Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1091/12.7TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PERDA TOTAL
PRIVAÇÃO DO USO
Data do Acordão: 04/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 1º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 562, 566, 1305 CC, DL Nº 291/2007 DE 21/8
Sumário: 1. O art.º 41º do DL 291/2007, de 21.8, contém regras de definição da indemnização por perda total aplicáveis no âmbito do procedimento de proposta razoável previsto no Capítulo III do referido diploma legal.

2. Não tendo as partes chegado a acordo no aludido procedimento, recorrendo a A. à via judicial, relevam apenas as regras gerais enunciadas nos art.ºs 562º e 566º, do CC.

3. Decorre destes preceitos (maxime, art.ºs 562º e 566º, n.º 1) que se deverá em regra proceder à restauração natural [colocando o lesado na situação anterior à ocorrência do dano] e só excepcionalmente haverá lugar à indemnização pecuniária - sucedâneo a que se recorre apenas quando aquela é materialmente impraticável, não cobre todos os danos ou é demasiado onerosa para o devedor.

4. A prova da excessiva onerosidade traduzida na flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural recai integralmente sobre o obrigado à reparação.

5. A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, i. é, de usar, fruir e dispor do bem conforme a previsão do art.º 1305º, do CC.

6. Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 

            I. S (…), Lda., instaurou, nos Juízos Cíveis de Coimbra, a presente acção sumária contra Companhia de Seguros (…), S. A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 6 503,83.

Alegou, em síntese, ser proprietária do veículo automóvel de matrícula (...)JZ, interveniente no acidente de viação descrito na petição inicial (p. i.); foi responsável pela produção do sinistro o condutor da viatura automóvel de matrícula (...) CZ, seguro na Ré; advieram-lhe os danos patrimoniais mencionados na p. i. e que assim pretende ver indemnizados.

A Ré contestou alegando desconhecer o modo de produção do acidente e impugnando, igualmente, os danos invocados, concluindo pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador (tabelar) e dispensou-se a selecção da matéria de facto.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo julgou a acção procedente, por provada e, em consequência, condenou a Ré no pagamento, à A., da totalidade da quantia peticionada (€ 6 503,83), a título de indemnização por danos patrimoniais.

Inconformada, a Ré interpôs a presente apelação (em 18.11.2013) formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª - A sentença fez errada aplicação do direito aos factos dados como provados em “s), u) e v)”.

2ª - O veículo acidentado tinha, à data do acidente, o valor comercial de € 962 e a sua reparação foi orçada em € 4 153,83.

3ª - O art.º 41º, alínea c), do DL 291/2007 estipula que um veículo se considera em situação de perda total quando “se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos”, preceito que o Tribunal a quo «afrontou».

4ª - Estando preenchidos os requisitos exigidos por lei, o veículo da A. teria de ser forçosamente considerado “perda total”.

5ª - O período entre o qual tem a A. direito a ser ressarcida pela privação de uso deve ser balizado entre a data do acidente e 27.4.2011 (data em que a Ré enviou missiva à A. com os valores da indemnização).

6ª - O valor diário que a sentença fixou a título de privação de uso é exagerado e desconforme com a actual jurisprudência.

7ª - Não tendo a A. despendido qualquer quantia com o aluguer de veículo nem se dedicando ao mercado de alugueres de veículos, o que se deveria ter apurado era o valor de prejuízo que a A. teve com o facto de não poder usufruir do seu veículo - não se tendo provado esse montante, deve o pedido improceder no que toca à privação de uso.

Em todo o caso, o valor diário a esse título não pode passar de uma compensação à A. e nunca deverá ser fixado em montante superior a € 10/dia.

A A. respondeu à alegação de recurso e concluiu pela sua improcedência.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, apenas, da justeza do valor fixado a título de indemnização pelos danos produzidos no veículo e no património da A., inclusive, a título de privação do uso, ponderando-se, designadamente, se será de atender ao critério enunciado no art.º 41º do DL n.º 291/2007, de 21.8.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) No dia 12.4.2011, pelas 18.50 horas, na Rua da Liberdade, Bairro de São Miguel, comarca e concelho de Coimbra, ocorreu um acidente de viação.

b) Nesse acidente, foram intervenientes, o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula (...)JZ, pertencente à A. e conduzido por C (…) e o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula (...) CZ, propriedade de F (…), Lda., conduzido por J (…).

c) À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros, emergentes de acidente de viação do veículo CZ encontrava-se transferida para a Ré, por contrato de seguro, através da apólice n.º 90.01303 897, com início da validade a 24.02.2011 e termo da validade até 23.02.2012.

d) No dia, hora e local acima referidos, ambos os veículos circulavam na Rua da Liberdade, no sentido descendente, tendo esta, no local, uma inclinação bastante acentuada.

e) No local do acidente, a estrada/rua tem dois sentidos de trânsito, sem separador.

f) O condutor do veículo CZ encostou o veículo automóvel que conduzia, à direita, atento o seu sentido de marcha e parou junto ao passeio, que, no local, serve de separador entre esta rua e o estacionamento dos prédios.

g) Em consequência de tal manobra, o condutor do veículo JZ, que seguia na sua retaguarda, iniciou manobra de ultrapassagem do veículo CZ, sinalizando previamente tal manobra com o sinal de pisca da esquerda do veículo que conduzia, passando, para realizar tal manobra, pela faixa de rodagem à esquerda.

h) Estando o veículo JZ já a circular pela faixa à esquerda, atento o seu sentido de marcha, o seu condutor foi surpreendido com uma manobra realizada pelo condutor do CZ.

i) Este, iniciou a marcha do CZ, para atravessar a Rua da Liberdade, ou para mudar de direcção, ocupando para o efeito a via esquerda de tal rua, onde, na ocasião, o JZ efectuava a manobra de ultrapassagem.

j) Dessa forma, o veículo CZ, cortou a trajectória do veículo JZ e, em consequência, este veículo foi embater com a sua parte da frente, mais sobre o seu lado direito, na parte lateral esquerda do veículo CZ.

k) O veículo de matrícula JZ é um ligeiro de mercadorias de marca «Peugeot», modelo «Partner» (5CD9BD), do ano de 1996.

l) À data do acidente, tal veículo estava estimado, em bom estado de funcionamento mecânico e de conservação, em bom estado ao nível de chaparia e pintura, não padecendo de chapa podre ou amolgada, com os estofos e componentes interiores em bom estado.

m) Em 2009, tal veículo foi objecto das seguintes intervenções e reparações, no valor total de € 2 032,94, acrescido de IVA: mudança de mola, mudança de lâmpada, mudança de filtro de óleo, mudança de filtro de ar, reparação de panela de escape, alinhamento de direcção, mudança de farol direito, mudança de farol, esquerdo, mudança de grelha, mudança de mola, mudança de fole de direcção, reparação de radiador, mudança de resguardo, mudança de ventoinha, mudança de protector, mudança de motor de ventoinha, mudança de casquilho de suspensão, mudança de fole, mudança de braço, reparação de chapa, pintura, mudança de anilha bujon, mudança apoio escape, mudança de regulador, mudança de correia, reparação de alternador, mudança de anilha do bujon, mudança de vela, mudança de jogo de juntas da bomba injectora, mudança de lâmpadas.

n) Em 2010, tal veículo foi objecto das seguintes intervenções e reparações, no valor total de € 1 685,12, acrescido de IVA: mudança de orringue, mudança de bomba manual, mudança de pneu, mudança de válvula, reparação de fuga de gasóleo, mudança de pastilhas de travão, mudança de anilha bujon, mudança de juntas, mudança de tubo, mudança de suporte de escovas, mudança de válvula, reparação de injectores, mudança de bomba de água, mudança de correia de distribuição, mudança de casquilhos, reparação de motor, mudança de bateria, mudança de discos de travão, mudança de interruptor de stop.

o) Em 2011, antes do acidente, tal veículo foi objecto das seguintes intervenções e reparações, no valor de € 685,21, acrescido de IVA: mudança de pneus, alinhamento de direcção, reparação de alternador, mudança de rolamentos, mudança de regulador, mudança de colector, mudança do automatismo pisca, mudança de fusíveis, mudança de fechos, mudança de anilha bujon, mudança de filtro de óleo, mudança de filtro de ar, mudança de óleo, mudança de lâmpadas.

p) A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto a representação e reparação de materiais eléctricos, electrodomésticos e de canalizações.

q) No âmbito dessa actividade, a A. necessitava e necessita de utilizar diariamente tal veículo automóvel, utilizado no transporte de trabalhadores da A., para ir buscar as peças necessárias à reparação de máquinas, para deslocar os seus trabalhadores aos locais onde necessita de efectuar reparações de máquinas e electrodomésticos.

r) Após o acidente, o veículo da A. foi objecto de uma peritagem.

s) A reparação de tal veículo foi estimada em € 4 153,83, acrescido de IVA.

t) A A. não tem possibilidades económicas para proceder à sua reparação.

u) A Ré avaliou o veículo da A. no valor venal de € 962 e propôs indemnizar a A. na quantia de € 343,50, ficando a A. com o veículo sinistrado que a Ré valorou em € 275.

v) Em 27.4.2011, a Ré remeteu, à A. a carta junta a fls. 39, comunicando que a reparação do veículo foi estimada em € 4 153,83, que a Ré avaliou o veículo da A. no valor venal de € 962 e o veículo sinistrado em € 275[1].

w) A A. pretende a reparação do seu veículo automóvel.

x) A A. está privada do seu veículo sinistrado, desde 12.4.2011.

y) O valor do aluguer de um veículo similar custa, pelo menos, a quantia diária de € 25.[2]

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Decorre da alegação da Ré e da factualidade provada [cf., sobretudo, II. 1. u), supra] que esta começou por não assumir a responsabilidade pelo ressarcimento da totalidade dos danos sobrevindos.

Porém, em face da matéria provada, concluindo-se que o condutor do veículo seguro na Ré foi o único responsável pela produção do acidente, ficou claro que sobre ela recai a obrigação de indemnizar a A. pelos prejuízos sofridos em consequência do evento (cf. art.ºs 483º, n.º 1; 562º; 563º e 564º, do Código Civil/CC[3]).

O Tribunal recorrido, considerando recair sobre a Ré a obrigação de reconstituir a situação que existiria, na esfera patrimonial da A., se não tivesse ocorrido o acidente (art.º 562º), condenou-a a pagar-lhe a quantia pedida correspondente ao custo da reparação do veículo JZ e aos benefícios que a A. deixou de obter em consequência do acidente dos autos (art.º 564º, n.º 1, 2ª parte), concretamente, a importância referente ao dano da privação do uso do veículo desde a data do acidente até pelo menos 15 dias após a comunicação da Ré de 30.6.2011, atendendo ao alegado e peticionado e ao valor apurado em II. 1. y), supra.

Como se vê, a Ré discorda e pugna pela fixação de valores inferiores.

3. Diz a recorrente que o Tribunal a quo «afrontou» o preceituado no art.º 41º, alínea c), do DL 291/2007, de 21.8, normativo que estipula que um veículo se considera em situação de perda total quando “se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos”, critério de reparação que o Tribunal recorrido não adoptou.

Independentemente da evolução legislativa nesta matéria, de que aqui não importa cuidar[4], dir-se-á que o disposto no art.º 41º do DL 291/2007, tal como ocorria com o art.º 21º-I do DL 522/85, de 31.12, resulta da transposição de diversas directivas comunitárias, na parte referente à instituição de um “procedimento de oferta razoável”, actualmente regulado no Capítulo III do citado DL 291/2007, com o objecto definido no seu art.º 31º: «O presente capítulo fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel».

Ou seja, o art.º 41º do DL 291/2007, e aquela concreta estatuição, invocada pela recorrente, envolve regras de definição da indemnização por perda total, apenas aplicáveis no âmbito do “procedimento de oferta razoável” previsto no respectivo Capítulo III (Da regularização dos sinistros”/art.ºs 31º a 46º); a norma em apreço constitui tão só um critério para o procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável” (prevista nos art.ºs 38º e 39º), destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade.

Decorre dos elementos juntos aos autos que, no âmbito de tal procedimento (extra-judicial), as partes não chegaram a acordo, tendo a A. recorrido à via judicial, pelo que, sem quebra do respeito sempre devido, não existe qualquer suporte jurídico para a pretensão da recorrente, no sentido de nesta sede processual se dever atender ao mencionado critério/factor de reparação.[5]

4. Sabemos que o mercado de veículos automóveis usados tem “leis específicas” em matéria de formação de preços, principalmente, quando se questiona a valorização ou a desvalorização dos bens, levando, muitas vezes, a ignorar as suas concretas características e, nas situações de “perda” em consequência de sinistros, a importância que tinham na vida e no património do lesado (o seu valor dentro do património e/ou para a vida do lesado).

A jurisprudência, partindo do princípio geral de que a reparação de um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação [art.º 562º/Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação], tem propugnado a aplicação de critérios que possibilitem uma efectiva reparação, designadamente, quando está em causa a reparação de veículos automóveis usados ou até muito usados em situações em que o valor da reparação ultrapassa significativamente o valor comercial da viatura[6] e/ou, sobretudo, se e quando importa atentar na importância de um determinado veículo sinistrado para a vida (pessoal e profissional/empresarial) do lesado[7], por se constatar que, na generalidade dos casos, as importâncias propostas ou atribuídas, atentos os respectivos valores comerciais, são irrisórias, podendo não reconstituir a situação que o lesado teria se não fossem os danos - será pois de atender ao valor que o veículo representa efectivamente – tal como estava antes do sinistro – dentro do património do autor (e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse).[8]

Por conseguinte, importará adoptar a orientação assente no princípio geral (da reposição natural) consagrado no art.º 562º, ainda que “temperado” pela limitação/correcção decorrente do estatuído no art.º 566º [“Indemnização em dinheiro”/A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor - art.º 566º, n.º 1], obviamente, se e quando a equidade (justiça do caso concreto) assim o exigir.

Dito doutra forma, só excepcionalmente haverá lugar à indemnização pecuniária, que se apresenta como um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os danos ou é demasiado gravosa para o devedor, sendo que a prova da excessiva onerosidade, traduzida na ‘flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural’, recai integralmente sobre o lesante (in casu a seguradora recorrente).[9]

5. Relativamente à questão da ressarcibilidade autónoma do dano da privação do uso, uma perspectiva claramente minoritária tem entendido que a indemnização pela privação do uso de certo bem, designadamente um veículo automóvel, depende da prova do dano concreto, ou seja, da concretização e demonstração dos prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem [a mera privação do uso de um veículo automóvel resultante da sua paralisação em resultado de estrago em acidente de viação, sem repercussão negativa no património do lesado em termos de dano específico emergente ou cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil], enquanto outros, maioritariamente, sustentam que a simples privação do uso, por si só, constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação.

No desenvolvimento e afirmação desta segunda perspectiva, que se perfilha, considera-se que sempre será necessário provar o dano, mas não exactamente nos termos defendidos pela primeira teoria acima referida, pois que não haverá dúvidas sérias de que a privação injustificada do uso de uma coisa pelo respectivo titular, pode constituir um ilícito susceptível de gerar obrigação de indemnizar, uma vez que, na generalidade dos casos, impedirá o seu proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade.

Estamos, pois, com aqueles que, partindo do princípio de que a privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obri­gação de indemnizar - uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem nos termos genericamente consentidos pelo art.º 1305º -, consideram, no entanto, que a privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano corres­pondente a essa realidade de facto, porquanto “podem ...configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda dela retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade), ou pura e sim­plesmente não usa a coisa; (…) quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na gene­ralidade das situações concretas constituirá facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, automóvel alugado, etc.) com o custo cor­respondente; (…) se puder ter-se por provado que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no aci­dente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período de privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que dizemos que a privação do uso, constitui, por si, um prejuízo indemnizável”.[10]

Assim, para efeito de atribuição de indemnização pela privação do uso não será de exigir a prova de danos efectivos e concretos, mas a ressarcibilidade também não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa (independentemente de que a utilização tenha ou não lugar durante o período de privação), emergindo como critério de atribuição do direito à indemnização a demonstração no processo que, não fora a privação, o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito; se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente.[11]

6. Ficou demonstrado, designadamente, que o veículo JZ é um ligeiro de mercadorias de marca «Peugeot», modelo «Partner» (5CD9BD), do ano de 1996; à data do acidente, estava estimado, em bom estado de funcionamento mecânico e de conservação, ao nível de chaparia e pintura e com os estofos e componentes interiores em bom estado; em 2009, 2010 e 2011 foi objecto de intervenções e reparações, nos valores de € 2 032,94, € 1 685,12 e € 685,21 (acrescidos de IVA), respectivamente; após o acidente, foi objecto de uma peritagem e a sua reparação foi estimada em € 4 153,83, acrescido de IVA; a A. não tem possibilidades económicas para proceder à sua reparação; a Ré avaliou o veículo no valor venal de € 962 e propôs indemnizar a A. na quantia de € 343,50, ficando a A. com o veículo sinistrado que a Ré valorou em € 275; em 27.4.2011, a Ré remeteu à A. a carta junta a fls. 39, confirmando o valor da reparação e comunicando-lhe os demais valores supra referidos [cf. II. 1. alíneas k), l), m), n), o), r), s), t), u) e v), supra].

Provou-se também, nomeadamente, que a A. é uma sociedade comercial que tem por objecto a representação e reparação de materiais eléctricos, electrodomésticos e de canalizações; no âmbito dessa actividade, necessitava e necessita do utilizar diariamente tal veículo automóvel, no transporte dos seus trabalhadores e das peças necessárias à reparação de máquinas e electrodomésticos; pretende reparar o seu veículo automóvel e está privada de o utilizar desde a data do sinistro; o valor do aluguer de um veículo similar custa, pelo menos, a quantia diária de € 25 [cf. II. 1. alíneas p), q), w), x) e y) [12], supra].

Perante o descrito factualismo e o apontado enquadramento jurídico, afigura-se que nada se deverá objectar à aludida fixação da indemnização pelo valor da reparação, não apenas porque não ficou demonstrado o valor comercial (venal ou de mercado) da viatura[13] mas, principalmente, porque, cabendo à Ré provar a (eventual) onerosidade da reparação (art.º 342º, n.º 2), não o fez, relevando ainda a circunstância de se tratar de uma viatura, ao que tudo indica, com uma normal operacionalidade/funcionalidade e que vinha sendo sujeita a adequadas e regulares reparações de manutenção.

Ademais - e, reafirma-se, ignorado o seu real valor de mercado -, dúvidas não restam de que o respectivo valor dentro do património da empresa da A. e para o desenvolvimento da sua actividade seria sempre bem superior àquele que a Ré decidiu indicar/propor à A..

Nestas circunstâncias e afirmando o princípio da reposição natural, nada desaconselhava/desaconselha a reparação (in casu, a indemnização no montante para a efectivar), reconstituindo assim, e na medida do possível, o estado em que estaria a viatura, se não se tivesse produzido o dano - a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562º).[14]

No que concerne à indemnização pela privação do uso do veículo, atendendo aos elementos disponíveis, afigura-se, por um lado, que a sua fixação fica necessariamente confinada pelo limite temporal apresentado pela A., ou seja, desde a data do evento até 15.7.2011 [cf. o art.º 609, n.º 1, do CPC de 2013; e a Ré, ao não disponibilizar a quantia necessária à reparação, inviabilizou que se pudesse atender a uma data anterior e potenciou a possibilidade de se atender a uma data muito posterior…] e, por outro lado, que o valor diário apurado em II. 1. y), supra, não deverá ser reduzido, desde logo, porque a Mm.º Juiz a quo veio a considerar um valor inferior ao do mercado de aluguer de viaturas automóveis (com idênticas características)[15]; acresce que as descritas circunstâncias do caso concreto não tornam razoável ou adequada nova dedução/correcção (ao montante fixado), à luz do critério da equidade previsto no n.º 3 do art.º 566º[16].

Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Ré/apelante.


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08.4.1014

Fonte Ramos ( Relator )

Inês Moura

Fernando Monteiro



[1] Identificado/discriminado na aludida missiva como “valor do veículo danificado”.
[2] Como se refere na “fundamentação” da decisão sobre a matéria de facto (fls. 71), a informação junta a fls. 67 dos autos reporta-se ao valor do aluguer de um veículo de marca Peugeot, modelo Partner, sendo que, na dita informação, é indicado, para o período de Abril a Outubro de 2012, e para aquele veículo ou similar, o “preço” médio diário de € 31/32, acrescido de IVA, o que se traduziria num valor de € 38,13/€ 39,36.
[3] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[4] Vide o preâmbulo do DL n.º 291/2007, de 21.8, e, entre outros, o acórdão da RP de 25.02.2013-processo 1170/10.5TJVNF.P1, publicado no “site” da dgsi.

[5] No sentido da não atendibilidade daquele critério na fase judicial, cf., além do cit. acórdão da RP de 25.02.2013-processo 1170/10.5TJVNF.P1, os acórdãos da RP de 07.09.2010-processo 425/09.6TBPFR.P1 e da RC de 10.7.2013-processo 154/11.0TBOHP.C1, publicados no “site” da dgsi, o primeiro, subscrito pelo ora relator como “1º adjunto” e, o último, subscrito pelos aqui “adjuntos”.

   Acresce que considerar provado que a recorrente atribuiu ao veículo o valor venal de € 962 [cf. II. 1. alíneas u) e v), supra] não equivale a considerar provado que o veículo tinha efectivamente esse valor venal (comercial ou de mercado), pelo que, não se tendo provado o valor venal/comercial do veículo, sempre seria insusceptível de aplicação, in casu, o critério previsto na alínea c) do n.º 1 do art.º 41º do DL n.º 291/2007 de 21.8.
[6] Cf., entre outros, os acórdãos da RL de 04.6.1998 e do STJ de 07.9.1999, in CJ, XXIII, 3, 123 e VII-STJ, 3, 16, respectivamente.
[7] Vide, de entre vários, o acórdão da RP de 12.6.1990, in CJ, XV, 3, 221 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 4ª Edição, pág. 817, nota 1.

[8] Cf. o acórdão do STJ de 04.12.2007-processo 06B4219, publicado no “site” da dgsi.

  Cf. ainda, no mesmo sentido, por exemplo, os acórdãos do STJ de 08.7.1999, 10.02.2004-processo 03A468, 12.01.2006-processo 05B4176 e de 05.7.2007-processo 07B1849 [refere-se neste aresto: “um veículo já com muito uso pode ter um valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, por não lhe permitir a aquisição de uma viatura da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso”], publicados, o primeiro, na CJ-STJ, VII, 3, 17 e, os restantes, no “site” da dgsi, bem como o acórdão da RL de 20.4.2010, in CJ, XXXV, 2, 115.

   Divergindo daquele entendimento (largamente maioritário), cf. o acórdão do STJ de 20.5.1995, in CJ-STJ, III, 2, 97.
[9] Vide, nomeadamente, M. J. de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 12ª edição, 2011, págs. 771 e seguinte e os acórdãos da RL de 16.7.2009-processo 1781/06.3TBALQ.L1-8, da RP 04.7.2011-processo 1937/06.9TBPFR.P1 e 29.5.2012-processo 6029/10.3TBMTS.P1 e da RC de 09.01.2012-processo 153/11.2TJCBR.C1 e 10.7.2013-processo 154/11.0TBOHP.C1, publicados no “site”da dgsi.

[10] Cf., de entre vários, perfilhando o referido entendimento maioritário, os acórdãos do STJ de 21.4.2005-processo 03B2246, 29.11.2005, 09.12.2008-processo 08A3401, 12.01.2010-processo 314/06.6TBCSC.S1, 09.3.2010-processo 1247/07.4TJVNF.P1.S1, 16.3.2011-processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1, 03.5.2011-processo 2618/08.06TBOVR.P1.S1, 28.9.2011-processo 2511/07.8TACSC.L2.S1, 15.11.2011-processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1, 10.01.2012-processo 189/04.0TBMAI.P1.S1 e 08.5.2013-processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1, publicados, à excepção do segundo, no “site” da dgsi [os dois primeiros publicados na CJ-STJ, XIII, 3, 151 e XVI, 3, 179, respectivamente].
    Na doutrina vide, nomeadamente, Júlio Gomes, in Cadernos de Direito Privado, n.º 3, páginas 52 e seguintes e A. Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I, “Indemnização do Dano da Privação do Uso”.
   Relativamente àquela primeira corrente de entendimento (minoritária) cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 04.10.2007-processo 07B1961, 30.10.2008-processo 08B2662 e 30.10.2008-processo 07B2131, publicados no “site” da dgsi.
[11] Cf. o acórdão da RL de 23.10.2007-processo 8457/2007-7, publicado no “site” da dgsi, relatado por A. Abrantes Geraldes.

[12] Cf., ainda, “nota 2”, supra.
[13] Cf., designadamente, a segunda parte da “nota 5”, supra.
[14] Vide, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 545.
[15] Cf., uma vez mais, II. 1, y) e a “nota 2”, supra.
[16] Não cremos, assim, que se devesse aplicar ao caso vertente a orientação doutrinal explanada no citado acórdão desta Relação de 10.7.2013-processo 154/11.0TBOHP.C1.