Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1766/25.0T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA PAULA GRANDVAUX
Descritores: CARTA POR PONTOS
CASSAÇÃO DA CARTA DE CONDUÇÃO
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
PROCESSO ADMINISTRATIVO
SUSPENSÃO DA CASSAÇÃO
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CANTANHEDE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 121.º-A, N.ºS 1, 2 E 3, 132.º, 148º, NºS 1, 2, 4, ALÍNEA C), E 10, E 169.º, N.º 4, DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 32.º DO D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/REGIME GERAL DAS CONTRAORDENAÇÕES
Sumário: I - No sistema da carta por pontos a cada condutor são atribuídos pontos, que podem ser acrescentados ou retirados.

II - A perda da totalidade dos pontos pelo condutor implica a cassação do título de condução e a impossibilidade de o obter por 2 anos, derivada do facto de o comportamento prevaricador e reiteradamente violador do Código da Estrada, levar à quebra de confiança na capacidade para circular na via pública, com respeito pela lei.

III - Se o condutor quiser voltar estar legalmente habilitado a conduzir deve prestar as provas previstas na lei, que lhe permitam recuperar o título de condução e restaurar, por essa via, o voto de confiança que o ordenamento lhe havia feito quando lhe atribuíra ab initio a carta de condução.

IV - A notificação da perda de pontos destina-se a dar conhecimento ao agente de que, complementarmente à perda de pontos, ele tem de frequentar uma acção de formação ou realizar um novo exame de condução, que não são benesses, mas sim deveres que acrescem á subtracção de pontos, isto é, são determinadas consequências jurídicas que o legislador previu para os condutores que já atingiram um patamar elevado na “violação da lei que regula o comportamento estradal” e, que por isso, ficam obrigados, também, a determinadas condutas.

V - Para cassação da carta a lei obriga a ANSR a abrir um processo administrativo, com o fim único de avaliar se estão presentes todas as condições que a lei exige, para poder ser aplicada essa medida de segurança.

VI - Não é possível a suspensão da cassação do título de condução, quer porque e notoriamente contrária aos objectivos prosseguidos pelo legislador, com a criação inovadora de tal medida de segurança, quer porque não está previsto legalmente que tal medida possa ser passível de qualquer atenuação, nos termos do artº 73º/2 do C.P.

Decisão Texto Integral: ²

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

1 – Por decisão proferida em 02-10-2023 pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), o arguido … foi sujeito à medida de cassação do seu título de condução, nos termos do disposto no artigo 148°, n° 2, n° 4, alínea c) e nº 10, do Código da Estrada.

2 - O arguido não se conformando com tal decisão, recorreu da mesma (recurso de impugnação judicial) - para o Tribunal …, alegando em síntese o seguinte:

“(…)  …

Alega que a decisão de cassação viola o princípio jurídico do ne bis in idem, previsto no artigo 29º nº 5 da CRP e consagrado no artigo 54º da CAAS como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais, que à sua conduta já se aplicou uma "punição" (em sentido amplo) que foi cumprida e que de acordo com o referido princípio, o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes.

Refere que não teve oportunidade de frequentar uma ação de formação de prevenção rodoviária, de forma voluntária, por não ter 1 (um) ponto registado, e, assim, nunca lhe foi permitido aos mecanismos de atribuição de pontos aos condutores.

Refere ainda que as decisões condenatórias que fundamentam a decisão que ora impugna foram proferidas nas seguintes datas: 30.09.2020, 30.09.2020, 25.02.2020, 22.11.2019 e 16.10.2020, respetivamente, sendo que transitaram todas as decisões em julgado nas seguintes datas: 05.11.2020, 03.11.2020, 26.06.2020, 23.12.2019 e 13.11.2020, respetivamente.

Acrescenta que de acordo com o nº 5 do artigo 148º do CE, no final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, e verificando-se a inexistência de infrações registadas nos últimos 3 anos (desde 2020), já lhe deveria ter sido automaticamente atribuído 3 (três) pontos no seu Registo Individual de Condutor (…).

3- …

4- O Tribunal judicial de 1ª instância negou provimento ao recurso e manteve a decisão administrativa recorrida, por despacho proferido em 13.5.2025, ao abrigo do artº 64º/2 do RGCO, do qual se transcreve a parte final decisória (com sublinhados nossos):

Em face do exposto, decide-se:

a)  Julgar totalmente improcedente o recurso apresentado e, em consequência manter a decisão de cassação do título de condução …, pertencente ao arguido, em conformidade com o disposto no artº 148º do Código da Estrada.

 5 – O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, do despacho judicial proferido no Tribunal da 1ª instância, que manteve a cassação do seu título de condução, pugnando pela revogação do mesmo e pela sua substituição por uma outra decisão judicial, que revogue a decisão condenatória proferida pela Autoridade Administrativa, …

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
1. …
2. O Douto Tribunal a quo, por sentença proferida a 13.05.2025, julgou improcedente o recurso apresentado e manteve a decisão de cassação do título de condução do Recorrente.
3. Esta decisão enferma de erro de interpretação dos factos e de aplicação da lei.
4. O princípio ne bis in idem comporta duas dimensões principais: proibição de duplo julgamento e proibição de dupla punição. A pedra basilar deste princípio é a necessidade de garantir a certeza e segurança jurídica, proteger o indivíduo contra decisões contraditórias e assegurar a sua paz jurídica, salvaguardando os seus direitos fundamentais.
5. Exige-se que os factos sejam os mesmos, que o sujeito seja o mesmo e que a decisão anterior sobre esses factos já tenha transitado em julgado.
6. Todos estes critérios estão verificados no caso em apreço. Donde, já tinha ocorrido “julgamento” e já tinha ocorrido a correspondente punição quando o processo de cassação foi instaurado ao Recorrente.

8. Não se pode concordar porque é efetivamente feita uma nova apreciação dos factos, pois de outra forma não haveria sequer processo de cassação.

9. É porque estes factos em concreto ocorreram que a entidade administrativa lança mão dos mesmos como fundamento para instaurar o processo de cassação, o qual, a proceder, culmina num novo sancionamento.

10. Tampouco se perfilha o entendimento do Douto Tribunal a quo no sentido deque a inexistência de previsão legal sobre a possibilidade de suspensão da cassação do título de condução no artigo 148º, nº 4, alínea c), do Código da Estrada (CE), não representa qualquer lacuna a preencher, mas sim a intenção do legislador de que essa possibilidade efetivamente não exista e que, ainda que assim não fosse, nunca uma tal lacuna deveria ser preenchida pelas normas do Código Penal.

11. Um tal entendimento viola desde logo o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, nº 2, da CRP, que exige que as medidas restritivas de direitos fundamentais sejam adequadas, necessárias e proporcionais ao objetivo que visam alcançar.

12. A cassação do título de condução é indiscutivelmente uma medida severa, pelo que em determinados casos pode efectivamente revelar-se desproporcional, como seja no presente caso, emqueo recorrente depende do título de condução para a sua subsistência económica, sendo um profissional que utiliza o veículo como ferramenta essencial para o exercício da sua atividade profissional;

13. O Recorrente não teve – pois não lhe foi dada – a oportunidade de frequentar ações de formação, nem foi explorada a alternativa de aplicação de sanções acessórias menos restritivas. Nestes casos, muito menos se pode conceber que a cassação seja de aplicação automática.

14. A suspensão da cassação deve, ainda, ser defendida com base no interesse público de reabilitar o condutor, mediante uma análise individualizada de cada caso, mas fundamentalmente permitindo-lhe corrigir o seu comportamento através de medidas educativas, até mesmo como uma forma de garantir a aptidão do condutor e, em consequência, a segurança rodoviária.

6- O Ministério Público no Tribunal a quo, contra-alegou …

7 – O recurso para o Tribunal da Relação, foi recebido no Tribunal da 1ª Instância, por despacho proferido em 9.06.2025.

8 – Neste Tribunal, quando o processo foi com vista ao Sr. Procurador-geral-Adjunto, nos termos e para os efeitos do artº 416º do C.P.P, o mesmo formulou em 22.9.2025 o parecer junto aos autos, …

9- Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P e nenhuma resposta foi apresentada.

10- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1- Delimitação do objecto do recurso

As questões colocadas pelo arguido recorrente, nas conclusões da motivação, as quais delimitam o objecto e poderes cognitivos deste Tribunal ad quem, são as seguintes:

A) Da violação do princípio da proporcionalidade (artº 18º/2 da CRP) e do princípio ne bis in idem (artº 29º/5 da C.R.P);

B) Da aplicabilidade do instituto da suspensão execução da pena ou da atenuação especial previstas no CP, à medida de cassação da carta de condução.

2. A decisão recorrida

Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considerou o seguinte quanto à matéria de facto:
A) Factos Provados:
1. O condutor …, apresenta um total de 0 (zero) pontos, em virtude de ter sido condenado pela prática das infrações abaixo descritas e que se encontram averbadas no seu Registo Individual do Condutor.
2. Processo de Contraordenação
3. Processo de contraordenação
4. Processo de Contraordenação
5. Processo de contraordenação
6        Processo de contraordenação
7.       Deste modo, ao total de 15 (quinze) pontos detidos pelo condutor, foram automaticamente subtraídos 2 (dois) pontos (…) e 4 (quatro) pontos (…a, tendo o condutor ficado com 0 (zero) pontos.
8.       Nessa sequência, foi o condutor notificado …, para nos termos e efeitos do artigo 50º do Decreto-Lei 433/82, 27 de outubro, na sua atual redação, se pronunciar quanto ao projeto de cassação do seu título de condução, tendo-se pronunciado
9.       Por decisão datada de 02-10-2023, o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária declarou verificados os requisitos da cassação e determinou a cassação do título de condução …
Da impugnação.
10. O arguido necessita imperiosamente da sua carta de condução para o exercício das suas funções
11.  Outrossim, o arguido é o responsável pelos encargos e despesas da sua vida familiar, sendo que a sua mulher é funcionária do restaurante de que é proprietário.
12.  Ficar sem carta é suscetível de colocar em causa a sua própria suficiência económica e a manutenção dos postos de trabalho vigentes.


B) Factos Não Provados:
Não existem.

Motivação:

3.ANALISANDO

A) Do errado enquadramento jurídico e da alegada violação do princípio ne bis in idem no caso presente

Veio o arguido invocar que o Tribunal a quo, errou no enquadramento jurídico que efectuou na decisão proferida em 13.5.2025, porquanto julgou totalmente improcedente o recurso de contraordenação e, em consequência, manteve a decisão administrativa proferida em 02-10-2023 pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), no âmbito do processo de cassação nº 165/2023, que determinou a cassação do título de condução de que é titular, nos termos do artigo 148º, nºs 2, 4, alínea c), e 10 do Código da Estrada, em virtude da perda total dos respectivos pontos, na sequência de condenações anteriores em penas acessórias de proibição de conduzir.

Argumentou em síntese, que essa decisão judicial, enferma de um erro na interpretação dos factos e na aplicação da lei e que através da instauração do processo Administrativo para  cassação da carta, se verificou a violação do princípio ne bis in idem, porquanto os factos são os mesmos, o sujeito é o mesmo e as decisões condenatórias anteriores proferidas nos processos contraordenacionais de que foi alvo já tinham todas transitado em julgado.

Deste modo, tendo já havido julgamento e o arguido sido sancionado, por aqueles ilícitos contraordenacionais, no âmbito daqueles processos, não podia o arguido voltar a ser julgado e sancionado, no âmbito do processo de cassação que lhe foi instaurado e onde segundo o arguido, foi efectivamente feita uma nova apreciação daqueles mesmos factos, que culminou com um novo sancionamento aplicado pela ANSR: a cassação da carta.

Conclui assim, que o Tribunal recorrido errou quanto manteve a decisão da ANSR de cassação da carta de condução.

Pede por isso que com base nestas razões, seja considerada ilegal e revogada a decisão administrativa da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária de 02-10-2023, que determinou a cassação da sua carta de condução.

Quid Juris?

O recorrente não tem razão.

O arguido é  titular da carta de condução … e apresenta um total de 0 (zero) pontos, em virtude de ter sido condenado pela prática de várias infrações averbadas no seu Registo Individual do Condutor e identificadas na factualidade provada descrita na decisão recorrida.

Na realidade, analisando essa factualidade, verificamos que por decisão transitada em julgado, proferida em vários processos de contraordenação, o recorrente foi condenado, em coima e sanção acessória de inibição de conduzir, …

Ademais, na sequência de ter ficado com 0 pontos, foi o arguido notificado …, para nos termos e efeitos do artigo 50º do Decreto-Lei nº 433/82, 27 de Outubro, na sua atual redação, se pronunciar quanto ao projeto de cassação do seu título de condução, tendo-se pronunciado.

Por decisão datada de 02-10-2023, o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária declarou verificados os requisitos da cassação e determinou a cassação do título de condução ….

Perante estes factos que se mostram fixados, vejamos a lei aplicável.

A Lei n° 116/2015 de 28/08 veio prever um regime de pontos que são atribuídos a cada condutor.

É assim aqui relevante, o regime imposto pelo artº 121°-A, n° 1 do Código da Estrada que prevê que a cada condutor são atribuídos doze pontos, prevendo-se nos n°s 2 e 3, as situações em que podem vir a ser acrescidos pontos.

Estatui ainda o artº 148° do Código da Estrada que:

“1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtracção de pontos ao condutor na data do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:

a) A prática de contraordenação grave implica a subtracção de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efectuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;

b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtracção de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.

2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n° 3 do artigo 282° do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n° 3 do artigo 281° do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.

3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n° 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtracção a efectuar não pode ultrapassar os seis pontos, excepto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtracção de pontos se verifica em qualquer circunstância.

4 - A subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:

a) Obrigação de o infractor frequentar uma acção de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;

b) Obrigação de o infractor realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;

c) A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.

5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n° 2 do artigo 121.°-A.

6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infracções é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes colectivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.

7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de acção de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.

8 - A falta não justificada à acção de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.

9 - Os encargos decorrentes da frequência de acções de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infractor.

10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n° 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.

11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efectivação da cassação.

12 - A efectivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações”.

Deste modo, no caso em apreço, como o condutor ora arguido, tinha inicialmente 15 pontos, e os perdeu na sua totalidade, nos termos acima descritos, sem que tenha ocorrido por força da lei, qualquer circunstância posterior, para o acréscimo dos mesmos, ficou com 0 (zero) pontos, após a subtracção dos pontos decorrente das suas várias condenações.

Tal saldo de pontos, implicava a cassação do título de condução e a impossibilidade de o obter por 2 anos, cfr. supra artº 148° n° 4 al. c) e n° 11 do Código da Estrada, pelo que na decisão recorrida não se verificou qualquer errado enquadramento jurídico ou violação do princípio ne bis in idem, como bem resulta explicado na passagem a seguir transcrita, com sublinhados nossos:

“A Lei 116/2015, de 28 de Agosto, que procedeu à décima quarta alteração ao Código da Estrada e entrou em vigor em 01-06-2016 (artigo 6.º), instituiu o sistema de carta de condução por pontos.

Nos termos do disposto no artigo 121º-A, 1, do Código da Estrada (aditado pela Lei nº 116/2015, de 28 de Agosto), a cada condutor são atribuídos 12 pontos.

Por sua vez, dispõe o artigo 148º, 1 a) e b, daquele diploma legal (na redacção dada pelo Lei 116/2015, de 28 de Agosto),

“a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do 1 do artigo 84º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;

b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substânciaspsicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.”

A perda de todos os pontos do mesmo como consequência a cassação do título de condução (nº 3, al. c) da mesma norma). Esta cassação «é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução» (artigo 148º, 10, do Código da Estrada), implicando a impossibilidade de obtenção de novo título de condução pelo período de dois anos (artigo 148º, 11, do Código da Estrada)
De acordo com o preceituado no artigo 169º, 4, do Código da Estrada, o «presidente da ANSR tem competência exclusiva, sem poder de delegação, para decidir sobre a verificação dos respectivos pressupostos e ordenar a cassação do título de condução».
Dos factos 1 e a 6 resulta que o Arguido foi condenado pela prática, após a entrada em vigor do sistema de pontos, de cinco contra-ordenações rodoviárias na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, sendo duas graves e três muito graves. Em consequência do trânsito em julgado de tais decisões, foram subtraídos ao Arguido duas vezes 2 pontos e três vezes 4 pontos o que redundou na perda da totalidade dos 15 pontos que o mesmo detinha, como se extrai do facto 7, pressuposto da cassação do respectivo título de condução.”
Perante esta factualidade provada constante da decisão recorrida e ponderando as normas supracitadas, encontram-se claramente verificados no caso em apreço, os requisitos da cassação do título de condução de que o arguido é titular.
O que se passou é que não obstante, ser tal conclusão indiscutível, o arguido recorrente, ignorando o sentido claro da lei, que resulta da interpretação literal da norma (do artº 148º do CE), veio com o presente recurso querer fazer vingar uma interpretação sem sentido, desvirtuando o fim da norma, que é afinal tão só o de sujeitar cada condutor aos efeitos da perda de pontos e à imposição de uma medida de segurança (a cassação da carta), esquecendo que foi o comportamento prevaricador do agente, que no caso dos presentes autos, o levou à perda total dos pontos que detinha inicialmente quando recebeu a carta de condução das autoridades competentes.
Tratam-se na verdade de pontos que cada condutor possui, quando lhe é atribuída a carta de condução ab initio, - e ao perder a totalidade desses pontos, o arguido ora recorrente, revelou perante o ordenamento jurídico, não ser mais digno do juízo de confiança anteriormente conferido -  juízo esse de confiança, que lhe fora atribuído quando foi considerado legalmente habilitado para poder circular na via pública, ao volante de um veiculo a motor, por meio da prestação de provas escritas e práticas prestadas num estabelecimento de ensino legalmente aprovado para o efeito e nessa medida, lhe fora atribuída um título habilitante (a carta de condução).

Neste contexto (perda total de pontos), a lei prevê que lhe seja retirado o título que o habilita para a condução de veículos a motor (carta de condução), e lhe havia sido anteriormente atribuído por uma escola de condução homologada para o efeito, precisamente pelo facto do seu comportamento prevaricador e reiteradamente violador do CE (incorrendo repetidas vezes em contraordenações graves e muito graves pelas quais foi condenado em coimas e inibições de conduzir), levar à quebra de confiança na sua capacidade para enquanto condutor de um veículo a motor, continuar a circular na via pública, com respeito pelo C.E.

Nesta situação, o agente prevaricador e reiteradamente violador do CE, deverá então ficar impedido de conduzir veículos a motor, através desta medida de segurança (cassação da carta) e se quiser voltar a conduzir, legalmente habilitado, deverá prestar novas provas (previstas na lei), que lhe permitam recuperar esse título de condução, restaurando assim por essa via, o voto de confiança que o ordenamento lhe havia feito, quando lhe atribuíra ab initio a carta de condução, e que entretanto lhe fora retirada, através deste instituto da cassação da carta, nos termos do artº 148º do CE.

Isto é, impõe-se em casos como aqueles em que o arguido se inscreve, que os condutores sejam notificados não para tomar conhecimento de que a perda de pontos ocorreu, mas para que complementarmente à perda de pontos, tenham os mesmos de realizar ainda uma determinada prestação de facto – frequentar uma acção de formação (artº 148º/4 a) do C.E) ou realizar um novo exame de condução (repetir a prova teórica do exame de condução cfr o previsto no artº 148º/4 b) do C.E).

Mas tais prestações de facto, não são “benesses” como parece resultar da interpretação dada pelo arguido a tais normas, são antes deveres que acrescem á subtracção de pontos, isto é são determinadas consequências jurídicas que o legislador previu para aqueles condutores que já atingiram um patamar elevado na “violação da lei que regula o comportamento estradal” e que por isso, ficam obrigados também a determinadas condutas, para além da perda de pontos.

Acresce ainda que para aplicação dessa medida de segurança – cassação da carta –, a lei obriga a ANSR a abrir um processo administrativo, previsto no artº 148º do CE, com o fim apenas de avaliar se estão legalmente previstas todas as condições que a lei exige, para poder ser aplicada essa medida e foi exactamente isso que foi feito no caso dos autos.
Por tudo o que já ficou dito acima, podemos concluir ser evidente, que não houve qualquer violação do princípio ne bis in idem pelo Tribunal a quo, tal como ficou bem explicado na decisão recorrida:
Reportando-nos ao caso concreto, a situação em apreço é claramente distinta das condenações do condutor nos processos contraordenaçionais.
No âmbito do presente processo, decidem-se as consequências legalmente previstas das condenações anteriormente sofridas pelo condutor e não julgamento e punição dos mesmos factos
Cada uma das condenações sofridas pelo condutor implicou a perda de 2 pontos por cada contraordenação grave e 4 pontos por cada contraordenação muito grave.
Distinta dessa factualidade é o efeito dessa perda quando atingidos os 15 pontos que o condutor dispunha. No presente processo não é efetuada uma nova apreciação sobre os factos que estiveram na base das condenações que o condutor sofreu no âmbito dos processos contraordenacionais, não havendo um novo sancionamento.
Face às sanções de inibição de conduzir que lhe foram aplicadas em processos contraordenacionais, foi instaurado processo administrativo nos termos do artigo 148º do Código da Estrada e que tem como objeto a cassação do título de condução do condutor e a interdição de obter novo título durante o período de dois anos, em consequência da perda total de pontos de que gozava, pelo que não se verifica qualquer violação do princípio ne bis in idem.»

Não representa pois o processo instaurado para efeitos de aplicação da cassação, uma nova apreciação dos factos que estiveram na base das contraordenações pelo arguido recorrente praticadas ao longo do tempo (que levaram às condenações por ele sofridas no âmbito dos vários processos contraordenacionais, e à perda sucessiva dos 15 pontos de que era titular, ficando sem nenhum ponto) nem um novo sancionamento por esses ilícitos contraordenacionais – sendo certo que a partir de 2020, não decorreu também um período de 3 anos sem que o arguido tivesse praticados novos ilícitos contraordenacionais cfr o provado em 2) a 6) e 14), pelo que nem sequer se compreende a sua alegação de que lhe deveriam ter sido atribuído 3 pontos, nos termos legais, pois que ao contrário do que vem invocar, o que se verifica é antes uma clara ausência dos pressupostos legais para tal atribuição poder acontecer (artº 148º/5 do C.E).

Tudo visto e face à factualidade que ficou assente e se mostra descrita na decisão recorrida, revemo-nos pois inteiramente nas considerações de Direito, que foram feitas pelo Tribunal a quo, que se mostram inteiramente justas e adequadas às normas legais em vigor e aos princípios de direito aqui aplicáveis, não padecendo a mesma de qualquer nulidade, ilegalidade ou inconstitucionalidade, nomeadamente da violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artº 29º/5 da CRP.

B) Da eventual aplicação do instituto da suspensão da execução da pena previsto no artº 50º e segs do C.P, à medida da cassação da carta

Entendeu também o Tribunal a quo que a inexistência de previsão legal sobre a possibilidade de suspensão da cassação do título de condução, no artigo 148º, nº4, alínea c), do Código da Estrada (CE), não representa qualquer lacuna a preencher, mas sim uma manifesta intenção do legislador, de afastar essa possibilidade.

E que, ainda que assim não fosse, nunca uma tal lacuna poderia ser preenchida pelas normas do CP, segundo passagem a seguir transcrita, da decisão recorrida:

«Ora, a aplicação subsidiária do Regime Geral das Contraordenações (por via do artigo 132º do Código da Estrada) pressupõe que o Código da Estrada e a legislação rodoviária complementar ou especial não regule determinada questão das contraordenações rodoviárias.

Por sua vez, quando o artigo 32º do Regime Geral das Contraordenações estabelece que «em                tudo o que      não       for          contrário à      presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal», tal não significa que se apliquem às contraordenações todas as disposições deste, mas tão só aquelas que possam colmatar casos omissos.

E convém, a este propósito e a título preambular, lembrar que no âmbito  contraordenacional, não se fala em pena, mas sim em coima e em sanções acessórias (cfr. artigos 1º e 21º do Regime Geral das Contraordenações).

Pois bem, os casos omissos são aqueles «casos que não estão previstos, regulados, e para os quais, por isso, não há lei aplicável»{…}  É certo que o legislador não prevê a possibilidade de suspensão da cassação do título de condução operada por via do artigo 148º, nº 4, alínea c), do Código da Estrada.

Mas esta ausência de regulação não é um qualquer anquilosamento do legislador. A mera ausência de legislação não permite a afirmação forçosa e tabelar de que se está perante uma lacuna {…}.

  No Código da Estrada, o legislador não previu suspensão da execução da cassação do título de condução. Como também, no Regime-Geral das Contraordenações, o legislador não previu a suspensão da execução da coima.(…). Efectivamente, se o legislador quisesse ter previsto a suspensão da execução da cassação, tê-lo-ia feito expressamente. O legislador deliberada e conscientemente não aditou uma norma que permitisse aquela suspensão.

Isto é, a inexistência de regulamentação de um determinado conteúdo, in casu a suspensão pretendida pelo Arguido, corresponde a um plano do legislador.{…}  Tratam-se de opções legislativas, e não de omissões a carecer de integração.»

Neste ponto, importa dizer, que também este Tribunal de Recurso se revê na posição assumida pelo Tribunal a quo, e respectiva fundamentação, quanto à impossibilidade de “suspensão da execução da cassação”.

Desde logo, por tal suspensão ser notoriamente contrária aos objectivos prosseguidos pelo legislador, com a criação inovadora no nosso sistema, de tal medida de segurança – a cassação da carta de condução -, daí a inviabilidade segundo é nosso entendimento, de recurso à aplicação analógica do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, regulado no artº 50º e segs do CP.

Pensemos no seguinte: Se o condutor prevaricador, viola reiteradamente o CE e deixa de ser merecedor do voto de confiança por parte do ordenamento jurídico, que assim vê razões para lhe retirar o título que o habilita à condução de veículos a motor, pelo menos durante 2 anos, sujeitando-o após o decurso desse período, à prestação de novas provas, caso queira ficar novamente habilitado legalmente para essa condução, a que título se iria então suspender a execução dessa medida de segurança, permitindo em consequência que os demais utentes da via pública ficassem sujeitos a um condutor claramente “perigoso” para a circulação rodoviária, o qual, apesar de ser autor de várias contraordenações graves e muito graves ao CE, iria poder continuar a conduzir veículos a motor nas vias públicas?

Essa suspensão da execução, seria claramente contraditória com a finalidade e objectivos previstos pelo legislador ao criar a “cassação da carta” e esvaziaria de sentido esta mesma medida.

Neste seguimento, exactamente pelas razões acabadas de expor, defendemos que não se mostra prevista na lei, a faculdade da suspensão da sua execução, nem está previsto legalmente que tal medida possa ser passível de qualquer atenuação, nos termos do artº 73º/2 do C.P.

Alem do mais, nem se invoque como fez o arguido, que “necessita imperiosamente da carta de condução para o exercício das suas funções profissionais …”, violando-se assim o principio da proporcionalidade previsto no artº 18º/2 da C.R.P.

Na verdade, importa sublinhar que ficou demonstrado, cfr  consta da factualidade provada (sob os pontos 11. e 12) da decisão recorrida, que o veículo automóvel constitui uma ferramenta de trabalho essencial, uma vez que o arguido se serve da condução do mesmo nas suas funções de gestão diária de um restaurante de que é proprietário e nessa medida ficar sem a carta é susceptível de colocar em causa a sua própria subsistência económica e a manutenção dos postos de trabalho vigentes.

Todavia na factualidade provada apenas se apurou que a retirada da carta é susceptível de colocar em causa a sua subsistência económica, ignorando este Tribunal se o arguido, com o recurso à sua mulher funcionária do mesmo restaurante ou a terceiros, não terá forma de ultrapassar esse obstáculo, durante o período em que ficará impedido de conduzir.

Por outro lado, mesmo que se viesse a verificar essa consequência nefasta, ainda assim, a invocação deste argumento pelo recorrente, traduz uma inaceitável transferência de responsabilidade pelas consequências dos seus actos.

Com efeito, não é a decisão do Tribunal a quo ou deste Tribunal de recurso, desfavorável à sua pretensão, que constituirá a causa dos males que invoca para si.

O que lhe irá acarretar consequências adversas, num período limitado de tempo, em que se impõe a restrição da sua liberdade de poder conduzir um veículo automóvel na via pública, durante o período de 2 anos, por via da cassação da sua carta de condução de veículos a motor, considerada – e bem! – como medida indispensável para evitar males maiores, foi o seu censurável comportamento de reiteradamente violar preceitos do CE e incorrer na prática de contraordenações estradais graves e muito graves, pelas quais foi oportunamente condenado, por decisões já transitadas em julgado…momento em que seguramente, não pensou ou não quis pensar, nas consequências que desses seus actos, poderia resultar não só para si, como para os demais utentes da via pública, e também para a sua família. 

Da conjugação de todas as normas acima mencionadas, retirou assim o Tribunal a quo a conclusão de que a decisão administrativa (ANSR) de cassação do título de condução do arguido e consequente impossibilidade de concessão de novo título no prazo de dois anos, é uma decisão adequada, proporcional e legal, que não violou qualquer norma legal ou constitucional, nomeadamente as referidas pelo arguido, nem nenhum princípio consagrado no nosso ordenamento.

Ora assim sendo, como efectivamente é, verificamos aqui chegados, que no caso em apreço, o Tribunal a quo recorrido, ao manter aquela decisão administrativa, não enveredou por qualquer interpretação ou aplicação de normas susceptível de ferir preceitos legais ou constitucionais, ou de violar o princípio da proporcionalidade (artº 18º/2 da CRP) ou o princípio ne bis in idem consagrado no artº 29º/5 da CRP e é apenas o arguido, quem na fundamentação desta sua pretensão, parece ter esquecido a verdadeira dimensão destes princípios.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 4ª secção deste Tribunal da Relação em:

A) Julgar não provido o recurso do arguido, …, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.

B) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs (artº 513º/1 do C.P.P ex vi do artº 92º do RGCO).


Coimbra, 20 de Novembro de 2025

_______________________

(Ana Grandvaux)

______________________

(Helena Lamas)

_______________________

(Rosa Pinto)