Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1132/11.5TBCTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
REQUISITOS
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO 2 J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 501º Nº 1 E 508º Nº 2 DO CPC
Sumário: I- Na falta de requisitos legais a que se refere o n.º 2 do art.º 508.º do CPC cabe a inobservância, pelo réu reconvinte, das exigências prescritas no n.º 1 do art.º 501.º do mesmo diploma legal.

II- O despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 2 do art.º 508.º é um despacho vinculado, com o significado do juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir as falhas detectadas.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No 2.º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Castelo Branco, A... instaurou contra B... e seus filhos menores, por esta representados, C... e D..., acção declarativa constitutiva, a seguir a forma ordinária do processo comum, tendo em vista a anulação da declaração de perfilhação daqueles menores.

Citados os RR, apresentaram a contestação agora certificada de fls. 2 a 6 deste apenso, peça que concluíram nos seguintes termos “Nestes termos e nos melhores de direito (…), deve a acção ser julgada improcedente, por não provada, condenando-se o A. como litigante de má fé, em multa e indemnização a favor da Ré calculada nos termos dos precedentes art.ºs 52.º a 54.º, e no pagamento à Ré de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante mínimo de € 50 000,00” (é nosso o destaque), tendo ainda feito a seguinte indicação “Valor: o indicado na p.i.) (€ 30 000,01)”.

Para o que agora importa considerar tinham os contestantes alegado o seguinte (transcrição):

“Dos danos não patrimoniais

Art.º 57.º Não é necessário fundamentar os danos de ordem moral que esta iniciativa do A provocou e provocará à Ré e aos filhos do casal.

Art.º 58.º Para uma pessoa que sempre norteou a sua vida pelos princípios da lealdade, do trabalho honesto, da estabilidade familiar e do amor incondicional pelos seus filhos, é devastador ser acusada de promíscua, infiel e incapaz de enganar o seu companheiro de anos de vida em comum, imputando-lhe falsamente a paternidade dos menores C(...) e D(...).

Art.º 59.º Também o efeito que esta acção irá acarretar ao equilíbrio psicológico dos seus filhos, constitui uma enorme fonte de preocupação para a ré.

Art.º 60.º O bem-estar físico e psíquico dos seus filhos encontra-se, para a Ré, acima das suas próprias necessidades e anseios.

Art.º 61.º A Ré, após conhecer esta acção, passou a sentir-se permanentemente enervada, com crises de ansiedade e revolta, com reflexos somáticos em cefaleias, perda de apetite e dificuldades em dormir.

Art.º 62.º Cada vez que se recorda -e é todos os dias- das infâmias alegadas pelo A., sente-se desnorteada, não acreditando que uma pessoa que a conhece tão bem possa pensar e veicular tais acusações.

Art.º 63.º O que o A fez não é desculpável e tem de ser exemplarmente punido por este Tribunal.

Art.º 64.º Quer na vertente da condenação como litigante de má fé, quer na atribuição à Ré de uma indemnização, a título de danos não patrimoniais que, em caso algum, poderá ser inferior a € 50 000,00”.
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Em despacho pré-saneador, apreciando a pretensão deduzida, a Sr.ª Juíza proferiu decisão no sentido da inadmissibilidade do pedido reconvencional “não identificado como tal (…), uma vez que não foram observados os requisitos e formalidades a que alude o art.º 501.º, n.º 1 do CPC”.

Inconformada, a ré interpôs o presente recurso, cujas alegações rematou com as seguintes conclusões:

“1.ª- A Recorrente autonomizou o pedido relativo a danos não patrimoniais (art.ºs 57º a 64º da contestação) e concluiu o seu articulado com o pedido de condenação do A. no "pagamento à Ré de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante mínimo de € 50.000,00”.

2.ª- Não qualificou esse pedido como reconvencional, nem, reconhece-se, indicou expressamente o "valor da reconvenção", mas é inquestionável que, quer da causa de pedir, quer do pedido, decorre ter a Ré pretendido obter a condenação do A. no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, deduzindo contra o A. esse concreto pedido.

3.ª- A Mma Juíza a quo entendeu não terem sido observados “os requisitos e formalidades a que alude o art.º 501.º n.º 1 do Código do Processo Civil”, não curando, como na óptica da recorrente se impunha, de clarificar a pretensão da Ré e facultar-lhe a possibilidade de colmatar as deficiências formais cometidas.

4.ª- Designadamente ao abrigo do regime previsto no art.º 508º n.º 1 alínea a) e no n.º 2 do CPC.

5.ª- De facto, no caso vertente está em causa o "suprimento ou correcção de vício, designadamente quando careçam de requisitos legais..." (citado n.º 2).

6.ª- Mesmo nas situações previstas no n.º 3 do mesmo art.º 508º, em que o poder de “convidar qualquer das partes” ao aperfeiçoamento dos articulados traduz um despacho não vinculado, o correspondente poder discricionário não pode, por força do princípio da cooperação judiciária, ser exercido ou omitido de forma arbitrária.

7.ª- Como se infere da própria redacção do n.º 2 do artigo 508.º do CPC, a menção a “o juiz convidará” inculca a noção de “obrigação”, a vinculação à emissão de um despacho de aperfeiçoamento.

8.ª- É inequívoco que o despacho de aperfeiçoamento omitido “influi no exame ou decisão da causa”, pelo que essa omissão constituirá uma irregularidade submetida ao regime das nulidades previstas no artigo 201.º, n.º 1 do CPC.

9.ª- Encontrando-se tal nulidade implicitamente sancionada na parte recorrida do douto despacho saneador, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor dessa decisão.

10.ª- A douta decisão recorrida que não admitiu, com base na inobservância dos requisitos e formalidades a que alude o n.º 1 do art.º 501.º CPC, o pedido deduzido na contestação contra o A., violou o princípio da cooperação (artigo 266.º do CPC) e o disposto no n.º 1 alínea a) e no n.º 2 do art.º 508.º CPC”.

Com tais fundamentos pretende a revogação da decisão e sua substituição por outra que, em cumprimento do disposto nas citadas disposições legais, determine a notificação da contestante para suprir as apontadas deficiências.
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O recorrido contra alegou, pugnando pela manutenção do despacho posto em crise, chamando ainda a atenção para o facto do pedido formulado violar o disposto no art.º 274.º n.º 3 do CPC, dada a diversidade de forma do processo que lhe corresponde, o que sempre obstaria à sua admissão.
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Sabido que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso (art.ºs 684.º n.º 3 e n.º 1 do art.º 685.º-A do CPC), constitui única questão a decidir saber se o Tribunal estava obrigado, por força do disposto no n.º 2 do art.º 508.º e também 266.º do CPC, a endereçar convite à parte para suprir as deficiências detectadas e que determinaram a rejeição do pedido reconvencional.
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II- Fundamentação

O art.º 274.º do CPC consagra a possibilidade do réu, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor, verificados que estejam determinados pressupostos (vide n.ºs 1 e 2 do preceito).

Dispondo sobre a dedução da reconvenção, o art.º 501.º do mesmo diploma legal manda que seja expressamente identificada e separadamente deduzida na contestação, impondo ao reconvinte que exponha os fundamentos e conclua pelo pedido, nos termos das als. c) e d) do n.º 1 do art.º 467.º, para o qual remete.

Compreende-se a exigência legal: a reconvenção deve figurar na contestação com autonomia bastante para que o autor compreenda com toda a clareza que está a ser deduzida contra si uma pretensão conexa com aquela que formulara, isto em ordem a permitir uma defesa esclarecida.

O reconvinte deverá ainda, tal como consta do n.º 2 do preceito, declarar o valor da reconvenção e, se o não fizer, a contestação não deixa de ser recebida, sendo aquele convidado a indicar o valor, sob pena da reconvenção não ser atendida.

No caso que ora se analisa, e tal como reconhece, a recorrente não deu cabal cumprimento à disposição legal supra citada, uma vez que omitiu as sacramentais referências a Reconvenção e/ou pedido reconvencional. Não obstante, a verdade é que não deixou de invocar os factos nos quais baseou o pedido -elenco factual que surge destacado e precedido da epígrafe “Dos danos não patrimoniais”- resultando inequívoca a formulação de uma pretensão autónoma. Na verdade, concluir, como o fez, pela condenação do autor “no pagamento à Ré de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante mínimo de € 50 000,00” não consente interpretação divergente, satisfazendo a finalidade da exigência legal[1].

Acresce que, conforme faz notar a recorrente, o n.º 2 do art.º 508.º prevê a prolação de um despacho de aperfeiçoamento vinculado, com o significado, para o que ora importa considerar, do juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir a falha detectada. “A expressão legal utilizada, de sentido impositivo (…), leva-nos a concluir que se trata de uma verdadeira injunção que é dirigida ao juiz do processo e que não deve confundir-se com um poder discricionário que o conduza a proferir ou não, segundo o seu critério, a decisão interlocutória” [2].

Por outro lado, como resulta claro do preceito em análise, estão em causa ambas as partes, valendo a imposição tanto para a petição inicial, como para a contestação, o que, para além do mais, é decorrência do princípio da igualdade de armas, “manifestação do mais geral princípio da igualdade das partes, que implica a paridade simétrica das suas posições perante o tribunal. No que particularmente lhe respeita, impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses (…)” [3]. E, por assim ser, a omissão, pelo juiz, de tal decisão interlocutória configura uma nulidade processual, nos termos no art.º 201.º do CPC.

Na previsão da norma cabem assim, entre outras situações que se poderão configurar, precisamente a “falta de cumprimento das regras que o art.º 501.º prevê para a dedução da reconvenção, designadamente procedendo à sua autonomização formal e à indicação do valor do pedido reconvencional” [4].

Aqui chegados, logo se intui assistir inteira razão à recorrente, pois a Sr.ª juíza “a quo” não poderia ter proferido despacho a rejeitar a reconvenção, como fez, sem previamente dirigir à ré o convite para colmatar as detectadas deficiências.

Por último, cabe referir não proceder a objecção feita pelo recorrido no sentido de se verificar diversidade das formas de processo que obstaria à admissibilidade da reconvenção, uma vez que estamos perante acção declarativa, a seguir a forma ordinária do processo comum, precisamente a forma que corresponderá ao pedido reconvencional, caso venha a ser admitido a final (cfr. art.ºs 460.º a 462.º do CPC).

                                                       *

III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso e revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, ao abrigo do disposto no art.º 508.º, n.º 2 do CPC, convide a Ré a dar cumprimento ao preceituado no art.º 501.º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal.

Custas a cargo do apelado.

                                                       *

Sumário (nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

I- Na falta de requisitos legais a que se refere o n.º 2 do art.º 508.º do CPC cabe a inobservância, pelo réu reconvinte, das exigências prescritas no n.º 1 do art.º 501.º do mesmo diploma legal.

II- O despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 2 do art.º 508.º é um despacho vinculado, com o significado do juiz só poder retirar consequências da falta de preenchimento dos requisitos externos depois de facultar à parte, através do pertinente convite, a possibilidade de suprir as falhas detectadas

                                                       *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

[1] Debruçando-se sobre situação apresentando similitudes, decidiu a Rel. do Porto pela admissibilidade do pedido reconvencional – vide recentíssimo aresto de 8/10/2012, processo n.º 524/10.1 TTVNF.P1, Ex.ª Sr.ª Juíza Des. relatora Maria José Costa Pinto, disponível em www.dgsi.pt.
[2] A. Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., pág. 77.
[3] José Lebre de Freitas, “Introdução ao processo Civil, conceito e princípios gerais”, 2.ª ed., reimpressão, págs. 118/119.
[4] A. Geraldes, ob. cit., pág. 78.