Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
99/14.2TUFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: PROCESSO DE ACIDENTE DE TRABALHO
FASE CONCILIATÓRIA
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - FIGUEIRA DA FOZ – 2ª SECÇÃO DO TRABALHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 99.º DO CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO
Sumário: Na fase conciliatória do processo especial de acidente de trabalho, o juiz não pode decidir questão de incompetência absoluta do tribunal, apenas o podendo fazer na fase contenciosa do mesmo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O acima identificado participante apresentou junto do Ministério Público uma participação de acidente de trabalho, na qual alegava ter sofrido um acidente de trabalho ocorrido no dia 19 de Agosto de 2013 quando prestava funções laborais por conta do seu empregador “Junta de Freguesia da (...) ”, tendo sido assistido pelos serviços clínicos da seguradora, tendo-lhe sido atribuída uma IPP de 3%, com alta fixada no dia 25/11/2013, mas que aquela mesma seguradora lhe recusara posterior assistência médica alegando que o contrato de seguro contratado pelo empregador se reportava a um seguro de acidentes pessoais e não de acidente de trabalho.

Ordenada, pelo Ministério Público, a notificação do dito empregador para informar o que tivesse por conveniente sobre os factos participados e as condições de seguro contratadas, veio o mesmo relatar que o sinistrado se encontrava vinculado por Contrato Emprego-Inserção+, no âmbito de contrato para desempregados beneficiários de rendimento social de inserção. Juntou cópia da participação do sinistro apresentada junto da seguradora contratada e cópia de contrato escrito relativo ao contrato invocado.

A seguradora informou que nos termos da apólice contratada fora informada de que o sinistrado quando sofreu o acidente dos autos estava ao serviço da Junta de Freguesia da (...) , e isso no âmbito de projecto de formação e de um protocolo celebrado entre aquela junta e o IEFP, estando pois o mesmo, tal como os demais formandos, coberto por apólice de acidentes pessoais, ao abrigo da qual fora prestada assistência médica ao mesmo e até à data da alta.

Perante esses elementos, a Ex.ma Magistrada do Ministério Público proferiu despacho, concluindo que o acidente não se encontra abrangido pela Lei dos Acidentes de Trabalho – considerando o vínculo contratual “Contrato Emprego-Inserção+” - e, por isso, inexistia razão legal para o prosseguimento do processo especial emergente de acidentes de trabalho, determinando a apresentação ao Sr. Juiz a quo, promovendo que fosse determinado o arquivamento do processo.

Notificados dessa promoção para se pronunciarem, a seguradora e o autor/participante nada disseram.

Foi então proferido, pelo Ex.mo Juiz, o seguinte despacho:

«Cumpre, antes de mais, e por se ter suscitado, ex officio, tal questão, já se tendo ouvido os diversos sujeitos processuais a esse respeito, apreciar a competência material deste Tribunal para a apreciação destes autos.

A competência visa repartir o “poder jurisdicional entre os diversos tribunais, dizendo, pois, respeito à delimitação interna da atividade deles, quando confrontados entre si” (MONTALVÃO MACHADO/PAULO PIMENTA, O novo processo civil, 2.ª Edição, Coimbra, 2000, p. 79).

In casu, estamos perante a determinação da competência em razão da matéria, uma vez que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada – Art. 65º do Novo Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do disposto no Art. 1º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho.

Por sua vez, temos que a infracção das regras da competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que constitui uma excepção dilatória, podendo ser arguida por qualquer das partes e devendo ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, até ser proferido despacho saneador ou ao início da audiência de discussão e julgamento (Arts. 96º, 97º, n.os 1 e 2 e 576º, n.os 1 e 2, 577º, al. a) e 578º do Novo Código de Processo Civil).

A verificação da incompetência absoluta, por seu lado, implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar, podendo, se for decretada depois de findos os articulados, aproveitar-se estes, desde que o autor o requeira e o réu não ofereça oposição justificada (Art. 99º, n.os 1 e 2 do Novo Código de Processo Civil).

Posto isto, temos que a competência é também, como resulta do já exposto, um pressuposto processual, ou seja, é condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência, sendo que, por isso, a sua apreciação deve sempre preceder qualquer decisão de mérito.

Por sua vez, como se referiu supra, são as diversas leis orgânicas que distribuem por cada categoria ou espécies de tribunal a sua medida de jurisdição, ou seja, determinam a categoria de pleitos que a cada um deles é destinada.

Neste sentido, a competência dos tribunais em geral é, assim, “a medida de jurisdição atribuída aos diversos tribunais; o modo como entre si fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado, em bloco, pertence ao conjunto dos Tribunais” (MANUEL DE ANDRADE, Noções elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 88-89).

A competência em razão da matéria é a competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, ou seja, no mesmo plano, sem relação de sobreposição ou de subordinação entre eles – MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., p. 94, baseando-se no “princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certo sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram” – ANTUNES VARELA/SAMPAIO E NORA/MIGUEL BEZERRA, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra, 1985, p. 207.

No caso sub judice, temos que o Art. 85º, al. c) da Lei de Organização e Funcionamento do Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção em vigor aquando no início destes autos, prescrevia que os tribunais de trabalho são competentes, prima facie, para conhecer, em matéria cível, “Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”, o mesmo constando, actualmente e em relação às secções do trabalho, do Art. 126º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Por sua vez, só é acidente de trabalho aquele que é qualificado enquanto tal na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (já aplicável a este processo, atenta a data em que ocorreu o evento que poderia consubstanciar um acidente de trabalho), que abrange, prima facie, “os trabalhadores por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (Art. 2º, n.º 1), o que não sucede, efectivamente, nestes autos, em que o (alegado) Sinistrado celebrou com uma freguesia um “Contrato de Emprego-Inserção +” e em que o Sinistrado tem direito a, como consta a fls. 11 do processo em papel, “Um seguro contra acidentes pessoais” (e não contra acidentes de trabalho).

Por sua vez, entende-se também não estar perante uma das situações em que o regime desta lei abrange outras pessoas que não os trabalhadores subordinados qua tale, nos termos do Art. 3º, n.º 3 da Lei n.º 98/2009.

Efectivamente, o contrato celebrado visa proporcionar ao Sinistrado “a execução de trabalho socialmente necessário”, não podendo as actividades a desenvolver “corresponder ao preenchimento de postos de trabalho”, sem que o mesmo possa, assim, ser considerado como trabalhador da freguesia em causa, não correspondendo também a uma das situações de formação prática previstas no Art. 3º, n.º 3 da Lei n.º 98/2009 e não havendo sequer obrigação de celebração de um contrato de seguro de acidentes de trabalho que abranja o Sinistrado.

Em suma, conclui-se, pois, que o evento em causa não deve ser considerado como um acidente de trabalho, pelo que esta Secção é incompetente em razão da matéria para a apreciação desta acção, nada mais restando do que retirar as consequências legais de tal conclusão, absolvendo-se a (eventual) entidade responsável da instância.

Pelos fundamentos expostos, considerando verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria das secções do trabalho, absolvo a (alegada) Entidade Responsável “Companhia de Seguros (...) Portugal, S.A.” da presente instância.»

É desta decisão que o autor/participante vem agora recorrer apresentando, nas correspondentes alegações, as seguintes conclusões:

«A relação jurídica que ligou o recorrente à Junta de Freguesia da (...) era de cariz laboral.

O recorrente sofreu um acidente enquanto prestava os seus serviços à Junta de Freguesia no âmbito dessa mesma relação

A qualificação jurídica do “Contrato de Emprego-Inserção +” não pode deixar de se fundar na realidade das relações jurídicas que promove e não na Letra da Lei.

A protecção dos trabalhadores e desempregados exige que sobre ele se estenda o manto da Lei Laboral.

A Lei 98/2009 de 4 de Setembro, contem previsão adequada à situação do Recorrente.

A presente decisão viola de forma grosseira o disposto no artigo 12º do Código do Trabalho.

Nestes termos e melhores de Direito deve dar-se provimento ao presente recurso revogando-se a douta decisão proferida, como é de ELEMENTAR JUSTIÇA».

Não foram apresentadas contra-alegações.


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III.  As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Decorre do exposto que a questão que importa dilucidar e resolver é a de saber se o tribunal a quo poderia ter concluído pela sua incompetência em razão da matéria com a absolvição da instância da seguradora para a concreta questão colocada nos autos.

Vejamos:

O processo especial emergente de acidente de trabalho desdobra-se em duas distintas fases: inicia-se por uma fase conciliatória, dirigida pelo Ministério Público (art. 99.º do Código de Processo do Trabalho), a quem cabe diligenciar pela recolha de todos os elementos de facto devidos e necessários à definição dos direitos das pessoas a quem deve patrocínio, promovendo a final o acordo (e se realizado o acordo, é este submetido imediatamente ao juiz, para homologação) ou desencadeando, a seguir, a fase contenciosa, sendo caso disso, esta dirigida pelo juiz (arts. 117.º e segs.).

Se bem que a instância se inicie com o recebimento da participação (nos termos do disposto no art. 26.º n.º 4 do CPT), a acção judicial “proprio sensu”, ou seja com todas as garantias e regras próprias do processo jurisdicional, sob a direcção do juiz, inicia-se com a fase contenciosa, e esta com a apresentação da petição inicial, tal como se referiu no Acórdão desta Relação de 23-02-2005, in CJ, t. 1, pag. 63 e segs..

E, como também se referiu no mesmo Acórdão, é nessa fase contenciosa que deve/pode conhecer-se da incompetência absoluta, oficiosamente ou mediante arguição de uma das partes, “por razões absolutamente óbvias: só então estão determinados, por regra, os sujeitos processuais, o pedido e a causa de pedir; só nessa fase há garantia de que foi assegurado e exercido o contraditório, estabilizando-se, afinal, a instância”.

É certo que os arts. 97.º e 98.º do Código de Processo Civil, na parte em que indicam o momento em que deve ser conhecida a questão da incompetência, poderiam levar a concluir que poderia ser apreciada antes do despacho saneador, em indistinta “fase do processo” (se arguida ou oficiosamente conhecida). Mas, como se referiu no Acórdão citado, o momento do conhecimento pressupõe sempre “a pendência de uma acção judicial, em sentido próprio, como já se referiu, onde tenha sido assegurada a intervenção e o cabal exercício do contraditório pelos respectivos litigantes”. E já dissemos que, em nosso entender, a acção judicial “proprio sensu” se inicia apenas com a fase contenciosa.

Note-se que, no caso, as divergências sobre a qualificação do contrato que ligava o autor/participante do acidente e a Junta da Freguesia da (...) (melhor manifestadas no recurso e com repercussão sobre a qualificação do acidente como acidente de trabalho abrangido pelo regime da Lei n.º 98/2009, de 4/9 – LAT/2009) só poderiam ser apreciadas jurisdicionalmente na fase contenciosa do processo, asseguradas todas as dimensões do contraditório (nos articulados possíveis e na apresentação e produção de prova). A decisão recorrida antecipou-se ao momento da colocação dessas questões pelas partes (nomeadamente pelo autor/participante) e daí que a decisão sobre a incompetência, consequência da apreciação sobre a real natureza do contrato, surja com mais evidência como menos consistente e prematura.

O que foi requerido ao Ex.mo juiz a quo pelo Ministério Público foi o “arquivamento” do processo e não a declaração de incompetência. O “arquivamento” – que convoca o sentido de extinção da instância - foi pedido porque entendeu o mesmo M.º P.º que inexistia razão legal para o prosseguimento do processo uma vez que o acidente participado não estaria abrangido pelo regime de reparação da LAT de 2009. Ora, a nosso ver, não existe fundamento legal (norma que o sustente) para esse “arquivamento” ser determinado pelo juiz na fase conciliatória do processo. O “arquivamento”, a ser determinado, poderia ter lugar por decisão do Ministério Público, que dirige a fase conciliatória - mas não pelo juiz, o qual a não dirige -, havendo lugar a reclamação hierárquica. Ou, perante os motivos invocados, poderia ter prosseguido até à tentativa de conciliação, dirigida pelo Ministério Público, recusando este depois, eventualmente, o patrocínio nos termos do art. 8.º do CPT, por considerar manifestamente infundada a pretensão do sinistrado, como nos pareceria mais adequado no caso dos autos.

Não pode é uma decisão nesta fase conciliatória, com os fundamentos em causa, impedir que o sinistrado dê início à fase contenciosa, apresentando petição inicial onde exponha as suas pretensões e fundamentos para elas e suscitando a apreciação dos mesmos de acordo com as regras e garantias duma acção judicial em sentido próprio (neste sentido, v. ainda o Acórdão da Relação do Porto de 17/1/2000, in CJ, t. 1, pag. 245-246).
Deverá, assim, proceder o recurso com a revogação da decisão recorrida.

Sumário (a que alude o artigo 663.º nº 7 do C.P.C.):

- Na fase conciliatória do processo especial de acidente de trabalho, o juiz não pode decidir questão de incompetência absoluta do tribunal, apenas o podendo fazer na fase contenciosa do mesmo.


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III- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, delibera-se julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido.

Sem custas, por deles estar isento o Ministério Público.


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 (Luís Azevedo Mendes - Relator)

 (Felizardo Paiva)

 (Jorge Loureiro)