Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
713/14.0T8CTB-E.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PIRES ROBALO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
SIMULAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
TERCEIROS PARA EFEITOS DE REGISTO
CREDOR COM PENHORA REGISTADA A SEU FAVOR
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 5.º, N.º 1 E 4, DO CÓD. DE REGISTO PREDIAL
ARTIGOS 240.º; 334.º E 342.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 806.º, 2; 807.º, 1; 849.º, 1 E 850.º, 4, DO CPC
Sumário: I - A verificação dos três requisitos da simulação deve ser alegada e demonstrada de acordo com o regime geral do ónus da prova (342.º/1), pelos sujeitos que invoquem a simulação do negócio, sob pena de o negócio dito simulado conservar toda a sua validade jurídica.
II - Em caso de confronto entre direitos reais de idêntica natureza (propriedade), incompatíveis entre si, prevalece o que foi registado em primeiro lugar. Contudo, o mesmo já não sucede quando o confronto é, como no caso sub judice, entre um direito de propriedade – transmissão anterior não registada - e um direito de crédito, embora este sob a protecção de um direito real de garantia (penhora), registado.

III - Mesmo que se entenda que tais direitos são incompatíveis entre si (independentemente da sua natureza), consagrou-se orientação jurisprudencial segundo a qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo predial, pressupõe que ambos os direitos advenham de um mesmo transmitente comum, excluindo-se os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma diligência judicial, seja ela aresto, penhora ou hipoteca judicial.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível (3.ª Secção), do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                  Proc.º n.º 713/14.0T8CTB-E.C1     

1. Relatório

1.1.- Por apenso aos autos de acção executiva para pagamento de quantia certa, vieram os Executados AA e BB deduzir oposição à execução mediante embargos, peticionando que os julgue como parte ilegítimas e subsidiariamente, a extinção da instância executiva quanto aos mesmos.

Para tanto alegam, em síntese, que os embargantes são donos e legítimos possuidores, em comum e partes iguais do imóvel penhorado nos autos executivos por o mesmo lhe ter sido doado pelos executados CC e DD, por documento particular autenticado datado 26.08.2016, não incidindo, nessa altura, qualquer penhora. Alegam ainda que não existe qualquer responsabilidade por parte dos embargantes na eventual responsabilidade dos executados em relação ao crédito exequendo; que a penhora, o acordo celebrado para conversão da penhora em hipoteca e a hipoteca violam o direito de propriedade e a posse sobre o bem atingido por tais diligências; não sendo os embargantes partes da relação jurídica material controvertida. Acrescentam ainda que a penhora e a hipoteca levadas a registo a favor do exequente ocorreram em momento posterior à aquisição do imóvel pelos embargantes, não sendo o título executivo oponível aos embargantes. Mais invocam que são partes ilegítimas para os termos da execução por nada terem a ver com a relação jurídica material controvertida tal como configurada pelo exequente.

Terminam concluindo pela procedência da expecção de ilegitimidade dos Embargantes e subsidiariamente, pela procedência dos embargos e consequente extinção da execução quanto aos mesmos.

***

1.2. - Regularmente notificado, contestou o Embargado, defendendo pela improcedência dos embargos deduzidos, e arguiu, desde logo, no que ora releva, em suma, a nulidade e ineficácia da doação, invocando, para tanto, a doação em causa como modal, i. é, com ónus ou encargos para os donatários, aqui embargantes, os quais deveriam tê-la aceitado, o que não aconteceu e a inexistência de vontade real dos doadores em doarem o imóvel em causa, correspondendo tal doação a um artifício para eles evitarem que o bem fosse “apanhado”, “aprisionado” e vendido para pagamento das suas dívidas e consequentemente, deverá ser ordenado o cancelamento de qualquer registo que tenha sido efectuado com base no referido contrato em nome dos embargantes. Subsidiariamente, mais alega, em suma, que o facto de a penhora ter sido registada com data anterior à transmissão da propriedade, prevalece sobre este direito registado em data posterior, concluindo pela prevalência do registo da penhora.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido saneador-sentença em 09.11.2022 com a ref.ª Citius 35108166, no âmbito do qual foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade passiva dos embargantes/executados e julgado procedente o incidente de oposição à execução mediantes embargos de executado e consequente extinção da instância executiva.

***

1.3. - O Embargado recorreu do saneador-sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo este Venerando Tribunal proferido acórdão em 12.04.2023 com a ref.ª Citius ref.ª 10784549, cujo sumário tem a seguinte redacção:

I - Apenas pode conhecer-se do mérito da causa no despacho saneador se todos os factos necessários para a resolução do litígio segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito estiverem já provados no processo, não carecendo de ulterior atividade probatória.

II – Se, para além do mais, em embargos de executado, é invocado que uma doação é fictícia e foi apenas um meio de o doador evitar que o bem responda por dívidas suas, este facto é relevante e deve ser apreciado, com produção sobre o mesmo dos meios probatórios carreados; e, assim, sendo intempestiva/ilegal a decisão que, olvidando tal facto, decide logo a causa no saneador.

Deliberando pela procedência do recurso, revogou o saneador-sentença e ordenou o prosseguimento dos autos para apreciação dos factos aludidos nos termos sobreditos.

Dando cumprimento ao ordenado, foi proferido despacho de enunciação dos temas da prova, e despacho destinado à programação e agendamento da audiência final, dos quais não houve reclamações (ref.ª electrónica Citius 35936952 de 30.05.2023).

Realizou-se audiência de discussão e julgamento com respeito pelo legal formalismo, conforme resulta da acta respectiva – v. ref.ª electrónica Citius 36229762 de 07.09.2023.

Após foi proferida sentença onde foi decidido:

1)- Julgar procedente, por provado, o incidente de oposição à execução mediante embargos de executado deduzido pelos executados/embargantes AA e BB e, em consequência, ordenar o levantamento das penhoras sobre o prédio urbano, composto por edifício de r/c e logradouro, denominado Estrada Nacional número ...8, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...14 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...89; e o cancelamento dos respectivos registos; mais determino a extinção da instância executiva no que a estes executados concerne.

2) Condenar o Embargado nas custas do processo.

Valor da causa: 21.299,43€.

Registe e notifique.

Comunique, após trânsito, ao Agente de Execução.

***

 1.4. – Inconformado com tal decisão dela recorreu o exequente -

Banco 1..., S.A.-, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:

“I. Vem o presente recurso interposto da douta decisão, datada de 16-10-2023, com ref. 36274847, proferida pela Douto Tribunal a quo que curou de apreciar que a doação feita pelos executados CC e DD aos aqui Recorridos carece de uma vontade real dos doadores em doarem o imóvel, e bem assim, da não prevalência da penhora do aqui Recorrente sobre transmissão anterior-doação.

II. Concluindo, assim, pela total procedência da oposição à execução mediante Embargos de Executado, ordenando, em consequência, o levantamento da penhora sobre o prédio melhor identificado nos autos, bem como a extinção da instância executiva no que a estes Executados / Embargantes concerne.

III. julgou procedente o incidente de oposição à execução mediante embargos de executado deduzido pelos Executados BB e AA, determinando o levantamento das penhoras sobre o prédio urbano já identificado, e o cancelamento dos respetivos registos, Praça ... ... ... mais determinando a extinção da instância executiva no que a estes Executados concerne.

IV. Ora, com tal decisão não pode concordar o ora Recorrente, perfilhando um entendimento que tal decisão, não fez a correta nem adequada aplicação do Direito, descurando, ademais, os primordiais princípios da boa administração da Justiça.

V. Atendendo ao concreto contexto, a ação executiva para pagamento de quantia certa, de que os Embargos de Executado constituem Apenso, foi instaurada pelo Exequente, aqui Apelante, em 05.12.2014.

VI. No âmbito da referida ação executiva, e pela AP. ...68 de 02.12.2016, foi registada penhora, a favor do Exequente, aqui Recorrente.

VII. Resulta demonstrado nos autos que por Documento Particular Autenticado denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto”, datado de 30.11.2016, os Executados / Doadores CC e DD declararam, com reserva de usufruto, doar aos seus netos, AA e BB, Embargantes / Donatários, por conta da quota disponível, a nua propriedade do prédio urbano penhorado nos autos de execução.

VIII. O negócio jurídico subjacente ao referido “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” não corresponde a uma qualquer vontade real dos Executados CC e DD em celebrar aquele ou qualquer outro negócio jurídico.

IX. Facilmente se depreende que a vontade dos Executados CC e DD, ao doarem o prédio urbano em discussão nos autos aos seus únicos netos, menores, foi apenas e só a de evitar que o bem fosse “apanhado” “aprisionado” e “vendido” à ordem da execução, e não uma verdadeira e real vontade de transmitir aqueles bens, àqueles seus netos.

X. Aliás, a ausência de vontade em transmitir confirma-se, na plenitude, quando os Executados CC e DD, continuam a ser os únicos possuidores do bem, posse essa titulada pelo usufruto.

XI. Não obstante o Documento Particular Autenticado denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” ter sido celebrado em 26.08.2016, o termo de autenticação apenas foi efetivado em 30.11.2016, pelo que o Averbamento da aquisição, por doação, a favor dos Embargantes AA e BB, da nua propriedade do prédio urbano melhor identificado nos autos, apenas ocorreu no registo predial em 06.02.2016.

XII. Dispõe o artigo 947.º do Código Civil, no seu n.º 1, que, «sem prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado».

XIII. No caso dos autos, a doação (com reserva do usufruto) foi celebrada por Documento Particular Autenticado.

XIV. Por outro lado, o Decreto-Lei 116/2008, de 4/7, no seu artigo 24º, veio determinar que os Documentos Particulares Autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial, como o dos presentes autos denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto”, terão de passar, necessariamente, por três fases, entre as quais o depósito eletrónico do documento particular autenticado, bem como dos documentos que o instruam e que devam ficar arquivados, por não constarem de arquivo público.

XV. No caso dos autos, sabemos que o contrato denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” foi outorgado por Documento Particular, que foi autenticado, mas não sabemos se o mesmo foi submetido a depósito eletrónico, por falta de demonstração do respetivo depósito por parte dos Embargantes, aqui Recorridos.

XVI. A validade do “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” está dependente do seu depósito, e, da documentação constante dos autos, não nos é possível aferir se tal formalidade foi observada.

XVII. Formalidade que ao não ser cumprida afetará a validade da autenticação do respetivo documento particular, não chegando o documento, por tal razão, a adquirir a natureza de Documento Particular Autenticado, sendo, portanto, inválido.

XVIII. Todas as razões expendidas convocam no sentido de que o Documento Particular Autenticado apenas tem validade e eficácia após o depósito, o que não se encontra este comprovado nos autos, pelo que,

XIX. A conclusão não pode ser outra de que não tendo ficado provado que o Documento Particular Autenticado, denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” foi sujeito a depósito na data do seu termo de autenticação, 30/11/2016, a data a considerar para efeitos do “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” não pode ser outra do a do registo que ocorreu a 06/12/2016.

XX. Pelo que a douta sentença recorrida que aqui se coloca em crise baseou-se apenas numa presunção – a de que o depósito foi efetuado – sem qualquer prova que sustentasse tal decisão.

XXI. Entre a outorga do Documento Particular Autenticado denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto”, datado de 30.11.2016, e o registo da aquisição a favor dos Embargantes, 06.12.2016, foi registada a penhora a favor do Exequente pela AP. ...68 de 02.12.2016.

XXII. À data do registo da penhora pelo Exequente, é inequívoco que quem figurava no registo como únicos proprietários do prédio eram os Executados CC e DD.

XXIII. Pelo que presumiu o Exequente, aqui Recorrente, que o referido prédio era um bem próprio e exclusivo dos Executados CC e DD.

XXIV. A aquisição de um direito de propriedade sobre bens imóveis, bem como a penhora, são factos sujeitos a registo obrigatório nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e n) do Código do Registo Predial, uma vez que tem em vista dar publicidade à situação jurídica dos bens imóveis, conferindo uma segurança ao comércio jurídico imobiliário, conforme decorre do artigo 1.º do Código do Registo Predial.

XXV. Pelo que os atos que existem fora do registo têm efeito simplesmente declarativo, não conferindo, por princípio, quaisquer direitos.

XXVI. Em face do exposto, o registo de aquisição, enquanto não for registado, embora seja eficaz entre as partes contraentes, não é oponível a terceiros de boa-fé, face ao disposto no artigo 5.º, n.º 1 do Código do Registo Predial.

XXVII. O Exequente, aqui Recorrente, é um terceiro de boa-fé, nos termos da referida norma, uma vez que é titular de um direito sobre o bem imóvel adquirido pelos Embargantes, sendo aquele direito incompatível com o direito de propriedade dos Embargantes.

XXVIII. Terceiros, para efeitos de registo (Artigo 5.º, n.º 1 e 4 do Código Registo Predial) são aqueles que, de boa-fé, tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

XXIX. Assim, a boa-fé constitui um requisito da qualidade de terceiro, já que o artigo 5.º, n.º 1 e 4 do Código de Registo Predial apenas pretendeu proteger os terceiros que, iludidos pelo facto de não constar do registo nova titularidade, foram negociar com a pessoa que no registo continuava a aparecer como sendo o titular do direito, apesar de já não o ser.

XXX. O Exequente confiou na aparência de uma situação registral desconforme com a realidade substantiva, uma vez que, quando procedeu ao registo da penhora do bem  imóvel em apreço, confiou que o mesmo era da titularidade dos Executados CC e DD, e não dos Embargantes AA e BB.

XXXI. Existe, sem dúvidas, uma incompatibilidade de direito, pelo que importa atender à data dos respetivos registos, sendo que, o registo de aquisição do bem a favor dos Embargantes ocorreu em 06.12.2016, ou seja, em data posterior ao registo da penhora a favor do Exequente em 02.12.2016.

XXXII. Diante do exposto, e tendo a penhora sido registada em data anterior àquela em que ocorreu o registo da doação, esta última é inoponível ao Exequente, aqui Apelante, enquanto terceiro de boa-fé e titular de um direito incompatível com o dos Embargantes.

XXXIII. Uma vez que o direito de propriedade alegado pelos Embargantes é inoponível ao Exequente, a penhora registada não pode ser afetada, pelo que execução deverá prosseguir como se os bens penhorados continuassem a pertencer aos Executados.

XXXIV. Por sua vez, o artigo 6.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, proclama o princípio de que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes.

XXXV. Pelo que, no âmbito da oponibilidade do registo predial a terceiros, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respetivo registo.

XXXVI. O registo da penhora sub judice, datada de 02.12.2016, goza de prioridade em relação ao registo de aquisição do bem imóvel, datado de 06.12.2016.

XXXVII. O douto Tribunal a quo entendeu que o Documento Particular Autenticado denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” celebrado a 30.11.2016, embora não tenha sido imediatamente registada, determina a transferência do direito de propriedade a favor dos Embargantes e, como tal, estes são titulares de um direito incompatível com o do Exequente, aqui Apelante.

XXXVIII. Acontece que, como se viu, o referido Documento Particular Autenticado

denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” é inoponível ao Exequente, enquanto terceiro para efeitos de registo, nos termos do artigo 5.º do Código do Registo Predial.

XXXIX. O douto Tribunal a quo entendeu que basta a junção nos autos da Escritura Pública ou de Documento Particular Autenticado pra que se mostre provada a aquisição do direito de propriedade,

XL. Afirmando, ainda, ser irrelevante saber por que motivo os Embargantes adquiriram e até quando registaram a aquisição,

XLI. Reiterando, uma vez mais, que a transferência do direito de propriedade, ocorre por mero efeito do contrato, sendo irrelevante o cumprimento do mesmo.

XLII. É mais do que legitimo e justo dar proteção ao beneficiário da penhora que, desconhecedor da nova titularidade, continuou a negociar com os titulares inscritos do direito.

XLIII. Aliás, em 28.06.2017, foi celebrado entre o Exequente e Executados CC e DD um acordo de pagamento em prestações, no âmbito do qual o Exequente declarou, nos termos do disposto no artigo 807.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não prescindir da penhora, já efectuada na presente execução, e que incide sobre o prédio melhor identificado nos autos, tendo a execução sido extinta nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 849.º, ex vi n.º 2 do artigo 806.º. ambos do Código de Processo Civil em 12.07.2017.

XLIV. A referida conversão da penhora em hipoteca foi registada pela AP. ...00 de 11.09.2017.

XLV. Mostrando-se o referido acordo em incumprimento desde 16.07.2019, o Exequente, aqui Apelante, requereu a renovação da execução para satisfação do remanescente do crédito, com a penhora concreta do prédio em discussão nos autos, atendendo à hipoteca registada a seu favor como garantia do bom cumprimento do acordo extrajudicial.

XLVI. A execução foi renovada em 26.05.2021, dando-se, assim, cumprimento ao n.º 4 do artigo 850.º do Código de Processo Civil.

XLVII. Não obstante o douro Tribunal a quo não ter dado a atenção devida ao acordo celebrado, o aqui Apelante relembra que não obstante a doação realizada pelos Executados ao Embargantes em 30.11.2016, e registada no registo predial em 06.12.2016,

XLVIII. Em momento muito posterior, mais concretamente 28.06.2017, seis meses após o registo da doação, Exequente e Executados aceitaram celebrar acordo prestacional, o qual foi aceite pelos Executados nos termos exarados, acordando-se a conversão da referida penhora em hipoteca.

XLIX. Isto demonstra, uma vez mais, que o negócio jurídico subjacente ao referido contrato de doação não corresponde a uma qualquer vontade real dos Executados em celebrar aquele negócio jurídico.

L. Sendo a sua única intenção evitar que o património fosse afetado e ou vendido para pagamento das suas dívidas.

LI. Criaram uma realidade aparente, tudo com o claro e único intuito de obterem um objetivo ilegal e que sabiam ser ilegal, libertando o bem da sua esfera jurídica e entorpecendo a sua venda judicial à ordem do processo executivo.

LII. Os Executados, em conluio com os Embargantes, arquitetaram um esquema com vista à diminuição do património dos primeiros, de modo a que este deixe de servir de  garantia ao adequado cumprimento das obrigações a que se encontravam vinculados.

LIII. Certamente que Executados decidiram celebrar acordo judicial com o Exequente, aqui Recorrente, com o intuito deste não lançar mão, nos limites razoáveis, de determinados meios conservatórios de garantia patrimonial, tais como a impugnação pauliana.

LIV. Daqui resulta que os Executados eram mais do que conhecedores do crédito exequendo e de que a satisfação integral deste crédito seria através da venda do bem penhorado e, ainda assim, decidiram doar a nua propriedade do imóvel aos netos, menores, reservando para si o usufruto.

LV. A doação em causa é contrária aos bons costumes, por simulada e por exercida por abuso de direito, porque feitas pelos Doadores / Executados contra os princípios jurídicos comumente aceites, sem espírito de liberalidade – pois à data da doação havia mais de dois anos que a execução tinha sido instaurada – e com intenção de enganar e até prejudicar terceiros,

LVI. Perante este quadro, não se justificava outra decisão que não fosse a de ordenar o cancelamento de qualquer registo que tenha sido efetuado com base no referido contrato, em nome dos aqui Embargantes, com a consequente improcedência dos embargos.

Termos em que V. Ex.cias, concedendo provimento ao Recurso e alterando, em conformidade, a douta decisão recorrida, farão

INTEIRA JUSTIÇA!”

                                                                       ***

            1.5. – Feitas as notificações a que alude o art.º 221.º, do C.P.C., não houve resposta.

                                                                       ***

1.6. – Foi proferido despacho a receber o recurso do seguinte teor:

“ Ref.ª 3399413 de 03.11.2023

O Embargado interpôs recurso da sentença proferida em 16.10.2023 com a ref.ª Citius 36274847.

Os Recorridos Embargantes não apresentaram resposta.

Uma vez que o recurso foi interposto em tempo e a decisão proferida se mostra recorrível, contendo as respectivas conclusões (artigos 629.º n.º 1, 631.º n.º 1, 638.º n.º 1, 639.º n.º 1, 644.º nº 1 a), todos do Código de Processo Civil), admite-se o recurso de apelação.

O recurso apresentado, subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – artigos 644.º, n.º 1, al. a), 645.º n.º 1 a) e 647.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.

Notifique.

*

Remetam-se os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

***

            1.7. – Colhidos os vistos cumpre decidir.

                                                                       ***

  2. Fundamentação

A). De facto

Discutida a causa e ponderadas todas as provas produzidas – atendendo às regras do ónus da prova e expurgando os conceitos de direito, conclusões ou meros juízos de valor e ainda os factos instrumentais não relevantes e os factos repetidos – entende-se estarem provados e não provados os seguintes factos:

1. Factos provados

1) A acção executiva para pagamento de quantia certa, de que os presente embargos de executado constituem apenso, foi instaurada em 05.12.2014.

2) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...89 da freguesia ..., o prédio urbano composto por edifício de r/c e logradouro, denominado Estrada Nacional número ...8, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...14.

3) Sobre o prédio id. em 2), pela AP. ...9 de 2003.01.31, encontra-se registada a aquisição, por usucapião, a favor dos executados CC e DD.

4) Por documento particular denominado “contrato de doação com reserva de usufruto”, datado de 26.08.2016, com termo de autenticação datado de 30.11.2016, os executados CC e DD, como primeiros outorgantes, designados por doadores; EE (maior de idade) e FF (menor de idade), como segundos outorgantes, designados por donatários; e AA e BB (ambos menores de idade), como terceiros outorgantes, designados por donatários, consta declarado, além do mais, o seguinte:

Primeira:

(Objectos)

Os Doadores identificados em Primeiros são donos e legítimos proprietários dos prédios urbanos:

1. – Prédio urbano sito em Quinta ..., ..., rés-do-chão, na freguesia e concelho ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana actualmente sob o artigo número ...37, fração “G”, e anteriormente com o artigo número ...12, da freguesia e concelho ..., descrito e inscrito em favor dos Primeiros sob a Ap. ... de 2007/01/16, sob a descrição número ...08..., da Conservatória do Registo Predial ..., com o valor patrimonial actual de € 59.430,00 (cinquenta e nove mil novecentos e quatrocentos e trinta euros e zero cêntimos).

2. – Prédio urbano sito na Estrada Nacional número ...8, na freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o actual artigo número ...14, descrito e inscrito em favor dos Primeiros sob a AP. ...9 de 2003/01/31, sob a descrição número ...31, da Conservatória do Registo Predial ..., com o valor patrimonial actual de € 49.630,00 (quarenta e nove mil, seiscentos e trinta euros).

Segunda:

(Doação)

Os Primeiros com reserva de usufruto para eles doadores, o qual se extinguirá no seu todo apenas por morte do último, doam aos seus únicos netos, donatários identificados em Segundos e Terceiros, por conta da quota disponível, a nua propriedade dos prédios urbanos identificados, e que fazem da seguinte forma:

a) – o prédio urbano identificado em 1. da Cláusula Primeira, sito em Quinta ..., ..., rés-do-chão, na freguesia e concelho ..., a seus netos identificados como Segundos, EE e FF.

b) – o prédio urbano identificado em 2. da Cláusula Primeira, sito na Estrada Nacional número ...8, na freguesia ..., concelho ..., a seus netos identificados como Terceiros, AA e BB. (…)

Quinta

(Aceitação)

O Terceiro, Donatário, EE, declara aceitar as presentes doações nos termos exarados, e que agrade. (…)”

5) Sobre o prédio identificado em 2), incidem, além do mais, as seguintes inscrições:

i) - AP. ...68 de 02 de dezembro de 2016 – penhora, tendo como sujeito activo Banco 1..., S.A. e sujeitos passivos CC e DD – processo executivo n.º 713/14.... que corre termos na Comarca ... – Inst. Local – secção cível – J... id. em 1);

ii) - Ap. ...93 de 06 de dezembro de 2016 – aquisição, por doação, a favor de AA (menor) e BB (menor), tendo como sujeitos passivos CC e DD;

iii) - Ap. ...93 de 06 de dezembro de 2016 - usufruto, por reserva de doação a favor de CC e DD, tendo como sujeitos passivos AA e BB.

6) Em 28.06.2017, nos autos executivos, foi celebrado acordo de pagamento em prestações entre Exequente e Executados e no âmbito qual o Exequente declarou não prescindir da penhora, já efectuada na presente execução, que incide sobre o prédio id. em 2).

7) Em 12.07.2017, nos autos executivos id. em 1), foi proferida decisão pelo sr. Agente de Execução de extinção da execução nos termos da alínea f) do n.º 1 do art.º 849.º CPC, ex vi n.º 2 do art.º 806.º CPC, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do art.º 808.º Código de Processo Civil.

8) Sobre a descrição do prédio id. em 2), consta averbamento pela AP. ...00 de 2017.09.11, de conversão de penhora em hipoteca, à AP. ...68 de 02.12.2016 – penhora.

9) Por requerimento de 18.05.2021, nos autos executivos, veio o Exequente requerer a renovação da presente instância, para satisfação do remanescente do crédito, com a penhora concreta do prédio id. em 2).

10) Por decisão do Sr. Agente de Execução de 26.05.2021, foi renovada a instância, dando-se cumprimento ao n.º 4 do artigo 850.º do C.P.C.

11) Por despacho de 22.02.2022, proferido nos autos executivos, foi admitida a intervenção principal provocada de AA e BB, na qualidade de executados a par dos executados CC e DD.

12) Sobre a descrição do prédio id. em 2), consta inscrita, pela Ap. ...33 de 25 de maio de 2022, penhora, tendo como sujeito activo Banco 1..., S.A. e sujeitos passivos CC, DD, AA e BB – processo executivo n.º 713/14.... que corre termos na Comarca ... – Inst. Local – secção cível – J... id. em 1).

2. Factos não provados

A) O negócio jurídico subjacente ao referido “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” não corresponde a uma qualquer vontade real dos Executados CC e DD em celebrar aquele ou qualquer outro negócio jurídico.

B) A vontade dos Executados CC e DD, ao doarem os prédios urbanos supra melhor identificados aos seus únicos netos, foi apenas e só a de evitar que o bem fosse “apanhado” e “aprisionado”.

C) Os Executados CC e DD ao declararem doar aos seus únicos netos, entre os quais os aqui Embargantes, os prédios urbanos supra melhor identificados, apenas e só teve em vista evitar que o seu património fosse afetado ou vendido para pagamento das suas dívidas, entre a qual a executada nos autos, e não uma verdadeira e real vontade de transmitir aqueles bens, àqueles seus netos.

*

Reitera-se que a restante matéria alegada nos articulados respeita a factos que não relevam para a decisão da causa por se tratar de matéria repetida, conclusiva ou de considerações de direito ou matéria de facto instrumental, pelo que o tribunal não a teve em consideração.

                                                                                              ***

   3. Motivação

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Constitui ainda communis opinio, de que o conceito de questões de que tribunal deve tomar conhecimento, para além de estar delimitado pelas conclusões das alegações de recurso e/ou contra-alegações às mesmas (em caso de ampliação do objeto do recurso), deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes, bem como matéria nova antes submetida apreciação do tribunal a quo – a não que sejam de conhecimento oficioso - (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.

Calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verificamos que a questão a decidir consiste em saber – Se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por acórdão, que ordene o cancelamento de qualquer registo que tenha sido efetuado com base no contrato de doação com reserva de usufruto”, datado de 26.08.2016, em nome dos aqui Embargantes, com a consequente improcedência dos embargos.

                                                           *

Antes porém, cabe referir que o recorrente nas conclusões XIV a XX, refere:

Por outro lado, o Decreto-Lei 116/2008, de 4/7, no seu artigo 24º, veio determinar que os Documentos Particulares Autenticados que titulem atos sujeitos a registo predial, como o dos presentes autos denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto”, terão de passar, necessariamente, por três fases, entre as quais o depósito eletrónico do documento particular autenticado, bem como dos documentos que o instruam e que devam ficar arquivados, por não constarem de arquivo público; no caso dos autos, sabemos que o contrato denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” foi outorgado por Documento Particular, que foi autenticado, mas não sabemos se o mesmo foi submetido a depósito eletrónico, por falta de demonstração do respetivo depósito por parte dos Embargantes, aqui Recorridos; a validade do “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” está dependente do seu depósito, e, da documentação constante dos autos, não nos é possível aferir se tal formalidade foi observada; formalidade que ao não ser cumprida afetará a validade da autenticação do respetivo documento particular, não chegando o documento, por tal razão, a adquirir a natureza de Documento Particular Autenticado, sendo, portanto, inválido;todas as razões expendidas convocam no sentido de que o Documento Particular Autenticado apenas tem validade e eficácia após o depósito, o que não se encontra este comprovado nos autos, pelo que; a conclusão não pode ser outra de que não tendo ficado provado que o Documento Particular Autenticado, denominado de “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” foi sujeito a depósito na data do seu termo de autenticação, 30/11/2016, a data a considerar para efeitos do “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” não pode ser outra do a do registo que ocorreu a 06/12/2016; pelo que a douta sentença recorrida que aqui se coloca em crise baseou-se apenas numa presunção – a de que o depósito foi efetuado – sem qualquer prova que sustentasse tal decisão”.

Da leitura das mesmas, parecer que o recorrente pretende fazer crer que o Tribunal “a quo” não teve em conta tal matéria. Operando à leitura da sentença recorrida, temos para nós que assim não foi.

Na verdade, logo no facto 4 se refere ao termo de autenticação, aludindo em vários pontos de facto às datas dos respetivos registos.

 Assim, a sentença em causa teve presente a matéria.

                                                           *

A)- Saber se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por acórdão, que ordene o cancelamento de qualquer registo que tenha sido efetuado com base no contrato de doação com reserva de usufruto”, datado de 26.08.2016, em nome dos aqui Embargantes, com a consequente improcedência dos embargos.

O recorrente para defender este seu ponto de vista assenta fundamentalmente em dois pontos, a saber:

i)- que o negócio jurídico subjacente ao referido contrato de doação não corresponde a uma qualquer vontade real dos Executados em celebrar aquele negócio jurídico.

ii)- Se por força do artigo 6.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, que  proclama o princípio de que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes e assim, no âmbito da oponibilidade do registo predial a terceiros, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respetivo registo.

Por uma questão de método iremos apreciar cada um dos pontos de per si.

Assim,

Ponto i)

Para defender este seu ponto de vista refere o recorrente, que em 28.06.2017, foi celebrado entre o Exequente e Executados CC e DD um acordo de pagamento em prestações, no âmbito do qual o Exequente declarou, nos termos do disposto no artigo 807.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não prescindir da penhora, já efectuada na presente execução, e que incide sobre o prédio melhor identificado nos autos, tendo a execução sido extinta nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 849.º, ex vi n.º 2 do artigo 806.º. ambos do Código de Processo Civil em 12.07.2017. A referida conversão da penhora em hipoteca foi registada pela AP. ...00 de 11.09.2017. Mostrando-se o referido acordo em incumprimento desde 16.07.2019, o Exequente, aqui Apelante, requereu a renovação da execução para satisfação do remanescente do crédito, com a penhora concreta do prédio em discussão nos autos, atendendo à hipoteca registada a seu favor como garantia do bom cumprimento do acordo extrajudicial. A execução foi renovada em 26.05.2021, dando-se, assim, cumprimento ao n.º 4 do artigo 850.º do Código de Processo Civil. Em momento muito posterior, mais concretamente 28.06.2017, seis meses após o registo da doação, Exequente e Executados aceitaram celebrar acordo prestacional, o qual foi aceite pelos Executados nos termos exarados, acordando-se a conversão da referida penhora em hipoteca. Isto demonstra, uma vez mais, que o negócio jurídico subjacente ao referido contrato de doação não corresponde a uma qualquer vontade real dos Executados em celebrar aquele negócio jurídico. Sendo a sua única intenção evitar que o património fosse afetado e ou vendido para pagamento das suas dívidas. Criaram uma realidade aparente, tudo com o claro e único intuito de obterem um objetivo ilegal e que sabiam ser ilegal, libertando o bem da sua esfera jurídica e entorpecendo a sua venda judicial à ordem do processo executivo. Os Executados, em conluio com os Embargantes, arquitetaram um esquema com vista à diminuição do património dos primeiros, de modo a que este deixe de servir de  garantia ao adequado cumprimento das obrigações a que se encontravam vinculados. Os Executados decidiram celebrar acordo judicial com o Exequente, aqui Recorrente, com o intuito deste não lançar mão, nos limites razoáveis, de determinados meios conservatórios de garantia patrimonial, tais como a impugnação pauliana. Daqui resulta que os Executados eram mais do que conhecedores do crédito exequendo e de que a satisfação integral deste crédito seria através da venda do bem penhorado e, ainda assim, decidiram doar a nua propriedade do imóvel aos netos, menores, reservando para si o usufruto. A doação em causa é contrária aos bons costumes, por simulada e por exercida por abuso de direito, porque feitas pelos Doadores / Executados contra os princípios jurídicos comumente aceites, sem espírito de liberalidade – pois à data da doação havia mais de dois anos que a execução tinha sido instaurada – e com intenção de enganar e até prejudicar terceiros.

Neste ponto, invoca o recorrente a simulação, divergência entre a vontade real e a declarada, para prejudicar terceiros, bem como ao abuso de direito.

Tendo presente, que invoca no ponto dois sub pontos, a simulação e o abuso de direito, cabe apreciar cada um deles.

Assim,                        

Ponto i-a) - Simulação

                Entendeu a sentença recorrida sobre tal matéria, não se verificar tal figura, referindo, no segmento que se transcreve:

Destarte, invocada nos autos pelo Embargado uma situação de simulação absoluta do contrato de doação, implica que, para a procedência da sua pretensão, aquele teria que alegar e provar os referidos requisitos.

Analisando a factualidade provada, resulta que não se provou que, entre as partes no negócio sob escrutínio (declarantes / doadores / Executados CC e DD e declaratários / donatários / Embargantes, por si ou representados à data) houve acordo simulatório, nem que houve divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico (simuladamente) celebrado, nem intenção de enganar terceiros.

Com efeito, tal qual configurada a defesa do Embargado em sede de contestação, dir-se-á ainda que não resultou sequer alegada nos autos, logo não demonstrada, qualquer factualidade subsumível numa divergência intencional e bilateral entre a vontade e a declaração de ambas as partes – in casu os Executados CC e DD e os Embargantes, por si ou em sua representação - designadamente que tenham celebrado o negócio de doação quando, na verdade, não queriam celebrar esse negócio ou qualquer outro; numa aparência de uma doação; dito de outro modo, impunha-se a alegação de factos nesse sentido, a título exemplificativo, por raciocínio, que os Executados CC e DD nada quiseram doar ou não quiseram deixar de serem donos da raiz do imóvel em causa, nem os seus netos, aqui Embargantes, por si ou em sua representação, quiseram receber fosse o que fosse.

Aliás, quanto aos Embargantes / donatários, reitera-se, nada foi alegado.

Também não resultou sequer alegado (logo não demonstrado) qualquer factualidade subsumível a um conluio entre os Executados CC e DD e os Embargantes, com o fito de averiguar da intenção (animus decipiendi) das partes intervenientes no pacto simulatório (pois que foi alegado [mas não demonstrado – cfr. factos não provados B) e C)] apenas que os executados CC e DD - que não os demais – Embargantes –, por si ou representados –, visaram o objectivo de evitar que o bem fosse “aprisionado” ou “aprisionado” e vendido para pagamento das suas dívidas. E mesmo a cogitar-se em mera hipótese de raciocínio que tivesse sido apurado o vertido em B) e C), ainda assim não resultariam verificados os requisitos sobejamente supra expostos os quais, reitera-se, são cumulativos). Do mesmo modo, não resulta alegado (logo, não apurado) com o intuito das partes enganar terceiros.

Aqui chegados, tudo conjugado, mais não resta do que concluir – atenta a falta de prova sobre os factos constitutivos da simulação, ónus da prova que incumbe ao Embargado, o que este não logrou demonstrar como lhe competia nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o que deve ser igualmente resolvido em seu desfavor nos termos do artigo 414.º do mesmo código - pela validade do contrato de doação com reserva de usufruto celebrado entre os Executados CC e DD e os Embargantes.

Assim sendo, não se mostrando preenchidos os pressupostos de que dependente a procedência da acção simulatória, improcede totalmente o segundo argumento plasmado pelo Embargado”.

            Apreciando.

            Dispõe o artigo 240.º do Código Civil:

1. Se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.

2. O negócio simulado é nulo.

“A simulação é uma divergência intencional e bilateral entre a vontade real e a declaração negocial, assente num acordo entre o declarante e o declaratório e determinada pelo intuito de enganar terceiros".

São três os requisitos da simulação elencados pelo n.º 1 do artigo: i) uma divergência bilateral entre a vontade real e a vontade declarada; ii) um acordo ou conluio entre o declarante e o declaratário (o acordo simulatório, também denominado pactum simulationis); iii) intenção de enganar terceiros (animus decipiendi).

O primeiro requisito evidencia-se pela circunstância de ambas as partes declararem uma vontade que não corresponde aos efeitos que pretendem alcançar com a celebração do negócio.

O segundo requisito consiste num conluio entre as partes, declarante e declaratário e pode manifestar-se de forma expressa ou tácita. Este acordo de vontades não está sujeito a qualquer exigência de forma, podendo ser, como sucede em regra, consensual.

No que respeita ao terceiro dos requisitos, o que se exige é o propósito de enganar terceiros e já não o intuito de prejudicar (animus nocendi). Terceiros, para este efeito, são todos os sujeitos que não tiveram intervenção no acordo simulatório (cfr. Comentário ao Código Civil. Parte Geral, Universidade Católica Editora, p. 553).

A verificação dos três requisitos deve ser alegada e demonstrada de acordo com o regime geral do ónus da prova (342.º/1), pelos sujeitos que invoquem a simulação do negócio, sob pena de o negócio dito simulado conservar toda a sua validade jurídica (cfr. A. Barreto Menezes Cordeiro, Da Simulação no Direito Civil, 3ª edição, 2021, Almedina, pp. 65, 66)

A simulação pode ser absoluta ou relativa, em função do tipo de divergência.

No primeiro caso, as partes declaram a vontade de celebrar um negócio jurídico quando, na realidade, não pretendem celebrar nem esse nem qualquer negócio jurídico. É o que acontece na hipótese de se pretender enganar terceiros, designadamente, através da declaração de transferência de bens e elementos patrimoniais para outra esfera jurídica não acompanhada da efetiva translação do direito de propriedade.

No segundo caso, é declarada a celebração de um dado negócio jurídico (o negócio simulado), muito embora, na realidade, as partes tenham celebrado um outro negócio jurídico, de tipo, natureza, objeto ou conteúdo jurídico diverso, ou concluído com sujeitos diversos (o negócio dissimulado). Na simulação relativa existem dois negócios jurídicos (cfr. Comentário ao Código Civil. Parte Geral, Universidade Católica Editora, pp. 555.)

“Na simulação absoluta, as partes, embora exteriorizando uma intenção de concluir um negócio, não o pretendem realmente: conjeturam uma mudança, quando na realidade, o status real permanece inalterado. De resto, é precisamente entre o propósito subjacente à conclusão do acordo simulatório: criar a convicção no comércio jurídico de que uma determinada posição jurídica foi transmitida por um sujeito, conquanto o direito se conserve na esfera do titular originário. Por regra, a criação dessa aparência tem como fim evitar uma qualquer consequência jurídica desfavorável. Como exemplos desta situação são indicadas a simulação para evitar que os bens jurídicos sejam executados, a simulação para iludir credores ou a simulação para que um determinado bem não seja considerado para efeitos de partilhas de herança.

Todavia, enquanto que na modalidade absoluta a intenção escamoteada consiste numa simples negação dos efeitos manifestados, na modalidade relativa as partes pretendem uma efetiva alteração do status real, mas com contornos distintos dos declarados para o exterior (cfr. A. Barreto Menezes Cordeiro, obra citada, pp. 78, 79, 80).

Pode ainda distinguir-se a simulação subjetiva e a objetiva, consoante incida sobre os sujeitos intervenientes ou sobre o negócio ou alguma das suas cláusulas.

O n.º 2 esclarece o desvalor jurídico do negócio simulado: este é nulo, nos termos gerais.”

Dito isto, analisemos o caso concreto.

            Como dito na sentença, e por nós, cabe ao A., aqui recorrente alegar e provar os requisitos da figura invocada simulação (art.º 342, n.º 1, do C.C.).

            Calcorreando a matéria de facto provada não vislumbramos qualquer matéria de qualquer coluio entre doadores e donatários, para prejudicar o A., aqui recorrente.

Alias, resulta não provado que- A) O negócio jurídico subjacente ao referido “Contrato de Doação com Reserva de Usufruto” não corresponde a uma qualquer vontade real dos Executados CC e DD em celebrar aquele ou qualquer outro negócio jurídico; B) A vontade dos Executados CC e DD, ao doarem os prédios urbanos supra melhor identificados aos seus únicos netos, foi apenas e só a de evitar que o bem fosse “apanhado” e “aprisionado” e C) Os Executados CC e DD ao declararem doar aos seus únicos netos, entre os quais os aqui Embargantes, os prédios urbanos supra melhor identificados, apenas e só teve em vista evitar que o seu património fosse afetado ou vendido para pagamento das suas dívidas, entre a qual a executada nos autos, e não uma verdadeira e real vontade de transmitir aqueles bens, àqueles seus netos”.

Ora, cabendo ao A. tal prova, como supra referido, não a tendo feito, mais não resta que julgar improcedente esta sua pretensão.

Visto este ponto, passemos ao outro sub ponto.

 Ponto i-b) – Abuso de Direito.

Quanto a esta matéria, limitar-nos-emos, a transcrever o segmento da sentença recorrida, sobre a mesma, por com ela concordar.

O artigo 334.º do Código Civil, dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Actuação esta que, de uma perspectiva formal, se enquadra nos termos de um direito, mas que é condenada por corresponder a um exercício anómalo ou disfuncional deste.

O abuso de direito pressupõe, assim, que, no exercício do direito, a parte aja com excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – limites esses definidos de acordo com os valores éticos predominantes na sociedade – e corresponde a um “exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica” – cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em geral”, Vol. I, 8.ª edição, Livraria Almedina, 1994, pág. 552.)

Ora, reportando-nos ao caso presente, verifica-se, que a factualidade supra dada como provada não se afigura que a mesma se enquadre num abuso de direito ao comportamento dos embargantes nos autos.

A sua conduta não excede manifestamente, os limites impostos pela boa fé, tornando ilegítima a sua pretensão efectuada na presente demanda, pois que nestas circunstâncias em face do apurado nos autos não actua com abuso de direito, não sendo o seu comportamento ilícito, não se afigurando que com a doação sob escrutínio seja contrária aos bons costumes.

Pelo que, improcede o invocado abuso de direito”.

Ou seja, calcorreando a matéria de facto provada, não vislumbramos, que os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito bons costumes, tenham sido violados. Nem se diga, como faz o recorrente, que em momento muito posterior, mais concretamente 28.06.2017, seis meses após o registo da doação, Exequente e Executados aceitaram celebrar acordo prestacional, o qual foi aceite pelos Executados. Mas daqui, quanto a nós, não se pode tirar a ilação que os limites da boa fé ou dos bons costumes tenham sido violados.

Assim, nesta vertente também improcede a pretensão do recorrente.

Visto o ponto i, passemos ao ponto ii)

                                                           *

                Ponto ii

Para defender o seu ponto de vista, entre o mais, refere o recorrente, que o registo de aquisição, enquanto não for registado, embora seja eficaz entre as partes contraentes, não é oponível a terceiros de boa-fé, face ao disposto no artigo 5.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, o exequente, aqui Recorrente, é um terceiro de boa-fé, nos termos da referida norma, uma vez que é titular de um direito sobre o bem imóvel adquirido pelos Embargantes, sendo aquele direito incompatível com o direito de propriedade dos Embargantes, sendo que, terceiros, para efeitos de registo (Artigo 5.º, n.º 1 e 4 do Código Registo Predial) são aqueles que, de boa-fé, tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

Assim, a boa-fé constitui um requisito da qualidade de terceiro, já que o artigo 5.º, n.º 1 e 4 do Código de Registo Predial apenas pretendeu proteger os terceiros que, iludidos pelo facto de não constar do registo nova titularidade, foram negociar com a pessoa que no registo continuava a aparecer como sendo o titular do direito, apesar de já não o ser. O Exequente confiou na aparência de uma situação registral desconforme com a realidade substantiva, uma vez que, quando procedeu ao registo da penhora do bem  imóvel em apreço, confiou que o mesmo era da titularidade dos Executados CC e DD, e não dos Embargantes AA e BB.

Pelo que, existe, sem dúvidas, uma incompatibilidade de direito, pelo que importa atender à data dos respetivos registos, sendo que, o registo de aquisição do bem a favor dos Embargantes ocorreu em 06.12.2016, ou seja, em data posterior ao registo da penhora a favor do Exequente em 02.12.2016.

                                                           *

Opinião oposta foi seguida na sentença recorrida, que estribando-se, em vária jurisprudência, mormente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 15/97 de 21/5 -D.R.- 1ª Série de 4/7/97 -, que aderiu ao conceito mais amplo, "terceiros, para os efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito arredado por facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.”, jurisprudência, revertida pelo acórdão uniformizador em 18/5/99 – Acórdão n.º 3/99 -D.R., 1ª Série, de 10.07.99 - que, optando pelo conceito mais restrito defendido por Manuel de Andrade, doutrinou que "terceiro, para efeitos do disposto no art.º 5 do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa". A boa-fé a que se faz referência no aresto é a boa-fé do adquirente posterior que regista. O adquirente que regista a aquisição do seu direito, não sabendo nem lhe sendo exigível que soubesse que o titular inscrito já havia alienado ou onerado o prédio sem que o adquirente anterior tivesse registado a aquisição está de boa-fé e por isso é terceiro para efeitos de registo predial, não lhe podendo então ser oposta a primeira aquisição não registada.

Foi esta última orientação que veio a ser perfilhada pelo Código do Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei 533/99, de 11.12 que reformulando a anterior redacção do artigo 5.º, lhe introduziu um número 4, segundo o qual "terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si".

Por conseguinte, encontrando-se em vigor o novo Código do Registo Predial, por força do n.º 4 do seu artigo 5.º, é lei vigente a orientação perfilhada pelo citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 18.05.1999, a qual em consequência se aplica ao caso concreto.

Estribou-se, ainda a sentença recorrida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.2010, proc. 91-G/1990.P1, relator Rodrigues Pires, Acórdão do S.T.J. de 01.06.2006, proc. 06B1656, relator Pereira da Silva; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.04.2005, proc. 207172005-6, relator Granja da Fonseca, Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 14.11.2002, proc. 0231256, relator Moreira Alves; Acórdão Tribunal da Relação de Guimarães de 26.10.2017, proc. 1138/06.6TBVVD-B.G1, relatora Margarida Sousa, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Tendo por base, os ensinamentos, expostos, “rematou” a sentença recorrida no sentido, que se transcreve: “Não sendo o Exequente/Embargado terceiro, o direito anterior dos Embargantes, ainda que registado posteriormente, pode, pois, ser-lhe oposto, prevalecendo sobre o mesmo.

Termos em que se conclui que a doação sub judice sobre o imóvel penhorado nos autos executivos apesar de registada em data posterior ao registo da penhora sobre esse imóvel é eficaz em relação ao Embargado/Exequente, por este não ser considerado terceiro para efeitos de registo – artigo 5.º, n.º 4 do C.Registo Predial –, sendo-lhe o direito de propriedade dos Embargantes oponível”.

Apreciando.

Como é sabido, a jurisprudência e doutrina têm-se dividido entre a adopção de um - conceito amplo de registo - o que considera terceiro aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afectado pela produção dos efeitos de um acto que não figura no registo e que com ele seja incompatível, ( neste entendimento, a compra na venda judicial de um imóvel prevalece sobre qualquer venda anterior do mesmo bem mas que não tenha sido registada ou, tendo-o, o registo seja posterior ao registo da respectiva penhora) - e um conceito restrito – (Em que não considera terceiro, por exemplo, o referido adquirente do imóvel na venda judicial, em processo executivo, pois entende que a aquisição não deriva do mesmo transmitente que anteriormente vendeu o bem, embora sem registo. Isto é, para estes, terceiros são apenas os supostos adquirentes de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa de um mesmo autor comum, por isso, não considerando terceiro o exequente que nomeou o bem à penhora, ou o que nessa execução o veio a comprar, sendo-lhe oponível a aquisição anterior do mesmo bem, mesmo que não registada (Cfr. definição de MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 19).

 A questão foi tão debatida maxime na jurisprudência, vindo a dar origem aos acórdãos do STJ para fixação de Jurisprudência nºs 15/97, de 20.05.1997 (Publicado no DR, I Série A, nº 152, de 4.7.199-- que considerou “terceiros para efeitos de registo predial, todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente”) e 3/99, de 18.05 (Publicado no DR I Série, de 10.07.99—que considerou “terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, os adquirentes de boa fé, de um mesmo direito transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa”.).

Assim, a formulação legal de terceiros vertida no art. 5.º, n.º 4, do CRgP, aditado pelo DL n.º 533/99, de 11/2, que, entrou em vigor após os referidos acórdãos uniformizadores, dispondo, no citado número 4 :Terceiros, para efeitos de Registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”, é tributária da concepção restrita de terceiros, acolhida no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/99, de 18-05.

Lendo o segmento uniformizador do referido acórdão uniformizador n.º 3/99, não se vê que o mesmo resolva de forma clara a de saber se o credor exequente, com penhora registada a seu favor, pode ser considerado terceiro para efeitos da referida disposição legal no confronto com um direito anteriormente transmitido pelo titular do bem, mas que não foi objecto de registo ou registado posteriormente.

Porém, na fundamentação do referido AUJ n.º 3/99, facilmente se constata que no caso que foi objecto desse aresto se respondeu de forma negativa à referida questão: o credor exequente com penhora a seu favor não é considerado terceiro.

“Situação diferente é a resultante do confronto do direito real de garantia resultante da penhora registada quando o imóvel penhorado já havia sido alienado, mas sem o subsequente registo. Aqui, o direito real de propriedade, obtido por efeito próprio da celebração da competente escritura pública, confronta-se com um direito de crédito, embora sob a protecção de um direito real (somente de garantia). Nesta situação, mesmo que o credor esteja originariamente de boa fé, isto é, ignorante de que o bem já tinha saído da esfera jurídica do devedor, manter a viabilidade executiva, quando, por via de embargos de terceiro, se denuncia a veracidade da situação, seria colocar o Estado, por via do aparelho judicial, a, deliberadamente, ratificar algo que vai necessariamente desembocar numa situação intrinsecamente ilícita, que se aproxima de subsunção criminal, ao menos se for o próprio executado a indicar os bens à penhora. Assim, poderia servir-se a lex, mas não seguramente o jus.”

(…)

A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Portanto, efectuada a venda, é que os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo. In casu ainda se não efectivou a venda. Nesta perspectiva, poderia dizer-se que, a conceder-se eficácia ao registo, de alguma maneira estaria a emprestar-se-lhe capacidade impeditiva de o embargante conservar o seu direito de propriedade. No entanto, é certo que ninguém pode ser privado, no todo em ou parte, daquele direito senão por via de expropriações ou requisições, mediante pagamento de indemnização, sob pena de inconstitucionalidade). De certo modo, estaríamos perante a figura do confisco, facto susceptível de ferir profundamente o senso comum e, portanto, de gerar grande sobressalto social (cfr. Ac. do S.T.J., de 24/5/2022, proc.º n.º 830/15.9T8ACB-A.S1, relatado por Fernando Batista).

Resulta do ante exposto que em caso de confronto entre direitos reais de idêntica natureza (propriedade), incompatíveis entre si, prevalece o que foi registado em primeiro lugar. Contudo, o mesmo já não sucede quando o confronto é, como no caso sub judice, entre um direito de propriedade – transmissão anterior não registada - e um direito de crédito, embora este sob a protecção de um direito real de garantia (penhora), registado.

Mas mesmo que se entenda que tais direitos são incompatíveis entre si (independentemente da sua natureza), consagrou-se orientação jurisprudencial segundo a qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo predial, pressupõe que ambos os direitos advenham de um mesmo transmitente comum, excluindo-se os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma diligência judicial, seja ela aresto, penhora ou hipoteca judicial.

Como supra referido, terceiros para efeitos de registo são todos aqueles que adquirem do mesmo causante, direitos incompatíveis, com base na sua vontade, mas já não aqueles que adquirindo direitos ao abrigo da lei, tenham esse causante como sujeito passivo, não obstante ele não ter intervindo nos actos jurídicos de que tais direitos resultaram – como seja a hipoteca judicial, o arresto, penhora - neste sentido, Mónica Jardim, in obra sup. cit. pág. 612.

Assim, pelas razões expostas e como bem se escreve na sentença recorrida, o que advogamos, e por isso, aqui transcrevemos tal segmento, “…Não sendo o Exequente/Embargado terceiro, o direito anterior dos Embargantes, ainda que registado posteriormente, pode, pois, ser-lhe oposto, prevalecendo sobre o mesmo.

Termos em que se conclui que a doação sub judice sobre o imóvel penhorado nos autos executivos apesar de registada em data posterior ao registo da penhora sobre esse imóvel é eficaz em relação ao Embargado/Exequente, por este não ser considerado terceiro para efeitos de registo – artigo 5.º, n.º 4 do C.Registo Predial –, sendo-lhe o direito de propriedade dos Embargantes oponível”.

Assim, face ao exposto, também nesta vertente, não vislumbramos razão para censurar a sentença recorrida.

                                                           ***

                                                  4. Decisão

Face ao exposto, decide-se por acórdão, julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida nos seus termos.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 20/2/2024

Pires Robalo (relator)

António Fernando Marques da Silva (adjunto)

Cristina Neves (adjunta)