Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
331/09.4GAETR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DA MULTA POR TRABALHO
Data do Acordão: 11/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.ºS 48º, N.º 2 E 58º, N.º 3, DO C. PENAL
Sumário: Quando o n.º 2, do art.º 48º, do Código Penal, estabelece que é “correspondentemente aplicável” o n.º 3, do art.º 58º, do mesmo Código, à substituição da multa por trabalho a requerimento do condenado, o que o legislador pretende é que, para este efeito, onde se estabelece que “cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas” é como se determinasse que “cada dia de multa fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.
Decisão Texto Integral: 10

I - Relatório
No seguimento de requerimento do arguido A... solicitando a substituição da multa em que foi condenado por trabalho a favor da comunidade, a Ex.ma Juíza da Comarca do Baixo Vouga - Aveiro – Juízo de Média Instância Criminal – Juiz 3 –, por despacho de 13 de Março de 2012, decidiu substituir a pena de 180 dias de multa em que aquele fora condenado no presente processo, por 120 (cento e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade, a prestar executando trabalhos de construção civil e de limpeza e manutenção de espaços públicos para a Junta de Freguesia de São Jacinto, em horários a fixar entre quatro a oito horas por dia e em datas a determinar sob supervisão da DGRS em conformidade com a disponibilidade da EBT e do condenado (designadamente se o mesmo vier a encontrar ocupação laboral).

Inconformado com o despacho de 13-03-2012, dele interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. Pela prática de crimes de falsificação de documentos foi o arguido A... condenado na pena de cento e oitenta dias de multa, à razão diária de € 6,00.
2. Porque o arguido o requereu, foi autorizada a substituição desta pena de multa por trabalho a favor da comunidade.
3. Assim, “ao abrigo do disposto no artigo 58.°, n.° 3, do Código Penal, aplicável por força do disposto no artigo 48.°, n.° 2 do mesmo diploma” foi determinado que o arguido cumpra 120 (cento e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade, em substituição daquela pena de 180 dias de multa.
4. Com efeito, entendeu a Exma. Juiz que tendo sido aplicada ao arguido uma pena de 180 dias de multa, a que correspondem 120 dias de prisão subsidiária (artigo 49.°, n.° 1 do Código Penal), teria este de cumprir 120 horas de trabalho a favor da comunidade
5. Entendemos que, no presente caso, não foi correctamente aplicado o disposto no citado artigo 48.°, n.° 2, do Código Penal.
6. Na verdade, quando aí se diz “é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58.°, n.° 3º quer-se dizer que este último normativo se aplica mutatis mutandis, ou seja, com as necessárias adaptações.
7. Ou seja, o que se pretende é que se aplique apenas a regra da correspondência aí prescrita, ou seja, uma hora de trabalho para cada dia de multa.
8. Aliás, se assim não fosse, bastaria ao legislador ter referido no citado artigo 48.°, n.° 2 que era aplicável o disposto no artigo 58.°, n.° 3, sem a palavra “correspondentemente”.
9. Ao dizer expressamente e sem mais “é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 58.°, n.° 3, o legislador só pode ter querido dizer que, no caso da substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade, deverá aplicar-se a regra e proporção aí referidas, ou seja, uma hora por cada dia (neste caso, dia de multa).
10. A regra deverá ser, pois, a de fazer corresponder uma hora a um dia (dia esse que poderá ser de prisão ou de multa, conforme estejamos a aplicar directamente o disposto no referido n.° 3. ou por força da remissão do artigo 48.°. n.° 2).
11. Não sendo esta a vontade do legislador, deveria, então, ter dito que “era aplicável o disposto no artigo 58.°, n.° 3, depois de feita a conversão do artigo 49.°, n.° 1”.
12. Não tendo utilizado esta fórmula, entendemos não ser aceitável a interpretação e aplicação efectuadas pela Exma. Juiz.
13. Assim, a decisão recorrida deveria ter ordenado o cumprimento, não de 120 horas de trabalho, mas antes, de 180 horas de trabalho.
14. Não o tendo feito, entendemos que violou o disposto no citado artigo 48.°, n.° 2, do Código Penal.
Nos termos expostos e nos demais que V.as Exas. doutamente suprirão, julgando procedente o recurso, revogando o despacho recorrido e substituindo-o por outro que ordene a substituição da pena de 180 dias de multa aplicada ao arguido, por 180 horas de trabalho a favor da comunidade, far-se-á Justiça.”

O arguido não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.
O Exmo. Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação
O despacho recorrido:
«A... foi neste processo condenado pela prática de crime de ofensa á integridade física, por sentença de 19.05.2011, transitada em julgado, na pena de 180 dias de multa à razão diária de €6,00 (fls. 217 a 227).
Antes de iniciado o prazo para pagamento voluntário da multa, requereu a substituição da mesma por trabalho a favor da comunidade (fls. 229 e 239).
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser deferida a requerida substituição por dias de trabalho, nos termos de fls. 233 e 248, promovendo a substituição da pena de 180 dias de multa por 180 horas de trabalho a favor da comunidade.
Foi solicitado aos Serviços de Reinserção Social a realização de relatório, que consta de fls. 242 a 245, de acordo com o qual, além do mais: o condenado tem o sexto ano de escolaridade; já trabalhou na construção civil mas está actualmente desempregado; empenha-se na procura de trabalho; integra agregado familiar que atravessa intensas dificuldades económicas; revelou total disponibilidade para trabalhar em qualquer tarefa útil à comunidade, designadamente executando trabalhos de construção civil e manutenção de espaços públicos; pela Junta de Freguesia de São Jacinto (que é a da residência do condenado e uma das entidades pelo mesmo sugeridas no requerimento) foi já expressa disponibilidade para dar ocupação ao condenado na realização de trabalhos de construção civil e de limpeza e manutenção de espaços públicos, no horário de quatro a oito horas por dia.
Atento o teor da referida informação dos Serviços de Reinserção Social, bem como o considerado na sentença acerca da situação do condenado (cfr. fls. 219), afigura-se que a substituição da multa por trabalho realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção geral e especial que no caso se suscitam, nada obstando à substituição da multa por trabalho nos termos do artigo 48°, n.° 1, do Código Penal, disposição legal esta nos termos da qual "a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
Estabelece o n.° 2 do citado artigo 48° que “é correspondentemente aplicável o disposto nos n.°s 3 e 4 do artigo 58° e no n.° 1 do artigo 59o”.
Nos termos de tais disposições, “para efeitos do disposto no n.° l [substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade], cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas “o trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável''’, "a prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser provisoriamente suspensa por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra, não podendo, no entanto, o tempo de execução da pena ultrapassar 30 meses
Salvo o devido respeito por diverso entendimento (expresso, no presente processo, pelo Ministério Público), a aplicação “correspondente” do disposto no citado n.° 3 do artigo 58° do Código Penal (por remissão pelo artigo 48°, n.°2) não equivalerá à conversão de cada dia da pena de multa em uma hora (ou dial - cfr. letra do citado n.° 1 do artigo 48°) de trabalho a favor da comunidade, não parecendo dever considerar-se tal correspondência aritmética, mas antes correspondência normativa.
Com efeito, afigura-se que tal equivalência aritmética conflituaria com a necessária unidade do sistema jurídico (cfr. artigo 9o, n.°l, do Código Civil), considerando a correspondência legalmente estabelecida entre a pena de multa e a eventual prisão subsidiária (esta equivalente ao número de dias daquela reduzido a 2/3 - artigo 49°, n.°l, do Código Penal), sendo que no presente caso, em que foi aplicada a pena de 180 dias de multa, o eventual incumprimento de tal pena poderia implicar a conversão da mesma em 120 dias de prisão.
E a 120 dias de privação da liberdade, de acordo com o critério legal estabelecido no artigo 58°. n.°3, do Código Penal (norma de que resulta que são legalmente equiparáveis punições de um dia de privação da liberdade e de uma hora de prestação de trabalho a favor da comunidade - e não dia de trabalho, como textualmente refere o artigo 48°, n.° 1, do Código Penal), corresponderiam 120 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
A consideração da diversa natureza dogmática da pena (principal) de prisão a substituir por trabalho nos termos do artigo 58° do Código Penal e da prisão subsidiária que hipoteticamente poderia substituir a pena (principal) de multa, não pode fazer esquecer que em qualquer das hipóteses, “(...) na sua execução, quer uma quer outra têm exactamente o mesmo conteúdo material (...): a privação de liberdade de um cidadão, decorrente de uma sanção derivada de uma condenação criminal, cumprida em estabelecimento prisional durante um determinado período de tempo ” (Acórdão da Relação de Coimbra de 09.12.2009 — em que se aprecia questão diversa - que pode ler-se em www.dgsi.pt/itrc com o n.° de processo 126/05.4GTCBR.C1).
Ora - sempre ressalvando o devido respeito por diverso entendimento - não se afigura coadunável com o princípio da unidade do sistema jurídico e a presunção de (além do mais) coerência das soluções legislativas (artigo 9o, n.° 1 e n.°3, do Código Civil) aceitar que da remissão pelo artigo 48°, n.°3, para o artigo 58°, n.°3, possa resultar a conversão da pena de 180 dias de multa em 180 horas de trabalho.
Com efeito, a 180 dias de multa a lei equipara 120 dias de privação da liberdade e a mesma lei a 120 dias de prisão equipara 120 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
No sentido ora defendido, pode ler-se em wvvw.dgsi.pt/itrc o Acórdão da Relação de Coimbra de 19.01.2011. proferido no processo n.° 2249/08.9PTAVR.C1, no qual se considerou:
"Está em causa interpretação do conteúdo do artigo 48°, n° 2 do Código Penal, no segmento do seu n° 2 que preceitua "é correspondentemente aplicável o disposto nos n°s 3 e 4 do artigo 58o", regulando este preceito a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade a requerimento do arguido. Por seu turno o artigo 58°, n° 3 preceitua que "... cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho”
Será, pois, pertinente transcrever em primeiro lugar o artigo 9o do Código Civil que versa sobre a interpretação da lei:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Como resulta do preceito qualquer esforço interpretativo da lei tem como ponto de partida o seu texto com o significado gramatical das palavras que emprega, o que se designa de elemento literal da interpretação.
A interpretação literal conduz-nos geralmente a um sentido possível da lei, mas nem sempre garante que esse seja o significado definitivo. Esse há-de ser dado pela conjugação do elemento literal com o elemento lógico que se desdobra nos elementos racional, histórico e sistemático que muitas vezes na análise de interpretação se entrecruzam.
A única reticência legal ao crivo da interpretação lógica é que não pode ser acolhida aquela que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expressa.
A interpretação literal no caso conduz-nos a acolher em primeira linha a tese do recorrente no sentido de que cada dia de multa corresponde a uma hora de trabalho.
Mas será que essa interpretação corresponde de facto à razão de ser do preceito, será que assim o quis o legislador, será que o sistema de normas em que se integra não aparece assim desvirtuado?
Foram estas questões que, afinal, se equacionaram no despacho recorrido.
A lei em princípio deve ser entendida da maneira que melhor corresponda à consecução do resultado que o legislador teve em vista. Se, portanto, o legislador quis atingir certo resultado, quis naturalmente, salvo casos anómalos, o meio que a esse resultado conduz. Mas um preceito legal não é uma ilha isolada enquadra-se num conjunto com princípio, meio e fim. Por isso, especialmente num código, a relacionação do preceito a interpretar com o conjunto é elemento essencial para esclarecer o seu sentido, assim o expressa Inocêncio Galvão Teles, em Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, 11a edição, págs. 248 a 250.
A disposição em causa integra-se no capítulo das penas c, entre as penas previstas, avultam as de prisão e multa que evidentemente têm diferente natureza.
Mesmo quando a lei prevê que a pena de multa possa ser convertida em prisão não estabelece a sua equiparação em termos de tempo, estipulando a redução da multa em um terço no artigo 49°, n° 1.
Cabe, pois, perguntar se existe alguma razão sustentável para equiparar em termos de tempo a prisão à multa quando se trata de a substituir por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Quando o artigo 48°, n° 2 do Código Penal preceitua que é correspondentemente aplicável o artigo 58°, n° 3 do Código Penal não esclarece a questão porque o artigo 58°, n° 3 apenas preceitua que a cada dia de prisão corresponde um dia de trabalho continuando a não regular directamente a situação.
Existirá alguma razão juridicamente sustentável para que num caso a pena de prisão apenas possa corresponder a dois terços da pena de prisão e noutro possa corresponder à sua totalidade?
Cremos ser manifesto que não existe nenhuma razão para distinguir as situações e trata-se precisamente de um caso em que a interpretação sistemática dita, sem margem para dúvidas, que a expressão "correspondentemente aplicável" deva ser entendida com o subsídio do artigo 49°, n° 1 do Código Penal que expressa a ratio legis no que respeita à correspondência a estabelecer entre a pena de prisão é de multa, no pressuposto de que, sendo a pena de multa de menor gravidade, nunca pode corresponder a igual tempo de prisão, logo igual tempo de multa e prisão não poderão corresponder a igual tempo de prestação de trabalho."
Pelo exposto, decide-se substituir a pena de multa em que A... foi condenado no presente processo por 120 (cento e vinte) horas de trabalho a favor da comunidade, a prestar executando trabalhos de construção civil e de limpeza e manutenção de espaços públicos para a Junta de Freguesia de São Jacinto, em horários a fixar entre quatro a oito horas por dia e em datas a determinar sob supervisão da DGRS em conformidade com a disponibilidade da EBT e do condenado (designadamente se o mesmo vier a encontrar ocupação laboral)
Notifique-se Ministério Público e Il. Defensora.
Após trânsito do presente despacho, comunique-se, nos termos do artigo 490°, n. °3, do Código de Processo Penal, sendo o condenado com a advertência de que deverá no prazo máximo de cinco dias após trânsito desta decisão apresentar-se perante a Equipa do Baixo Vouga da Direcção-Geral de Reinserção Social, devendo esta entidade informá-lo da data exacta em que iniciará a execução das horas de trabalho a favor da comunidade.”

Decidindo:
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
*
Atentas as conclusões da motivação a única questão a decidir respeita à correspondência entre a pena de multa aplicada e os dias de trabalho a favor da comunidade, enquanto pena de substituição, ou seja, saber se o despacho recorrido violou o disposto no artigo 48.º, n.º 2, do CPl ao substituir a pena de 180 dias de multa em que o arguido foi condenado, por 120 horas de trabalho a favor da comunidade.
A questão em apreciação versa directamente com o problema da interpretação da lei, como se salientou no Ac da Rel de Coimbra de 16-02-2011, onde se resume a técnica de reconstituição do pensamento legislativo a partir do texto, com recurso aos elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.
A questão não é nova e já divide a jurisprudência, sendo maioritária a tese que o recorrente defende.
E com a qual também concordamos, porque se nos afigura correcta e objectiva a interpretação da norma do artigo 48.º do CP no sentido assinalado no recurso, sendo de notar que o elemento gramatical constante do seu n.º 1 é inequívoco no sentido de ser a pena de multa o ponto referencial determinante do número de dias de trabalho a favor da comunidade.
Com efeito, dispõe o artigo 48.º do Código Penal:
«A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 – É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 58.º e no n.º 1 do artigo 59.º».
Nos seus n.ºs 3 e 4, estatui o artigo 58.º do citado diploma (redacção da Lei 59/2007, de 4 de Setembro):
«3 - Para efeitos do n.º 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.
4 – O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável».
Basta reparar que no texto da norma se alude a «pena de multa» e não a pena subsidiária da multa ou a expressão equivalente.
Este é também o sentido e alcance da norma que se extrai do elemento teleológico, sustentado no elemento sistemático de interpretação, já explicado no acórdão da Rel. de Coimbra de 28-05-2008, relator Des. Alberto Mira: “Como se colhe expressamente do relatório que antecede a sua publicação, foi propósito confessado do CP/82 abandonar definitivamente a concepção segundo a qual à pena pecuniária estava reservado um papel marginal e subsidiário no sistema sancionatório português, e dar expressão prática à convicção da superioridade político-criminal da pena de multa face à pena de prisão no tratamento da pequena e da média criminalidade.
Corporizando essa ideia, o legislador explicitou as operações de determinação da pena de multa, os seus critérios próprios de afirmação e alargou o âmbito da sua aplicação e execução. «Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços (…)», prescreve o artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal.
Dado o carácter pecuniário da multa, o legislador previu um sistema múltiplo e com etapas sucessivas para o pagamento: a) pagamento voluntário, no prazo legalmente estabelecido no artigo 489.º do Código de Processo Penal; b) pagamento diferido ou pagamento em prestações (artigo 47.º do CP); c) substituição por trabalho a favor da comunidade (artigos 49.º, n.º 1, do CP, e 490.º do CPP).
Esgotadas as duas primeiras hipóteses e não sendo requerida a substituição da multa por trabalho, sucede-se a via processual tendente à cobrança coerciva da multa (artigo 49.º, n.º 1, do CP, e 491.º do CPP).
Assim, a prisão resultante da conversão da pena de multa não está para com esta numa relação de alternatividade, mas de subsidiariedade, já que só se autonomiza, para ser cumprida, depois de esgotados todos os outros meios de cumprimento da multa.
Nestes termos, a sistematização conferida pelo legislador ao regime de pagamento/substituição da pena de multa não deixa dúvidas quando à teleologia presente nas normas, conjugadas, dos artigos 48.º e 58.º, n.º 4, do Código penal, qual seja: a determinação dos dias de trabalho a favor da comunidade deve ser feita por referência à pena de multa fixada e não à pena de prisão que daquela seja subsidiária”.
No mesmo sentido Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado Edição Quid Júris, 2008: “Os dias de trabalhos são tantos quantos os dias de multa, só que a cada dia de trabalho não corresponde a um período de 24 horas, nem a uma jornada normal de trabalho, nem em cada dia pode-se exceder o limite de trabalho extraordinário, por valer a propósito, o n.º4 do art. 58.º”.
O argumento utilizado no despacho recorrido de que “…, a 180 dias de multa a lei equipara 120 dias de privação da liberdade e a mesma lei a 120 dias de prisão equipara 120 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.”, é incorrecto desde logo porque não existe qualquer “equiparação”, mas apenas “substituição” e “conversão” – cfr art 48º (substituição da multa por trabalho) e 49º ( Conversão da multa não paga em prisão subsidiária).
O que facilita a compreensão do pensamento do legislador português, que entendeu reduzir a prisão subsidiária a 2/3 do tempo correspondente à multa (incumprimento imputável ao condenado) – art 49º, nºs 1 e 4, do CP. De notar que um dia de prisão são 24 horas de privação de liberdade. “ Não se olvide mesmo que, a propósito, a relação entre multa e prisão é de subsidiariedade, jamais de alternatividade, visto como a última só entra quando a primeira não for possível” - Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado Edição Quid Júris, 2008, pág 176.
Por outro lado, se até os dias de prisão são substituídos pelo mesmo número de dias de trabalho, não se percebe porque no despacho recorrido se pretende que os dias de multa não poderão ser substituídos pelo mesmo número de dias de trabalho.
Quando o n.º 2 do art.48.º do Código Penal estabelece que é “correspondentemente aplicável” o n.º 3 do art. 58.º do mesmo Código, à substituição da multa por trabalho a requerimento do condenado, o que o legislador pretende é que, para este efeito, onde se estabelece que “ cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas” é como se determinasse que “ cada dia de multa fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.
O n.º 4 do art. 49.º do Código Penal é claro no sentido de que só se houver incumprimento de dias de trabalho é que se manda atender ao disposto no n.º 1 do art.49.º do Código Penal.
Nem do texto do n.º 2 do art. 48.º do Código Penal, nem de qualquer outro preceito resulta que o Tribunal, logo aquando da substituição da multa por dias de trabalho a requerimento do condenado, deve proceder à aplicação do n.º 1 do art. 49.º do Código Penal, fixando as horas de trabalho a prestar pelo condenado em dois terços dos dias da pena de multa.
Acresce que “A seguir-se a posição sufragada pelo despacho recorrido, se o condenado viesse a incumprir nas horas de trabalho resultantes da substituição da pena de multa ainda beneficiaria de uma segunda redução de dois terços da pena, agora ao abrigo do n.º4 do art.49.º do Código Penal.
A interpretação consignada no despacho recorrido não tem qualquer apoio no elemento histórico, como se pode ver das Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal de 1995A:\52 - 2151 03-0ptavr-A-C1.doc - _ftn7.
Para além de não ter apoio ou correspondência no texto dos artigos 48.º, n.º2 e 49.º do C.P., a interpretação da lei seguida no despacho recorrido viola o elemento teleológico e a unidade do sistema jurídico, caracterizados pelo paralelismo entre a forma de cumprimento da pena de multa e a pena de prestação a favor da comunidade.” Ac cit. Rel Coimbra, de 16-02-2011.
Consequentemente, não pode manter-se a decisão recorrida na parte em que, deferindo o requerimento do arguido, se decidiu substituir a pena de 180 dias de multa, em que este foi condenado, por 120 horas de trabalho a favor da comunidade.
Aquela pena de 180 dias de multa deve ser substituída por 180 horas de trabalho a favor da comunidade.

III – DISPOSITIVO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, revogando parcialmente o despacho recorrido, decide-se substituir a pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa em que o arguido A... foi condenado, por 180 (cento e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade, mantendo no mais a decisão recorrida.
Sem custas.
Coimbra, 21 de Novembro de 2012.
(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.).


____________________________________________________
(Isabel Valongo)



____________________________________________________
(Joaquim Correia Pinto)