Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1496/22.5T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
FASE EXECUTIVA
COISA INDIVISÍVEL
INCIDÊNCIA DE PENHORAS SOBRE OS BENS A DIVIDIR
NÃO ADIAMENTO DA CONFERÊNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 20.º, DA CRP
ARTIGO 819.º, DO CPC
ARTIGOS 3.º, 3; 5.º, 3; 6.º, 1; 195.º, 1; 199.º, 1; 200.º, 3; 277.º, E); 279.º, 1; 735.º; 794.º, 1 E 4; 926.º; 929.º, 2 E 1110.º, 7, DO CPC
Sumário: 1. - Suscitada pelo tribunal, na fase executiva da ação de divisão de coisa comum indivisível, em conferência de interessados, e depois de ter deixado expresso ser inviável a obtenção de acordo – para efeitos de adjudicação –, a questão da (im)possibilidade de prosseguimento dos autos, por existência de penhoras a onerar os imóveis objeto da ação, tendo em conta o disposto no art.º 819.º do CCiv., o não adiamento de tal conferência, perante a falta de comparência, não justificada, de um dos dois interessados, não configura omissão de ato/formalidade processual, legalmente imposto, geradora de nulidade processual a que alude o art.º 195.º, n.º 1, do NCPCiv..
2. - Em tal caso, a expressa decisão de inviabilidade de obtenção de acordo consubstancia decisão implícita de afastamento do adiamento da conferência – de que poderia recorrer-se, em vez de arguir aquela nulidade processual –, pois não poderia, logicamente, dar-se o acordo como inviável e adiar-se o ato para obtenção desse acordo.
3. - Mesmo que assim não se entendesse, a arguição de nulidade processual teria de ser materializada na própria conferência de interessados (antes de esta findar), por a interessada arguente se encontrar presente no ato, acompanhada de mandatária, sob pena de sanação.
4. - Na situação aludida, com vista à subsequente prolação de sentença de extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, decorrente da existência daquelas penhoras, a obstaculizar a venda da coisa (dois imóveis), não tem o tribunal de voltar a ouvir os interessados sobre tal matéria se decidir, no plano de direito, no sentido de estar verificada aquela impossibilidade da lide, com base num fundamento jurídico a que as partes não aludiram, mas que estava subjacente à formulação da questão pelo tribunal, inexistindo, em tal caso, decisão-surpresa.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou ação especial de divisão de coisa comum contra

BB, também com os sinais dos autos,

pedindo nos seguintes termos:

«(…) deve a presente ação ser julgada inteiramente provada e procedente e, em consequência, proceder-se à adjudicação ou à sua venda dos seguintes imóveis:

i. Fração autónoma designada pela letra B do prédio sito na Rua ..., ... ..., descrito junto da Conservatória do Registo Predial, Comercial e Automóveis ... (Freguesia ...) sob o n.º ...70 e inscrito na matriz ...30.... A fração em causa corresponde ao rés-do-chão, o segundo no sentido nascente/ poente, de tipo T0, destinado a habitação e pertencendo-lhe um parqueamento na cave, designado pelo número 2, situado do lado norte, sendo o segundo no sentido nascente/ poente;

ii. Prédio urbano descrito como casa de habitação composta de r/c e 1º andar, tendo no r/c 3 assoalhadas, cozinha e casa de banho e despensa e no 1º andar 3 assoalhadas, cozinha e casa de banho, e barracão anexo amplo, descrito junto da Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19 e inscrito na matriz predial urbana da Freguesia ... ...31.».

Alegou, em síntese, que:

- os aludidos dois imóveis pertencem à Requerente e ao Requerido, em compropriedade, na proporção de ½ para cada um, por os terem adquirido enquanto viviam em união de facto, constituindo o segundo deles a anterior casa de morada da família e atual morada da Requerente e dos dois filhos de Requerente e Requerido;

- perante a separação de Requerente e Requerido, ocorrida em 2019, sem perspetiva de reatamento, a Requerente pretende pôr fim à compropriedade, embora sobre os imóveis – que não são suscetíveis de divisão – pendam hipoteca e penhoras;

- deve, pois, proceder-se à adjudicação ou venda dos dois imóveis, com chamamento dos credores para reclamação dos respetivos créditos.

Efetuada a citação do Requerido, não foi apresentada contestação.

Por isso, mediante despacho datado de 17/05/2023, foi:

- considerada assente a compropriedade dos dois imóveis, bem como o volume das respetivas quotas (½) e a sua indivisibilidade;

- designada data para conferência de interessados a que alude o art.º 929.º do NCPCiv., tendo «por finalidade o acordo dos interessados na respetiva adjudicação a algum deles, preenchendo-se em dinheiro a quota restante» ([1]).

A carta expedida para notificação do Requerido – dirigida para a morada onde foi realizada a respetiva citação pessoal ([2]) – foi devolvida com a menção de «Objeto não reclamado» e «Não atendeu» (fls. 26 do processo físico).

Em 29/06/2023, como designado, teve lugar a conferência de interessados, estando presente a Requerente e ausente o Requerido, perante o que o Tribunal exarou despacho nos seguintes termos:

«Atendendo à falta de comparência do requerido é inviável a obtenção de acordo.

Extraia e junte certidão de ónus e encargos com vista a aferir se os imóveis se mantêm onerados.

Notifique.».

Após, fez-se constar da ata de conferência de interessados o seguinte:

«Concedida a palavra à Ilustre Mandatária da requerente para se pronunciar quanto à possibilidade do prosseguimento dos presentes autos, atentas as penhoras que onerarão os prédios nos mesmos em causa e o disposto no art. 819º do CC, a mesma disse o seguinte:

Em relação às penhoras existentes dos prédios objeto dos presentes autos, é intenção da autora entrar em contacto com as entidades credoras no sentido de acordar no pagamento das respetivas penhoras, sendo também sua intenção nos presentes autos, a final, a venda do prédio sito na Freguesia ... a terceiros ou ao requerido se assim entender ficar com ele, e propor a compra do prédio sito em ..., uma vez que é a casa de morada de família, onde reside com os filhos, com entrega do valor que couber ao requerido.

Em seguida, a Mmª Juiz determinou que os autos aguardem a junção da certidão de ónus e encargos, declarando encerrada a presente diligência quando eram 14:40 horas.» (cfr. fls. 30 e v.º do processo físico).

Juntas certidões prediais, por sentença datada de 05/07/2023 foi assim decidido:

«Certidões Ref. 29.06.2023: Visto. Notifique as partes.

*

Atenta a falta de acordo quanto à adjudicação dos imóveis, importava fazer prosseguir o processo para a fase da venda (cfr. art. 929º, nº 2 do CPC), venda essa que nos termos do art. 549º, nº 2 do CPC é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução e precedida das citações ordenadas no art. 786º, observando-se quanto à reclamação e verificação de créditos as disposições dos artigos 788º e seguintes, com as necessárias adaptações.

Contudo, constata-se que os imóveis objecto da presente acção se encontram onerados com penhoras anteriores, estando, por isso, afectos à realização das finalidades das respectivas acções executivas (art. 735º do CPC).

Nos termos do art. 819º, nº 1 são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, pelo que, qualquer venda que venha a ser feita no âmbito dos presentes autos não impede o prosseguimento da execução onde a penhora foi feita tal como se os imóveis continuassem a pertencer aos executados.

Por outro lado, o art. 794º, nºs 1 e 4 do CPC determina que, havendo mais que uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, sendo que a sustação integral determina a extinção da execução. A lei manifesta assim o propósito de evitar que ocorram adjudicações e vendas dos mesmos bens em processos diferentes e de concentrar num único processo a determinação e graduação dos créditos garantidos por aqueles bens, com vista a acautelar os interesses dos devedores executados, credores e adquirentes dos bens.

O prosseguimento dos presentes autos com a venda dos imóveis, quando os mesmos estão penhorados no âmbito de execuções, levaria a que pudessem ocorrer reclamações dos mesmos créditos em vários processos, e adjudicações e vendas do mesmo bem a pessoas diversas, o que a lei quer evitar.

Face ao exposto, e em face das penhoras que oneram os prédios objecto da presente acção, julga-se existir impedimento ao prosseguimento do processo para a fase da venda e determina-se a extinção da instância por impossibilidade superveniente.

Custas pela requerente.

Registe e notifique.».

Inconformada com tal sentença, recorre a Requerente, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([3]):

«I. A requerente, ora recorrente, instaurou acção especial de Divisão de Coisa Comum.

II. Findo os articulados, e regularmente citado o Requerido, o Tribunal a quo procedeu à notificação das partes para Conferência de Interessados.

III. Diligência essa que o requerido faltou, sem qualquer justificação.

IV. Sendo agora a recorrente notificada da sentença agora em crise.

V. Isto é, o Tribunal a quo, sem audição das partes, procedeu à decisão de mérito da causa, inesperadamente.

VI. Ora, entende a recorrente que decisão sobre o mérito pelo Tribunal a quo, sem a realização da Conferência de Interessados, com as partes presentes, ou notificação da possibilidade de decisão de mérito sem realização da mesma, viola os trâmites do processo e, por conseguinte, nula qualquer decisão ali tomada.

VII. Isto é, o Tribunal a quo não podia ter decidido sem antes promover a conferência das partes para tentativa de adjudicação.

VIII. Não prevendo a legislação processual civil a dispensa da realização da mesma.

IX. Porém, ao abrigo da adequação formal, caso o Tribunal a quo decidisse não realizar, deveria proferir despacho no sentido de ouvir as partes quanto à agilização e adequação formal do processo, ao arrepio dos normativos do nº 3 do artigo 3.º e n.º 1 do artigo 6.º, todos do CPC.

X. Ao fazê-lo, proferiu uma decisão surpresa, tendo violado o princípio do contraditório disposto no artigo 3.º do CPC, positivado pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

XI. O Tribunal a quo cometeu, assim, uma nulidade processual em conformidade com o disposto no artigo 195.º do CPC, que enferma todo o processado posteriormente, nomeadamente a sentença.

XII. Além de que, nunca poderia o Tribunal a quo conhecer do mérito da causa, no caso sub judice, sabendo da intenção da recorrente que lhe fosse adjudicado os bens em conjunto com o passivo.

XIII. Não o fazendo, o Tribunal a quo inquinou o processo de nulidade por violação das normas processuais, em apreço as normas relativas à Conferência de Interessados e direito do contraditório previsto no artigo 3.º do CPC e positivado pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

XIV. Não obstante, o Tribunal a quo, profere decisão por falta de acordo quanto à adjudicação.

XV. Ora, a falta de acordo apenas deveu-se à falta de comparência do requerido na diligência agendada.

XVI. Situação que o Tribunal a quo não procurou colmatar com nova tentativa de agendamento ou contacto com o requerido.

XVII. Sendo intenção da requerente, ora recorrente, que lhe fosse adjudicado todo o activo, conjuntamente com o passivo, compensado com a respectiva parte devida ao requerido.

XVIII. Nesta senda, e face à decisão surpresa proferida pelo Tribunal a quo, vê os presentes autos improcedentes, apenas pela falta de comparência do requerido na Conferência de Interessados.

XIX. Situação que a recorrente não se conforma.

ASSIM

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DESTE, SER DECLARADO NULO O PROCESSADO, POR VIOLAÇÃO DOS TRÂMITES PROCESSUAIS, DEVENDO O TRIBUNAL A QUO, AGENDAR NOVA DATA PARA CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS, INSISTINDO PARA A COMPARÊNCIA DO REQUERIDO, A FIM DE SER ACORDADA A ADJUDICAÇÃO DO BENS.

ASSIM SE FAZENDO A ACOSTUMADA JUSTIÇA!».

Não foi apresentada contra-alegação de recurso.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber se ocorre a invocada nulidade processual:

a) Por indevida omissão de realização/continuação/adiamento da conferência de interessados, que a lei impusesse, em ação de divisão de coisa comum (devia ter-se designado nova data, ante a falta de um dos interessados);

b) Por prolação de decisão-surpresa, em violação do princípio do contraditório, com as legais consequências (art.ºs 3.º, n.º 3, 195.º, n.ºs 1 e 2, e 200.º, todos do NCPCiv.);

c) Impedindo-se, desse modo, a Recorrente de exercer um direito que pretendia exercer (o de que lhe fosse adjudicado todo o ativo, conjuntamente com o passivo, compensado com a respetiva parte devida ao Requerido).


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III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

A materialidade fáctica e a dinâmica processual a considerar são as enunciadas no antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido ([5]).


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B) Substância do recurso

1. - Nulidade processual, por omissão de adiamento (e ulterior realização) da conferência de interessados, ante a falta de um dos interessados

Perante as vicissitudes da tramitação dos autos, não suscita qualquer controvérsia que, designada data para a conferência de interessados, a que alude o art.º 929.º, n.º 2, do NCPCiv. – com a finalidade, assim, por já confirmada indivisibilidade dos imóveis em causa, de obtenção de «acordo dos interessados na respetiva adjudicação a algum (…) deles, preenchendo-se em dinheiro as quotas do[s] restante[s]» e, na falta de acordo sobre a adjudicação, a determinação de venda desses bens, «podendo os consortes concorrer à venda» –, só a Requerente compareceu a tal conferência.

Situando-nos, assim, já na fase executiva da tramitação da ação de divisão de coisa comum ([6]), o Requerido, embora notificado, não compareceu, pelo que deve ser considerado convocado e faltoso ao ato processual designado com aquela finalidade.

Não tendo o mesmo, apesar de citado, praticado qualquer ato no processo, nem se encontrando representado por mandatário judicial, pareceria também claro, como dito em despacho proferido e exarado em ata daquela conferência de interessados, resultar inviável a obtenção de acordo, o dito acordo aludido no art.º 929.º, n.º 2, do NCPCiv. – consenso na adjudicação dos bens a algum dos interessados (Requerente ou Requerido), preenchendo-se em dinheiro a quota do outro.

Ou seja, a falta de comparência do Requerido ao ato processual logo determinava, ao menos no imediato, a frustração da finalidade de tal ato/conferência de interessados.

Perante isso, para quem entendesse ainda ser de equacionar a possibilidade de adiamento da conferência de interessados, tal teria de ser requerido pela parte requerente dos autos, visto que se encontrava acompanhada pela sua Exm.ª Mandatária.

E o Tribunal recorrido até concedeu a palavra a essa Exm.ª Mandatária, para, como visto, se pronunciar quanto à possibilidade de prosseguimento dos autos, altura em que, como logo se vislumbra, poderia ter requerido o adiamento da diligência/conferência (com o fundamento agora trazido à instância recursiva). O que, todavia, não fez.

Mas sinalizou – embora o pudesse ter feito de forma mais clara, é certo – a intenção da Requerente de não pretender que lhe seja adjudicado um dos imóveis e que lhe seja adjudicado o outro (aquele que «é a casa de morada de família, onde reside com os filhos»), preenchendo-se em dinheiro a quota do Requerido, designadamente se este não pretendesse que lhe fosse adjudicado o outro imóvel, caso em que teria de ser vendido.

Isto é, a Requerente deixou sinalizado que pretendia que lhe fosse adjudicado um dos dois imóveis, âmbito em que, como bem se compreende, lhe caberia pedir – se era esse o seu objetivo (outra coisa é se mereceria deferimento) – o adiamento da conferência de interessados, com base na falta de comparência do Requerido, sem o qual era impossível, obviamente, a obtenção do acordo visado, mas que o Tribunal já considerara ser inviável.

Não o tendo feito, poderia colocar-se a questão de saber se deveria o Tribunal a quo, oficiosamente, proceder ao dito adiamento, parecendo ser esta a posição que a Requerente/Recorrente defende no recurso, ao ponto de considerar que aquele Tribunal incorreu em omissão determinante de nulidade processual, razão pela qual a Apelante peticiona agora, mediante invalidação do processado, a designação de nova data para conferência de interessados, insistindo-se na comparência do Requerido, para, finalmente, se acordar na adjudicação dos bens.

Ao assim laborar, apoia-se a Requerente/Recorrente no disposto no art.º 195.º do NCPCiv.: a não «remarcação de nova diligência e notificação ao requerido» (para comparência deste) traduzir-se-ia, desde logo, de per si, na omissão de um ato (ou formalidade) prescrito por lei, consubstanciando irregularidade suscetível de influir no exame ou na decisão da causa (cfr. n.º 1 daquele art.º).

Embora a Recorrente não identifique a norma jurídica que impusesse o dever ao juiz de, oficiosamente, determinar o adiamento – ou suspensão, com marcação de nova data – da conferência de interessados (por falta não justificada de um dos interessados), o certo é que esta linha de argumentação logo expõe uma debilidade, qual seja, a que resulta da circunstância de a Requerente, acompanhada da sua Exm.ª Mandatária, se encontrar presente no ato judicial (aquela conferência de interessados).

Quer dizer, ainda que se entendesse que o Tribunal devia ter adiado oficiosamente a conferência de interessados e que incorreu, por essa via, em vício de procedimento determinante de nulidade processual, à luz do disposto no mencionado art.º 195.º, n.º 1, do NCPCiv., certo é que a nulidade respetiva teria de ser arguida no próprio ato, sob pena de ser tida como sanada.

É esta a solução imposta pelo preceito do art.º 199.º, n.º 1, do NCPCiv., ao estabelecer que, «se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas [as nulidades], podem ser arguidas enquanto o ato não terminar», tratando-se, pois, de nulidade a dever ser apreciada apenas se reclamada (art.º 200.º, n.º 3, do mesmo Cód.).

Ou seja, a nulidade processual em causa teria, para se revestir de tempestividade, de ser arguida, pela parte interessada, na própria conferência de interessados, enquanto esta não terminasse, sob pena de sanação, visto não se tratar de invalidade de conhecimento oficioso.

Ora, se a Requerente/Recorrente, como visto, não requereu então o adiamento, também não arguiu, no próprio ato/conferência, a nulidade processual em causa.

Termos em que, ainda que pudesse entender-se que existiu o vício/irregularidade, a invalidade sempre teria de considerar-se sanada.

Donde, nesta perspetiva, que seja forçoso, sem necessidade de outras considerações, considerar improcedentes as conclusões da Apelante em contrário.

Ainda que assim não se entendesse, haveria outro obstáculo à procedência desta pretensão recursiva.

É que o art.º 929.º do NCPCiv. não prevê a falta de algum dos interessados, nem, por isso, a possibilidade de adiamento da conferência, apenas explicitando que o acordo dos interessados presentes obriga os que não comparecerem, salvo se não tiverem sido notificados, devendo sê-lo (cfr. n.º 4), âmbito normativo este não aplicável ao caso dos autos, por apenas existirem dois interessados (faltando um deles, ficava impossibilitada a obtenção de acordo) ([7]) e se mostrarem ambos notificados para comparência, com indicação da finalidade do ato.

Mas o anterior art.º 1056.º do CPCiv. revogado – referente à mesma “conferência de interessados” – previa, no seu n.º 5, a aplicabilidade à representação e comparência dos interessados o disposto no art.º 1352.º (norma referente à conferência de interessados no processo especial de inventário, o compreensível lugar paralelo), com as necessárias adaptações.

E o n.º 5 do art.º 1352.º aludido dispunha no sentido de a conferência poder ser adiada, por determinação do juiz ou a requerimento, por uma só vez, se faltasse algum dos convocados, contanto que houvesse razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões.

Essa mesma viabilidade de obtenção de acordo encontra-se atualmente presente no art.º 1110.º, n.º 7, do NCPCiv. – referente à conferência de interessados no atual processo de inventário –, prescrevendo, em moldes similares, que a conferência de interessados pode ser adiada, por determinação do juiz, uma só vez, desde que haja razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões com a presença de todos os interessados.

Ora, ainda que se entendesse ser aplicável este último preceito legal, no sentido da possibilidade de adiamento da conferência de interessados na ação de divisão de coisa comum, o certo é que a Recorrente nada alega – e menos prova – em termos de se poder considerar viável o acordo entre Requerente e Requerido para efeitos de adjudicação de algum ou de ambos os imóveis em causa.

Ao invés, o Requerido dá mostras de total desinteresse quanto ao debatido nos autos – embora citado, não contestou (cfr. art.º 926.º do NCPCiv.), nem interveio de qualquer modo no processo –, o que deixa perspetivar que poderia, logicamente, não pretender qualquer acordo com a Requerente.

Mais. Como expressamente dito em despacho proferido no início da conferência de interessados, o Tribunal recorrido entendeu ser inviável a obtenção de qualquer acordo, âmbito em que constituiria flagrante contradição o subsequente adiamento para obtenção de acordo.

Ou seja, ao explicitar, em moldes decisórios, ser inviável a obtenção de qualquer acordo, o Tribunal de 1.ª instância logo afastou – ao menos implicitamente – a possibilidade de adiamento para alcançar o impossível acordo.

Havendo decisão implícita de afastamento de (eventual) adiamento, nem se pode falar, em rigor, numa omissão de ato/formalidade legalmente imposto, gerador de nulidade processual, que devesse, como tal, ser arguida, mas antes de uma decisão judicial (de pendor negativo), assim proferida, que poderia ser objeto de impugnação, mediante oportuno recurso ordinário, tendente a mostrar a existência de erro de julgamento, para revogação do decidido, recurso este não interposto (com esse objeto).

Termos em que sempre falhariam, salvo o devido respeito, os pressupostos para o pretendido adiamento.

2. - Nulidade processual, por violação do princípio do contraditório (decisão-surpresa)

Socorre-se a Apelante, por outro lado, do disposto nos art.ºs 3.º, n.º 3, e 6.º, n.º 1, do NCPCiv., na sua conjugação com o art.º 20.º da Constituição, invocando decisão surpreendente, por a sentença proferida – de extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide – não ser antecedida de qualquer sinalização no sentido de poder ser assumida uma tal dimensão decisória (extintiva), nem ser antecedida de cabal conferência de interessados, em que estivessem presentes ambos os interessados, com vista à real tentativa de obtenção de acordo, nem de qualquer despacho que determinasse a agilização e adequação formal do processo (no sentido de não haver lugar àquela conferência), termos em que, quebradas as exigências decorrentes do princípio do contraditório, se teria incorrido em «decisão-surpresa», também geradora de nulidade processual.

Ora, já se viu que qualquer eventual nulidade processual – se existisse – decorrente da não designação de nova data para conferência de interessados se mostra(ria) sanada, o que, coerentemente, afasta os argumentos que se prendem, ainda agora, com a falta daquela cabal conferência de interessados ou, nessa senda, com eventuais opções de agilização e adequação formal, aliás, não tomadas no processo.

Resta, por isso, o fundamento recursivo que se prende com a invocada não sinalização prévia de decisão extintiva da instância, o que tornaria essa decisão, que veio a ser proferida (posteriormente à conferência de interessados), surpreendente para a parte requerente.

É certo que, nesta vertente, poderia tal parte arguir a nulidade perante a 1.ª instância, para conhecimento pelo respetivo juiz ([8]), mas, não o tendo feito, ainda assim o vício deve ter-se tempestivamente suscitado, visto que a pretendida invalidade processual é de considerar coberta ou sancionada pela própria decisão recorrida (já que é esta vista como uma decisão-surpresa).

 Importa, então, verificar se ocorreu decisão-surpresa, com decorrente violação do princípio do contraditório, o que se fará de imediato, nos moldes sintéticos que o caso demanda.

Dispõe o art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv. (norma basilar do nosso edifício processual civil, decorrência de consabidas exigências constitucionais), que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Como refere Abrantes Geraldes ([9]), “… só a audição de ambas as partes interessadas no pleito e a possibilidade que lhes é conferida de controlarem o modo de decisão dos tribunais permitirão que a verdade seja descoberta e que sejam acautelados os interesses dos litigantes.

Ao nosso sistema processual civil repugnam as decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, o que apenas excepcionalmente é admitido em situações em que os restantes interesses o impõem.

Da consagração legal do princípio do contraditório decorre que cada parte processual é chamada a apresentar as respectivas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas ou a pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras.

Todas as fases do processo (…) decorrem segundo as regras da mais pura contraditoriedade, num diálogo entre as partes, sob a direcção do juiz, prosseguindo ainda em fase de alegações de direito e em via de recursos …”.

A estrutura de diálogo, consequentemente dialética, entre as partes, perante o Tribunal, que está, por sua vez, obrigado a ouvi-las antes de decidir sobre as questões que se suscitem ao longo da vida do processo, garante o “tratamento paritário” das partes e “uma decisão mais justa e imparcial”, evitando, ao mesmo tempo, que, mormente quanto a questões de direito, de conhecimento oficioso, sejam proferidas decisões “contra a corrente do processo, à revelia das posições jurídicas que cada uma das partes tomara nos articulados ou nas alegações de recurso” ([10]) – as chamadas decisões-surpresa.

Neste âmbito, o preceito do art.º 3.º, n.º 3, do CPCiv., visa alcançar objetivos essenciais do sistema de justiça, tais como “a boa administração da justiça, a justa composição dos litígios, a eficácia do sistema, a satisfação dos interesses dos cidadãos” ([11]).

Assim, o Tribunal, para além de assegurar, a cada passo, o cumprimento do princípio do contraditório, garantindo às partes o atempado e recíproco conhecimento dos atos processuais e das questões suscitadas, terá também, ele próprio (Tribunal), de observar esse princípio, submetendo-se às suas imposições, só podendo decidir questões de facto ou de direito, ainda que de conhecimento oficioso, depois de conceder às partes a possibilidade de pronúncia respetiva, exceto em situações de manifesta desnecessidade.

Não poderá, pois, o Tribunal, sem cuidar da prévia audição das partes, de molde a que possam elas pronunciar-se, apreciar, ex officio, questões jurídicas idóneas a projetarem-se, em termos relevantes e inovatórios, no desfecho do processo (solução jurídica da causa), mormente se ao arrepio de toda a tramitação e posições processuais anteriores, que levaram as partes a pôr de lado um desfecho que, posteriormente, o julgador vem a adotar, sem aviso prévio e contra todas as expectativas dos litigantes.

Assim sendo, a “decisão surpresa, como os vocábulos indicam, faz supor que a parte possa ser apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não esteja prevista nem tivesse sido configurada por aquela” ([12]).

Quer dizer, haverá “decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio” ([13]).

E, como de há muito vem entendendo a jurisprudência, “A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu uma relação com o pedido formulado para a concreta decisão, ter ou não sido prevista em função da pretensão colocada a quem irá decidir.” ([14]).

É líquido que, no caso dos autos, a questão jurídico-processual a apreciar era a da (eventual) extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide em ação de divisão de coisa comum, visto o sentido decisório extintivo adotado na sentença recorrida, em matéria, pois, de índole processual, que se prende com os pressupostos de subsistência da instância.

Perante tal possível extinção da instância, dúvidas não subsistem de que, à luz do princípio do contraditório, por se tratar de solução, à partida, imprevista/inesperada, deveria o Tribunal, de antemão, suscitar a respetiva questão, para que as partes (no caso, a Requerente) pudessem sobre ela emitir pronúncia, entrando na respetiva discussão e, assim, contribuindo para a respetiva decisão.

Doutro modo, sempre poderia dizer-se que alguma das partes (a dita Requerente) foi apanhada de surpresa, perante um tal sentido decisório extintivo, que não estaria no seu horizonte de perceção processual.

Aqui chegados, importa sopesar – revisitando-o – o que foi sinalizado pelo Tribunal no âmbito da conferência de interessados, que foi designada e aberta, apesar de não adiada.

Ora, nesse enquadramento, é de concluir que não há, a nosso ver, decisão surpresa, por ter sido observado – suficientemente – o princípio do contraditório, como resulta da própria ata de conferência de interessados (a fls. 30 do processo físico), onde consta que foi

“Concedida a palavra à Ilustre Mandatária da requerente para se pronunciar quanto à possibilidade do prosseguimento dos presentes autos, atentas as penhoras que onerarão os prédios nos mesmos em causa e o disposto no art. 819º do CC” (destaque aditado).

Consta ainda que, perante isso, aquela Exm.ª Mandatária «disse o seguinte:

Em relação às penhoras existentes dos prédios objeto dos presentes autos, é intenção da autora entrar em contacto com as entidades credoras no sentido de acordar no pagamento das respetivas penhoras, sendo também sua intenção nos presentes autos, a final, a venda do prédio sito na Freguesia ... a terceiros ou ao requerido se assim entender ficar com ele, e propor a compra do prédio sito em ..., uma vez que é a casa de morada de família, onde reside com os filhos, com entrega do valor que couber ao requerido» (destaques aditados).

Após o que «a Mmª Juiz determinou que os autos aguardem a junção da certidão de ónus e encargos», tendo em conta as ditas penhoras existentes.

Ou seja, foi observado o princípio do contraditório quanto à questão do prosseguimento dos autos – possibilidade de prosseguimento, ou não –, perante as penhoras que oneram os prédios em causa no processo e o disposto no art.º 819.º do CCiv., preceito este que dispõe no sentido de serem “inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.

E a parte requerente pronunciou-se, nesse âmbito, nos moldes que entendeu convenientes, mesmo que não tenha entrado, por opção sua, na discussão da questão de direito.

Certo é que o fundamento da decisão recorrida, observado tal princípio do contraditório, assentou, juntas «certidões de ónus e encargos», na existência de «penhoras anteriores», estando, por isso, os bens em causa «afectos à realização das finalidades das respectivas acções executivas (art. 735º do CPC)», bem como no disposto naquele art.º 819.º da lei substantiva e decorrente inoponibilidade e, ainda, no preceituado no art.º 794.º, n.ºs 1 e 4, do NCPCiv., a determinar «que, havendo mais que uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, sendo que a sustação integral determina a extinção da execução. A lei manifesta assim o propósito de evitar que ocorram adjudicações e vendas dos mesmos bens em processos diferentes e de concentrar num único processo a determinação e graduação dos créditos garantidos por aqueles bens, com vista a acautelar os interesses dos devedores executados, credores e adquirentes dos bens».

Foi nesta senda que se rematou na decisão recorrida no sentido do risco, em caso de «prosseguimento dos presentes autos com a venda dos imóveis, quando os mesmos estão penhorados no âmbito de execuções», de «reclamações dos mesmos créditos em vários processos, e adjudicações e vendas do mesmo bem a pessoas diversas, o que a lei quer evitar».

Daí se retirando, para a economia dos autos, «em face das penhoras que oneram os prédios (…), existir impedimento ao prosseguimento do processo para a fase da venda e determina-se a extinção da instância por impossibilidade superveniente».

Assim sendo, deve concluir-se que inexiste qualquer decisão-surpresa, por ter sido observado, suficientemente, o princípio do contraditório quanto à questão/matéria que foi objeto da decisão recorrida.

Com efeito, o Tribunal recorrido deu abertura/campo para que essa questão, que se prende com as ditas penhoras – e decorrentes consequências jurídicas –, fosse previamente discutida nos autos, tendo sido suscitada na conferência de interessados, perante o que a Requerente nada esgrimiu, no plano jurídico, quanto às implicações sobre a (im)possibilidade, ou não, de prosseguimento dos autos.

Assim, não há verdadeiramente surpresa no conhecimento dessa questão, nem, nesta perspetiva, na correspondente decisão judicial de extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, decisão esta que, diga-se ainda, por apenas incidir sobre instância (nada decidindo sobre o fundo/mérito), não compromete os direitos substantivos das partes/interessados, nem obsta sequer à instauração futura de nova ação de divisão de coisa comum [cfr. art.ºs 277.º, al.ª e), e 279.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.].

O aspeto que de algum modo poderia ser percecionado como inovatório reside apenas no fundamento de direito e/ou nas consequências jurídicas encontrados para a decisão de extinção da instância: tal decisão fundou-se em razões de direito, não expressamente discutidas, concernentes à existência de penhoras anteriores a onerarem os prédios e respetivas ações executivas.

Foi o entendimento de que existem/operam tais penhoras, com pendência de execuções correspondentes, que levou à conclusão de que se perfila obstáculo determinante de impossibilidade superveniente da lide, leitura jurídica esta cuja bondade – ou incorreção, in casu – não vem posta em causa, enquanto tal, no recurso.

Ora, é certo que tal fundamento, trazido aos autos pelo Tribunal, não foi objeto de cabal discussão/contraditório, na perspetiva da consequência jurídico-processual encontrada, não tendo sido elencados, de antemão, todos os passos do raciocínio subjacente ao iter decisório, o que só foi explicitado – compreensivelmente – na própria decisão recorrida.

Mas – perguntar-se-á – teriam de sê-lo?

O Tribunal a quo terá entendido que não, eventualmente por considerar que não deve haver lugar ao convite para discutir questões de direito, quando as partes, sem dúvida, as podiam ter considerado e entenderam não se pronunciar a respeito, no plano jurídico.

Como referem Abrantes Geraldes e outros ([15]), pretende-se impedir que, no âmbito da liberdade de aplicação das regras de direito ou da oficiosidade de conhecimento de determinadas questões, «as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objeto de qualquer discussão», como pode ocorrer «quando está em causa uma diversa qualificação jurídica dos factos», uma divergência quanto a tal qualificação jurídica.

Também José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([16]) referem que é proibida «a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes», o que tem essencial aplicação «às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado». Acrescentam que não deve, neste âmbito, equacionar-se o padrão da «diligência devida» das partes ([17]), mas somente, nos termos legais atuais, a «manifesta desnecessidade», a que alude o n.º 3 do art.º 3.º do NCPCiv..

Em suma, o critério legal atual aponta, não para o grau de diligência devida das partes, mas apenas para a manifesta desnecessidade, atentas as especificidades do caso, de audição (prévia) das mesmas.

Mas logo advertem estes mesmos Autores, no plano das questões de direito, que «Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objeto de discussão antes da decisão (…)» (op. cit., ps. 31-32, com destaques aditados).

Ora, in casu, a questão jurídica essencial, que implica o obstáculo encontrado ao prosseguimento dos autos, que se prende com as ditas anteriores penhoras e execuções incidentes sobre os bens objeto da ação de divisão de coisa comum, foi suscitada nos autos e, por isso, podia ter sido expressamente discutida antes de ser decidida, só não o tendo sido por a Requerente, embora provocada, não ter formulado qualquer argumentação jurídica a respeito, eventualmente por não ter, na altura, logrado alcançar todas as consequências jurídicas da questão/matéria assim suscitada, âmbito em que poderia ter requerido ao Tribunal a concessão de prazo para pronúncia, tal como poderia, desde logo, como já visto, requerer o adiamento da diligência ou arguir, no próprio ato, qualquer eventual nulidade processual, o que não fez.

Só depois foi proferida a decisão recorrida, considerando verificada a extinção da instância, mediante argumentação jurídica fundada nas sinalizadas penhoras/execuções, tratando-se de matéria de direito ao alcance da parte patrocinada por profissional forense, como tal, com todos os conhecimentos necessários de direito.

Ora, sendo o Tribunal livre na indagação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.), cabia-lhe conhecer amplamente da questão, para bem a decidir – e não importa agora, por não objeto do recurso, saber se foi produzida uma decisão juridicamente correta –, segundo o direito aplicável.

Foi o que a 1.ª instância fez: conheceu da questão previamente suscitada, com abertura da discussão no âmbito dos autos, sopesando os argumentos de direito que encontrou, no escopo de obter a melhor decisão jurídica, quadro em que aplicou – bem ou mal, não importa agora – as regras legais vigentes em matéria reportada a penhoras sobre os bens em causa, a desembocar no sentido decisório extintivo adotado.

Nesse contexto, juntas as ditas certidões – que a Recorrente não põe em causa –, não era necessária nova audição das partes (quanto aos fundamentos da decisão), nem, nesta ótica, se afigura surpreendente uma interpretação jurídica no sentido da insusceptibilidade de prosseguimento dos autos.

A Requerente, devidamente patrocinada, podia, querendo, ter discutido também este aspeto jurídico da questão – se entendeu que o mesmo não tinha relevo para o caso ou não o percecionou, sobre ele não se detendo, tal em nada limitava a indagação de direito do Tribunal, nem as partes poderiam esperar que também o julgador votasse esse aspeto à mesma irrelevância jurídica.

Em suma, amplamente possibilitada a discussão da questão jurídica – em termos fácticos e de direito – pelas partes (embora o Tribunal pudesse, claramente, ter sido mais explícito), cumpridas logo ficaram as exigências do princípio do contraditório (em matéria jurídico-processual), afastando quaisquer suspeitas de decisão surpreendente ([18]), não podendo ser visto com surpresa que o Julgador, na apreciação da questão, se detenha nas normas de direito consideradas aplicáveis.

Ao invés, o que se esperaria, possibilitada a discussão, era que o Tribunal oferecesse uma visão abrangente sobre tais regras de direito, para boa decisão da matéria, âmbito em que era manifestamente desnecessário (voltar a) observar o princípio do contraditório nos moldes a que alude o preceito do n.º 3 do art.º 3.º do NCPCiv..

Donde que, observado tal princípio, não tenha aquele Tribunal incorrido em omissão de ato prescrito pela lei (naquele art.º 3.º, n.º 3), inexistindo irregularidade/vício suscetível de influir no exame e/ou decisão da causa, que devesse ser apreciado nos termos gerais do art.º 195.º, n.º 1, do NCPCiv. ([19]).

De salientar, por fim, que também não pode colher o argumento no sentido de se ter impedido a Recorrente de exercer um direito que queria exercer nos moldes vertidos no recurso, o de “que lhe fosse adjudicado todo o activo, conjuntamente com o passivo, compensado com a respetiva parte devida ao requerido” (cfr. conclusão XVII, com destaques aditados).

É que, na conferência de interessados, a mesma apenas referiu, vinculando-se a respeito – posto não ter retirado o ali afirmado –, que se propunha “comprar” um dos prédios (o sito em ...), “com entrega do que couber ao requerido”, procedendo-se, diversamente, à “venda” do outro prédio (o sito na Freguesia ...) “a terceiros ou ao requerido”.

Termos em que, salvo o devido respeito por diverso entendimento, inexistindo a nulidade processual invocada, o recurso tem de improceder.

(…)

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, na improcedência da apelação, mantém-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pela Recorrente – parte vencida no recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.) –, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário (fls. 13 e 14 do processo físico).

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 21/11/2023

Vítor Amaral (relator)

         Rui Moura

         Fonte Ramos


([1]) Exarou-se ainda o seguinte naquele despacho judicial: «Notifique em observância do disposto no nº 4 do art. 929º do CPC. // Com vista a obter o acordo dos credores exequentes (titulares de penhoras) à eventual adjudicação do bem a alguns dos consortes, notifique-os para, querendo, comparecerem na Conferência de interessados.».
([2]) Cfr. fls. 20 v.º e 26 do processo físico.
([3]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([4]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) De acordo com o processado dos presentes autos, tal como consta do processo físico e da respetiva versão eletrónica, consultada esta no sistema Citius.
([6]) Como explica Rui Pinto, finda a “fase declarativa por meio de proferimento de decisão de fixação dos quinhões (…) inicia-se a fase executiva de adjudicação ou venda dos quinhões, conforme o disposto no artigo 929.º” – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 812 e 814.
([7]) Cfr., sobre o tema, Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, ps. 389 e seg..
([8]) De acordo com a máxima clássica – todavia, vigente – de que “das nulidades reclama-se; das decisões, recorre-se”.
([9]) Cfr. Temas da Reforma do Processo Civil, I vol., Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 1998, pág. 75, que se cita.
([10]) Assim, Abrantes Geraldes, op. cit., págs. 75 e 77.
([11]) Continua a seguir-se Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 79.
([12]) Cfr. Ac. STJ, de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB (Cons. Ana Paula Boularot), em www.dgsi.pt.
([13]) Vide Ac. STJ, de 19/05/2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.S1 (Cons. António da Silva Gonçalves), em www.dgsi.pt, explicitando que “apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever”.
([14]) Assim já o Ac. STJ, de 14/05/2002, Proc. 02A1353 (Cons. Lopes Pinto), em www.dgsi.pt.
([15]) Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 19 e seg..
([16]) Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, ps. 31 e segs..
([17]) Que havia sido acolhido no DLei n.º 329-A/95 – e foi objeto de supressão através do DLei n.º 180/96 –, não sendo difícil imaginar – acrescentam tais Autores – um raciocínio judicial de acordo com o qual, se o juiz se apercebe de certa questão oficiosa, também as partes, se tivessem sido diligentes, dela se podiam ter apercebido, com o que dificilmente poderia ocorrer uma decisão-surpresa.
([18]) Como considerado em aresto desta Relação e Secção, as partes tiveram, previamente, «oportunidade para tecer todas as considerações jurídicas que entendessem, sob os mais diversos prismas que a questão de direito pudesse revestir» – cfr. Ac. TRC de 26/04/2022, Proc. 89/21.9T8PCV.C1 (Rel. Luís Cravo), em www.dgsi.pt.
([19]) Vide, quanto à natureza do invocado vício, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 32.