Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/06.0 TAPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIFAMAÇÃO
DEVER DE INFORMAR
Data do Acordão: 01/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENAMACOR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 180.º, N.º 1 E 183.º, N.º 2,,3 E4 DO CP E 410º, 412º,428º DO CPP
Sumário: 1.O previsto no artigo 410.º, n.º 1, alínea a) do CPP emerge quando da factualidade vertida na decisão em recurso se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

2.A conduta prevista no artigo 180º, nº1 do CP não é punível, nomeadamente, quando agente tiver fundamento sério para, em boa fé, reputar como verdadeira imputação feita.

3. No caso, o Tribunal a quo fundamentou a boa fé do arguido em reputar as expressões em causa como verdadeiras, enquanto um dos requisitos para lançar mão da causa de justificação prevista no artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal, não apenas arrimando-se no indicado ponto 9) da matéria de facto dada como provada, mas também louvando-se na conjugação da demais prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente no depoimento da testemunha F .Toda esta factualidade é claramente suficiente para sustentar, por si só, a boa fé do arguido em reputar as suas expressões como verdadeiras, e em consequência, determinar o sentenciado juízo da sua absolvição .

4.Decorre do teor das entrevistas dadas como provadas, o conhecimento que o arguido tinha sobre a matéria e os contactos com os diversos organismos oficiais e com os próprios populares. Tudo moldes bastantes para permitir a conclusão extraída na sentença em causa de que o recorrido acatou com o dever de informação que sobre ele incidia antes de proferir as expressões em litígio.

5.No caso vertente depara-se-nos o confronto entre o direito à honra da assistente e o direito do arguido, enquanto detentor de um cargo público de eleição, em defender os interesses daqueles que o legitimaram com o seu voto, atribuindo-lhe um mandato por cujo intermédio ele se transformou também no porta voz público, quando necessário, da salvaguarda dos direitos e interesses dos seus munícipes. No caso ponderando os interesses em conflito, nas circunstâncias em que as expressões foram proferidas, entendemos também que os prosseguidos pelo arguido sobrelevam sobre a honra da assistente.

Decisão Texto Integral: I – Relatório.
1.1. Após pronúncia, o arguido DA, já mais devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento porquanto indiciariamente incurso, entendeu-se, na prática de um crime de difamação, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2, ambos do Código Penal.
Operado o contraditório, por sentença de 7 de Janeiro de 2009 [por lapso manifesto, que se corrige, ut artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, consignou-se “7 de Janeiro de 2008” – fls. 672 -], entretanto alvo de correcção deferida – fls. 813 –, decretou-se a absolvição daquele mesmo arguido.
1.2. Porque se não revê no veredicto assim emitido, recorre a assistente Maria, também já devidamente identificada, extraindo da oportuna motivação as seguintes (diga-se que, por vezes, repetitivas) conclusões:
1.2.1. Impõe-se proceder à correcção de alguns lapsos constantes do texto da decisão, mormente, dos factos provados.
1.2.1. Isto uma vez que o Tribunal a quo ao reproduzir as entrevistas concedidas pelo arguido aos diversos meios de comunicação social optou por efectuar uma apresentação truncada das mesmas, limitando-se a transcrever os trechos que continham afirmações que pudessem consubstanciar a prática do crime de difamação de que o arguido vinha acusado.
1.2.3. Todas as afirmações assim proferidas foram dadas como provadas. Porém, certamente por lapso, o Tribunal recorrido olvidou transcrever algumas passagens que se mostram relevantes para a apreciação da presente impugnação. Especificando, não transcreveu o Tribunal a quo o seguinte trecho:
Quanto ao ponto 5 da matéria dada como provada – Entrevista concedida pelo arguido à Rádio ….:
Teve que fazer o abate dos animais porque entretanto algumas ficaram com brucelose, é evidente que se suspeita que possa ser da invasão dos pastos por esses animais, mas isso é apenas uma suspeita, não afirmamos absolutamente mais nada, mas que realmente aconteceu, aconteceu e estas coisas não se podem continuar a verificar.”
Quanto ao ponto 3 da matéria dada como provada – Entrevista concedida pelo arguido à Rádio C…:
Desta vez as pessoas perderam simplesmente a paciência para continuarem a ser usadas no meio disto tudo porque quem não trata do seu gado e por simplesmente se limitar a receber o subsídio, eu acho que o próprio Ministério da Agricultura aí é responsável e foi também um pouco este o teor da conversa que eu tive com o próprio director regional que está dentro do dossier.”
Quanto ao ponto 4 da matéria dada como provada – Entrevista concedida pelo arguido à Rádio ….:
Nós também não queremos que a população se sinta ainda mais injustiçada relativamente à forma lenta como a justiça tem funcionado, porque há queixas no tribunal encaminhadas via GNR e que neste momento a população perdeu a paciência e a Câmara Municipal está solidária com a população, porque realmente não se consente que no Século XXI estejamos a atravessar situações destas.”
Quanto ao ponto 8 da matéria de facto provada onde consta que à Rádio V… o arguido declarou as mesmas expressões aludidas no ponto 7 deverá passar a constar pontos 3, 4 e 5, pois que se depara mero lapso susceptível de reparação no Tribunal ad quem, e resulta directamente da transcrição das entrevistas concedidas.
1.2.4. Porque a matéria de facto constante das gravações áudio foi, na sua íntegra, dada como provada e imputada ao arguido, ocorre estarmos na presença de um mero lapso cuja eliminação não importa qualquer modificação essencial e que como tal deve ser corrigida, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
Como corolário, depois de corrigida, deve tal matéria passar a integrar a matéria dada como provada.
1.2.5. A decisão recorrida padece de nulidade, que se invoca, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal. Isto porquanto:
1.2.6. O arguido vinha acusado de ter insinuado que a assistente propagou a brucelose a uma exploração vizinha; que, como consequência e culpa sua, o proprietário dessa exploração foi compelido a abater todos os seus animais – 550 cabeças de gado; aquela propagação, segundo insinuação do arguido, resultou do facto de os animais de que a assistente é proprietária contaminarem os campos que alegadamente invadem. Tais factos foram dados como provados nos pontos 5 e 7 da matéria provada.
1.2.8. Ora, não obstante o Tribunal sindicado ter dado tais factos como provados e, o artigo 180.º do Código Penal prever e punir como difamação os factos ou juízos, que sejam imputados, ainda que sob a forma de suspeita.
1.2.9. Bem como apesar de a assistente ter deduzido acusação particular, quanto a estes factos, certo é que não conheceu da referida suspeição.
1.2.10. Caso assim se não considere, sempre por tal circunstância padeceria a sentença recorrida do vício de insuficiência da matéria de facto, nos termos a que se alude no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, vício que, aliás, é de conhecimento oficioso do Tribunal.
1.2.11. Da factualidade vertida no ponto 9) dos factos dados como provados o Tribunal a quo retirou, no que aos factos atinentes ao sequestro por brucelose e prejuízos dos agricultores respeita, que: “é legitimo concluir que o arguido, em boa fé, reputou as suas afirmações como verdadeiras sendo que actuou na qualidade de Presidente da Câmara com o objectivo de esclarecer os populares das medidas adoptadas pelas instituições públicas no sentido de resolver a situação dos animais da exploração da assistente não continuarem a deambular pelas propriedades vizinhas e não provocarem estragos nem disseminarem doença, podendo originar o abate de animais de outras explorações.”
1.2.12. Ora, se nos ativermos a tal factualidade, conclusão será a de que, então, se limitou a transcrever os factos constantes da fundamentação de um Acórdão que teve o seu trânsito em julgado no dia 24 de Janeiro de 2006.
1.2.13. Ou seja, 4 anos após o arguido ter proferido as expressões que integram o crime de difamação com publicidade, pelo qual se encontra acusado nos presentes autos.
1.2.14. Entende, pois, a recorrente, que o Tribunal da 1.ª instância ao concluir da boa fé do arguido e da verdade das afirmações sobre os alegados apenas com fundamento nos factos a que se alude em 9), violou o cumprimento do dever de descoberta da verdade que lhe é imposto pelo normativo do artigo 340.º do Código de Processo Penal.
1.2.15. Na verdade, não consta da descrição da matéria de facto, que o arguido, à data da prática do ilícito, tivesse conhecimento da matéria a que se alude no ponto 9) da matéria de facto dada como provada.
1.2.16. Desconhece-se, não resultando da decisão recorrida, que o arguido, no momento em que concedeu as entrevistas aos diversos órgãos de comunicação social tinha conhecimento das queixas apresentadas? Era conhecedor do seu teor e dos alegados prejuízos? O arguido sabia que as entidades competentes tinham decretado o sequestro? Perguntas que ficaram por responder.
1.2.17. Todas elas absolutamente relevantes para a boa decisão da causa, nomeadamente, para se poder aquilatar da boa fé do agente e da verdade das imputações.
1.2.18. Boa fé e/ou verdade, cuja verificação, cumulativamente com a realização de interesse legítimo [alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º, do Código Penal], constituem condições necessárias à procedência da causa de justificação.
1.2.19. Assim, para que fosse legítimo ao Tribunal lançar mão da causa de justificação – de que se socorreu para formular o seu juízo absolutório – impunha-se que a boa fé do arguido se encontrasse provada, sendo exigível que o seu suporte fáctico constasse da decisão, o que não sucede. Bem como se impunha que da matéria de facto provada constasse que à data o arguido era conhecedor dos alegados prejuízos.
1.2.20. Na presença de factos essenciais para a formulação de um juízo seguro de absolvição, forçoso será então concluir, no que à boa fé do arguido respeita e à verdade dos prejuízos causados, os factos provados na decisão são insuficientes para justificar a decisão proferida.
1.2.21. O que comina a decisão proferida com o vício do artigo 410.º, n.º 2, bem como preterição aos artigos 340.º e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.
1.2.22. Acresce não haver logrado o Tribunal a quo proceder à melhor apreciação da prova produzida, e que a mesma, devidamente interpretada e julgada, imporia decisão diversa da recorrida.
1.2.23. Esse Tribunal assentou a decisão absolutória essencialmente no depoimento da testemunha F. médico veterinário, alegadamente, “municipal” e que, presumivelmente, teria veiculado as informações sobre a situação sanitária dos animais ao arguido.
1.2.24. Daí retirou a boa fé do arguido e o cumprimento, por parte deste, do dever de informação a que alude a alínea b) do n.º 2 e n.º 4 do artigo 180.º citado.
1.2.25. Fazendo-o incorreu, porém, num erro de julgamento.
1.2.26. A mencionada testemunha é, efectivamente, médico veterinário, trabalha na Câmara Municipal .., não fazendo parte dos seus quadros, antes ocupa um cargo no gabinete de desenvolvimento local, não exerce funções de Veterinário Municipal.
1.2.27. Todos estes factos foram confirmados pelo próprio ao Tribunal a quo, aquando da prestação do seu depoimento constante da Cassete Seis, lado A – parte final – rotações 588 a 1742 e lado B, parte inicial – rotações – 0 a 482.
1.2.28. Ora, não obstante ser médico veterinário, a testemunha exerce funções na Câmara Municipal, no gabinete de desenvolvimento local, dispondo a Câmara dispõe de um Veterinário Municipal que tem as funções acometidas por lei e aí amplamente definidas, sendo a este que compete o aconselhamento do executivo, prestação de informações e a emissão de pareceres.
1.2.29. Não tendo resultado provado nos presentes autos, que tal entidade tenha sido ouvida sobre os problemas sanitários, alegadamente, existentes na exploração da assistente, não se vislumbra como pôde o Tribunal a quo considerar preenchido o dever de informação a que o arguido estava adstrito.
1.2.30. Mais, é de salientar, que no decurso da audiência, a assistente solicitou que ao abrigo do princípio da descoberta da verdade material, fosse chamado a prestar o seu depoimento RZ – médico veterinário municipal do concelho –, a fim de esclarecer da existência ou não de contactos por parte da Câmara Municipal acerca do objecto dos presentes autos, nomeadamente, se o mesmo havia sido consultado sobre a situação do gado, da existência do perigo para a saúde pública.
1.2.31. Como requereu a assistente que fosse admitido a prestar o seu depoimento o Médico que, à data, exercia funções de Delegado de Saúde no concelho, a fim de ser inquirido sobre os mesmos factos.
1.2.32. No entanto, e não obstante, por lei, serem estas entidades, as competentes para coadjuvar o município em questões como aquelas que se apreciam nos presentes autos, a M.ma Juiz a quo considerou que tais depoimentos não eram relevantes para o apuramento da verdade, pelo que indeferiu o requerimento probatório.
1.2.33. Ora tal indeferimento, não converte em veterinário municipal a testemunha F. pelo que todas as referências efectuadas à testemunha nessa qualidade e que proliferam na decisão proferida, nomeadamente, no enquadramento jurídico penal e na motivação da decisão de facto, deverão ser corrigidas por erróneas e não traduzirem a realidade dos factos.
1.2.34. Concomitantemente, a decisão, também quanto a esta matéria se encontra ferida do vício de insuficiência da matéria de facto provada, o que inviabiliza uma correcta impugnação da decisão da matéria de facto.
1.2.35. Na verdade em momento algum da factualidade vertida em sede de factos dados como provados o Tribunal a quo consagra que o arguido cumpriu os deveres de informação a que estava adstrito, em momento algum se faz referência que o arguido ouviu os serviços, ou foi por estes, aconselhado.
1.2.36. Assim para que fosse legítimo ao Tribunal lançar mão da causa de justificação – de que se socorreu para formular o seu juízo absolutório – impunha-se que o dever de informação se encontrasse provado, sendo exigível que o seu suporte fáctico constasse da decisão, o que não sucede.
1.2.37. E assim, sendo os mesmos essenciais para a formulação de um juízo seguro de absolvição, forçoso será concluir que os factos provados são insuficientes para justificar a decisão proferida.
1.2.38. Tendo incorrido o Tribunal a quo também aqui em preterição aos mencionados artigos 410.º, n.º 2; 340.º e 374.º, n.º 2.
1.2.39. Mostra-se incorrectamente julgado o ponto 1 dos factos dados como não provados.
1.2.40. Contudo, aquele julgamento mostra-se infirmado pelo conteúdo da entrevista concedida pelo arguido à Rádio C., na qual afirmou: “uma vez que eu acho que produtores destes no concelho não precisamos deles, antes pelo contrário trazem é problemas, as pessoas habituaram-se alguns a viver de subsídios sem tratar daquilo que é delas causando sistematicamente prejuízos a terceiros.”
1.2.41. Na mesma entrevista e frisando a ideia já expressa o arguido reafirma: “desta vez as pessoas perderam simplesmente a paciência para continuarem a ser usadas no meio disto tudo porque quem não trata do seu gado e pura e simplesmente se limitar a receber o subsidio, eu acho que o próprio Ministério da Agricultura aí é responsável e foi também um pouco este o teor da conversa que eu tive com o próprio director regional que está dentro do dossier.”
1.2.42. Escreveu a M.ma Juiz a quo, que “o arguido limitou-se a dizer pessoas habituaram-se alguns a viver de subsídios, não se referindo concretamente à pessoa da assistente.”
1.2.43. E assim considerou não provada a matéria constante do n.º 1) dos factos não provados.
1.2.44. Porém, o que resulta da transcrição integral da entrevista é exactamente o contrário, ou seja, na segunda parte da entrevista – concretamente naquela parte cuja correcção se requereu supra – o arguido volta a fazer alusão às pessoas que simplesmente se limitam a viver de subsídios, e desta feita, referindo-se expressamente à assistente.
1.2.45. Pois, no entender do arguido é da assistente que as pessoas estão fartas, foi por causa dela que as pessoas perderam simplesmente a paciência – e é por ela que têm sido usadas, tudo porque, segundo afirma o arguido “há quem não trate do seu gado e pura e simplesmente se limita a receber o subsídio.”
1.2.46. Pelo que, chamando o arguido à colação a contextualização dos factos – quando afirma que a população perdeu a paciência – excluídas ficam todas as dúvidas, se é que algumas existiam, que o destinatário do juízo de desvalor e dos factos é a assistente.
1.2.47. Assim, por lapso certamente, o tribunal não integrou o referido facto na matéria provada, incorrendo assim num erro de julgamento.
1.2.48. E, consequentemente, erradamente decidiu que a conduta do arguido ao proferir a expressão não era subsumível na previsão dos artigos 180.º e 183.º, ambos do Código Penal.
1.2.49. Igualmente se mostra incorrectamente julgado o ponto 4) dos factos não provados quando entendeu dar por não provado que sob o terreno da assistente não incidia à data das declarações do arguido qualquer sequestro sanitário, ou qualquer processo de semelhante natureza.
1.2.50. Ora, a assistente na primeira sessão de audiência de julgamento requereu a junção aos autos de um documento emitido pelo Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, mais concretamente, pelo então Ministro da pasta, Eng.º Sevinate Pinto, no qual – ponto 7 das conclusões – se pode ler:
A DRABI não determinou o sequestro da exploração por terem sido detectados animais positivos à brucelose, pelo que não cumpriu com o estabelecido nos n.ºs 1, 2, e 3 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 244/2000, de 27 de Setembro.”
1.2.51. Tal documento prova o contrário do afirmado na decisão, pelo menos no que à brucelose respeita. Devia pois o Tribunal a quo no julgamento que fez dos factos, ter dado como provado que sob o terreno que é propriedade da assistente não incida, à data das declarações do arguido, qualquer sequestro sanitário por brucelose, pelo que ao não decidir assim violou o Tribunal o artigo 169.º do Código de Processo Penal, já que na presença de um documento autêntico cuja veracidade não foi posta em causa.
1.2.52. A decisão recorrida mostra-se por tudo isto incompreensível, porquanto, face à prova produzida, fracassa no estabelecimento de um recurso lógico e intelectual sobre a matéria de facto.
1.2.53. No entender do Tribunal as declarações prestadas pelo arguido justificam-se no âmbito de um alegado interesse legítimo de defesa dos interesses do Munícipes que representa.
1.2.54. Mais, todas as expressões proferidas tinham em vista e como finalidade tranquilizar e sossegar esses mesmos Munícipes. Contudo, não vislumbra a recorrente como pode concluir o Tribunal a quo, nas circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorrem afirmar que lançar mão de suspeitas, dar informações sobre a alegada situação sanitária dos animais da assistente, afirmando-os doente, padecendo de maleita contagiosa e fazer afirmações alarmistas sobre perigo de saúde publica que a população desconhecia – veja-se a este respeito as queixas dos populares na reportagem efectuada pela RTP – pode revestir carácter apaziguador.
1.2.55. Mais: as afirmações do arguido foram proferidas em contexto, de linchamento; o arguido veio colocar-se ao lado da população, afirmando, que gente desta é mais que nefasta ao concelho; num momento em que a população pretendia fazer uso de justiça privada, o Presidente da Câmara veio afirmar “realmente nós também não queremos que a população se sinta ainda mais injustiçada relativamente à forma lenta como a justiça funciona, porque há queixas no Tribunal, enviadas via GNR e neste momento a população perdeu a paciência e a Câmara Municipal está solidária com a população.”
1.2.56. Numa atitude se não de instigação pública a um crime, ao menos de apologia deste, e foram estes factos perpetrados pelo arguido, os quais, pela sua gravidade, têm consagração ao nível do direito penal – artigos 297.º e 298.º que a M.ma Juiz qualificou de apaziguadores.
1.2.57. Ora, esta conclusão, já se vê, não é verosímil, nem coerente, pelo que a decisão sob recurso traduz uma apreciação manifestamente ilógica, de todo insustentável, e por isso incorrecta, dos factos sujeitos a julgamento.
1.2.58. A incongruência da decisão recorrida resulta de uma errónea apreciação factual, e bem assim do engano, do erro, na correlacionação de circunstâncias entre os factos, face às regras da experiência comum, que reverte na sua incompatibilidade lógica.
1.2.59. Essencialmente na parte em que considera que “o arguido agiu ao abrigo de um interesse legítimo – tranquilizar e apaziguar os ânimos dos munícipes da freguesia de P…”.
1.2.60. Sendo certo que o valor dos meios de prova não está legalmente preestabelecida, deve o tribunal valorar os meios de prova de acordo com a experiência comum e com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção.
1.2.61. Não o fazendo, incorreu o Tribunal em erro notório na apreciação da prova, por violação ao artigo 127.º do Código de Processo Penal.
1.2.62. A prova produzida, conjugada com as regras da experiência comum, impunha a conclusão de que o arguido, ao proferir as afirmações que proferiu, quis ofender, como conseguiu, a assistente na honra e consideração a que esta legitimamente tem direito.
1.2.63. No que concerne à fundamentação de direito, concorda a recorrente com o segmento da decisão recorrida no qual se considerou “que as expressões proferidas são objectivamente ofensivas da honra e consideração devida à assistente.”
E, que, nessa conformidade, se mostram provados os pressupostos de que dependeria a punição do arguido pelo crime de difamação previsto e punido pelo artigo 180.º do Código Penal, pelo qual vinha pronunciado.
1.2.64. Porém, o mesmo juízo já se não verifica quanto ao segmento no qual o Tribunal a quo entendeu sobrevirem os pressupostos da causa de justificação.
1.2.65. Tudo porque, como já dito, não cumpriu o arguido com o dever de informação a que estava obrigado, e que se mostra condição sine qua non da verificação da causa de justificação a que alude o encimado artigo 180.º, n.ºs 2 e 4. Assim,
1.2.66. O arguido, alegadamente, terá sustentado as afirmações por si proferidas em conversas informais com um trabalhador da Câmara Municipal que, sendo veterinário, não desempenha funções de Veterinário Municipal; o arguido é conhecedor que as matérias sobre as quais se pronunciou, se enquadram no âmbito das atribuições do Médico Veterinário Municipal, o qual se encontra na sua dependência hierárquica e disciplinar.
1.2.67. Pelas funções que exerce, o arguido não pode ignorar as funções cometidas a esses profissionais, nos termos do Decreto-Lei n.º 116/98, de 5 de Maio, disciplinador sobre o estatuto dos médicos veterinários municipais.
1.2.68. Não pode desconhecer o arguido que o médico veterinário municipal é a autoridade sanitária veterinária concelhia, a nível da respectiva área geográfica de actuação; mais, que os poderes de autoridade sanitária veterinária são conferidos aos médicos veterinários municipais, por inerência de cargo, pela Direcção-Geral de Veterinária (DGV), enquanto autoridade sanitária veterinária nacional, e pela Direcção-Geral de Fiscalização e Controlo da Qualidade Alimentar (DGFCQA), a título pessoal, não delegáve1 e abrangendo a actividade por eles exercida na respectiva área concelhia, quando esteja em causa a sanidade animal ou a saúde pública.
1.2.69. E que o exercício do poder de autoridade sanitária veterinária concelhia se traduz na competência de, sem dependência hierárquica, tomar qualquer decisão, por necessidade técnica ou científica, que entenda indispensável ou relevante para a prevenção e correcção de factores ou situações susceptíveis de causarem prejuízos graves à saúde pública, bem como nas competências relativas à garantia de salubridade dos produtos de origem animal.
1.2.70. Assim como não pode ignorar que os médicos veterinários municipais têm o dever de, nos termos da legislação vigente, colaborar com o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas (MADRP), na área do respectivo município, em todas as acções levadas a efeito nos domínios da saúde e bem-estar animal, da saúde pública veterinária, da segurança da cadeia alimentar de origem animal, da inspecção hígio-sanitária, do controlo de higiene da produção, da transformação e da alimentação animal e dos controlos veterinários de animais e produtos provenientes das trocas intracomunitárias e importados de países terceiros, programadas e desencadeadas pelos serviços competentes, designadamente a DGV e a DGFCQA.
1.2.71. Todas as competências acabadas de enunciar têm enquadramento legal, nomeadamente, artigos 1 a 4 do diploma supra referido, pelo que, também o Tribunal está obrigado ao seu conhecimento.
1.2.72. Ora, não tendo o arguido consultado o Médico Veterinário Municipal, limitando-se a ouvir a testemunha F. sobre a matéria constante dos presentes autos e, tendo ele firmado nas informações por este fornecidas as declarações prestadas, forçoso será concluir que o arguido não cumpriu os deveres de informação a que estava adstrito, antes violando grosseiramente as normas legais a cujo cumprimento está adstrito, enquanto presidente da Câmara.
1.2.73. Proferir afirmações da gravidade das provadas nos presentes autos com base em informações de um veterinário que se não encontra investido de poderes para tal, e cujo conhecimento, uma vez na presença de dados confidenciais, só poderia ser, como ele próprio admitiu oficioso consubstancia uma violação grosseira dos mais elementares deveres de informação a que um qualquer arguido poderia estar adstrito.
1.2.74. Não tendo o arguido cumprido o dever que lhe era imposto forçoso será concluir que o mesmo violou a dever de informação a que estava obrigado e porque assim não poderá dar-se por verificada a causa de exclusão de ilicitude do artigo 180.º, n.º 2, por efeito do que vai no seu n.º 4, e incorreu na prática do crime cuja autoria lhe vinha assacada.
1.2.75. E nem se afirme que o arguido agiu ao abrigo do artigo 31.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, pois para que a conduta do arguido pudesse subsumir-se no conceito de exercício de direito o mesmo teria de ter dito menos do que afirmou, ter-se-ia de limitar a factos e não a juízos.
1.2.76. Ainda que algumas afirmações proferidas pelo arguido possam integrar-se no exercício do direito de informar, nomeadamente as que respeitam às diligências em curso para pôr termo ao diferendo que alegadamente opunha a população à assistente, a imputação de factos desonrosos e a afirmação de juízos de desvalor não podem por certo ser integrados, no conceito de exercício de direito.
1.2.77. Ao alvitrar uma tal solução, o Tribunal a quo violou não só este último normativo, mas também o artigo 333.º do Código Civil.
Terminou pedindo seja decidido em conformidade.
1.3. Notificados para tanto, responderam os demais sujeitos processuais visados, sustentando ambos o improvimento da impugnação.
O arguido referindo ainda, que, caso proceda o recurso da assistente, mantém interesse na apreciação do recurso que se mostra retido por intermédio do despacho exarado a fls. 287 dos autos.
Admitida a peça em causa, foram os autos remetidos a esta instância.
1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente à improcedência do recurso e consequente manutenção do sentenciado.
1.5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
No exame a que alude o n.º 6 desse mesmo inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Como assim, determinou-se o prosseguimento dos autos com recolha dos vistos, o que sucedeu, bem como submissão á presente conferência.
Urge, então, ponderar e decidir.
*
II – Fundamentação de facto.
2.1. A matéria de facto tida por provada na decisão recorrida, mostra-se como segue:
1. No dia 19 … de 2002, no jornal das 20 horas, da estação televisiva …, foi difundida a seguinte entrevista dada pelo arguido, na qualidade de Presidente do Município de …: “qualquer coisa está mal ao nível do próprio Ministério da Agricultura quando continuam a subsidiar produtores deste tipo que ao longo dos anos tem causado vários problemas a nível de toda a gente que faz agricultura de subsistência e nós também estamos a trabalhar no sentido (…) que situações destas não voltem a acontecer, porque não queremos que haja aqui uma tragédia no P… que leve a que as coisas se compliquem, de modo que aquilo que nós sabemos que neste momento é que a situação não se pode verificar novamente e produtores deste tipo nós não necessitamos deles no concelho.”
2. No dia 20 de … de 2002, o arguido declarou perante a Rádio C. o seguinte: “aquilo que nós neste momento estamos a fazer foi aquilo que também começamos a fazer em termos de dialogar com as populações e fazer com que as coisas decorressem da melhor forma e (…) que não houvesse nenhuma tragédia na freguesia. Realmente isto é um assunto que se arrasta há já três anos, as pessoas perderam por completo a paciência porque há já três anos que andam nisto e ultimamente as coisas têm piorado e entretanto ontem a população exaltada conduziu a proprietária para a sede da junta de freguesia (…) e aquilo que neste momento estamos a fazer é que realmente a pessoa se responsabilize pelos prejuízos que tem causado à população, uma vez que toda a área e os proprietários todas as sementeiras que tinham feito para os seus próprios animais e para produtos hortícolas, provavelmente está tudo devassado aquilo que a população não quer é que se continue a verificar precisamente aquilo que tem acontecido ao longo destes anos (…). Temos uma reunião já marcada para quarta-feira de modo a delinearmos e a própria DRADI também delinear (…) aquilo que deve ser feito, uma vez que eu acho que produtores destes no concelho não precisamos deles, antes pelo contrário trazem é problema, as pessoas habituaram-se alguns a viver do subsidio sem tratar daquilo que é delas causando sistematicamente prejuízos a terceiros e a Câmara Municipal não faz mais do que se solidarizar com as pessoas. Porque realmente elas estão cheias de razão e gente desta no concelho é mais que nefasta, de modo que espero que nada de mais complicado venha acontecer, também não garanto é que as pessoas não percam a paciência de uma vez por todas e que depois as coisas venham a complicar ainda mais.”
3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido proferiu as seguintes expressões “neste momento a situação é tal como as pessoas o exigem e pelas diversas situações que vêm acontecendo há alguns anos e a própria DRABI e Ministério da Agricultura e Direcção geral de Veterinária têm que fazer com que o próprio estatuto de produtor à senhora lhe seja retirado porque de uma vez por todas os prejuízos que têm sido causados às pessoas não podem ser consentidos a nível do concelho (…).”
4. No dia 20 de … de 2002, o arguido declarou perante a Rádio …, o seguinte: “ (…) aquilo que nós neste momento estamos a fazer é dar a maior colaboração possível em termos até da própria guarda dos animais, porque os animais não têm culpa significa que toda a culpa vem da proprietária porque realmente há coisas que não se entendem como é que se chega a um ponto destes quando as pessoas ano após ano, meses após meses e quando ainda por cima a própria exploração está sob sequestro sanitário em que os animais não podem sair da exploração sem consentimento, sem autorização das entidades competentes (…). Não há nenhum animal que se possa deslocar ou sair da exploração e o rebentamento com a fome que os animais passam é evidente que o instinto funciona (…) e aquilo que tem acontecido no Pedrógão é que são centenas de milhares de euros de prejuízo para os pequenos proprietários que vivem da agricultura, vivem do seu esforço e que depois de uma noite para outra vêm tudo dizimado. (…).
5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido afirmou que “alguns dos animais têm brucelose e quando têm brucelose significa que é a própria saúde pública, são os pastos por onde passam que podem ser contaminados e neste caso a Direcção Geral de Veterinária tem responsabilidades (…). Aquilo que nós sabemos é que houve um vizinho da proprietária da exploração que já teve de abater 550 ovelhas.”
6. No dia 20 de …. de 2002, o arguido declarou perante a Rádio B.., o seguinte: “ (…) nós estamos esperançados que desta vez é mesmo para resolver o problema, uma vez que a exploração está sob sequestro sanitário. As vacas, os bovinos, não podem sair da exploração sem qualquer autorização. Isso significa que a proprietária tem um processo que neste momento lhe vai sair caro porque o prejuízo causado às pessoas, a própria quebra do sequestro sanitário (…).
7. Em entrevista à mesma rádio, o jornalista perguntou ao arguido: “corre rumores que os animais estão doentes. Confirma?”, ao que o arguido respondeu: “por essa razão é que eles estão sob sequestro sanitário, porque se os animais não tivessem brucelose não estavam sob sequestro sanitário. De modo que esse é mais um problema que a proprietária tem de enfrentar, porque entretanto há uma exploração vizinha em que realmente já houve a necessidade de abater ovinos, isso significa que não se prova nada, mas não há nada provado mas que se suspeita suspeita-se que resultou da invasão da própria dos bovinos.
Essa exploração na qual as ovelhas se forem alimentado e a partir daí é que houve necessidade de as abater, de modo que neste momento a situação aguardamos que se faça (…) justiça o mais rapidamente possível, porque acredito que tenho dito e continuo a dizer que agricultores destes o concelho não precisa.”
8. No dia 21 de… de 2002, o arguido declarou perante a Rádio V. as mesmas expressões aludidas no ponto 7.
9. Por sentença proferida em 08 de … de 2005, confirmada pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 04 de … de 2006, transitada em julgada, no âmbito do processo comum singular n.º …/01.4 TAPNC, resultaram provados os seguintes factos:
“I – a) No dia 27 de … de 2000, foi efectuada pela O – Associação de Produtores de Ovinos … colheitas de sangue ao efectivo bovino existente na exploração agrícola denominada Herdade … sita,,,, área desta comarca, propriedade de R.
b) Efectuadas as competentes análises laboratoriais no Laboratório da Direcção regional de Agricultura da Beira Interior, vieram a revelar-se positivos à doença designada Leucose Enzoótica quatro animais.
c) Esta doença é contagiosa entre bovinos.
(…)
h) Por decisão da DRABI de …de …. de 2001 a referida exploração foi colocada sob sequestro sanitário, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1 do DL n.º 114/99, de 14 de Abril.
i) O sequestro sanitário implica determinadas obrigações que não foram cumpridas nomeadamente: os animais infectados não foram isolados, não foi feita desinfecção e limpeza dos estábulos e anexos das áreas e locais de carga e não foram os bovinos contidos dentro da área da exploração.
j) A 07 de … de 2001 foi efectuada nova recolha de sangue ao animais da dita exploração pela O… – O…, cujas análises revelaram ser dois animais (…) soro reagentes à brucelose e quatro animais à leucose bovina enzoótica, tendo sido dado conhecimento à arguida R. que solicitou certidão dos resultados laboratoriais.
l) Apesar disso a arguida permitiu que os animais deambulassem livremente por uma vasta zona envolvente à exploração.
A 20 … de 2002, em cumprimento dos mandados de busca e apreensão emitidos pelo Tribunal de … foram identificados e apreendidos os animais portadores relativos ao sistema de identificação animal com os números 4328986, 4532725, 4566414, 340661144, 4513657, 4532718 e 0540634673, positivos à brucelose ou à leucose enzoótica bovina.
(…)
Durante o ano de 2002:
ff. 12) Em dia não concretamente apurado do mês de …, uma manada constituída por vários animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida M., invadiu a propriedade de MA, tendo comido e destruído sementes e milho, bem como derrubado as aramadas, causando-lhe um prejuízo não concretamente apurado.
ff. 13) Em dia não concretamente apurado do mês de Junho, uma manada constituída por vários animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida M, invadiu as propriedades sitas na área desta comarca, de João tendo comido pasto e destruído várias árvores de fruto e feijoeiros; causando-lhe um prejuízo de valor não apurado; Ana , tendo comido e destruído árvores de fruto e videiras e seus suportes; causando-lhe um prejuízo não apurado; FF, tendo comido produtos agrícolas e derrubada a aramada; causando-lhe um prejuízo não apurado; JA, tendo comido e derrubado árvores de fruto, nomeadamente macieiras, laranjeiras, figueiras, bem como oliveiras e verduras, causando-lhe um prejuízo de valor não apurado; OC, tendo comido e destruído batatas, feijão, beterrabas, grão, couves, árvores de fruto, nomeadamente figueiras, abrunheiros, macieiras e também videiras, causando-lhe um prejuízo não apurado; JM, tendo comido e destruído melancias, melões, feijão verde, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 14) Em dia não concretamente apurado do mês de Junho, uma manada constituída por vários animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP, invadiu a propriedade de JB sita no Prado …., área desta comarca, tendo comido e destruído vinha e oliveiras, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 15) Em dia não concretamente apurado do mês de Junho, uma manada constituída por vários animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP, invadiu a propriedade de MC, sita no P…, área desta comarca, tendo comido e destruído videiras e destruído uma cancela, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 16) Em dia não concretamente apurado do mês de Junho, uma manada constituída por vários animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP, invadiu a propriedade de IP, sita no Prado…, área desta comarca, tendo comido e destruído oliveiras, pereiras e várias videiras, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 17) Em dia não concretamente apurado do mês de Junho, uma manada constituída por vários animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP, invadiu a propriedade de JL, sita no Prado,…, área desta comarca, tendo comido e destruído várias árvores de fruto e horta, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 18) Em Agosto, uma manada constituída por 30 animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP invadiu a propriedade de AR, sita na área desta comarca, tendo comido e destruído couves, melancias, feijão, tomates, batatas, alfaces e videiras, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 19) Em Agosto, uma manada constituída por animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP invadiu a propriedade de JL, sita na área desta comarca, tendo comido e destruído milho, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 20) Em Agosto, uma manada constituída por animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP, invadiu a propriedade de JC, sita na área desta comarca, tendo comido e destruído várias árvores de fruto, nomeadamente macieiras, marmeleiros e figueiras, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 21) Em Agosto, uma manada constituída por animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP, invadiu a propriedade de MJC, sita na área desta comarca, tendo comido e destruído milho, feijão, maças, macieiras, ameixoeiras e marmeleiros, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 22) No dia … Agosto, uma manada constituída por animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP, invadiu a propriedade de MLR, sita na área desta comarca, tendo comido e destruído milho, causando-lhe um prejuízo não apurado;
ff. 23) Durante o mês de Agosto, uma manada constituída por animais de raça bovina que se encontravam ao cuidado da arguida MP invadiu a propriedade de JRS sita na área desta comarca, tendo comido e destruído várias oliveiras, figueiras, macieiras e videiras, causando-lhe um prejuízo não apurado;
gg) Os proprietários dos terrenos não autorizaram a pastagem nem a passagem dos animais nas referidas propriedades.
ii) A arguida MP não procedeu com o cuidado devido e exigível a quem cuida de gado bovino, nomeadamente não cuidou das vedações da Herdade por forma a garantir que o gado não fugia da propriedade, nem o alimentou convenientemente (…).”
10. Em 10 de .. de 2002, no Matadouro da … S.A., por determinação das entidades competentes foram abatidos 42 animais de raça bovina por suspeita de brucelose, sendo que no boletim de necrópsia, face às lesões apresentadas foi a carcaça de 38 desses animais aprovada e 2 reprovadas.
11. O arguido não tem antecedentes criminais.
»Relativamente às condições socio-económicas e familiares do arguido apurou-se que:
12. O arguido aufere € 2.700,00 de vencimento enquanto Presidente da Câmara Municipal de ..
13. É casado e tem duas filhas de 11 e 25 anos, ambas estudantes e mulher trabalha auferindo cerca de € 650,00 a € 750,00 mensais.
14. Tem casa própria da qual paga um empréstimo para sua aquisição no montante mensal de € 500,00.
15. Tem dois veículos automóveis do ano de 1999 e 2006.
16. È proprietário de um apartamento no Algarve do qual paga de empréstimo cerca de € 350,00.
17. O arguido é considerado e tido como pessoa responsável e respeitadora.”
2.2. Já no que respeita a factos não provados, consignou-se na dita sentença que:
1. O arguido declarou que a assistente estaria habituada a “viver de subsídios”, descurando aquilo que é dela.
2. O arguido declarou que a assistente violou culposamente o sequestro sanitário.
3. O arguido sabia que as suas afirmações eram falsas e que a assistente não era responsável pelos prejuízos ocorridos na região, seja por comissão ou omissão.
4. Que sob terreno que é propriedade da assistente não incidia, à data das declarações do arguido, qualquer sequestro sanitário, ou qualquer outro processo de semelhante natureza.
5. Que a criação bovina existente na propriedade da assistente não padecia de brucelose ou qualquer outra doença infecto-contagiosa.
6. Ao proferir as falsas declarações que proferiu, o arguido agiu com a intenção de ofender o bom-nome, a consideração e a honra da assistente, o que conseguiu.
7. Ao proferir as declarações que proferiu, agiu livre e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta contrária à lei.
***
A ausência de resposta no que concerne à demais matéria da acusação que não se deu como provada, ficou a dever-se ao facto de a mesma conter juízos conclusivos e/ou matéria de direito.”
2.3 Por fim, a motivação probatória inserta na mencionada decisão consigna:
A formação da convicção do tribunal baseou-se, essencialmente, na prova documental junta aos autos – em especial nos documentos de fls. 57 a 104 onde consta a transcrição integral das declarações prestadas pelo arguido às várias estações de rádio, nos boletins referentes ao abate de animais constantes de fls. 143 a 226, bem como na visualização do DVD onde consta a gravação dos noticiários da estações televisivas …. difundindo os acontecimentos ocorridos no dia 18 de … de 2002, na Junta de Freguesia de P… nomeadamente da revolta do povo que se insurgiu contra as sucessivas invasões de animais de raça bovina nas suas propriedades e, por isso conduziu a assistente até à Junta de Freguesia, sendo que na visualização de tal DVD, constatou-se ainda que a entrevista que o arguido deu à … foi difundida no jornal da noite do dia 19 de … de 2002, nos documentos de fls. 463 a 480, na certidão da sentença com nota de trânsito em julgado confirmada pelo Acórdão da Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 481 a 525, nos documentos de fls. 526 a 529, nas noticias de fls. 530 a 535, nos documentos de fls. 544 a 608 e 613 a 615.
Em segundo lugar, baseou-se aquela convicção, basicamente, numa apreciação livre da prova testemunhal (artigo 127.º do Código do Processo Penal), tal qual a mesma se produziu em sede de audiência de discussão.
Assim, o Tribunal atendeu ao que foi relatado pelo arguido que no essencial referiu que já alguns anos a esta parte que, enquanto autarca, tem recebido informações por parte do médico veterinário municipal Dr. F. da Drabi, da Junta de freguesia de P.., da GNR e dos próprios populares no sentido de que animais de raça bovina, pertencentes à exploração “Herdade …”, andavam a invadir propriedades vizinhas destruindo culturas e sementeiras de agricultores que vivem essencialmente da agricultura de subsistência sendo que, como representante do município, entendeu que deveria tomar uma atitude e sem se referir a ninguém em especial, prestou as declarações constantes dos autos, nos termos em que se deram como provadas. Mais referiu que não teve intenção de difamar ninguém mas apenas se queria referir à propriedade e exploração em causa e não ás pessoas em si mesmas, esclarecendo ainda que a assistente é a pessoa que “dá a cara por tal exploração”. Agiu na qualidade de Presidente da autarquia local impondo-se-lhe tomar uma atitude no sentido de tranquilizar a população que, no dia 18 de Agosto de 2002, mostrou publicamente o seu descontentamento com as sistemáticas invasões dos animais nas suas propriedades.
Pese embora a qualidade de arguido, as suas declarações revelam-se aparentemente sinceras e objectivas e, por isso, credíveis.
O Tribunal atendeu, ainda, às declarações de MP, assistente nestes autos, e que referiu que, no dia …de ….de 2002, um grupo de populares foi buscá-la a casa e obrigaram-na percorrer os campos e conduziram até à Junta de Freguesia de P…, local onde permaneceu durante algumas horas. Na sequência de tais acontecimentos, o arguido concedeu várias entrevistas e proferiu as expressões que lhe são imputadas no libelo acusatório.
Mais esclareceu que na exploração agrícola “Herdade da …” existiam, à data dos factos, duas raças de animais, uns de raça bovina pertencentes à sua filha RM e outros de raça ovina pertencentes ao seu filho AG, sendo que a propriedade onde se situa tal exploração pertence ao seu marido constituindo um bem próprio dele não comunicável.
Mais esclareceu que os filhos residem e trabalham ambos em L…, sendo a assistente a responsável pela gestão da exploração e, consequentemente pelo tratamento e vigilância dos animais, sendo que a assistente é confundida com a proprietária sendo assim conhecida no concelho de …. De igual modo, nos dias …a … Agosto de 2002, os órgãos de comunicação social quando noticiaram os factos ocorridos na Junta de Freguesia de P.. concelho de.., dirigiram-se à assistente como sendo a proprietária da exploração agrícola em causa, associando-a à criadora de gado e também Presidente da Associação de Agricultores.
As suas declarações, nesta parte, são aparentemente objectivas e sinceras e, por isso, credíveis.
Mais referiu ainda a assistente que os factos que lhe são imputados são falsos e que a exploração agrícola “Herdade da…” não estava sob nenhum sequestro sanitário por brucelose. Aos animais de que cuida apenas foi diagnosticada “leucose”, uma doença não transmissível ao homem mas apenas entre bovinos, sendo que nem a depoente, enquanto cuidadora dos animais, nem a sua filha enquanto proprietária dos mesmos, foram notificadas de qualquer processo relativo a sequestro de animais por brucelose e que o abate de 42 animais por suspeita de brucelose foi ilegal pois, que após a morte dos animais, as análises revelaram-se negativas à brucelose. Com efeito, cumpre, desde logo, realçar que ainda que o procedimento relativo ao abate do efectivo de bovinos existente na “Herdade da…” poder estar ferido de irregularidades, o que não está em causa apreciar nestes autos, por um lado, não afasta a ideia de existir uma fundada suspeita de animais infectados com brucelose na exploração agrícola ao cuidado da assistente e, por outro lado, o abate dos animais é elucidativo no que concerne ao facto de as instituições responsáveis recearem efectivamente de que o efectivo de raça bovina que integra a exploração a cargo da assistente padecer de brucelose, doença contagiosa entre animais e transmissível ao homem susceptível de constituir um perigo para a saúde publica.
No que concerne aos prejuízos que lhe são imputados, a assistente referiu que tais factos são falsos uma vez que os seus animais saíram da cerca porque alguém, cuja identificação desconhece, abriu as portas, derrubou as aramadas e os animais fugiram não por culpa da assistente mas por culpa de quem rebentou as aramadas. Ora, nesta parte, as declarações da assistente não lograram obter o convencimento do Tribunal sobretudo com a demais prova produzida e, sobretudo quando confrontadas com as filmagens constantes do DVD junto aos autos, e onde se pode constatar a “ira” dos populares vizinhos da exploração agrícola “Herdade da … que revoltados com as sucessivas invasões dos animais, se organizaram em grupo e publicamente se manifestaram contra isso, “obrigando” a assistente a percorrer os campos e aperceber-se com os seus próprios olhos da destruição de arvores, sementeiras e frutos causada pelos animais da exploração agrícola que está ao seu cuidado.
Por seu lado, o Tribunal tomou em consideração as declarações de AS e FM, ambos médicos veterinários que à data dos factos exerceram funções na exploração agrícola gerida pela assistente.
Assim, referiram ambos que no exercício das suas actividades profissionais sempre conheceram a assistente como sendo a responsável pela exploração agrícola “Herdade da..”, referindo que é ela que “dá a cara” e que “lá está sempre” que se deslocam à exploração, o que foi integralmente corroborado pelas declarações da testemunha CA
Mais referiu o depoente AL a história clínica dos animais desde os ano de 1999, altura em que começaram a surgir problemas com o efectivo da dita exploração e, nomeadamente por suspeitas de envenenamento sendo que, na qualidade de médico veterinário da exploração em causa teve conhecimento que em Fevereiro de 2000 e Outubro de 2001, apareceram dois animais de raça bovina com morfologia positiva à brucelose (doença transmissível ao homem) e quatro positivas à leucose (doença transmissível entre animais).
Esclareceram ainda os depoentes que a brucelose é uma doença transmissível ao homem e que constitui um perigo para a saúde pública, pelo existindo suspeitas de animais infectados com brucelose, os serviços oficiais – DRABI – podem e devem determinar o abate de tais animais. “É preferível abater uma vaca saudável do que manter viva uma vaca infectada” referiu o depoente AL
Pese embora, as análises feitas em vida dos animais terem uma margem de erro muito considerável pois o resultado fiável quanto à existência ou não de brucelose só pode ser feita post mortem, com o isolamento bacteriológico, a verdade é que, em caso de suspeita de brucelose, o procedimento normal é abater o animal, por o mesmo poder constituir um perigo para saúde pública.
Os depoentes esclareceram ainda os procedimentos legais e modo de funcionamento das Organizações de Produtores Pecuários (OPP), e que enquanto médicos veterinários nunca foram notificados da existência de um sequestro sanitário por brucelose. Com efeito, o depoente AL esclareceu que tem conhecimento de que efectivamente, na exploração gerida pela assistente, foram abatidos animais de raça bovina por suspeita de brucelose sendo que a proprietária foi indemnizada por esse abate, como geralmente acontece em situações semelhantes.
Tais declarações foram aparentemente sinceras e objectivas e, nessa medida, credíveis.
O Tribunal atendeu ainda às declarações da testemunha AMP que à data dos factos era Presidente da Junta de Freguesia de P… e que esclareceu o Tribunal quanto ao episódio ocorrido na Junta de Freguesia da qual era Presidente no dia …de Agosto de 2002, bem como quanto à existência de diversas queixas por parte de populares no que tange aos prejuízos causados pelo efectivo de raça bovina existente na exploração gerida pela assistente que por sucessivas vezes invadiu propriedades vizinhas destruindo culturas e sementeiras. Mais referiu que o arguido deu entrevista para a… no dia … de …. de 2002 e não no dia 18 do mesmo mês.
As suas declarações revelaram-se aparentemente sinceras e objectivas e, por isso, credíveis.
O Tribunal tomou ainda em consideração as declarações da testemunha LF, médico veterinário em exercício de funções na Câmara de P.. desde 2001. Esclareceu o depoente que a Câmara Municipal “é um repositório de queixas da população” do concelho de P. que se dirigiram aquela instituição queixando-se de animais que deambulavam pelas explorações vizinhas sendo que era “um problema preocupante em termos de saúde publica” porque, pese embora, nunca tenha sido oficialmente contactado pelos organismos oficiais, tem conhecimento, no exercício das suas funções, que nos anos de 2001 e 2001 havia na exploração agrícola gerida pela assistente, animais positivos à leucose e brucelose. Mais referiu o depoente que, por diversas vezes, transmitiu pessoalmente ao arguido, enquanto Presidente da Câmara Municipal de P., as suas preocupações com a situação gerada com a saída dos animais da exploração, bem como os problemas derivados de animais infectados com brucelose.
Tais declarações foram aparentemente sinceras e objectivas e, por isso, credíveis.
O Tribunal tomou ainda em consideração as declarações de JF AAM e AL, os quais referiram que o arguido era, e ainda actualmente é, Presidente da Câmara Municipal de …, cargo que desempenha com zelo e diligência, evidenciando-se pelo seu mérito e competência profissional. Mais esclareceram que o arguido é educado, respeitador e considerado no Município de P.
Tais declarações foram aparentemente sinceras e objectivas e, por isso, credíveis.
Relativamente às condições pessoais, sociais e económicas, o Tribunal alicerçou-se nas declarações do arguido.
No tocante à ausência de antecedentes criminais, tomou-se em consideração o CRC junto aos autos a fls. 416.
No que concerne aos factos que foram dados como não provados, tal resultou da ausência e/ou insuficiência de prova produzida acerca dos mesmos, bem como da produção de prova produzida em sentido contrário.”
*
III – Fundamentação de Direito.
3.1. É consabido que o âmbito do recurso se define através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –.
O que não preclude, todavia, o conhecimento oficioso dos vícios indicados nas diversas alíneas do artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mas tão somente quando resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, bem como das nulidades taxadas no seu n.º 3. Isto por virtude do consignado no Ac. n.º 7/95, do STJ, em interpretação obrigatória.
In casu, não se afigurando emergir qualquer um destes vícios ou nulidades, vendo-se as conclusões da recorrente resulta que o thema decidendum se traduz na ponderação das questões seguintes:
- A sentença recorrida deve ser alvo de correcção?
- Os pontos 3), 4), 5) e 8) da matéria de facto dada como provada devem ser alterados com aditamento de trechos das entrevistas aí referidas, pois que o Tribunal a quo se limitou a fazer uma menção truncada das mesmas?
- Existe insuficiência da matéria de facto, e preterição aos artigos 410.º, n.º 2, 340.º e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, relativamente ao ponto 9) da mencionada matéria provada?
- O Tribunal sindicado incorreu na nulidade de omissão de pronúncia, ut artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, dado que não conheceu da suspeição indicada nos pontos 5) e 7) da matéria de facto provada?
- O mesmo Tribunal incorreu em erro de julgamento ao concluir que o arguido cumpriu com o dever de informação a que alude o artigo 180.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal?
- Bem como ao considerar como não provados os factos constantes de 1) e 4) da respectiva matéria? E, ainda,
- Ao concluir que o arguido actuou na prossecução de interesses legítimos?
3.2. A recorrente começa por sufragar que a decisão recorrida deve ser objecto de correcção, uma vez que no seu relatório a M.ma Juiz a quo consignou, ao alvedrio da realidade, que “não foi deduzido pedido de indemnização cível.”. Ora, continua, esse pedido foi efectivamente deduzido, embora em separado, e perante o Tribunal Civil, isto no uso da prerrogativa conferida pelo artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, tendo, inclusive, o arguido sido condenado a pagar-lhe a quantia de € 1.000,00.
O artigo 374.º do Código de Processo Penal, epigrafado “Requisitos da sentença”, determina no seu n.º 1, alínea b), começar ela por um relatório, que contém, nomeadamente, as indicações tendentes à identificação das partes civis.
Isto é, existindo pedido de indemnização civil deve fazer-se uma menção ao mesmo, tanto que, aliás, caso não seja alvo de pronúncia, ficará a sentença inquinada com o vício de nulidade – artigo 379.º, n.º 1, alínea c) –.
No caso vertente e no âmbito concreto deste processo, como reconhece a recorrente, não foi deduzido um tal pedido.
Por outro lado, a prova de que ele se mostra deduzido em separado, apenas podia ser provado mediante a junção de certidão comprovativa desse facto, o que também se não mostra cumprido.
Tudo conjugado, pois, mais não podia a M.ma Juiz recorrida relatar do que aquilo que fez, e daí a conclusão inevitável de que nada cumpre, então, corrigir.
3.3. Segundo pomo de discórdia da assistente com o sentenciado, a circunstância de o Tribunal a quo, ao reproduzir as entrevistas concedidas pelo arguido aos diversos meios de comunicação social, se haver cingido a uma apresentação truncada das mesmas, descurando os demais trechos, todos integralmente provados, sufraga.
Duas notas mostram da inconsistência do assim invocado.
Uma primeira, no sentido em que exigência incidente sobre aquele Tribunal era a de fazer menção aos factos provados e não provados que se mostrassem essenciais à boa decisão da causa, e apenas a esses, o que se mostra cumprido.
Uma segunda, e não menos despicienda, a de que sempre tal Tribunal se encontrava tematicamente vinculado aos factos constantes da acusação, sob pena de infracção ao disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, vendo-se esta peça, resulta ter sido a própria assistente quem “truncou” parte das entrevistas aludidas, coligindo na acusação deduzida o que entendeu, irremediavelmente, ser o objecto dos autos.
3.4. Terceiro segmento do seu dissídio o que contende com o ponto 9) da matéria de facto provada.
Alega, a propósito, que o Tribunal sindicado infringiu o disposto nos artigos 340.º; 374.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal, ou seja, violou o dever de descoberta da verdade material; não fundamentou adequadamente o decidido e, por fim, incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Isto na justa medida em que relativamente a ele se limitou a transcrever os factos constantes da fundamentação de um acórdão que transitou em julgado em 24 de Janeiro de 2006, quatro anos após o arguido ter proferido as expressões pelas quais vinha acusado e não fez constar da sentença, mais precisamente da matéria de facto provada que o arguido, à data em que proferiu as expressões em causa, tivesse conhecimento da aludida matéria, nomeadamente, não indagando se era conhecedor das queixas apresentadas, do seu teor e alegados prejuízos e se sabia que as entidades competentes tinham decretado o sequestro. Desconsiderando tais factos, os estritamente provados mostram-se insuficientes para justificar, como sucedeu, a boa fé do arguido e a verdade dos prejuízos causados.
Mais uma vez se nos depara uma deficiente estruturação da recorrente no vício invocado.
Na verdade, o previsto no citado artigo 410.º, n.º 1, alínea a) emerge quando da factualidade vertida na decisão em recurso se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Coisa distinta da conformação ou não com ela, em essência, o que opõe a assistente.
Ora, lendo-se a decisão recorrida, denotamos que o Tribunal a quo fundamentou a boa fé do arguido em reputar as expressões em causa como verdadeiras, enquanto um dos requisitos para lançar mão da causa de justificação prevista no artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal, não apenas arrimando-se no indicado ponto 9), mas também louvando-se na conjugação da demais prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente no depoimento da testemunha F.
De dizer também que, pese embora entre a data em que o arguido proferiu as expressões em causa e o mencionado Acórdão hajam decorrido quatro anos, nada obstava a que ele tivesse conhecimento das queixas dos populares e dos danos e prejuízos causados, ainda que não em toda a sua exactidão. O que facilmente se compreende, se atentarmos às datas da prática dos factos dados como provados no referido Aresto, alguns deles anteriores e outros contemporâneos às expressões proferidas pelo arguido.
Como bem obtempera o Ministério Público na resposta da 1.ª instância, acresce ainda resultar das próprias entrevistas prestadas pelo arguido aos diversos meios de comunicação social, e que constam dos pontos 1 a 8 da matéria de facto dada como provada, o conhecimento que tinha dos factos, os contactos que tinha tido e as queixas que a população apresentava e correspondentes prejuízos. Também que consta da motivação da decisão de facto, e em concreto, no que concerne ás declarações prestadas pela testemunha LF., que a Câmara Municipal “é um repositório de queixas da população”, e que, por diversas vezes, se dirigiam aquela instituição queixando-se de animais que deambulavam pelas explorações vizinhas e que, também por diversas vezes, transmitiu pessoalmente ao arguido, enquanto Presidente da Câmara Municipal de P. as suas preocupações com a situação gerada com a saída dos animais na exploração, bem como os problemas derivados de animais infectados com brucelose, depoimento este que mereceu a credibilidade do Tribunal.
Por fim, de não olvidarmos a menção da motivação da decisão de facto segundo a qual e no que diz respeito ao relatado pelo arguido, que já há alguns anos a esta parte que, enquanto autarca, tinha recebido informações por parte da testemunha F, médico veterinário, da Drabi, da Junta de Freguesia de Pedrógão de S. Pedro, da GNR e dos próprios populares no sentido de que os animais de raça bovina, pertencentes à exploração Herdade da … andavam a invadir propriedades vizinhas destruindo culturas e sementeiras de agricultores, declarações que igualmente mereceram a credibilidade do Tribunal.
Reafirma-se, toda esta factualidade é claramente suficiente para sustentar, por si só, a boa fé do arguido em reputar as suas expressões como verdadeiras, e em consequência, determinar o sentenciado juízo da sua absolvição.
Em conclusão, então, o naufragar também deste fundamento do recurso.
3.5. No item subsequente do mesmo, sustenta a assistente que o Tribunal da 1.ª instância incorreu na nulidade de omissão de pronúncia, ut artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, dado que não conheceu da suspeição indicada nos pontos 5) e 7) da matéria de facto provada.
Nestes pontos, e em resumo, mostra-se provado que o arguido fez recair sobre o assistente a suspeita de que os seus animais padeciam de brucelose, haviam contaminado campos e pastagens de prédios vizinhos e que deu origem a um surto de brucelose o que terá levado ao abate do totalidade do efectivo de um vizinho.
Percorrendo-se o texto do sentenciado, depara-se-nos a fls. 662, a referência enquanto elementos objectivos do tipo legal de difamação:
“ (…) - a imputação a terceiro;
- de um facto, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivo da sua honra e consideração, e
- actuação dolosa.
(…).”
Depois, e após transcrição das expressões dadas como provadas em 5) e 7), pode ler-se a fls. 664 que “tais expressões proferidas pelo arguido em entrevistas às supra referidas estações de rádio constituem expressões que insinuam que a arguida é leviana e descuidada no tratamento dos seus animais sendo certo que estando tais animais infectados com brucelose e sob sequestro sanitário exigem-se-lhe cuidados redobrados, o que assistente descurou, dando a entender que abandona os seus animais e estes com fome rebentam as aramadas e invadem propriedades vizinhas disseminando a doença de que padecem. Ora tais expressões são objectivamente ofensivas da honra e consideração devida à assistente uma vez que era ela a responsável por esses animais.”
Em contrário do sustentado pela recorrente, temos então que as expressões referidas (embora não exactamente com o teor que ela pretendia ver mencionado) foram analisadas na peça recorrida no enquadramento jurídico-penal operado, donde que, ao menos implicitamente, decorre que a imputação de factos ainda que sob a forma de suspeita é um dos elementos objectivos do crime de difamação e que o arguido, ao proferi-las, insinuou e deu a entender que a arguida não trata dos seus animais, animais esses infectados com brucelose, e que, com fome, invadiam propriedades vizinhas disseminando a doença.
De anotar, ademais, que a sentença proferida é suficientemente explícita quando determina que elas se mostraram objectivamente ofensivas da honra e consideração da assistente, sendo certo, todavia que, acto contínuo, fez funcionar a causa excludente da punibilidade, prevista no encimado artigo 180.º, n.º 2.
A ilação assim da improcedência deste fundamento do recurso.
3.6. Dever agora o de dirimirmos se o Tribunal sindicado incorreu em erro de julgamento ao concluir que o arguido cumpriu com o dever de informação a que alude o artigo 180.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal.
Para o efeito, argumenta a recorrente que:
O Tribunal a quo assentou a decisão absolutória, essencialmente, no depoimento da testemunha L F, médico veterinário, alegadamente “municipal”, o qual teria veiculado as informações sobre a situação sanitária dos animais ao arguido.
O erro emergiria por apesar de tal testemunha ser médico veterinário e trabalhar para a Câmara Municipal de P. certo ser não o fazer na veste justamente de médico veterinário municipal. Acresceria o facto de o médico veterinário municipal não ter sido em verdade ouvido sobre os problemas sanitários alegadamente existentes na propriedade da assistente, não se descortinando pois como pode o Tribunal a quo considerar preenchido o dever de informação a que o arguido estava adstrito.
Na 1.ª instância já se corrigiu a sentença proferida no ponto em que deu como provado ser a dita testemunha LF médico veterinário municipal, pois que apesar de ser médico veterinário e exercer funções para a Câmara Municipal de P, certo é não assumir neste organismo tal veste profissional (fls. 813).
A circunstância provada de o arguido não haver consultado o médico veterinário municipal, não implica todavia o não cumprimento do seu dever de informação como ensaia automaticamente a assistente. As informações que determinaram as expressões do arguido podem ou não ter sido obtidas de forma oficial e/ou não oficial. Acresce o facto de a testemunha LF ser médico veterinário, em exercício de funções na Câmara Municipal de P, e ter obtido as informações transmitidas ao arguido, no exercício das suas funções, pelos organismos oficiais, tal como referido na sentença recorrida, na motivação da matéria de facto, a fls. 659.
De não olvidarmos ainda, como decorre do teor das entrevistas dadas como provadas, o conhecimento que o arguido tinha sobre a matéria e os contactos com os diversos organismos oficiais e com os próprios populares.
Tudo moldes bastantes para permitir a conclusão extraída na sentença em causa de que o recorrido acatou com o dever de informação que sobre ele incidia antes de proferir as expressões em litígio.
3.7. Ponto subsequente a reclamar apreciação, o de aquilatarmos se o dito Tribunal a quo incorreu igualmente em erro de julgamento ao considerar como não provado o que consta dos itens 1) e 4) da decisão recorrida.
Relembremos o que como tal se considerou, respectivamente:
1. O arguido declarou que a assistente estaria habituada a “viver de subsídios”, descurando aquilo que é dela.
(…)
4. Que sob terreno que é propriedade da assistente não incidia, à data das declarações do arguido, qualquer sequestro sanitário, ou qualquer outro processo de semelhante natureza.”
No ponto 2) da matéria de facto provada, consignou-se que o arguido declarou perante a Rádio C nomeadamente. “ (…) as pessoas habituaram-se alguns a viver do subsídio sem tratar daquilo que é delas causando sistematicamente prejuízos a terceiros (…).
Ora, o que se nos depara assim é uma referência genérica do arguido, que não uma imputação concreta à assistente (ou outrem particularizado).
A factualidade vertida no item 4) corresponde àquela que a assistente fez constar do ponto 20.º da acusação particular deduzida.
Aos autos (fls. 526/529) mostra-se junto um documento emitido pelo Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas junto aos autos, do qual sobressai que em 13 de Junho de 2001 foi determinado o sequestro sanitário da exploração pecuária em causa, por terem sido detectados quatro animais positivos à leucose.
Mais daí resulta que, das amostras de sangue colhidas ao efectivo bovino foram detectados quatro animais seroreagentes à leucose e dois à brucelose. Ainda que a DRABI não efectuou o sequestro sanitário da exploração por terem sido detectados animais positivos à brucelose, pelo não cumprimento com o estabelecido nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 244/2000, de 27 de Setembro.
Nesta singeleza, e com o Tribunal recorrido, entendemos que não era possível concluir que, á data, não incidia sobre a referida exploração qualquer sequestro sanitário ou qualquer outro processo de natureza semelhante, mostrando-se, consequentemente, acertado o juízo valorativo aí tomado, a propósito.
3.8. Último reparo apontado pela assistente à decisão da 1.ª instância, o de que não podia ter concluído, como fez, que o arguido agiu na prossecução de interesses legítimos.
Repetindo o que já se afirmou nos autos, lembramos que nos termos do n.º 1 do artigo 180.º do Código Penal, comete o crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
Como referem Leal-Henriques e Simas Santos In Código Penal Anotado, volume II, pág. 469., em anotação a tal normativo, doutrinariamente pode definir-se difamação como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado.
O que sucedeu no caso presente, pois como escreveu a M.ma Juiz recorrida, a fls. 27 da sentença que proferiu, as expressões proferidas pelo arguido, tal como mais descritas, mostram-se objectivamente ofensivas da honra e consideração devida à assistente uma vez que ela era a responsável pelos animais mencionados.
O subsequente n.º 2, alínea a) desse preceito contém, todavia, uma cláusula de exclusão de punibilidade, referindo que a conduta não é punível quando “a imputação for feita para realizar interesses legítimos.”
Como também referem Leal-Henriques e Simas Santos na obra supra citada, o nosso legislador não foi alheio à ideia de, em casos muito especiais, se considerarem não puníveis condutas que têm atrás de si motivos relevantes e sérios, sendo nesta linha que se situa o citado n.º 2 ao declarar a impunibilidade da conduta nas circunstâncias nele previstas.
O Código Penal não faz distinção entre interesses legítimos públicos ou privados, pelo que se admite que se possa tratar de um interesse privado Maria da Conceição S. Valdágua, in A Dirimente da Realização de Interesses Legítimos nos Crimes Contra a Honra, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 230..
Para a autora mencionada, é mister interpretar a expressão interesses legítimos de modo a abranger, além do interesse público legítimo, todos os interesses privados juridicamente protegidos, ou seja todos aqueles interesses privados que podem ser objecto de legítima defesa, pois mal se compreenderia que a imputação de um facto desonroso, mas verdadeiro, apesar de necessária para a tutela de um interesse privado juridicamente protegido (e, por isso, susceptível de legítima defesa), estivesse de antemão excluída do âmbito da dirimente da realização de interesses legítimos.
Refere mais a mesma autora que, ao contrário do que acontece na legítima defesa, na realização de interesses legítimos exige-se uma relação de proximidade entre o agente e o interesse por ele realizado, sendo que, “…quando o interesse em causa for de natureza privada, a sua realização, através de uma imputação de facto ofensivo da honra e consideração de outrem, só poderá fundamentar a impunidade do agente se este for o próprio titular ou outra pessoa que (por ser, por exemplo, parente, cônjuge, advogado, gerente, administrador ou procurador do titular, etc.) possa razoavelmente arrogar-se a qualidade de guardião desse interesse.” E é exigível também, embora não resulte expressamente da lei mas que não deve deixar de reconhecer-se, a prevalência do interesse a realizar sobre o interesse na tutela da honra, requisito que resulta do princípio da ponderação de interesses, a ela subjacente, e pressupõe, portanto, uma ponderação em concreto de todos os factores relevantes.
No caso vertente depara-se-nos o confronto entre o direito à honra da assistente e o direito do arguido, enquanto detentor de um cargo público de eleição, em defender os interesses daqueles que o legitimaram com o seu voto, atribuindo-lhe um mandato por cujo intermédio ele se transformou também no porta voz público, quando necessário, da salvaguarda dos direitos e interesses dos seus munícipes. Sobretudo, em meios rurais do nosso País, onde, sabe-se, as autarquias pela proximidade que têm relativamente aos cidadãos, assumem papel de primordial importância, e sobremaneira no caso concreto onde se deparava uma situação algo dilatada no tempo, prejuízos avultados para as populações, impotentes para obstar à continuidade da situação.
Ou seja, ponderando os interesses em conflito, nas circunstâncias em que as expressões foram proferidas, entendemos também que os prosseguidos pelo arguido sobrelevam sobre a honra da assistente.
Assistente que se queria preservar o seu bom-nome, deveria abster-se de praticar os factos elencados no item 9) provado.
*
IV – Decisão.
São tudo termos pelos quais se nega provimento ao recurso interposto.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.
Notifique.
*
Coimbra, 28 de Janeiro de 2010