente. Deferida, em 8 de Abril de 2024 junto o respectivo relatório, os AA. pediram esclarecimentos – os quais foram enquadrados pelo Tribunal –, respondidos em 15 de Maio subsequente. No entretanto, concretamente em 22 de Abril de 2024, o R. solicitou a realização de segunda perícia. Por último, tendo sido notificado dos esclarecimentos prestados, o R. impugnou o seu teor e pediu (novos) esclarecimentos.
Em 30 de Abril de 2024 foi proferido despacho com o seguinte teor relevante: «III.) Quanto ao pedido de segunda perícia solicitado pelo Réu: Ora, percorrido o teor do relatório pericial e embora se admita que carece de esclarecimentos o trabalho desenvolvido pelo Sr. Perito corresponde e responde aos quesitos formulados pelas partes e definidos pelo Tribunal, o que faz de forma justificada. Ademais, sem prestados quaisquer esclarecimentos, o pedido de segunda perícia é manifestamente extemporâneo e dilatório, pelo que vai julgado improcedente.».
II. Descontente, o R. interpôs Recurso de Apelação, contendo as suas alegações estas «CONCLUSÕES: (…)».
III. Por Acórdão de 14 de Janeiro p.p. foi deferida a reclamação apresentada pelo R., na sequência da prolação de Decisão Sumária, decidindo-se que o recurso relativo a segunda perícia é susceptível de apelação autónoma.
IV. Questão decidenda Independentemente da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil): - Do indeferimento do pedido para a realização de 2.ª perícia.
V. Dos Factos As circunstâncias processuais necessárias à boa decisão do recurso mostram-se elencadas supra.
VI. Do Direito A objecção oposta pelo Recorrente prende-se com o facto de entender ter legitimidade, ser tempestivo e estarem fundamentadas as razões da sua discordância com o relatório pericial, e que sustentaram o seu pedido para que fosse feita uma 2.ª perícia[4], sendo ainda certo que a lei não exige, como condição necessária ou indispensável para este pedido que, previamente, tenha havido dedução de reclamação contra o mesmo. Assim não tendo sido entendido, reputa que a interpretação do Tribunal a quo é materialmente inconstitucional (arts. 485.º, n.ºs 2 e 3, e 487.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil), afrontando os princípios da igualdade, da legalidade, do acesso ao direito, da boa-fé, da proporcionalidade e da confiança, com amparo constitucional.
Neste conspecto, extrai-se da decisão em crise que: «II) Quanto aos pedidos de esclarecimentos dos AA: Porque relevantes, deferem-se os pedidos de esclarecimentos 1 a 3 do requerimento de fls 111, indeferindo-se o ponto 4, por ultrapassar o âmbito e objeto da perícia, dos temas da prova e da relevância para a decisão da causa. III.) Quanto ao pedido de segunda perícia solicitado pelo Réu: Notificado de relatório pericial veio o Réu requerer uma segunda perícia alegando, em suma, que o Sr perito não deu resposta ao que lhe era perguntado, designadamente se o estado do locado resultou ou não de uma fruição normal, se por ações da natureza ou défices construtivos. Por outro lado, parece que resulta da perícia a existência de obras no locado. Contestaram os AA, argumentando que o pedido não está fundamentado que as dúvidas podem ser esclarecidas, o que nem sequer o R. solicitou. Concordamos com os Autores. Dispõe o art. 487.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que «qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado», continuando o n.º 2 que «o tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade» e, por fim, prevê o n.º 3 que «a segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta». Resulta do citado preceito que a realização de segunda perícia só deve ter lugar perante a alegação fundamentada das razões de discordância quanto à primeira perícia, exigindo-se que a parte concretize os pontos de facto que aquela primeira perícia não esclareceu e as razões pelas quais entende que o resultado deve ser diferente, justificando igualmente a possibilidade de uma distinta apreciação técnica, de modo a criar no julgador médio um estado de dúvida sobre se a perícia efetuada não padecerá dos vícios que o requerente lhe assaca, do ponto de vista objetivo e atentas as circunstâncias do caso concreto[5]. E isto de tal modo que caso os vícios invocados sejam efetivamente verificados seja alcançado resultado distinto da primeira perícia. Ora, percorrido o teor do relatório pericial e embora se admita que carece de esclarecimentos o trabalho desenvolvido pelo Sr. Perito corresponde e responde aos quesitos formulados pelas partes e definidos pelo Tribunal, o que faz de forma justificada. Ademais, sem prestados quaisquer esclarecimentos, o pedido de segunda perícia é manifestamente extemporâneo e dilatório, pelo que vai julgado improcedente. IV) Sem prejuízo, desde já se determina a comparência do Sr. Perito na audiência final, atento o disposto no art. 486.º do Código de Processo Civil. Para além disso, o tribunal pretende que o Sr Perito desde já complete / esclareça o seu relatório, para além das questões colocadas pelos AA, com as seguintes respostas: 1) No ponto 15.1, tal como no ponto 2.4 depreende-se que as patologias intrínsecas da fração estão relacionadas com a vetustez, ou seja, com a idade do prédio e da fração e desgaste natural 2) E as que estão relacionadas com a utilização são: - equipamentos da cozinha inoperacionais; - Quais equipamentos? Pode concretizar? - sinais severos se sujidade no pavimento – Pode concretizar que tipo e quantidade de sujidade? (não obstante as fotos juntas) - varandas inutilizadas – depósito de lixo – Consegue concretizar que tipo de lixo e sua proveniência? Acrescenta, depois, que a utilização descuidada acelera a degradação dos materiais e equipamentos, crendo que não será tecnicamente possível mensurar em que medida, mas poderá o Sr Perito pronunciar-se também. 3) No que respeita ao cálculo estimativo para a reparação, pretende-se que seja orçamentado individualmente cada um dos itens, incluindo o equipamento da cozinha que não consta da estimativa do ponto 17.1., sendo certo que o tribunal carece de valores que sejam, ou não, imputáveis ao arrendatário (má utilização) e não a um valor de reparação integral da fração dos AA. Notifique.». Em face do pedido e da causa de pedir que o alicerça e, bem assim, aos Temas da Prova enunciados no Despacho Saneador, resultou indiscutível para as partes e para o Tribunal haver necessidade da realização de prova – cf. arts. 341.º e 342.º, ambos do Código Civil, e 410.º e 411.º, ambos do Código de Processo Civil. Este direito à prova, indispensável à defesa da pretensão que se traz ou se contrapõe em juízo e para a obtenção da verdade material e justa composição do litígio, é corolário do direito à tutela jurisdicional efectiva, com respaldo no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa[6]. O art. 388.º do Código Civil define a prova pericial de acordo com um critério funcional, como aquela que tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (art. 467.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), ou quando os factos relativos às pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial. No caso em exame, apresentado o relatório pericial – art. 484.º, n.º 1 –, e as partes dele notificadas – art. 485.º, n.º 1 –, tiveram a oportunidade processual de, caso entendessem que o mesmo enfermava de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, ou que as suas conclusões não se mostravam devidamente fundamentadas, em dez dias, formular as suas reclamações – arts. 485.º, n.º 2, e 149.º, n.º 1. Quer o Tribunal, como os Recorridos, entenderam haver aspectos desse relatório a carecer de esclarecimentos, pelo que o perito foi instado para tanto. Ao invés, o Recorrente, notificado – seja do relatório pericial, seja do pedido de esclarecimentos – optou, desde logo, por pedir uma 2.ª perícia, fazendo-o em 22 de Abril de 2024, o que veio a ser indeferido por despacho que remonta a 30 de Abril seguinte. Os esclarecimentos foram carreados aos autos em 15 de Maio, após o que o Recorrente impugnou o teor destes e pretendeu novos esclarecimentos. Da letra da lei emerge que a 2.ª perícia: - tem por objecto os mesmos factos sobre que incidiu a 1.ª; - pressupõe que sejam alegadas, fundadamente, razões de discordância quanto ao relatório dessa 1.ª perícia; - visa corrigir eventuais inexactidões nos resultados da 1.ª perícia. A exigência legal da fundamentação das razões pelas quais a parte não se conforma com os resultados da (1.ª) perícia tem por base obviar a pedidos não sérios, irrelevantes ou inúteis, admitindo apenas aquelas em que o juízo de valor expresso no relatório não é satisfatório ou confiável[7]. Confrontando os termos do pedido para a realização da 2.ª perícia, acima reproduzidos, com o art. 487.º, n.º 1, conclui-se que não está em causa a legitimidade activa para a requerer ou o facto do Recorrente ter (ainda de forma mínima e não completamente densificada), indicado os fundamentos pelos quais dissentia do relatório pericial. Também lhe assiste razão quando afirma que a reclamação ao relatório pericial não configura um pressuposto obrigatório e sem o qual não se pode pedir a realização de uma 2.ª perícia. Não obstante, é um outro segmento que importa analisar e que é o da tempestividade do pedido, na medida em que o Recorrente peticionou a feitura da 2.ª perícia quando sabia estarem em curso diligências para a obtenção de esclarecimentos ao primitivo relatório pericial. Se, tal como sucedeu nos autos, «… tiver havido reclamação contra a primeira perícia, o prazo para requerer a segunda conta-se da notificação das respostas dos peritos, caso haja reclamação e esta seja atendida, ou da notificação do despacho que não atenda a reclamação (art. 485.º, n.º 3).»[8]. Tanto o argumento literal, como o teleológico, e ainda a inserção sistemática destas normas depõem neste sentido. Ademais, os princípios da economia, celeridade e concentração dos actos processuais implicam que se aguarde pela completude do relatório pericial para só posteriormente se poder efectuar, a pedido ou ex officio, um juízo sobre a pertinência e/ou alcance de uma 2.ª perícia (art. 487.º, n.º 1 e 2). Na verdade, não sendo lícita a prática de actos processuais inúteis (art. 130.º), em função destes esclarecimentos uma 2.ª perícia poderá deixar de fazer sentido, de todo em todo, ou implicar a diminuição da sua abrangência (inutilidade superveniente total ou parcial), ou, ainda, tornar-se uma manobra meramente retardatária dos trâmites processuais. Aliás, o Recorrente tem disto plena noção, por ter impugnado os esclarecimentos e até ter solicitado novos esclarecimentos, já depois de ter instaurado este recurso. Por conseguinte, conclui-se que o Recorrente ao atravessar o pedido para a realização da 2.ª perícia pecou por extemporaneidade, ex ante. Esta conclusão em nada colide com os direitos de defesa, na sua dimensão do direito à prova que não é um direito absoluto[9]. O Recorrente não viu o seu direito a requerer a realização da 2.ª perícia coarctado, apenas não o formulou no momento processual próprio. Esta específica restrição é constitucionalmente tolerada por não ser desproporcional, arbitrária ou desrazoável e serve o propósito do bom, prudente e célere funcionamento do sistema de justiça. Concomitantemente, não se detecta qualquer quebra da tutela da confiança com a qual o Recorrente pudesse legitimamente contar. Improcede desta forma o recurso.
Por ser parte vencida, o Recorrente responde pela satisfação das custas processuais (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
VII. Decisão: Com os argumentos referidos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente. O pagamento das custas processuais impende sobre o Apelante. Registe e notifique.
24 de Junho de 2025 (assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I., 2.ª Ed., p. 567. [7] Acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa, Proc. n.º 16129/18.6T8LSB-A.L1, de 14-09-2023, e no Proc. n.º 8170/21.8T8SNT-E.L1, de 22-06-2023, e da Relação do Porto, Proc. n.º 5818/17.2T8VNG-A.P1, de 27-01-2020. [9] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.º 5818/17.2T8VNG-A.P1, de 27-01-2020, e da Relação de Coimbra, Proc. n.º 780/11.8TBCVL-A.C1, de 26-02-2019. |