Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1046/11.9TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CADUCIDADE
DECLARAÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 13º, Nº 4 E 51º, Nº 1 DO CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES; 83º, Nº 1, AL. C) E 383º, Nº 1 DO CPC.
Sumário: São, de acordo com os artºs 13º, nº 4 e 51º, nº 1 do Cód. das Expropriações e 83º, nº 1, al. c) e 383º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, os Tribunais Judiciais e não os Tribunais Administrativos, os materialmente competentes para conhecer de procedimento cautelar comum instaurado como preliminar de acção de reconhecimento da caducidade da declaração de utilidade pública.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. RELATÓRIO

A…, casado, residente na Av. …, instaurou, em 25/10/2011, no Tribunal Judicial de Cantanhede, procedimento cautelar comum contra “E…, S.A.”, com sede …, pedindo o decretamento, sem contraditório prévio, de providência cautelar consistente na intimação da requerida a abster-se de tomar, em 02/11/2011, data para a qual estava marcada, posse administrativa das parcelas identificadas nos artigos 4º, 5º e 6º do requerimento inicial, a destacar dos prédios rústicos de que é proprietário.

Alegou para o efeito, e em síntese, que é dono e legítimo proprietário das três parcelas objecto da Declaração de Utilidade Pública com carácter de Urgência publicada no Diário da República, 2ª série, nº 113, de 14 de Junho de 2010; que foi notificado pela Requerida de que a mesma iria proceder ao acto de transmissão da posse administrativa das referidas parcelas no dia 2 de Novembro de 2011; que não tendo sido promovida a constituição de arbitragem no prazo de um ano contado da data da publicação da mesma, já decorreu o prazo de caducidade da Declaração de Utilidade Pública previsto no nº 3 do artigo 13º do Código das Expropriações; e que tem fundado receio de que a requerida, que não dispõe de título válido para tomar posse administrativa das parcelas, lese de forma irreparável o seu direito de propriedade.

Com data de 27/10/2011, foi proferido o despacho de fls. 28 a 31, julgando o Tribunal Judicial de Cantanhede incompetente em razão da matéria – por tal competência recair nos Tribunais Administrativos – e indeferindo liminarmente a peticionada providência cautelar.

Inconformado, o requerente interpôs, em 14/11/2011, recurso, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

O recurso foi admitido por despacho datado de 05/12/2011 (fls. 44).

A convite do Relator, o recorrente informou, em 30/12/2011, que a requerida não tomara, até àquela data, posse administrativa das parcelas em causa nos autos.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.

            Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se a competência material para conhecer do presente procedimento cautelar recai sobre os tribunais judiciais ou sobre os tribunais administrativos.

                2. FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. De facto

            A factualidade e incidências processuais relevantes para a decisão do recurso são as que decorrem do antecedente relatório que, por isso, aqui se dá como inteiramente reproduzido.

            2.2. De direito

            Entendeu-se na decisão recorrida que a competência material para conhecer do presente procedimento cautelar comum, em que o requerente A… pede que a requerida E…, S.A. seja intimada a abster-se de tomar posse administrativa das parcelas de terreno que identifica e que, com vista à expropriação, foram objecto de declaração de utilidade pública, cabia aos Tribunais Administrativos.

            Argumentou-se nesse sentido que, de acordo com os artºs 213º, nº 3 da Constituição da República e 1º, nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete aos Tribunais Administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e que, tendo a relação jurídica de expropriação natureza híbrida, parte ligada ao direito administrativo e parte ligada ao direito civil, e encontrando-se a mesma, “in casu”, ainda na fase administrativa, tal implica que a competência material recaia sobre os Tribunais Administrativos.

O recorrente não contesta a apontada natureza híbrida da relação jurídica da expropriação por utilidade pública. Nega, contudo, que exista uma delimitação rígida entre a parte de natureza administrativa e a parte de natureza civil, designadamente que tal delimitação coincida com a tomada de posse administrativa dos bens objecto da expropriação por parte da entidade expropriante. E entende que, no caso, apesar de a requerida não ter ainda tomado posse administrativa das parcelas, a competência material para conhecer da providência cautelar solicitada determina-se pela competência material para conhecer da acção principal a propor, da qual é dependência – acção com vista ao reconhecimento da caducidade da declaração de utilidade pública – e a competência para esta recai, nos termos do artº 13º, nº 4, 42º e 51º do Código das Expropriações, sobre os tribunais comuns.

Vejamos.

A decisão recorrida apoiou-se fundamentalmente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2005, do qual transcreveu a seguinte passagem:

“A relação jurídica da expropriação por utilidade pública reveste natureza híbrida: tem um aspecto que se prende com o direito administrativo e outro que se liga com o direito civil.

O primeiro, é o que se revela nos procedimentos destinados à declaração da utilidade pública, enquanto facto constitutivo da relação jurídica administrativa, e à sua concretização, até à investidura administrativa na posse dos bens, que terá lugar independentemente e mesmo contra a vontade do expropriado, coagido a submeter-se, por motivos de interesse público, aos poderes de autoridade da administração, que actua no exercício desses poderes e que, por tais motivos, o pode privar do seu direito de propriedade.

Nessa fase, encontramo-nos, sem sombra de dúvida, no domínio das relações jurídicas administrativas.

Mas, efectuada a posse administrativa, passa-se à fase seguinte, ou seja, ao segundo aspecto, que extravasa o campo do direito público e apenas tem a ver com a determinação do montante concreto da justa indemnização” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2005, disponível in www.dgsi.pt).

Como da transcrita passagem decorre, o aspecto da relação jurídica da expropriação por utilidade pública que se prende com o direito administrativo é o que se revela nos procedimentos destinados à declaração da utilidade pública, enquanto facto constitutivo da relação jurídica administrativa e à sua concretização, até à investidura administrativa na posse dos bens.

Por essa razão é que está fora da competência material dos tribunais comuns a apreciação da ilegalidade (nulidade) do acto de declaração de utilidade pública[1].

O mesmo não sucede, contudo, relativamente ao conhecimento da caducidade da declaração de utilidade pública, o qual não consubstancia uma reapreciação daquele acto[2].

Com efeito, no seguimento do nº 3, onde se indicam os casos em que a declaração de utilidade pública caduca, estipula o nº 4 do artº 13º do Código das Expropriações[3] que “a declaração de caducidade pode ser requerida pelo expropriado ou por qualquer outro interessado ao tribunal competente para conhecer do recurso da decisão arbitral ou à entidade que declarou a utilidade pública (…)”.

O tribunal competente para conhecer do recurso da decisão arbitral é, como resulta dos artºs 51º e seguintes, o tribunal da comarca – tribunal judicial de 1ª instância [artº 62º, nº 1 da Lei nº 3/99, de 03/01 (LOFTJ)] – da situação do bem expropriado ou da sua maior extensão.

Consequentemente, “in casu”, o tribunal competente para conhecer da acção principal a propor – de declaração de caducidade da DUP – é o tribunal da comarca de Cantanhede, onde as parcelas objecto da DUP se situam.

Assim sendo, como decorre claramente dos artºs 83º, nº 1, al. c) e 383º, nº 1, ambos do Cód. Proc. Civil, é o tribunal da comarca de Cantanhede também competente para conhecer do presente procedimento cautelar que daquela acção principal é dependência.

Com efeito, o artº 83º, nº 1, al. c) estatui que para os procedimentos cautelares, à excepção dos incluídos nas alíneas a) e b) – arresto, arrolamento e embargo de obra nova – é competente o tribunal em que deva ser proposta a acção respectiva.

E o artº 383º, nº 1 estabelece que o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva.

Logram êxito, portanto, as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz à procedência da apelação e à revogação da decisão recorrida.

Sumário (artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

São, de acordo com os artºs 13º, nº 4 e 51º, nº 1 do Cód. das Expropriações e 83º, nº 1, al. c) e 383º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, os Tribunais Judiciais e não os Tribunais Administrativos, os materialmente competentes para conhecer de procedimento cautelar comum instaurado como preliminar de acção de reconhecimento da caducidade da declaração de utilidade pública.

            3. DECISÃO

            Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogar a decisão recorrida.

            Custas a final, pela parte vencida.

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] Ac. STJ de 18/01/1996, in CJ, IV, I, 45.
[2] Ac. STA de 20/10/1988, in BMJ, 380, 311 e Ac. STJ de 15/10/1991, in BMJ, 410,478, em cujo sumário que “a circunstância de a declaração de utilidade pública se basear em acto administrativo definitivo não é obstáculo ao reconhecimento da sua caducidade pelos tribunais comuns, pois este não consubstancia uma reapreciação daquele acto”. Cfr. também Ac. Rel. Lisboa de 12/06/1996, CJ, XXI, III, 112.
[3] Aprovado pela Lei nº 168/99, de 18/09, alterado pelas Leis nºs 13/2002, de 19/02; 4-A/2003, de 19/02; 67-A/2007, de 31/12; e 56/2008, de 04/09. São dele as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.