Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/07.0TBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: ESTABELECIMENTO COMERCIAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
POSSE
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 03/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1251º, 1287º E 2096º, Nº 1, DO C. CIV. .
Sumário: I – Um estabelecimento comercial pode ser objecto do direito de propriedade, podendo o mesmo ser também objecto de posse (artº 1251º C. Civ.) e de usucapião (artº 1287º C. Civ.).

II – A invalidade substancial do negócio jurídico em que se funda a posse não só não faz presumir ausência de animus possidendi como até não impede que a posse em questão seja titulada (artº 1259º do C. Civ.).

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A......, ..., ..., residente na ...., intentou acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra B...., residente no ....., pedindo:

1) A declaração de perda para o réu do seu direito aos bens que sonegou à herança aberta por morte de sua mãe, nomeadamente do estabelecimento «C....»;

2) A condenação do réu a restituir os bens sonegados à herança;

3) A condenação do réu a prestar contas da sua administração da herança, devendo restituir à mesma os bens adquiridos com os respectivos rendimentos para si, sua mulher e filhos;

4) A remoção do réu do cargo de cabeça-de-casal com a consequente designação do autor em sua substituição.

Mais requereu:

5) Que o Tribunal requisite às competentes Conservatória do Registo Predial e Repartição de Finanças as certidões comprovativas dos bens imóveis, com as respectivas datas de aquisição, de que são proprietários o réu, D...., E.... e F.... ;

6) Que o Tribunal determine ao réu que preste informação no processo quanto à forma como explora o estabelecimento « C...», nomeadamente se o faz em nome próprio ou através de uma sociedade por si detida e, neste caso, qual;

7) Bem como relativamente à identificação e saldos das suas contas bancárias.

Para tanto alegou, em síntese, que o falecido pai de autor e réu era proprietário de um estabelecimento de venda de vinhos que corresponde na actualidade ao estabelecimento « C...»; que, com a morte daquele, o estabelecimento transmitiu-se para a viúva e os três filhos do casal, autor, réu e uma irmã; e que, por morte da viúva, o autor omitiu a indicação do estabelecimento na relação de bens que apresentou nas Finanças, sonegando o bem da herança, utilizando os rendimentos do dito estabelecimento em proveito próprio e dos seus familiares mais directos, sem prestar contas da sua administração.

O réu contestou por excepção e por impugnação.

Por excepção, arguiu a ineptidão da petição inicial por falta do pedido principal respeitante à acção de petição da herança, por ininteligibilidade dos pedidos formulados e por cumulação ilegal de pedidos.

Por impugnação alegou que, por morte do pai, o estabelecimento de venda de vinhos transmitiu-se apenas para a viúva, tendo sido o réu quem a auxiliou na respectiva administração até ao momento em que decidiu cessar a sua actividade, passando o réu a gerir por conta própria e em exclusivo o estabelecimento, tendo posteriormente formalizado a situação mediante a outorga de escritura de trespasse do estabelecimento.

Concluiu pela absolvição da instância ou, não sendo o caso, pela absolvição do pedido e condenação do autor, como litigante de má-fé, em multa e indemnização.

O autor replicou alegando a invalidade do trespasse do estabelecimento por violação do disposto no artigo 877º, nº 1, do Código Civil, cuja declaração pediu. Mais pugnou pela improcedência das excepções e impugnou “muitos dos factos” que constam da contestação.

O réu treplicou sustentando a validade do trespasse, uma vez que o negócio não foi oneroso por não ter sido pago qualquer preço, e pediu o desentranhamento da réplica por integrar resposta à defesa por impugnação.

O autor deduziu incidente, que foi admitido, de intervenção principal de D...., mulher do réu. Esta, citada, não apresentou qualquer articulado, nem fez qualquer declaração.

Em sede de despacho saneador o réu foi absolvido da instância quanto aos pedidos supra identificados em 3 a 7, procedendo-se à selecção da matéria de facto assente e controvertida.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 410 a 416, respondendo aos quesitos da base instrutória e desse modo decidindo a matéria de facto controvertida.

Ambas as partes apresentaram alegações de direito por escrito.

Foi depois emitida a sentença de fls. 449 a 466 julgando a acção improcedente e absolvendo o R. e a chamada dos pedidos.

Inconformado, o A. interpôs recurso e na alegação apresentada formulou as conclusões seguintes:

[……………………………………………………..]

Os recorridos responderam pugnando pela improcedência da apelação e requerendo, subsidiariamente, a ampliação do âmbito do recurso, em termos de a acção improceder porque:

[………………………………………………………..]

Pediu ainda a condenação do apelante como litigante de má fé em multa e indemnização adequadas.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

         a) Errada interpretação e aplicação da norma do art. 193º, nº 2 b) do CPC, desrespeito pelo princípio da economia processual e violação das normas do art. 266º do CPC e do art. 2096º, nº 1 do CC;

         b) Errada interpretação e aplicação das normas dos artºs 1287º e 1251º do CC;

         c) Errada apreciação e valoração da matéria de facto e violação da norma do artº 1290º do CC;

         d) Abuso de direito;

         e) Má fé.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada pela 1ª instância e que é a seguinte:

[………………………………………………..]


***

         2.2. De direito

         2.2.1. 1ª Questão

         Mercê da absolvição da instância decretada no despacho saneador, os autos apenas prosseguiram relativamente aos dois primeiros pedidos formulados na petição inicial: (1) declaração de perda para o réu do seu direito aos bens que sonegou à herança aberta por morte de sua mãe, nomeadamente do estabelecimento « C...» e (2) condenação do réu a restituir os bens sonegados à herança.

Na sentença escreveu-se:

“Como se exarou supra, o autor pretende a declaração de perda para o réu do seu direito aos bens que sonegou à herança aberta por morte de sua mãe, nomeadamente do estabelecimento « C...», e a condenação do mesmo a restituir os bens sonegados à herança.

         Aparentemente estariam em causa outros bens além do indicado estabelecimento.

         Todavia, um dos requisitos processuais de regularidade da instância reside na compatibilidade entre o pedido e a causa de pedir [artigo 193º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Civil].

         Ora, a petição inicial é totalmente omissa quanto à indicação de outros bens alegadamente sonegados pelo réu, reportando-se exclusivamente ao referido estabelecimento, pelo que, apesar do recurso ao advérbio «nomeadamente», se terá de concluir que está em causa unicamente a alegada sonegação do estabelecimento.”

         O recorrente insurge-se contra o transcrito trecho da sentença sustentando, na conclusão 1ª, que a mesma “fez uma errada interpretação e aplicação da norma do art. 193º, nº 2 b) do CPC, desrespeitou o princípio da economia processual, e violou as normas do art. 266º do CPC e do art. 2096º, nº 1 do CC, porque tendo o A. pedido a declaração de perda pelos Réus, em benefício dele A., dos bens que o Réu, enquanto herdeiro e cabeça-de-casal, sonegou da herança, identificando o A., na petição inicial, um estabelecimento comercial e alguns imóveis e fazendo prova, através da acção, de que todos esses bens foram adquiridos pelos Réus com os rendimentos do mencionado estabelecimento, os imóveis comprados com os proveitos do estabelecimento também foram sonegados da herança e deverão a ela ser restituídos, com declaração de perda do direito dos Réus aos mesmos”.

         É certo que o A. alegou nos artºs 25º e 26º da petição inicial que “o Réu vem utilizando os rendimentos do estabelecimento « C...», que faz parte da herança, em proveito próprio e de seus familiares mais directos” (artº 25º), “construindo ou adquirindo com esses rendimentos um valioso património imobiliário, quer para si, quer para a sua Mulher e Filhos, parte do qual se encontra situado em ...- «G....», «H.... ».

         É igualmente certo que consta dos factos provados [cfr. nº 6 do item 2.1., supra] que “o réu vem utilizando os rendimentos do estabelecimento « C...» em proveito próprio e dos seus familiares mais directos, construindo ou adquirindo com esses rendimentos património imobiliário para si e sua mulher, parte do qual se encontra situado em ...– « G ...» e « H ...»”.

         Lendo e interpretando as diversas peças processuais do A. que integram os autos constata-se que só o estabelecimento comercial « C...» é identificado como tratando-se de um bem sonegado à herança de I...... Os outros bens - « G ...» e « H ...» - seriam, na própria tese do A., bens construídos ou adquiridos pelo R.[1] com os rendimentos daquele estabelecimento.

         A questão que se poderia colocar seria a de saber se os bens construídos e/ou adquiridos com os rendimentos dos bens sonegados devem considerar-se incluídos na previsão do artº 2096º, nº 1 do Cód. Civil e, consequentemente, perdidos em benefício dos co-herdeiros.

         Antecedente lógico dessa questão é que previamente se conclua que o bem com cujos rendimentos os outros foram construídos ou adquiridos tenha sido sonegado. Não se chegando a tal conclusão, seria, em termos processuais, mera ociosidade inútil enfrentar a indicada questão jurídica.

         Por ora bastará, pois, dizer que não foge da verdade a afirmação feita na sentença recorrida de que “a petição inicial é totalmente omissa quanto à indicação de outros bens alegadamente sonegados pelo réu, reportando-se exclusivamente ao referido estabelecimento, pelo que, apesar do recurso ao advérbio «nomeadamente», se terá de concluir que está em causa unicamente a alegada sonegação do estabelecimento.”

         Se essa eventual sonegação tem ou não consequências relativamente aos bens construídos e/ou adquiridos com os rendimentos do bem alegadamente sonegado é questão para abordar se e quando se conclua que efectivamente houve a invocada sonegação.

         Não se reconhece, portanto, razão ao recorrente, no que tange à questão suscitada na 1ª conclusão da sua alegação de recurso.


***

         2.2.2. 2ª Questão

         Sustenta o recorrente na 2ª conclusão da sua alegação que “o estabelecimento comercial é a organização do comerciante, constituída por um conjunto de bens, incluindo coisas corpóreas e incorpóreas. Representa uma unidade económica e, sobretudo, uma unidade jurídica. Ora enquanto unidade jurídica, o estabelecimento comercial não é objecto de posse, por não ser possível dissociar do todo os elementos que o integram, que são heterogéneos, desde as mercadorias ao «aviamento», e só as coisas corpóreas serem, à face do nosso Código Civil, objecto de posse. Um estabelecimento comercial não é, portanto, usucapível, conforme já o decidiu o Supremo Tribunal de Justiça. Ao não entender assim, a Sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação das normas dos arts. 1287º e 1251º do CC, devendo ser revogada”.

         Saber se um estabelecimento comercial é ou não usucapível passa por saber, antes de mais, se sobre ele poderá ou não incidir um direito de propriedade.

Trata-se de assunto recentemente abordado, de forma exaustiva e convincente, no Acórdão da Relação de Lisboa de 13/03/2008[2], que, na parte que aqui interessa, com a devida vénia, passamos a transcrever:

“A questão de saber se sobre o estabelecimento comercial incidirá um direito de propriedade – ou seja, “um direito tendo por objecto o todo organizado e distinto de todos aqueles outros que incidam sobre os diversos elementos que integram a empresa”[3] – foi objecto de discussão.

Assim, P. Lima e A. Varela[4] rejeitam a existência de um direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial, enquanto sustentam que aquele, como a posse, só incide sobre coisas corpóreas.

Nesse sentido tendo ido o Acórdão desta Relação, de 19-10-1979, in C.J., 1979, IV, pág. 1215.

Já porém Ferrer Correia, para quem o estabelecimento comercial deve ser concebido como uma verdadeira unidade jurídica, expendia, a propósito do problema da possibilidade de reivindicação daquele, ser “inegável que uma eficiente, adequada protecção do interesse do titular na recuperação do estabelecimento com a sua capacidade lucrativa e a sua clientela – exige o reconhecimento da falada reivindicação unitária: reivindicação da propriedade e da posse do todo, sem haver que discriminar os seus vários elementos – aliás em parte essencialmente mutáveis – sem haver que restringir a acção a simples objectos corpóreos”[5].

E “Já, portanto, a lei – ou quando não a lei, a doutrina e a jurisprudência –, rompendo decididamente com a velha concepção atomística do estabelecimento, elevou a empresa à função de bem jurídico autónomo. Assim ressalta, com nitidez forte, quer do modo de ser da reacção contra a concorrência desleal, quer das adaptações inevitáveis que sofre o regime jurídico do usufruto quando a coisa usufruída seja uma casa de comércio, quer do comportamento da empresa enquanto objecto de certos negócios correntes.

É sempre o estabelecimento que a lei vê, como nós vemos, como o olha a vida – o estabelecimento como algo de diferente da mera concentração dos instrumentos de exercício do comércio…é a organização comercial ou fabril com suas virtualidades específicas, suas experiências, suas relações com fornecedores e bancos, segredos de fabrico, sua reputação, clientela, em suma, com seu aviamento próprio.

E se falta ainda a consagração clara e explícita de um direito sobre esse todo, todavia o reconhecimento deste direito facilmente se alcança por via de integração do sistema legal, pois sobre se harmonizar da melhor maneira com os princípios aí sancionados, ele corresponde incontestavelmente a necessidades práticas dignas da maior atenção.”[6].

Também Oliveira Ascensão assinalando que “O estabelecimento comercial é susceptível de posse – e a posse só recai sobre coisas corpóreas”, sendo também que “Enfim, o estabelecimento comercial é susceptível de reivindicação – e a reivindicação, dirigida como é à entrega, só pode recair sobre coisas corpóreas. O estabelecimento reivindica-se na sua unidade, e é a coisa colectiva que é entregue.”[7].

E para Januário Gomes, “…se podemos falar dum trespasse de estabelecimento por excelência, trespasse de estabelecimento por antonomásia (Orlando de Carvalho, in Rev. Leg. Jur., Ano 115º, pág. 12), esse trespasse é a venda do estabelecimento”[8].

Também Menezes Cordeiro – que distinguindo o estabelecimento da empresa, vê nesta um conceito-quadro, que ora se reporta a um sujeito de direitos, ora abrange uma organização produtiva com a sua direcção[9], preferindo conceber aquele como “uma autêntica esfera jurídica e não, apenas, um património” – não deixa contudo de aceitar a possibilidade de o estabelecimento comercial ser reivindicado…

E no sentido da existência de um tal direito sobre o estabelecimento, convivem ainda, fortes argumentos de texto.

Assim sendo, como também dá conta Fernando Gravato Morais[10], com as referências, no art.º 1559º, n.º 1, do Código Civil, aos “proprietários e os donos dos estabelecimentos industriais…”; no art.º 1560º, n.º 1, do mesmo Cód., aos “proprietários ou donos de estabelecimentos industriais…”; no art.º 13º do Decreto-Lei n.º 209/97, de 13 de Agosto (regime jurídico da actividade das agências de viagens e turismo), à “transmissão da propriedade…dos estabelecimentos”; no art.º 246º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, e art.º 1682º-A, n.º 1, al. b), do Código Civil à “alienação (da propriedade) do estabelecimento”; no art.º 1889º, n.º 1, al. c), do mesmo C.C., a “Adquirir (a propriedade do) estabelecimento comercial”; ou ainda no art.º 31º, n.º 4, do Código da Propriedade Industrial, à “transmissão (V.G. da propriedade) do estabelecimento”.

Também no art.º 116º do R.A.U., ao admitir-se que o direito de preferência do senhorio do prédio arrendado, “No trespasse por venda ou dação em cumprimento do estabelecimento comercial”, se assume, sem margem para dúvidas, a possibilidade de aquele ser objecto de direito de propriedade.

Tendo aquela norma transitado para o NRAU, vd. art.º 1112º, n.º 4, do Código Civil.

E que sobre o estabelecimento incide um direito unitário, mostra-se igualmente acolhido no art.º 862º-A do Código de Processo Civil, ao regulamentar a “Penhora de estabelecimento comercial”, certo que nos termos do antecedente art.º 821º, daquele mesmo Código, estão sujeitos à execução, “todos os bens do devedor…”.

Diga-se também que para Ferrer Correia[11], o legislador, ao não tratar a questão nos art.ºs 1302º e 1303º, do Código Civil – como sucede noutras situações – terá tido em vista uma reforma do direito comercial, omitindo deliberadamente a alusão à propriedade do estabelecimento comercial.”


         Demonstrada que ficou, a nosso ver, a possibilidade de o estabelecimento comercial ser objecto de direito de propriedade, demonstrado fica igualmente que pode o mesmo ser objecto de posse (artºs 1251º do Cód. Civil) e de usucapião (artº 1287º do Cód. Civil).

Nega-se, pois, razão ao recorrente, também nesta parte.


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         2.2.3. 3ª Questão

         Defende o recorrente na 3ª conclusão da sua alegação que “o contrato de trespasse do estabelecimento celebrado entre o Réu e a sua Mãe, em 7 de Junho de 1975, é nulo, por força da simulação que o atingiu. A prova dessa simulação assentou em confissão do Réu aceite pelo A.. Ora a participação do Réu no consilium fraudis implica necessariamente a falta do animus possidendi quanto ao estabelecimento comercial, pois, no estado de espírito do Réu, existia o conhecimento de que não podia tornar-se proprietário do referido bem através de um falso trespasse. Logo nunca existiu uma posse capaz de conduzir à aquisição do estabelecimento comercial por usucapião. Precisamente porque o Réu e falso trespassário sabia que lhe faltava a convicção de ser o proprietário do estabelecimento comercial, tentou demonstrar no processo a inversão do título da posse, o que não conseguiu. Está-se perante uma mera detenção do estabelecimento comercial insusceptível de fundamentar a sua aquisição por usucapião. Ao não concluir assim, a Sentença recorrida fez uma errada apreciação e valoração da matéria de facto e violou a norma do art. 1290º do CC, devendo ser revogada”.

Encontra-se provado que “a mãe e o réu outorgaram, em 7 de Junho de 1975, escritura de trespasse do tal estabelecimento de mercearia, vinhos e análogos, pelo declarado preço de PTE 1 000$00” (nº 27 do elenco dos factos provados constante do item 2.1., supra).

Entendeu-se, contudo, na sentença recorrida que, perante a confissão feita pelo R. na tréplica (artº 9º) – de que “no caso concreto não houve qualquer «venda», sendo que o «preço declarado» na escritura foi uma mera formalidade, dado que, com verdade, o R. nada pagou e a mãe nada recebeu” – estamos perante um negócio simulado e, consequentemente, nulo (artº 241º do Cód. Civil).

Poderá de tal nulidade extrair-se, como pretende o recorrente, que o R. não entrou na posse do estabelecimento, por falta de animus possidendi, mantendo-se sempre como um mero detentor precário?

A invalidade substancial do negócio jurídico em que se funda a posse não só não faz presumir ausência de animus possidendi como até não impede que a posse em questão seja titulada (artº 1259 do Cód. Civil)[12].

E da factualidade provada, designadamente da que integra os nºs 17, 18, 22, 24, 27 e 30 do elenco constante do item 2.1. supra, resulta com clareza que o R. vem, desde o início da década de 70 do século passado, praticando, relativamente ao estabelecimento comercial em discussão, os actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, convicto de efectivamente ser proprietário[13].

Quando se abriu a sucessão por morte da I....já há muito havia decorrido o prazo da usucapião, estando consolidada a aquisição originária do estabelecimento por parte do R. Por isso, tendo o questionado bem saído do património da mãe do R., dele deixando de fazer parte, não havia que relacioná-lo, nem a omissão de relacionação integra sonegação.

Também no que a esta questão tange se nega razão ao recorrente.


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         2.2.4. 4ª Questão

         Sustenta o apelante, na conclusão 4ª da sua alegação que “a aquisição de um estabelecimento comercial por usucapião, se tal fosse possível, deveria ser paralisada, no caso dos autos, com fundamento no instituto do abuso de direito (art. 334º do CC), dado tratar-se de uma manifesta imoralidade, contrária às exigências éticas do princípio da boa fé, que quem exerce as funções de cabeça-de-casal, como o Réu, tenha vindo reclamar para si, através da usucapião, bens que doutra forma pertenceriam à herança que lhe cabia administrar. A Sentença recorrida deve, portanto, ser revogada, porque contrária ao disposto pelo art. 334º do CC”.
         Vejamos.
         Dispõe o artº 334 do Código Civil:

         “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

         Como refere Rodrigues Bastos[14], “se se ocasiona um prejuízo a uma pessoa, exercendo um direito que se tem em relação a ela, não existe, em princípio, responsabilidade por esse facto. É o que já se continha no aforismo romano qui iure suo utitur neminem laedit . Porém, como os direitos subjectivos são concedidos para satisfação de necessidades humanas, o seu exercício tem de estar orientado para essa finalidade, pelo que seria contraditório com o próprio conceito de direito subjectivo que o ordenamento jurídico protegesse o exercício de um direito sem interesse algum para o seu titular, ou fora dos limites da equidade, ou contra os princípios da boa fé.”

         Continua o autor citado explicando que a fórmula adoptada pelo Código Civil de 1966 é mais vasta do que a que vinha sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência, compreendendo “não só o caso de emulação, como também o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que outros têm de suportar”.

         Ensina o Prof. Almeida Costa[15] que o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais.

         De acordo com o Ac. do STJ de 26/10/99[16], “a figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida. Por um lado, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico, por outro evitando que observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se exceda manifestamente os limites que se devem observar, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo”.

         As concepções que procuram precisar o conteúdo do abuso do direito reduzem-se basicamente a duas directrizes opostas: uma subjectivista e outra objectivista.

         A teoria subjectiva considera decisiva a atitude psicológica do titular do direito, ter ele agido com o único propósito de prejudicar o lesado (acto emulativo).

         A teoria objectiva, pelo contrário, desliga-se da intenção do agente, dando antes relevância aos dados de facto, ao alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública.

         Segundo P. Lima - A. Varela[17], “a concepção adoptada de abuso de direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.”

         Da mesma opinião é o Prof. Castro Mendes[18] que, depois de se referir aos sentidos subjectivo e objectivo da ideia de abuso de direito, diz: “a teoria objectiva tem sobre a subjectiva a vantagem de evitar o problema da relevância das finalidades psíquicas de loucos ou incapazes. Parece ser esta a aceite pelo artº 334 do Código Civil, na sua parte final que qualifica de ilegítimo o acto pelo qual o titular de um direito o exerce, quando exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.”

         Segundo o legislador, a determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, ou seja da existência ou não de abuso do direito, afere-se a partir de três conceitos: a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito.

         A doutrina distingue dois sentidos principais da boa fé. “No primeiro, ela é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude, resultando de tal estado consequências favoráveis para o sujeito do comportamento. Neste sentido, a boa fé insere-se nas normas jurídicas como elemento constitutivo da sua previsão, da hipótese. No segundo sentido, já se apresenta como princípio (normativo e/ou geral de direito) de actuação. A boa fé significa agora que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”[19].

         “Contudo, dizer-se que a boa fé, neste segundo sentido, exige um comportamento «honesto, correcto e leal» é dizer ainda muito pouco, é confirmar o carácter indeterminado, de «norma em branco», desta cláusula geral - o que acontece, aliás, com quase todas as outras. Por isso, a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de «hipóteses típicas» ou «figuras sintomáticas» concretizadoras da cláusula geral da boa fé. Podemos assim destacar a proibição de venire contra factum proprium, impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente; aquilo que os alemães designam por Verwirkung, com que se veta o exercício de um direito subjectivo ou duma pretensão quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal ou intolerável); o abuso da nulidade por vícios formais - é inadmissível a impugnação da validade dum negócio por vício de forma por quem, apesar disso, o cumpre ou aceita o cumprimento realizado pela outra parte; a proibição de o credor recusar a prestação apta a satisfazer o seu interesse, apesar de não estar inteiramente de acordo com as estipulações contratuais (v.g., ligeira ou insignificante ultrapassagem do prazo ou falta de entrega de diminuta importância em dinheiro numa vultosa obrigação pecuniária - cfr. artº 802, nº 2 do Código Civil); a interdição de se invocar a «excepção de não cumprimento do contrato» (artº 428), quando a falta do inadimplente não seja de tal modo grave que justifique a recusa em cumprir da outra parte”[20].

         Em suma, os conceitos de boa fé e de abuso de direito têm conteúdo e extensão diferentes, sendo que a ideia de abuso de direito pode muitas vezes estar incluída na violação da boa fé. “É o que se dará, em regra, no domínio contratual, onde as partes devem proceder segundo a boa fé: aí, o abuso do direito será frequentemente uma ofensa da boa fé devida”[21].

         Por bons costumes há-de entender-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente.

         O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.

         “Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.

         Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados (como sucede no poder paternal, no poder tutelar, etc.), a par de outros em que se reconhece maior liberdade de actuação ou decisão ao titular (direitos potestativos, direito de propriedade, dentro de certos limites, etc.)”[22]

         O exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto. É isso que resulta expressamente do artº 334 e é também essa a lição de todos os autores e de todas as legislações[23].

         No caso concreto que nos ocupa não surpreendemos na actuação do R., designadamente ao entender que adquiriu o estabelecimento para si e ao omiti-lo na relação de bens da falecida I....., qualquer infracção aos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.

        

         Ainda quanto a esta questão se não reconhece ao recorrente qualquer razão.


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         2.2.5. 5ª Questão

         Os apelados que, sem êxito, haviam pedido na 1ª instância a condenação do apelante como litigante de má fé, insistiram, nesta Relação, em idêntico pedido.

         Nos termos do artº 456º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: (a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; (c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; (d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

         No caso dos autos, nomeadamente no que ao recurso tange, apesar da falta de razão do recorrente, não encontramos fundamento para concluir que o mesmo, com a sua actuação, se tenha colocado em qualquer das situações referidas.

         Por isso, se não condena como litigante de má fé.

         Soçobram, pois, todas as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da decisão recorrida, com a consequente desnecessidade de conhecer do objecto da ampliação do âmbito do recurso, uma vez que a mesma foi pelos recorridos requerida a título subsidiário.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo do apelante.


[1] Que não pela falecida mãe de A. e R.
[2] Proc. 9186/2007-2, relatado pelo Des. Ezaguy Martins, in www.dgsi.pt.
[3] Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial”, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, pág. 533.
[4] In “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª Ed., Coimbra Editora, Lda, 1984, págs. 2 e 3.
[5] Op. Cit. Pág. 244.
[6] Idem, pág. 252.
[7] In “Direito Comercial – Parte Geral”, Vol. I, Lisboa, 1988, pág. 505. Quanto à susceptibilidade de tutela possessória do estabelecimento comercial, na perspectiva de um complexo de bens imateriais (loja) e não apenas um bem incorpóreo, veja-se ainda Orlando de Carvalho, in R.L.J., 3781/107, e Menezes Cordeiro, in “A Posse”, 2ª ed. P. 81, e o Acórdão da Relação do Porto de 03-04-2006, proc. 0651598, in www.dgsi,pt/jtrp.nsf., e da Relação de Lisboa, in CJ, 1990, IV, 162, 1994, II, 73 e 1996, IV, 122.
[8] In “Arrendamentos Comerciais”, 2ª Ed., Almedina, 1991, pág. 162.
[9] Cfr. António Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito Comercial”, 2ª ed., 2007, Almedina, pág. 307.
[10] In “Alienação e Oneração de Estabelecimento Comercial”, Almedina, 2005, pág. 64.
[11] “Sobre a projectada reforma da legislação comercial portuguesa”, ROA, 1984, pág. 21.
[12] P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, Vol III, 2ª edição, pág. 18.
[13] No nº 30 do elenco dos factos provados consta mesmo a expressão “com consciência de possuir coisa própria e exclusiva”. Além disso, o R. sempre beneficiaria da presunção de posse decorrente do artº 1252º, nº 2 do Cód. Civil.
[14]   Das Relações Jurídicas segundo o Código Civil de 1966, vol. V, pág. 9.
[15]   Direito das Obrigações, pág. 58.
[16] BMJ, nº 490º, págs. 273/279.
[17]  Cód. Civil Anotado, 2ª ed., vol. I, pág. 277
[18]  Direito Civil, Lições dadas ao 2º ano jurídico de 1972-1973, pág. 77.
[19]   Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, pág. 55.
[20]   Idem, Ob. cit., págs. 59 e 60.
[21]   cfr. Prof. Vaz Serra, Do Abuso do Direito, págs. 265-266.
[22]   Pires de Lima-Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 297.
[23]   P.L.-A.V., ob. cit., pág. 296.