Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
331/21.6T8LSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
MUNICÍPIO
ALVARÁ DE LOTEAMENTO
ATO ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º, N.º 1, ALS. C) E D), DO ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS, E 37.º, N.º 1, AL. A), DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário: I – O ato pelo qual, no âmbito de um procedimento de aprovação de um loteamento, é cedida determinada área ao domínio publico, para afetação a área verde ou equipamentos gerais, formalizado num alvará de loteamento, constitui um típico ato administrativo.

II – Ainda que o demandante, em ação judicial, fundamente o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada parcela na aquisição derivada, na presunção derivada do registo e na usucapião, se o ato imputado a um município como violador do seu direito de propriedade ocorreu através de um ato administrativo, a competência material para tal ação pertence ao tribunal administrativo.

III – Os pedidos de condenação de um município a abster-se de invocar a existência de qualquer área verde ou para equipamentos sobre o prédio do demandante, bem como a aceitar a viabilidade de construção em tal prédio, e de declaração de nulidade por vício formal de quaisquer atos praticados sobre o mesmo, constituem pretensões que só no âmbito de uma ação administrativa podem ser apreciadas.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 331/21.6T8LSA.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Helena Melo

2º Adjunto: José Avelino Gonçalves

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

C..., Unipessoal, Lda., intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra o Município da ...,

alegando, em síntese:

após comprar o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...54, por escritura de 13.01.2015, a autora veio a realizar uma operação de destaque sobre tal prédio, requerendo o diferimento dessa operação e dos seus critérios, o que veio a acontecer nos seguintes termos:

tal operação foi deferida por “despacho” da Ré, passando a existir dois terrenos urbanos, a parcela destacada e parcela sobrante, sendo que, em tal despacho, a Ré alerta que “a Parcela Sobrante integra uma área de 342m2 da qual a requerente alega ser proprietária (…) Todavia (…) a área em causa encontra delimitada como pertencendo ao domínio publico, pelo processo de loteamento que deu origem ao loteamento nº 02/79 de 10 de Dezembro, para fins de instalação de equipamentos gerais, conforme «planta de apresentação» constante do loteamento em causa” ;

ora, a escritura pública de 05-02-1999, pela qual a anterior proprietária do prédio o adquiriu à sociedade N..., Lda., permite-nos verificar que, já em 1999, o prédio mãe sempre coexistiu com o loteamento referenciado no despacho citado;

de qualquer modo, sempre a sociedade e os seus antepossuidores há mais de 20 anos têm vindo a possuir a identificada parcela de terreno como se de um prédio autónomo e distinto se tratasse, sem oposição e intromissão de quem quer que fosse, de forma pública, pacífica e continua.

Conclui, pedindo:

- a condenação da ré a abster-se de invocar a existência de qualquer área verde ou para equipamentos gerais sobre o prédio do A. Prédio urbano, constituído por terreno urbano, destinado à construção urbana, sito na ... ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...12, descrito na conservatória do Registo Predial ..., sob o número mil trezentos e quarenta, da citada freguesia ..., sob o número ...40, da citada freguesia ..., com a área de 535 m2, e valor patrimonial de €29.607,55,

- reconhecendo ao A. o direito de propriedade plena e exclusiva, sem fracionamentos, nem ónus ou encargos de qualquer espécie, aceitando a viabilidade de construção do mesmo,

- declarando nulos por vício formal por falta de fundamentação todos e quaisquer atos praticados pelo R. em relação ao prédio referido em 1º e ao prédio mãe referido em 2º aqui referidos, em sentido contrário a esta decisão.

A Ré/Município da ... apresenta Contestação, invocando, entre outras, a exceção da incompetência material do tribunal, porquanto, a autora parece colocar em causa a própria existência da cedência ao domínio público que onera o seu terreno,

o alvará de loteamento n.º ...9, de 10 de dezembro, emitido em nome de AA, BB e CC, titulou a aprovação da operação de loteamento, que incidiu sobre o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo ...36, que, como o próprio A. alega resultou da anexação dos prédios n.º ...89, n.º 01247/21... e n.º ...44.

com essa operação, procedeu-se à criação de 16 lotes de terreno destinados a habitação, com uma área total de 5.671 m2., e, por imposição legal, procedeu-se à cedência de parcelas com as áreas de 458m2 e 342m2, para a instalação de equipamentos gerais, identificadas na Planta de Apresentação, sendo a parcela de 342m2 – que a A. alega não onerar o seu prédio – uma dessas parcelas;

desde 1979 até à presente data não existiu qualquer modificação jurídica da área cedida ou à sua configuração, nem ocorreu qualquer alteração ao alvará que determinasse a reversão das áreas cedidas para domínio público, facilmente se conclui que os 342m2 oneram a parcela de terreno sobrante de que A. é titular;

o terreno em causa foi pela primeira vez descrito na Conservatória pela AP n.º 04/21... e AP n.º 04/19... (cfr. doc. n.º 8 junto com a P.I), i.e., dez anos depois da emissão do alvará de loteamento, e nessa primeira descrição – por razões que a Ré desconhece – não consta qualquer referência à cedência ao domínio público da parcela de 342m2.

Conclui que, tal qual está configurada a pretensão, a mesma se insere no âmbito da competência administrativa, conforme resulta do n.º 1 do art.1º e da al. i) do n.º 1 do art.4.º do (ETAF), assim como do art.37.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

A autora responde, alegando, em síntese, no que respeita aos fundamentos do seu pedido:

a Ré, ao atribuir o referido alvará de loteamento não verificou os pressupostos de tal cedência, com base numa declaração de loteamento efetuada de forma incorreta ou até falsa, pois o declarante e o réu sabiam que tais parcelas não pertenciam aos requerentes do loteamento;

a 12 de abril de 1977, o DD, na qualidade de proprietário do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...36, declarando ter vendido em tempos as parcelas A e B, respetivamente a EE e FF, com as áreas de 432m2 para o 1º e 342 m2 para o 2º, veio requerer “a provação do destacamento das referidas parcelas”, desanexação que foi autorizada pela Câmara na sua reunião de 11.05.77;

ou seja, depois de, em 1977, autorizar o destacamento de tais parcelas, dois anos depois autoriza uma operação de loteamento onde aceita que terceiros, interessados neste loteamento, declarem entregar para domínio público a referida parcela B, sem serem proprietários da mesma.

Foi proferido Despacho Saneador que, julgando procedente a invocada exceção, declarou “a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Genérica ..., para conhecer da presente ação e, em consequência, absolve-se o Réu Município da ... da instância.”

Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1º - Por despacho saneador/sentença do Tribunal a quo, este declarou-se materialmente incompetente em razão da matéria, absolvendo a R. da instância, uma vez que considerou que se estava perante uma questão de direito público, com aplicação de normas, princípios e critérios de direito público, motivo pelo qual a competência seria do tribunal administrativo, entendimento este com o qual os ora recorrentes não se conformam.

2º - A competência material dos tribunais é determinada tendo em consideração dois fatores: o pedido e a causa de pedir que configuram a relação jurídico processual submetida à apreciação do Tribunal.

3º - Nos presentes autos a A. vem requerer a condenação da R. a: “abster-se de invocar a existência de qualquer área verde ou para equipamentos gerais sobre o prédio do A. Prédio urbano, constituído por terreno urbano, destinado à construção urbana, sito na ... ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...12, descrito na conservatória do Registo Predial ..., sob o número mil trezentos e quarenta, da citada freguesia ..., sob o número ...40, da citada freguesia ..., com a área de 535 m2, e valor patrimonial de €29.607,55, reconhecendo ao A. o direito de propriedade plena e exclusiva, sem fracionamentos, nem ónus ou encargos de qualquer espécie, aceitando a viabilidade de construção do mesmo, declarando nulos por vício formal por falta de fundamentação todos e quaisquer actos praticados pelo R em relação ao prédio referido em 1º e ao prédio mãe referido em 2º aqui referidos, em sentido contrário a esta decisão.”

4º - Constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir o reconhecimento de propriedade, pelo que veio a A. alegar, que a coisa se encontra em seu poder e que o mesmo é sua propriedade, fazendo menção à presunção de registo, e a toda a relação entre coisa e a sociedade A., relatando todo o seu trato sucessivo, o que permitiu a alegação de usucapião.

5º - O primeiro critério para atribuição da competência material dos tribunais administrativos encontra-se regulado na Constituição da República Portuguesa, mais concretamente no art. 212º, nº3, segundo o qual compete aos tribunais administrativos “o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais", disposição esta que determina que "estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais)", segundo o entendimento dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira.

6º - As relações jurídico administrativas têm dois grandes elementos caracterizadores:

a. As ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público;

b. As relações jurídicas controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

7º - O que significa que um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será um litígio onde estão em causa relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal.

8º - Ora tal não se verifica no caso sub judice, onde o que está em causa é o reconhecimento de propriedade do imóvel, aquisição que além de ser titulada seria sempre efetuada por usucapião, ou seja, regulada pelos princípios de direito civil comum, muito embora uma das partes intervenientes seja um Município, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1362º do Código Civil.

9º - Trata-se de urna questão de direito privado, com aplicação das normas, princípios e critérios respetivos e, em consequência, arreda a jurisdição dos tribunais administrativos.

10º - Nem de outra maneira poderia ser.

11º - Vê-se logo do pedido ser inquestionável que os tribunais administrativos jamais poderiam reconhecer ou denegar a atribuição da propriedade, mesmo que por usucapião essencialmente regulada pelos princípios do direito civil.

12º - E nenhuma norma atributiva da competência dos tribunais administrativos existe que lhes confira a competência material para este tipo de litígios.

13º - Por conseguinte, o tribunal competente para conhecer da presente ação é o tribunal a quo, pelo que mal decidiu o tribunal a quo quando se declarou materialmente incompetente, absolvendo o R. da instância.

14º - Motivo pelo qual deve a sentença ser revogada, considerando o tribunal a quo competente em razão da matéria para apreciação do caso sub judice.

15º - Violou a decisão recorrida os artigos 211.°, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.°, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 e os artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, assim, ser revogada o despacho saneador/sentença ora em crise e ser ordenada a baixa do processo ao Tribunal recorrido considerando-o competente em razão da matéria.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos legais nos termos previstos no nº4, in fine, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. (In)competência dos tribunais comuns – se o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, por tal competência se encontrar atribuída aos tribunais administrativos
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, por tal competência pertencer aos tribunais administrativos.

A decisão recorrida veio a decidir que, face ao pedido formulado na presente ação e o disposto nas alíneas b) e i) do artigo 4º do ETAF, a competência para conhecer tais questões está reservada à jurisdição administrativa, nos termos do artigo 37º do CPTA, com base na seguinte apreciação que faz das pretensões formuladas na ação:

Atendendo ao pedido e à causa de pedir, tal como são invocados pelo autor, o Tribunal teria previamente, de averiguar da titularidade da parcela em questão e da existência ou não de ónus ou encargos sobre a mesma, designadamente da afectação ou não de uma sua parte a domínio público, mediante o falado alvará, que o A. arguiu de nulo.

Dito de outra forma, não sendo requerida a restituição do prédio não se poderá falar em acção de reivindicação e apenas de acção de mera apreciação.

Porém, a conformação do pedido abrange igualmente a pretensão de condenação da Ré a «reconhece(r) ao A. o direito de propriedade plena e exclusiva, sem fracionamentos, nem ónus ou encargos de qualquer espécie, aceitando a viabilidade de construção do mesmo, declarando nulos por vício formal por falta de fundamentação todos e quaisquer actos praticados pelo R em relação ao prédio referido em 1º e ao prédio mãe referido em 2º, em sentido contrário a esta decisão.”

(…)

Ou seja a Ré assume a qualidade de pessoa colectiva de direito público, e para prossecução dos seus fins, são-lhe atribuídos poderes de autoridade, em que se encontra investida, gozando de prerrogativas de direito público, actuando em prol do interesse público.

Assim, temos que foi no exercício desses poderes públicos que a Ré emitiu o alvará de loteamento e afectou ao domínio público parcelas dos prédios loteados cuja nulidade o A. pretende ver declarada, a que acresce a condenação da Ré a aceitar a viabilidade de construção do mesmo.

Ora, presente o pedido formulado, e o disposto no nº 1, als. b) e i) do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro) a competência para conhecer de tais questões está reservada à jurisdição administrativa por força do art. 1º nº 1 do mesmo Diploma, seguindo a forma de acção administrativa nos termos do art. 37º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Lei 15/2002 de 22 de Fevereiro).

Senão, vejamos: consagra o artigo 211º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa que “os Tribunais judiciais são os Tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, e, o artigo 212º, n.º3 da Constituição da República Portuguesa consagra que aos Tribunais administrativos “compete o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas” (vide, artigo 1º do ETAF)

A determinação do Tribunal materialmente competente afere-se em função dos termos em que a pretensão vem formulada pelos autores. Ora, a causa de pedir estriba-se na validade do Alvará, na validade da afectação de parte da parcela ao domínio público e pede-se a nulidade de tais actos e bem assim a condenação da Ré a reconhecer a aptidão construtiva relativamente ao prédio em causa.

Portanto, vistos os termos da acção intentada é ao Tribunal Administrativo que compete julgar a presente acção e não a este Tribunal Judicial da Comarca de ....”

Insurge-se a Autora/Apelante contra o decidido, com fundamento em que, tendo em consideração o pedido por si formulado, de reconhecimento da propriedade, e a causa de pedir ou facto jurídico de onde emerge a propriedade, fazendo apelo à presunção do registo e a sua aquisição por usucapião, a relação em apreço se rege pelas normas de direito comum.

Desde já adiantamos não ser de dar razão à Apelante.

 Sendo residual a competência atribuída aos tribunais judiciais – tendo competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e artigo 66º do CPC) – averiguemos se as invocadas normas atribuem a competência para julgar a presente ação aos tribunais administrativos.

Segundo o disposto no artigo 212º, nº3 da Constituição da Republica Portuguesa compete aos tribunais administrativos o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.

O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação da Lei nº 4-A/2003, de 19.02, redefinindo os critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, começava por definir a competência dos tribunais administrativos de um ponto de vista substancial, reportando-a aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, aproximando-a, assim, da função jurídico-constitucional que lhe é atribuída pelo artigo 212º nº3 da Constituição.

A delimitação substantiva da justiça administrativa feita por recurso à utilização de uma cláusula geral[2], foi, contudo, abandonada com a nova redação dada ao artigo 1º pelo DL nº214-D/2015, de 2 de outubro, optando por remeter a matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal para o artigo 4º do ETAF.

No nº1 do artigo 4º, do ETAF procede-se à enumeração exemplificativa dos litígios sujeitos à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais, indicando nos ns. 2 e 3, situações em que mostra excluída tal competência.

É o seguinte o teor das alíneas b) e i), ao abrigo das quais o tribunal recorrido veio a atribuir a competência para o presente conflito ao tribunal administrativo:

1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

(…)

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

(…)

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

(…)”.

Tratando-se de uma enumeração não taxativa, o conteúdo de cada uma das alíneas deverá ser interpretado, em princípio, à luz da cláusula geral Constitucional, de modo a que a tutela que conferem se reporte a relações jurídicas administrativas (adotado pela al. o) do nº1 do artigo 4º, como critério residual de competência).

Na ausência de uma clarificação legislativa, e às enumeras tentativas de definição de tal conceito, o apelo à relação jurídica administrativa, no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, serve, desde logo, para excluir as relações de direito privado em que intervém a administração, sendo de considerar relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade publica ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando em vista à realização de um interesse publico legalmente definido[3].

“Excluem-se, assim, em principio, do âmbito substancial da justiça administrativa as questões administrativas de puro direito privado, isto é, as decorrentes da atividade de direito privado da administração – quer seja a que corresponde ao mero exercício da sua capacidade privada (negócios auxiliares, administração do património, gestão de estabelecimentos económicos em concorrência), quer se trate de atividades essencialmente administrativas, quando ou não medida em que se através de instrumentos privatísticos (subvenções, fornecimento de bens e serviços, gestão privada de estabelecimentos públicos, intervenções no mercado), ainda que toda a atividade administrativa esteja sujeita aos princípios jurídicos fundamentais de direito administrativo[4]”.

Quanto às questões emergentes de atuações jurídico privadas autorizadas ou licenciadas pela administração, se a questão disser respeito à ilicitude da atuação privada em aspetos que por lei pertençam ao âmbito próprio da autorização ou do juízo autorizativo da administração, havendo decisão administrativa que permitiu tal atuação, só o tribunal administrativo pode conhecer da legalidade da decisão, no contexto do respetivo meio impugnatório[5]”.

A competência dos tribunais é aferida pela forma como o autor configura a ação, definida pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objetivos com ela prosseguidos.

É certo que os tribunais administrativos não são competentes para dizer se a propriedade é de A ou de B, mas tal “não significa que os tribunais comuns sejam sempre competentes para o conhecimento e solução de todos os diferendos, respeitantes ao direito de propriedade, que eventualmente surjam, entre o proprietário e a administração. Na medida em que haja uma ingerência legitima da administração na esfera do direito subjetivo não há incompetência do tribunal administrativo para apreciar as questões surgidas por virtude dessa ingerência, muito embora esteja em causa a propriedade[6]”.

Assim, e regressando ao caso em apreço, é verdade que, com a presente ação, autor pretende o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma determinada parcela, sustentando tal direito de propriedade em normas de direito privado, alegando a sua aquisição por escritura de compra e venda, a existência de registo a seu favor e a sua aquisição por usucapião.

Contudo, o ato que é imputado ao réu como violador do seu alegado direito de propriedade, reside na posição assumida pelo Município, de que a área de 342 m2 de que a autora se arroga proprietária “se encontra delimitada como área cedida para domínio publico, pelo processo de loteamento que deu origem ao loteamento nº2/79 de 10 de dezembro, para fins de instalação de equipamentos gerais, conforme “planta de apresentação constante do loteamento em causa.

A alegada ofensa ao seu direito de propriedade efetivou-se pela via de um ato administrativo, o tal “alvará de loteamento nº...9”. Como melhor se percebe pelo seu articulado de resposta, na tese da autora, a parcela nunca poderia ter sido cedida ao domínio publico, porquanto, àquela data não pertencia já ao prédio inscrito na matriz sob o artigo ...36, objeto de loteamento.

Como tal, e com fundamento nessa alegada ilegalidade do Alvará de Loteamento nº ...9, a autora vem a formular os seguintes pedidos:

a) condenação do Município a abster-se a, de futuro, invocar a existência de qualquer área verde ou para equipamentos sobre o prédio da autora;

b) reconhecendo à autora o direito de propriedade plena e exclusiva, sem fracionamentos, ónus ou encargos, aceitando a viabilidade de construção do mesmo;

c) declarar nulos por vício formal, por falta de fundamentação todos e quaisquer atos praticados pelo R. em relação a tal prédio, bem como relativamente ao prédio mãe.

As pretensões da autora – de condenação da Ré a abster-se de invocar a afetação de tal parcela ao domínio publico como área verde ou equipamentos e de aceitação da viabilidade de construção no prédio que constitui a parcela sobrante a que refere no art. 5º da p.i.  – incidem sobre ato do Município que, no âmbito da aprovação de um processo de Loteamento, afetou determinada parcela de terreno para área de lazer, pressupõem a apreciação do vício de que alegadamente se encontra inquinado o ato pelo qual aquela parcela foi cedida para o domínio público (Loteamento nº 02/79 de 10 de Dezembro) e da pretensão da autora que o mesmo deixe de produzir os respetivos efeitos legais.

Ora, ainda que este tribunal pudesse apreciar a materialidade alegada pela autora e até concluir pela nulidade do ato, não o podia declarar.

Com efeito, o ato pelo qual, no âmbito de um procedimento de aprovação de um loteamento, é cedida determinada área ao domínio publico, para afetação a área verde ou equipamentos gerias – no caso formalizado pelo Alvará de Loteamento nº ...9 – constitui um típico ato administrativo.

A fiscalização da legalidade de atos administrativos (incluindo normativos) praticados por quaisquer órgãos do Estado, ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública, inclui-se no âmbito da jurisdição administrativa (al. c) do nº1 do artigo 4º do ETAF), o que decorre do facto de os atos praticados no exercício da função administrativa serem atos administrativos[7].

Aliás, a anulação e declaração de nulidade ou de inexistência de atos administrativos ou continua a figurar como o primeiro pedido passível de ser formulado junto dos tribunais administrativos (artigo 50º), através de processo que segue a forma de ação administrativa, nos termos do artigo 37º, nº1, al. a), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Como tal, confirma-se que a competência para a apreciação da presente ação compete aos tribunais administrativos, por envolver a impugnação de um ato administrativo, enquadrando-se como tal, na al. d), do nº1 do art. 4º do ETAF.

A Apelação é, assim, de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante.                  

                                                                Coimbra, 28 de junho de 2022                                                                                   


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…)




[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] Cfr., Jonatas E. M. Machado, “Breves considerações em torno do âmbito da justiça administrativa”, in “A Reforma da Justiça Administrativa”, Boletim da F.D.U.C., Coimbra Editora 2005, pág. 86.
[3] José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 18º ed., Almedina, pp.52-53.
[4] José Carlos Vieira de Andrade, obra citada, p. 56.
[5] José Carlos Vieira de Andrade, obra citada, p. 76.
[6] Artur Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina, p. 41.
[7] Ana Fernanda Neves, “Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF”, @pública, Revista Eletrónica de Direito Público, Vol. 1 Nº2 Julho 2014, www.E-PUBLICA.Pt., p. 248.