Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/13.1GAPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: EXAMES
EXAME SANGUÍNEO
ÁLCOOL NO SANGUE
CONTRAPROVA
Data do Acordão: 09/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 292º Nº 1 CP E 153º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: 1. - Se o condutor tiver decidido de forma livre e esclarecida não realizar a contraprova, a sua decisão foi juridicamente relevante, pois que o vinculou;

2.- Consequentemente não pode mais tarde dar o dito por não dito, dizendo que, afinal, queria fazer a contraprova.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi o arguido A... condenado na pena na pena de 85 dias de multa, à taxa diária de € 9,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, dos art. 292º, nº 1, e 69º, nº 1, al. a), do Código Penal.

2.

Inconformado, o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«I. O tribunal "a quo" julgou erradamente a matéria de facto e fez errada aplicação do direito, por isso não pode o recorrente concordar com a sentença em apreço, nem com a fundamentação nela invocada

II. A prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente no que se refere á TAS apresentada pelo arguido é nula por não terem sido salvaguardados os direitos de defesa do arguido, nomeadamente por lhe ter sido recusado o direito á contraprova do exame para pesquisa da TAS

III. Foram incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto vertidos na douta sentença recorrida:

- o arguido veio a ser submetido a pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho de marca DRAGER, modelo 7110MKIII e apresentou uma taxa de álcool no sangue de 1,49 g/I

- o arguido sabia que não podia conduzir veículos na via publica, apos a ingestão de bebidas alcoólicas, o que fez em quantidade que lhe determinou uma TAS de 1,49 g/1, no momento da fiscalização pela GNR

- agiu assim livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta

IV. Na verdade, a convicção do digníssimo tribunal "a quo" está alicerçada numa prova inválida e ilegal, porquanto, para formar a sua convicção, quanto ao estado de embriaguez em que o recorrente "supostamente" se encontraria, baseou-se, apenas e só, no resultado do exame de detecção de álcool realizado

V. A prova produzida em julgamento, que se transcreveu nas motivações, implica a alteração da matéria de facto provada passando a constar desta o seguinte:

- o arguido veio a ser submetido a pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho de marca DRAGER, modelo 7110MKIII

- agiu assim livre, deliberada e conscientemente, no exercício da condução de veículo automóvel, na via pública, não obstante saber que tinha ingerido bebidas alcoólicas.

VI. E, leva a que se considere como não provado que

- Na sequência da sujeição do arguido a exame para detecção de álcool averiguou-se que o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue determinada em 1,49 g/litro.

- o arguido ingeriu bebidas alcoólicas, em quantidade que lhe determinou uma TAS de 1,49 g/1, no momento da fiscalização pela GNR

VII. Isto porque a prova obtida em violação das garantias de defesa do arguido é nula, não tendo sido produzida qualquer outra prova de modo a demonstrar a TAS apresentada pelo arguido.

VIII. "A referência temporal contida no normativo não constitui, de forma alguma, um limite inultrapassável, cuja violação integre o conceito de proibição de prova, mas tão somente uma regra que poderá ser ultrapassada quando as circunstâncias não permitirem o respeito daquele intervalo temporal - Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2003

IX. A validade da contraprova, prevalece sobre o resultado do exame inicial, a qual tendo sido recusada ao arguido não permite considerar como provado que o arguido conduzia com uma TAS de 1,49 g/I

X. Donde, atenta a alteração que deverá ocorrer na decisão a proferir sobre a matéria factual, sempre será de concluir pela absolvição do ora recorrente no que concerne ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez pelo qual foi condenado, por não se verificarem preenchidos os elementos constitutivos desse tipo de crime.

XI. A douta sentença ora recorrida violou os arts. 153º, nº 3, al. a), e do C.Estrada, 2º e 3º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei nº 18/2007, de 17 de Maio, 344º, nº 1 e 4 do CP.Penal, e, 292º, nº 1, do CPenal, e, ainda, o disposto nos arts. 18º, nº 1 e 3 e 32º da Constituição da República Portuguesa».

3.

O recurso foi admitido.

4.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

O Exmº P.G.A. emitiu parecer no mesmo.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

6.

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

«1) No dia 9 de Fevereiro de 2013, cerca das 02h32m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula GX ..., no Largo D. Amélia, em Penacova, altura em que foi fiscalizado pela autoridade policial.

2) O arguido veio a ser submetido a pesquisa de álcool no sangue, através do aparelho de marca “Drager”, modelo 7110MKIII, e apresentou uma taxa de álcool no sangue de 1,49 g/l.

3) O arguido sabia que não podia conduzir veículos na via pública, após a ingestão de bebidas alcoólicas, o que fez em quantidade que lhe determinou uma TAS de 1,49 g/l, no momento da fiscalização pela G.N.R.

4) Agiu, assim, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta.

5) O arguido trabalha como técnico oficial de contas, retirando dessa actividade a quantia de € 1.100,00 (mil e cem euros) mensais.

6) Vive com a mulher que é escriturária e duas filhas com 26 (vinte e seis) e 16 (dezasseis) anos de idade.

7) Paga mensalmente a quantia de € 600,00 (seiscentos euros) pela aquisição da sua habitação e € 500,00 (quinhentos euros) pela aquisição de uma segunda habitação.

8) Tem como habilitações literárias o curso complementar dos liceus.

9) Do certificado do registo criminal do arguido não consta qualquer condenação».

7.

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

8.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados nos seguintes termos:
«Os factos acima provados assentaram, desde logo, no depoimento do arguido que confirmou ter ingerido bebidas alcoólicas, após o que conduziu o seu veículo, tendo sido fiscalizado no local supra mencionado. Foram também valoradas as suas declarações no que concerne à sua situação sócio-económica.
Consideraram-se também os depoimentos das testemunhas B... e C..., Cabos da G.N.R., a prestarem serviço no Posto Territorial de Penacova, os quais, de uma forma coerente e credível, descreveram as circunstâncias em que fiscalizaram o arguido, altura em que detectaram que o mesmo conduzia com álcool no sangue, após o que o conduziram ao Posto, onde fizeram o teste, acusando a taxa supra mencionada.
Mais esclareceram que após o resultado do teste informaram o arguido que poderia solicitar a realização da contraprova, que o mesmo recusou, sendo que mais tarde, após elaborarem o expediente, quando o apresentavam ao arguido para assinar, este solicitou a realização de contraprova, que negaram por já ter passado muito tempo após a realização do primeiro teste.
Valoraram-se também os depoimentos das testemunhas D..., cunhado do arguido, que o acompanhava no momento da fiscalização, E... e F... , sobrinhos do arguido, que se deslocaram ao Posto da G.N.R., os quais assistiram à recusa por parte dos elementos da G.N.R. de realizar a contraprova ao teste de pesquisa de álcool no sangue, no momento da elaboração do expediente.
Consideraram-se ainda os depoimentos das testemunhas G... e H... , que confirmaram ter estado com o arguido, em altura antecedente à da fiscalização, confirmando que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas.
Foi também valorado o documento junto aos autos a fls. 4 e o certificado do registo criminal junto a fls. 16.
Não se provou qualquer outra matéria para além da consignada supra, pois não se produziu mais nenhuma prova que permitisse acrescentar aos provados outros factos, além dos aludidos.
Com efeito, não se valorou a versão apresentada pelo arguido quando nega que tenha recusado fazer a contraprova em momento anterior ao da elaboração do expediente, altura em que pretendeu fazer uso dessa faculdade, pois só nesse momento se apercebeu dessa possibilidade, porquanto as suas declarações surgem contrariadas pelos depoimentos prestados pelos militares da G.N.R. que confirmaram ter explicado ao arguido que dispunha de tal possibilidade, o que o mesmo recusou.
Acresce que resultou ainda dos depoimentos prestados pela generalidade das testemunhas que o arguido não estava de tal forma embriagado ou num estado de inconsciência que não lhe fosse permitido compreender o que lhe foi explicado pelos Srs. Militares que o autuaram».


*

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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:

I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

II – Valor da declaração posterior do arguido, de pedido de realização de contraprova


*


I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

No âmbito dos seus poderes de cognição a relação pode alterar a decisão sobre a matéria de facto se, nomeadamente e conforme decorre do art. 431º do C.P.P., esta tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º e se do confronto entre a prova e a decisão resultar que aquela alteração se impõe por desconformidade entre esta e aquela.

            O arguido ataca a decisão sobre a matéria de facto no que respeita à taxa de álcool que figura nos pontos 2 e 3 dos factos provados, pretendendo que aquela indicação transite para os factos não provados.

            Para tanto alega que, contrariamente ao decidido, após a realização do teste de deteção de álcool não lhe foi dada a possibilidade de realizar a contraprova, pois que quando a requereu não lhe foi permitido fazê-la. Assim, conclui, não pode constar da matéria assente uma qualquer taxa de álcool pois que o exame feito, sem lhe ter sido dada aquela possibilidade, configura meio de prova ilegal.

            Dados os termos do recurso entendemos que está devidamente cumprido o formalismo para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto por via do seu confronto com as provas produzidas, referido no art. 412º, nº 3 e 4, do C.P.P., pelo que passamos a analisar as provas especificadas.

            Como dissemos, o arguido impugna a decisão de se ter dado como provado que conduzia com uma TAS de 1,49 g/l. Como provas demonstrativas do erro de julgamento cometido indica o se próprio depoimento e o depoimento das testemunhas B ..., D ..., E ... e F ....

           

            Sobre os factos o arguido declarou que no dia em causa ele e o cunhado D ... dirigiam-se para a “Casa do Benfica” mas, antes, pararam num restaurante e comeram cada um uma sandes e beberam uma “garrafinha” de vinho, sendo que o sócio do restaurante ofereceu mais uma bebida.

            Chegados à casa do Benfica ficaram «um bom bocado». Quando saíram a GNR estava num local próximo e mandou-o parar. Pediram-lhe a sua identificação, fizeram-lhe o teste de álcool e depois um dos guardas disse-lhe que tinha que os acompanhar ao posto.

            Deslocaram-se ao posto da GNR e fez novo teste.

            Depois disto um dos guardas foi para dentro «fazer o depoimento». Mais tarde leu-lhe o auto e dele constava que não estava interessado em fazer a contraprova. Quando ouviu isto reclamou, disse que não lhe tinha sido apresentada tal possibilidade e disse que queria fazer a contraprova. Nessa altura o militar negou-se e disse-lhe que não ia fazer a contraprova.

            Perguntado se antes desta situação alguém lhe tinha perguntado se queria fazer a contraprova respondeu que não. Acrescentou que se lhe perguntaram isso então fizeram-no de uma forma tal que não entendeu a pergunta.

            Por essa razão, explicou, não assinou nada.

            Disse, ainda, que também fizeram o teste ao seu cunhado e ele, que tinha bebido o mesmo, acusou 0,00.

            B ..., militar da GNR, declarou que estava, com o colega, numa ação de fiscalização e presenciaram a prática de uma infração muito grave por parte do arguido.

            Por isso mandaram-no parar e fizeram-lhe o teste de álcool, que acusou uma taxa de álcool superior ao legal, pelo que o levaram para o posto para fazerem o teste quantitativo, onde acusou uma TAS de 1,49 g/l.

            Realizado este teste o arguido foi informado da taxa apresentada, que aquela taxa integrava um crime, que se encontrava detido e foi, também, informado que poderia realizar contraprova.

            O arguido declarou não querer fazer contraprova, disse «para que é que é preciso outro teste» e reafirmou-o mais que uma vez.

Perante isto foi informado que se manteria detido, que no final do expediente seria libertado e depois seria notificado para comparecer em tribunal.

Depois procedeu à elaboração do expediente, no qual demorou algum tempo.

No final, quando foi confrontado com a assinatura do expediente, recusou assinar e receber o expediente alegando que ninguém lhe tinha dito que poderia realizar a contraprova.

            Disse que com o arguido estava um outro indivíduo, que não assistiu ao teste de alcoolemia realizado no posto: este teste foi realizado com o aparelho ligado dentro da viatura, no interior da garagem, e aquele indivíduo ficou no hall de entrada do posto.

            Perguntado se o arguido percebeu o que a testemunha queria dizer quando o informou que poderia fazer a contraprova, respondeu que ele percebeu muito bem porque quando lhe fez a pergunta ele respondeu que não queria fazer outro teste, que não valia a pena.

            Perguntado porque é que, depois, não fizeram a contraprova respondeu que o arguido agiu de má fé e que quis deixar passar o tempo.

            Perguntado quanto tempo passou entre o teste realizado no posto e o momento em que o arguido requereu a realização da contraprova declarou não saber exatamente quanto tempo decorreu, mas que teriam decorrido uns 30 minutos.

            A testemunha D ..., cunhado do arguido, declarou que foram à Casa do Benfica e quando saíram foram para baixo.

            A GNR estava lá e mandou-os parar. Pediram os documentos ao cunhado e, depois, mandaram-no soprar no balão.

Depois do cunhado soprar foram para o posto: foram juntos no carro patrulha.

            Continuou dizendo que quando chegaram ao posto «ele meteu-se lá para dentro, ficou meia hora, uma hora lá dentro, depois vieram cá para fora, ligaram o computador, e depois o guarda disse que tinha que assinar, ele disse que o meu cunhado queria fazer um teste em Coimbra, contraprova, tinha que sacar o sangue, para ver se tinha álcool no sangue, e ele disse que não era permitido, que já não se podia fazer. Por várias vezes ele pediu que queria ir para Coimbra, e ele disse que já não se podia fazer porque segundo ele tinha dito o meu cunhado tinha dito que não queria. À minha frente não disse».

            Perguntado porque é que o cunhado não assinou respondeu «porque não o deixaram ir a Coimbra fazer a contraprova, essa que fazem tirar o sangue».

Perguntado se tinha assistido a isto respondeu que sim.

Perguntado quanto tempo depois de terem chegado ao posto é que isto aconteceu respondeu que uma hora ou meia hora.

Perguntado se também foi fiscalizado respondeu que sim e que acusou 0,00.

Perguntado se, quando chegaram ao posto, presenciou o cunhado a fazer o teste respondeu que não. Perguntado se demoraram meia hora lá dentro, respondeu que estiveram mais que meia hora e que não esteve com o cunhado porque não o deixaram entrar.

Perguntado o que tinham bebido antes de terem ido para a Casa do Benfica, respondeu que beberam dois copitos cada um, mas que quando se encontrou com o cunhado já vinha de Souselas, onde esteve em casa de um amigo e onde bebeu.

            E ..., sobrinho do arguido, declarou que quando chegou à GNR de Penacova o tio estava lá dentro e ouviu-os dizer para o tio que ele já não podia fazer outro teste, «não pode, não pode, não pode».

Depois o tio não assinou porque não o deixaram fazer a contraprova.

Perguntado porque é que foi ao posto, respondeu que o pai o chamou: chegou ao posto pelas 2 ou 3 da manhã, não sabe bem, mas sabe que era tarde. Quando chegou o tio ainda estava da parte de dentro.

F ..., sobrinha do arguido, declarou que foi ao posto da GNR com o irmão porque o pai os chamou. Chegaram cerca das 2h30m.

Depois houve uma confusão porque o tio pediu para fazer a contraprova, mas não o deixaram fazer.

Por isso o tio recusou assinar. 

            Conforme resulta da motivação da decisão recorrida, o tribunal a quo também relevou o depoimento de C ....

            Vejamos o que disse esta testemunha quando foi ouvido.

            C ..., militar da GNR, declarou que ele e o colega estavam a fazer uma operação.

            O arguido circulava na zona e mandaram-no parar porque ele não tinha parado num stop.

            Pediram-lhe a documentação e fizeram-lhe o teste de álcool, como é normal, que acusou uma TAS de 1,36 g/l.

            Como o resultado foi positivo telefonou para o posto para ligarem o aparelho a fim de, lá, fazerem o teste quantitativo ao arguido.

            Foram para o posto e já lá ainda tiveram que aguardar um pouco para o aparelho ficar à temperatura ambiente. Depois o arguido soprou e acusou uma TAS de 1,49 g/l.

            O colega informou o arguido do resultado e disse-lhe que tinha direito a uma contraprova através do ar expirado ou por recolha sanguínea e o arguido disse que não queria.

            Perguntado se estava presente quando o colega lhe perguntou se queria fazer a contraprova, respondeu que sim. Explicou que no caso de a contraprova ser por ar expirado iam fazê-lo a outro aparelho, a Coimbra, e se fosse por sangue então tinham que ir aos HUC.

            Este é o procedimento que seguem sempre nestas situações.

            Perguntado onde é que o senhor que acompanhou o arguido estava quando lhe fizeram novo teste disse que tinha ficado no átrio do posto e o teste foi feito num compartimento à parte.

            Disse que, depois, chegaram outras pessoas, quando já estavam a elaborar o expediente.

            Depois de o expediente estar pronto é que o arguido se alterou e disse que não lhe tinham dito que podia fazer contraprova.

            Perguntado quando é que tinham mandado parar o arguido respondeu que seriam 2h/2h10m.

            O aparelho do posto demora cerca de 20m a aquecer e quando chegaram ao posto ainda estiveram um pouco à espera e o teste do posto foi feito às 2h32m.

           


*

            Nos termos do art. 127º do C.P.P. excepto quando a lei disser o contrário «… a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

            Significa isto o juiz, na apreciação da prova, está liberto das amarras que a prova tarifada impõe podendo, ao invés, socorrer-se de toda a sua experiência, aqui incluída a experiência do homem comum suposto pela ordem jurídica, ao serviço da averiguação da verdade.

A convicção é a certeza adquirida, o convencimento.

Então a livre convicção é o processo de convencimento do juiz sobre os factos, feito de acordo com a regra acima enunciada.

Esta livre convicção não se forma contabilizando os depoimentos e decidindo de acordo com o números de afirmações feitas para cada lado. Também não se forma apenas e só a partir de depoimentos claros, inequívocos, que relatem todos os pormenores, que recordem todos os episódios. Do mesmo modo não exige coincidência absoluta entre todos os depoimentos relevados na decisão.

A livre convicção é muito mais do que esse exercício primário.

A verdade que se busca no processo, mesmo no processo penal, não é a verdade ontológica, absoluta, pois que a reconstrução exacta dos factos ocorridos é impossível e o juiz, que não é divino, não consegue alcançar um tal patamar.

Mas o processo também não se basta com a verdade formal, apesar de a nossa lei de processo conter espartilhos que, por vezes, a impõem.

O que verdadeiramente se busca no processo é a verdade material acessível ao nosso conhecimento: verdade material porque afastada da influência que a acusação e a defesa exerçam sobre ela; verdade material porque verdade judicial, prática, e obtida não a todo o preço mas de forma processualmente válida [1].

Daí que a prova, para alguns, mais não seja do que uma demonstração do racional, um esforço de razoabilidade: é a verdade contextual e possível que resulta, precisamente, do trabalho de apreciação da prova, apreciação esta que é livre.

Mas esta liberdade não é arbitrariedade. O juiz tem uma margem de liberdade de apreciação, mas dentro dos limites fixados na lei, limites estes constituídos por vectores, essenciais e que integram a base do nosso sistema processual penal, e que são o grau de convicção exigido para a decisão, a proibição de determinados meios de prova e o respeito absoluto pelos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo [2].

            Trilhado todo este percurso surge, então, a decisão, que consiste, afinal, na opção por uma das versões em conflito no processo, já que, conforme sabemos, na esmagadora maioria dos casos defrontam-se, pelo menos, duas versões do julgamento da causa. Não sendo opção do julgador não decidir [3], terá ele que fazer a sua opção, de acordo com as regras enunciadas.

E dito tudo isto bem se percebe quão indispensável é que o juiz cumpra o dever constitucional de fundamentação adequada, consagrado no nº 1 do art. 205º, explicitando os motivos que o levaram a decidir.

            E é, precisamente, a motivação que constitui o mecanismo de controlo do processo de formação da convicção do tribunal. É a motivação que legitima a decisão, ou seja, é a motivação que legitima o poder judicial num Estado de Direito, pois que o que se exige é que o seu destinatário e a comunidade em geral percebam a decisão proferida, isto mesmo que com ela não concordem.

            Por isso é processualmente inútil desferir um ataque à decisão sobre a matéria de facto cuja causa radique, apenas, no facto de a conclusão alcançada não agradar ao recorrente. Conforme se diz no acórdão do S.T.J. de 15-07-2008, processo 418/08, «uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se faz da prova e outra é detectarem-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório».

Assentando a decisão recorrida na atribuição de credibilidade a determinadas fontes de prova em detrimento de outras, só haverá fundamento válido para proceder à alteração da decisão se esta não se apresentar como uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência. Dito de outro modo, se a decisão do julgador for uma das soluções plausíveis a retirar da prova produzida, prova esta analisada e valorada segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que julgue de acordo com a sua livre convicção. Por isso a lei exige que quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto se indiquem as provas que imponham decisão diferente da recorrida: só quando essas provas impõem decisão diferente da recorrida é que se concluirá que a decisão não respeitou tais provas e haverá, por isso, que proceder à alteração.

Ao invés, se as provas apenas permitirem decisão diferente e se a decisão impugnada estiver devidamente fundamentada, então tudo se passa no âmbito de liberdade de apreciação atribuída por lei ao juiz, pelo que ela será imodificável.

E se isto é assim quanto à apreciação de todas provas, excepção feitas às provas legais, é-o por maioria de razão quanto à apreciação da prova testemunhal.

            É evidente que a valoração da prova por declarações depende, para além do conteúdo das concretas declarações prestadas, do modo como as mesmas são assumidas pelo declarante e da forma como são transmitidas ao tribunal, circunstâncias que relevam para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova. A credibilidade dos depoimentos há-de ser averiguada - afirmada ou negada - no confronto do conteúdo concreto da sua descrição dos factos, num quadro de averiguação cuidadosa, da motivação e do interesse de cada um, nesses factos, por forma a afastar a credibilidade dos depoimentos se se ficar com a percepção que os mesmos estavam concertados, no sentido de alteração da verdade ou de criação de uma realidade virtual.

Produzidas as provas cabe ao juiz apreciá-las, apreciação esta subordinada à lógica, à psicologia, às máximas da experiência, e tirar, a final, as conclusões, ou seja, formar a tal convicção de que fala a lei. 

A apreciação livre da prova supõe, evidentemente, que o valor dos meios de prova não está predeterminado. E, então, a sua avaliação terá que reconduzir-se a critérios objectivos ou objectiváveis, determinados pela experiência comum e pelas inferências lógicas do homem comum suposto pela ordem jurídica: o tribunal deve apreciar cada prova de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, ponderação e capacidade crítica do homem comum.

            Regressando à decisão recorrida é possível defender, conforme faz o arguido, que ele não foi informado da possibilidade de realização da contraprova e que o que consta nesse sentido do auto é falso.

            No entanto não é este o nosso entendimento. Face à prova este tribunal de recurso entende, conforme também entendeu o tribunal a quo, que o arguido foi atempadamente informado da possibilidade de realizar a contraprova e que recusou a sua realização.

            Mas diremos mais: a prova indicada pelo arguido como demonstrativa do invocado erro de julgamento não só não impõe a alteração da decisão como corrobora, ao invés, a bondade da decisão recorrida, pois que as testemunhas foram perentórias na afirmação de que foi dada ao arguido a referida possibilidade e que este a recusou, de forma tal que convenceu os militares da G.N.R. da seriedade dessa recusa.

            Assim, improcede a impugnação.


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II – Valor da declaração posterior, de pedido de realização de contraprova

A convicção que depois de feito o novo teste de deteção de álcool o arguido foi informado da possibilidade de realização de contraprova assenta no pressuposto que o arguido foi informado dessa possibilidade, que percebeu aquilo que lhe foi dito e que a decisão de não realizar a contraprova foi tomada de forma livre e esclarecida.

É que se assim não fosse naturalmente que não se poderia dar aquele facto como provado.

Ora, tendo o arguido decidido de forma livre e esclarecida não realizar a contraprova, a sua decisão foi juridicamente relevante, pois que o vinculou. Daí que, mais tarde, quando o arguido disse que, afinal, queria fazer a contraprova, esta nova decisão não tenha sido atendida.

Assim, independentemente da justificação apresentada pelas testemunhas – justificação relevante, pois foi entendido que o momento temporal em que foi manifestada esta alteração de vontade foi desajustado e que aquilo que o arguido quereria era que o tempo passasse para que, assim, a TAS pudesse descer -, entendemos que a decisão de recusa de realização da contraprova foi correta, conforme acima expusemos: sendo uma decisão livre, tomada de forma esclarecida, vinculou o seu destinatário.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, confirma-se na íntegra a decisão recorrida.

Fixa-se em quatro UC’s a taxa de justiça.

Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira


[1] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, pág. 193/194.
2 Limites enumerados por Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário ao Código de Processo Penal, 1ª ed., pág.335.
3 Nos termos do nº 2 do art. 3º do Estatuto dos Magistrados Judiciais estes «não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado».