Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
152/22.9BECBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ATOS DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
NÃO NOTIFICAÇÃO DA ARGUIDA
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 22.º DA CONSTITUIÇÃO, 483.º DO CÓDIGO CIVIL E 7.º, N.º 4, DA LEI N.º 67/2007, DE 31-12
Sumário:
I – Decorre do disposto no artº 22 da Constituição, a responsabilidade civil do Estado por ações ou omissões ilícitas dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias de outrém.

II – A responsabilidade do Estado abrange também o deficiente funcionamento da administração da justiça, que sejam causais de danos resultantes, nomeadamente da prescrição do procedimento criminal ou de não prolacção de decisão jurisdicional em prazo razoável, responsabilidade que a Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro, visou regular.

III – A responsabilidade do Estado por actos materialmente administrativos da justiça, que não integrem a reserva jurisdicional e que configurem um error in procedendo, caem sob a alçada do artº 12 da Lei nº 67/2007.

IV – O funcionamento desta responsabilidade exige a verificação cumulativa dos pressupostos contidos no artº 483 do C.C.: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre este facto ilícito e culposo e os danos.

V – O ónus de alegação (nos termos do artº 5, nº1 do C.P.C.) e prova (nos termos previstos no artº 342, nº1, do C.C) destes factos, incumbe ao lesado (artº 487 do C.C.).

VI – A notificação de arguidos residentes no estrangeiro, quer da acusação (artº 283 do C.P.P.), quer da data de julgamento (artº 313 nº2 e 3 do C.P.P. na redacção do D.L. nº 320-C/2000 de 15/12), efectua-se apenas por contacto pessoal (v. g. carta rogatória) e não por via postal, pela impossibilidade de cumprimento das formalidades essenciais previstas nos nºs 6 e 7 do artº 113 do C.P.P.

VII – A declaração de contumácia prevista no artº 335 do C.P.P. exige que, designada data para julgamento, não tenha sido possível notificar o arguido desta data.

VIII – Não tendo sido alegado qualquer facto que permita considerar que existiu um funcionamento anormal da administração da justiça, quando “atendendo às circunstâncias e aos padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço, uma actuaçao susceptível de evitar os danos produzidos.” (artº 7, nº4, da Lei 67/2007), a não notificação da arguida – por não ter sido encontrada em território nacional – e a prescrição do procedimento criminal, por si só, não constituem omissão ilícita e culposa, causal dos prejuízos invocados pelo A./ofendido.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
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Proc. Nº 152/22.9BECBR.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria– Juízo Central Cível de Leiria-J...

Recorrente: AA

Recorrido: Estado Português

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: António Domingos Pires Robalo

                                        Sílvia Pires


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO


AA, instaurou ação declarativa comum contra o ESTADO PORTUGUÊS, para efetivação de responsabilidade civil extracontratual deste R., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 51.050,00 €, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros vincendos até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alega que apresentou queixa crime no dia 25.06.2019 por factos ocorridos em Novembro de 2018 e entre 29 de Dezembro de 2018 e 4 de Janeiro de 2019, que consubstanciavam a prática dos crimes de dano e injúria, este último praticado pela sua irmã BB, que deram origem ao Inquérito com o NUIPC nº 961/19.... no DIAP/..., posteriormente distribuído para o Juízo Local Criminal ...-J....

No âmbito daquele inquérito, foi arquivado o crime de dano, por não ter sido possível apurar o seu autor, mas no que concerne ao crime de injúria o MP acompanhou a acusação do assistente (aqui Autor) contra a sua irmã BB, não tendo, no entanto, notificado a arguida, apesar das indicações por si prestadas, tendo sido essa falta de notificação da arguida e o não ter sido declarada contumaz quando foi recebida a acusação, que conduziu à prescrição do procedimento criminal.

Conclui que a prescrição foi consequência do alheamento do Ministério Público e do mau funcionamento, com culpa, da administração da justiça, que impediram o Autor de ter uma decisão em prazo razoável, sofrendo prejuízos patrimoniais e não patrimoniais.


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Devidamente citado, contestou o R. por excepção, com fundamento na não inclusão dos honorários peticionados pelo A. na categoria de danos indemnizáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual; por impugnação, pela não verificação dos pressupostos para que opere esta responsabilidade, por o A. não concretizar minimamente os comportamentos omissivos que imputa ao Ministério Público e aos seus OPC`s.

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Por despacho datado de 06/07/2023, foi o A. notificado para, querendo, se pronunciar sobre a matéria considerada como de excepção (peremptória de impossibilidade de indemnização a título de honorários, invocada pelo R.), mais se tendo determinado a notificação das partes para se pronunciarem sobre a dispensa de realização de audiência prévia e a possibilidade de conhecimento imediato da causa.

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Pronunciando-se as partes, não manifestando oposição à dispensa da audiência prévia, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

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Não conformado com esta decisão, impetrou o A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

(…).


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Foram interpostas contra-alegações pelo Digno Magistrado do M. Público em representação do R., concluindo nos seguintes termos:

(…).


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A Sra. Juiz que proferiu a sentença, veio pronunciar-se sobre as nulidades invocadas, considerando não existirem e sim discordância com o decidido.

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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[1]

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) Se o tribunal recorrido proferiu decisão nula, incluída nas nulidades previstas no artº 615, nº1 do C.P.C., por ter conhecido do mérito da causa, quando o estado dos autos o não permitia;

b) Se o tribunal recorrido violou o disposto no art. 20.º da CRP por ter impedido o A. de produzir prova;

c) Se se impõe o prosseguimento dos autos para apuramento da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos imputados ao Estado R.;


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

Mostram-se assentes, com interesse para a decisão a proferir, de acordo com a prova documental junta, os seguintes factos:

1. No dia 26 junho 2019 deu entrada na secretaria/unidade central do Tribunal da Comarca ..., uma queixa crime apresentada por AA contra desconhecidos (embora no ponto 16 da queixa seja identificada a denunciada do crime de injúria, a irmão do queixoso, BB) por fatos passíveis de integrarem os crimes de injúria e dano (conforme referido na parte final da queixa);

2. Em 28 junho 2019, a referida queixa foi registada e autuada como Inquérito, com o NUIPC nº 961/19....;

3. Por despacho de 02 julho 2019, pela Magistrada do Ministério Público titular do processo, a investigação foi delegada na Guarda Nacional Republicana de ... (GNR/...), fixando-se o prazo de sessenta dias para a investigação;

4. Tal despacho foi comunicado à GNR/... por ofício datado de 04/07/2019;

5. Por ofício datado de 25 setembro 2019, a GNR/..., considerando terem sido realizadas todas as diligências de investigação, devolveu o inquérito ao DIAP/Secção de ..., pese embora tenha ficado pendente uma diligência (inquirição de uma testemunha) deprecada à Polícia de Segurança Pública de ... (PSP/...);

6. Por ofício de 02 outubro 2019, a PSP/... devolveu a carta precatória para inquirição de uma testemunha, devidamente cumprida;

7. Em 4 outubro 2019, AA requereu a sua constituição como assistente;

8. Por despacho de 09 outubro 2019, a Magistrada do Ministério Público titular do processo disse nada ter a opor à requerida constituição de assistente;

9. O processo foi remetido ao Juízo de Instrução de Leiria em 10 outubro 2019;

10. Em 14 outubro 2019, AA juntou ao processo documentos comprovativos dos danos patrimoniais sofridos – fechaduras das portas arrombadas, mão de obra para reparação e cadeados – no montante total de 272,14 €, requerendo ser deles indemnizado, bem como dos danos não patrimoniais, não quantificados, que sofreu;

11. Por despacho proferido em 14 outubro 2019, o Juiz de instrução – J2 – do Juízo de Instrução Criminal ... admitiu AA a intervir nos autos como assistente;

12. O processo foi remetido eletronicamente ao DIAP/Secção de ... em 18 outubro 2019;

13. Por despacho de 22 outubro 2019, o Magistrado do Ministério Público titular do processo determinou que o denunciante fosse notificado para informar «se tem conhecimento se a sua irmã BB virá a Portugal e, em caso afirmativo, em que data»;

14. Em 14 novembro de 2019, AA informou que «não tem qualquer relação nem contacto com a sua irmã BB. 2. Contudo, é do conhecimento do Assistente que a sua irmã BB costuma vir a Portugal, pelo menos, no Verão e no Natal, mormente na 2ª quinzena de dezembro, ficando para a passagem de ano. 3. Nos últimos anos, a mesma tem vindo a Portugal dentro destas datas ficando a pernoitar na ... em casa da sua irmã CC ou em ..., na casa de DD, sita na Rua ..., ..., ... .... 4. A Sra. BB contacta diretamente com a sua irmã CC e marido EE, pessoas que sabem as datas das suas deslocações e onde a mesma irá pernoitar»;

15. Por despacho de 18 novembro 2019, o Magistrado do Ministério Público titular do processo determinou que se solicitasse «ao OPC que junto dos visados no ponto 4 apure da data em que a denunciada virá a Portugal e onde ficará instalada»;

16. O despacho referido em 15 foi cumprido por ofício datado de 5 dezembro de 2019;

17. Por ofício de 20 dezembro 2019, a GNR/... deu notícia de que, contactada CC disse «desconhecer a data do regresso da irmã BB, sendo o mais provável no mês de agosto. A mesma não possui contacto com ela e desconhece onde fica instalada, apenas sabe que é por costume ser nesta cidade não sabendo informar qual o local»;

18. Por despacho de 13 janeiro 2020, o Magistrado do Ministério Público titular do processo considerou que «foram já realizadas todas as diligências úteis para a descoberta da verdade, faltando somente a constituição como arguida e interrogatório de BB», determinando que o assistente fosse informado «do facto de não ter sido possível apurar os autores da prática dos factos participados suscetíveis de configurar a prática de um crime de dano e havendo somente indícios da prática de um crime de injúria pela denunciada (…) e sendo certo que a mesma só virá a Portugal no verão – sem prejuízo da emissão de uma Dei para França com demoras semelhantes» e que fosse notificado para informar se «mantém o desejo de procedimento criminal relativamente aos factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de injúria»;

19. Em 3 fevereiro 2020, AA informou que mantinha o «desejo de procedimento criminal relativamente aos factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de injúria»;

20. Por despacho de 8 fevereiro de 2020, o Magistrado do Ministério Público titular do processo determinou a notificação de «CC para que informe, em 10 dias, se tem conhecimento da morada da sua irmã BB e, na afirmativa (…) que a indique»;

21. Em 17 fevereiro 2020, CC informou que a sua «irmã BB (..) se encontra a residir em França em morada que desconheço e também não tenho o contacto telefónico»;

22. Em 8 fevereiro 2020, o Magistrado do Ministério Público titular do processo proferiu o seguinte despacho:

«Não sendo possível a constituição como arguida (em sede de inquérito) de BB nem o seu interrogatório por não ter sido possível apurar o seu paradeiro não obstante todas as diligências de inquérito levadas a cabo para o efeito, cumpra o disposto no art. 285º nºs 1 e 2 do CPP com indicação de que no entendimento do Ministério Público foram recolhidos indícios suficientes da prática de um crime de injúria por BB»;

23. O despacho referido em 22 foi cumprido por ofício de 05/03/2020;

24. Em 23 março 2020, AA deduziu acusação particular contra BB, imputando-lhe a prática de factos cometidos entre 29 dezembro 2018 e 4 janeiro 2019, subsumíveis ao crime de injúria p. e p. pelo art. 181º do Código Penal;

25. O processo foi concluso ao Magistrado do Ministério Público em 20 abril 2020;

26. Por despacho proferido em 26 abril 2020, o Magistrado do Ministério Público titular do processo determinou o arquivamento relativamente aos factos passíveis de integrar o crime de dano e acompanhou a acusação particular deduzida pelo assistente nos seus precisos termos;

27. Foi ainda determinado nesse despacho a pesquisa na base de dados da «última morada conhecida de BB, sendo essa pesquisa realizada em 28 maio 2020;

28. Em 4 junho 2020, a ilustre defensora nomeada da arguida BB requereu que o assistente fosse notificado para juntar a página 2 da acusação particular (que estava em falta);

29. Em 09 julho 2020, o Magistrado do Ministério Público titular do processo atribui-lhe caráter urgente face ao risco de prescrição do procedimento criminal;

30. Seguidamente foi junto ao processo a acusação particular na sua integralidade;

31. Em 3 de agosto 2020, o Magistrado do Ministério Público proferiu o seguinte despacho: «Com nota de MUITO URGENTE face ao risco de prescrição, e sendo provável que a arguida se encontre em território nacional durante este período do mês de agosto, oficie ao OPC – e contacte telefonicamente solicitando-se urgência no cumprimento da diligência – solicitando o cumprimento do determinado a fls. 88», ao qual a Secção de processos seu imediato cumprimento;

32. Por requerimento de 10 agosto 2020, o assistente informou que a arguida se encontrava em Portugal, dando indicação de que fora avistada em casa da irmã CC e a deslocar-se no veículo automóvel com a matrícula (francesa) ..-..6-GH;

33. Após várias insistências, a GNR/... informou que não logrou notificar a arguida, por não a ter encontrado nos lugares indicados como do seu paradeiro na vinda a Portugal, anotando que contactou a irmã CC, à qual deixou a informação «para que assim que a visada regressasse a Portugal se deslocasse ao Posto desta Guarda a fim de ser notificada» e que contactada CC, na última semana de agosto, a mesma informou que já tinha «regressado para o estrangeiro e que apenas tinha conhecimento de ter contactado com o seu advogado acerca dos factos»;

34. Em 11 setembro 2020, o Magistrado do Ministério Público, considerando estar «frustrada a notificação da arguida» determinou a remessa do processo à distribuição, que se concretizou no dia 15 setembro 2020, sendo o processo distribuído ao Juiz ... do Juízo Local Criminal ...;

35. Por despacho judicial proferido em 16 setembro 2020 foi designada para o dia 26 de novembro de 2020 a realização da audiência de julgamento;

36. A Secção de processos solicitou à GNR/..., a averiguação do paradeiro e a notificação da arguida BB;

37. Em 7 outubro 2020, a GNR/... juntou ao processo certidão negativa, dando conta de que lhe foi dada informação que a arguida estava a residir em França;

38. Em 13 outubro 2020, o Ministério Público promoveu que se diligenciasse pela obtenção da morada da arguida em França e subsequente emissão de carta rogatória, o que foi determinado pela Mma. Juíza do processo;

39. Em 3 novembro de 2020 a GNR/... informou não ter conseguido obter informação sobre a morada da arguida em França;

40. Em 5 novembro 2020, o Ministério Público promoveu que se contactasse o assistente para informar se conhecia a morada da arguida em França e, em caso afirmativo, que subsequentemente fosse emitida carta rogatória, o que foi determinado pela Mma. Juíza do processo;

41. Por despacho judicial de 12 novembro 2020 foi dada sem efeito a data designada para audiência de julgamento, ficando esta adiada para 3 dezembro 2020;

42. Por despacho judicial de 11 dezembro 2020 foi determinada a notificação edital da arguida «para se apresentar em juízo no prazo de 30 dias, sob pena de ser declarada contumaz», o que foi cumprido na mesma data;

43. Em 23 dezembro 2020 BB apresentou requerimento em que, para além do mais, alegou não pretender apresentar-se em juízo nem fornecer a sua morada;

44. Em 16 junho 2021, o Ministério Público promoveu fosse declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal contra a arguida;

45. Em 1 julho 2021, a Mma. Juíza do processo declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra a arguida BB;

46. Inconformado, em 10 julho 2021, o assistente AA interpôs recurso da decisão judicial referida em 45;

47. Em 27 julho 2021, o Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo assistente;

48. Em 8 outubro 2021 foi remetido eletronicamente o processo ao Tribunal da Relação de Coimbra;

49. Por Acórdão datado de 24 novembro 2021, transitado em julgado, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida;

50. O processo nº 961/19.... prosseguiu para julgamento do pedido cível, encontrando-se, à data da instauração da presente ação, a aguardar diligências tendentes à efetivação da citação da demandada.”


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Invoca o recorrente a nulidade da sentença proferida nos autos, por ter conhecido do mérito da causa de forma imediata quando o estado do processo o não o permitia, violando o seu direito à produção de prova e constituindo esta decisão uma decisão surpresa, pois que, arrolada prova, a legítima expectativa da parte é que esta seja produzida.

A este argumento opõe o recorrido Estado, representado pelo Ministério Público, que o contraditório foi exercido, pois que o tribunal recorrido “convidou as partes (despacho com a referência Citius 1044365683, datado de 06.07.2023) a exercerem o contraditório sobre essa possibilidade, advertindo-as que se mostravam reunidos todos os elementos essenciais para a prolação de uma decisão de mérito” (conclusão 5ª) e, no que toca à admissão e produção da prova arrolada pelo recorrente, que “A inquirição da prova testemunhal não teria aqui o condão de influir na decisão que foi tomada pelo Tribunal a quo, sendo que o Recorrente não invoca qualquer conhecimento de ciência e/ou razão que as mesmas pudessem ter em relação ao objeto do processo que impusesse decisão distinta.” (conclusão 7ª).

Apreciando

Invoca o recorrente dois fundamentos de nulidade da sentença: a prolacção de decisão surpresa por violação do contraditório prévio à decisão e a violação do seu direito a um processo justo e equitativo com produção de prova em audiência final, direito consagrado no artº 20 da Constituição, e no artº 3, nº3 e 411, do CPC.

Da prolacção de decisão surpresa.

Quanto à prolacção de decisão surpresa, é nosso entendimento, conforme aliás já expresso nesta Relação no Acórdão proferido no proc. nº 3689/21.3T8LRA.C1 (24/01/2023) que, constituindo regime regra no NCPC a obrigatoriedade de realização de audiência prévia, o juiz pode dispensar a sua realização naquelas acções que hajam de prosseguir e nas quais, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º do C.P.C.

Para além destes casos tipificados na lei, é ainda possível, por aplicação do princípio da adequação formal contido nos artºs 6 e 547 do C.P.C., a dispensa da audiência prévia, naqueles casos em que, sendo possível a decisão de mérito- por não haver prova a produzir ou quando, sendo arrolada prova, esta for indiferente para o resultado da acção segundo as várias soluções plausíveis do direito - as questões a decidir tenham sido já objecto de discussão nos articulados, desde que precedida de prévia consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, previsto no artº 3º, nº 3, do CPC.

É o caso, pois que o Sr. Juiz a quo expressamente proferiu despacho em 06/07/23 no qual considerou estarem reunidos os elementos necessários à prolacção de sentença sem necessidade de produção da prova indicada, a realizar em audiência de julgamento e, ordenou a notificação das partes para, em 10 dias, se pronunciarem, querendo.

A este convite, respondeu o recorrente nos seguintes termos: Quanto à eventual prolação de sentença no despacho saneador, caberá ao Tribunal caso entenda estarem reunidos todos os pressupostos/elementos para prolação de sentença, a deduzir, sendo certo que, a prova testemunhal arrolada pelo Autor, poderá ser importante, caso dúvidas ainda existam por parte do Tribunal, na responsabilidade do Réu no atraso da Administração da Justiça que consequentemente lesou e prejudicou os interesses do Autor, no âmbito do processo nº 961/19.....”

Não existiu, assim, violação do princípio do contraditório prévio à decisão, uma vez que a decisão proferida pelo tribunal a quo, no seguimento do despacho já proferido, incidiu sobre a concreta questão material colocada à sua apreciação e que consistia na existência - face à matéria de facto alegada e a à prova já produzida, essencialmente documental - dos pressupostos necessários para a responsabilização extracontratual do Estado pelos actos e omissões dos seus agentes.

A decisão proferida não efectuou outro enquadramento jurídico diverso da causa, nem conheceu de questão não discutida pelas partes nos seus articulados, ainda que de conhecimento oficioso.

Não foi, assim, proferida qualquer decisão surpresa, por violação do contraditório, nem violada qualquer formalidade legal – nomeadamente pela dispensa de audiência prévia - que inquinasse esta sentença de nulidade.

Questão diversa consiste em saber se o tribunal a quo incorreu em error in judicando, por os factos alegados e os resultantes da prova documental junta aos autos, ainda não permitirem a decisão de mérito desta causa, sendo assim necessário o prosseguimento dos autos para produção de prova quanto aos factos ainda controvertidos e que se reportam essencialmente aos danos alegados pelo A.

Este error in judicando não constitui nulidade da sentença, sendo que a existir determinará a revogação da sentença proferida e o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito da causa, com produção da prova arrolada.

Da violação do direito a um processo equitativo e justo.

O segundo fundamento de nulidade invocado, que se interliga com o primeiro, consiste na não audição da prova indicada pelo recorrente, como consequência desta decisão em fase de saneador e a eventual violação do princípio do contraditório e da exigência de que seja assegurado a todas as partes um processo equitativo e justo, direito com consagração constitucional no artº 20 da nossa Constituição.

O direito a um processo justo equitativo implica o acesso ao próprio direito e a sua realização através dos tribunais, mediante um procedimento legal, justo e adequado, tanto a nível formal como substantivo. É este, ainda, um dos direitos fundamentais mais importantes do catálogo dos direitos garantidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem1 (CEDH), quer pela sua posição central na economia destes, quer pelo facto de se tratar de uma das causas mais reclamadas, nos processos submetidos à apreciação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).[2]

É este direito de acesso ao direito e à sua realização pelos tribunais, conforme referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[3] um “elemento integrante do princípio material da igualdade (…) e do próprio princípio democrático (…). O direito de acesso aos tribunais inclui, desde logo, no seu âmbito normativo, o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, (….) com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada.” Conforme definido pela nossa jurisprudência constitucional[4], constitui “o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada das partes poder aduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras”.[5]

Assim sendo, na sua efectivação, exige a plena observância do princípio do contraditório, consagrado no artº 3 do C.P.C. e que, na sua concretização, engloba o direito à produção de prova sobre factos que dela careçam e da audiência contraditória sobre a prova produzida, em momento prévio à prolacção de uma decisão de mérito, devidamente fundamentada e em prazo útil.

Este direito a um processo justo e equitativo, por um lado impede que o juiz a quo profira decisão sem observância do prévio contraditório e sem produção das provas necessárias à decisão. Mas não exige e obsta, aliás, a que se produza prova sobre factos inúteis, ou que se produza prova sobre factos que dela não careçam (por plenamente provados por documento ou confissão), por tal constituir um acto inútil que está vedado ao tribunal praticar (artº 130 do C.P.C.).

Quer isto dizer, que este princípio da produção de prova está condicionado à sua necessidade e relevância para a decisão a proferir.

Nesta medida, apenas prosseguindo os autos haveria lugar à produção de prova pelas partes, em sede própria: a audiência de julgamento.

Conclusão que convoca a apreciação da última questão colocada em sede de recurso: se dos autos resultam alegados factos que segundo as várias soluções plausíveis de direito são susceptíveis de constituírem o Estado em responsabilidade civil extracontratual, impondo-se o seu prosseguimento.

Dos pressupostos de responsabilidade civil do Estado.

A decisão recorrida considerou que “O que releva, para efeitos de imputação ao Estado da responsabilidade pela violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável é a verificação de uma situação objetiva de funcionamento anormal do sistema de administração da justiça” e que não decore dos autos qualquer conduta ou omissão que tenha violado o direito do ofendido a uma decisão proferida em prazo razoável e que, por outro lado, o A. “não só não alegou factos ilícitos específicos suscetíveis de materializar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado na alegada tramitação, quando lhe cabia designadamente identificar os injustificados comportamentos concretos – comportamentos injustificados que não se podem confundir com as decisões de investigação, não contrárias à lei, que traçam o rumo da investigação e do andamento do processo, pois que a direção dos processos criminais cabe na fase de inquérito ao Ministério Público e na fase de julgamento ao juiz, sendo em qualquer caso posição e atribuições do MP no processo as previstas no art. 53º do CPP – como não indicou ainda um único facto sobre o atraso processual, designadamente se assacado a um funcionamento anormal do serviço ou a conduta em concreto dos servidores do Estado.”

Conclui que “compulsado o Processo 961/19...., nada se infere de que resulte a existência, por parte do MP, do OPC, do tribunal e seus agentes, de desleixo processual ou atraso injustificado em promover o seu adequado andamento, nem resulta ainda a ocorrência de “faute de service”, pelo que não foi violado o direito a uma decisão em prazo razoável, inexistindo ilicitude” pelo que faltando “o facto ilícito, a ação terá necessariamente que improceder.”

Vejamos: o autor instaurou a presente acção visando a responsabilidade civil extracontratual do Estado por, em seu entender ter sido violado o seu direito de acção criminal, pela omissão de actuação quer por parte do Ministério Público, quer por parte dos OPC`s no sentido da notificação da arguida, quer no seu domicílio em França, quer aquando das suas estadias em Portugal e, por outro lado, na omissão atempada de decisão com vista à declaração de contumácia da arguida, visando a suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal –de dois anos – enquanto durasse a declaração de contumácia - por idêntico período de tempo – conforme decorre do artº 120, nº 1 al c) e nº 3 do Código Penal.

Ambos os fundamentos invocados, a verificarem-se, integram o âmbito de actuação da norma contida no artº 12 da Lei 67/2007 de 31/12.

Com efeito, decorre do artº 22 da nossa Constituição que “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

Entre estes direitos, liberdades e garantias inclui-se a exigência de a todos ser conferido o direito de acção (quer penal, quer civil) com vista à efectivação dos seus direitos e interesses legitimamente protegidos, mediante a consagração de um processo equitativo e justo. O direito à tutela jurisdicional efectiva, enquanto princípio geral de direito impõe o estabelecimento de garantias processuais, que assegurem a efectividade do direito: um processo definido pelo órgão legislativo competente e assegurado pelos órgãos judiciais, justo e equitativo, mediante a observância dos princípios do contraditório, da igualdade de armas processual, da proibição da indefesa, do conhecimento, pelos interessados, dos fundamentos das decisões tomadas em relação a direitos de que sejam titulares e a obtenção de uma decisão de mérito, proferida em prazo útil, por um tribunal independente e imparcial.

Assim sendo, na sua efectivação, engloba a prossecução de medidas que possibilitem o efectivo acesso à justiça, quer por via da concessão de apoio judiciário quando necessário, na vertente económica e jurídica, uma vez que “ninguém pode ser privado de aceder à justiça seja qual for a sua condição económica[6], do acesso a uma representação condigna, da efectiva garantia de observância do contraditório, em todos ao casos e decisões judiciais, ainda que abrangendo excepções de conhecimento oficioso e da obtenção de uma decisão de mérito, devidamente fundamentada e proferida em prazo razoável.

Este direito de acção (e de defesa) ou direito de agir em juízo, tem em si implícita a exigência de um processo “encarado num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais”[7], ou seja a justeza do processo reclama o cumprimento de parâmetros materiais de justiça, quer na sua vertente adjectiva, quer na vertente substantiva. O que não quer dizer que processo justo e equitativo seja aquele que alcance a verdade material ou decisões materialmente justas. É o próprio processo que tem de ser enformado por garantias processuais legais e constitucionais que o tornem justo e equitativo, baseado nos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da proibição da indefesa, do direito ao contraditório, à fundamentação das decisões, ao direito à não incriminação.

Este direito de tutela jurisdicional efectiva que deve ser assegurado pelo estado e pelos seus órgãos jurisdicionais, quando violado pelos “titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes” constitui o Estado no dever de reparar os danos causados. Conforme refere FERNANDES CADILHA[8]o artigo 22º da CRP, ao consagrar um princípio geral de responsabilidade por acções ou omissões ilícitas de titulares de órgãos, funcionários ou agentes de que resultem violações de direitos, liberdades e garantias, vem dar cobertura não só a outras formas de responsabilidade por acto jurisdicional (…) como também à responsabilidade pelo funcionamento da administração da justiça, quando os danos possam ser imputáveis a magistrados judiciais (quando provenham de actos não jurisdicionais), a outros órgãos de justiça (magistrados do Ministério Público), a funcionários de justiça ou ao serviço judicial considerado globalmente. Aqui se incluem os danos de prescrição do procedimento criminal ou de não prolacção de decisão jurisdicional em prazo razoável”, responsabilidade que a Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro, visou regular.

Com efeito decorre do disposto no artº 1 deste diploma legal que:

 “1. A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

3 - Sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente lei regula também a responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício.”

Constitui esta uma responsabilidade por actos e omissões ilícitos que, conforme referido na decisão recorrida, não dispensam a verificação cumulativa dos requisitos previstos no artº 483 do C.C.

Nesta medida, o artº 7 da Lei 67/2007 dispõe no seu nº1 que “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.”, acrescentando o seu nº 3 que “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço.” Já o nº 4 esclarece que “Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos.”

O artº 12 do referido diploma legal estende este regime aos “danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável.”, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, ou seja, o disposto nos artºs 13 e 14.

Nestes preceitos se incluem todos os danos causados por um deficiente funcionamento da justiça que tenham ocasionado um prejuízo indemnizável, sendo certo que a expressão “administração da justiça”, deve ser entendida como abrangendo quer os actos materialmente administrativos da justiça, estes ao abrigo do artº 12, quer os actos jurisdicionais em sentido próprio, estes ao abrigo do disposto no artº 13 deste diploma legal.

Volvendo a FERNANDES CADILHA[9]A remissão efectuada pelo artigo 12º tem, pois, um (…) sentido: a) o de definir, por remissão, o regime directamente aplicável à responsabilidade civil pela actividade judiciária administrativa, isto é, por actos lesivos praticados por quaisquer operadores judiciários, quando não integrem a reserva de juiz, ainda que possam ter sido praticados por magistrados judiciais (actos de expediente, situações de incumprimento de prazos, despachos meramente dilatórios, infracção de regras processuais, deficiente tramitação processual);”, desde que estes actos configurem um error in procedendo e não um error in judicando, estes últimos já a coberto do artº 13 deste diploma legal.

Volvendo aos fundamentos invocados pelo autor, a omissão das diligências necessárias à notificação da arguida e a tardia decisão de notificação edital da arguida com vista à declaração de contumácia, integra-se no campo de actuação do artº 12 da Lei nº 67/2007, constituindo, a verificarem-se, um error in procedendo, uma omissão/actuação deficiente e tardia face ao prazo de prescrição em curso, bem conhecido do tribunal.

São, assim, perfeitamente irrelevantes as considerações tecidas nos autos a respeito da duração normal dos processos crime, ou as tecidas a respeito da investigação efectuada pelo Ministério Público e pelos órgãos de polícia criminal (OPC`s). Nem a duração normal do processo nem a investigação efectuada dos factos relatados pelo ofendido se mostra posta em causa, mas antes a ausência de diligências úteis com vista à notificação da arguida e a prescrição do procedimento criminal, como resultado desse error in procedendo.

Vejamos então os factos que se apuraram a este respeito:

-logo com a apresentação de queixa crime, em 26/06/2019 (ponto 1), o ofendido, ora recorrente indicava como residência de BB, ainda indicada como testemunha, “... (...00) ..., França”;

-em 9 de Julho de 2020, foi atribuído carácter urgente ao processo, constando já dos autos informação obtida ainda em Maio de 2020 (fls. 48) de uma residência em França da arguida (...) que constitui a pesquisa referida no ponto 27 e que não coincide com a indicada pelo ofendido na queixa apresentada.

Ora, findo o inquérito, o Ministério Público deve notificar a sua decisão, de acusação ou de arquivamento, aos envolvidos (cfr. o prevêm os artºs 277, n.º 3, 283, n.º 5, 284 e 285 do Código de Processo Penal (C.P.P.).

Nestes termos, dispõe o artº 277, nº4 do C.P.P. (preceito aplicável por remissão do artº 283, nº5 do C.P.C.) que as comunicações referidas no seu nº3 se efectuam da seguinte forma:

a) Por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registada ao assistente e ao arguido, excepto se estes tiverem indicado um local determinado para efeitos de notificação por via postal simples, nos termos dos n.os 5 e 6 do artigo 145.º, do n.º 2 e da alínea c) do n.º 3 do artigo 196.º, e não tenham entretanto indicado uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento;

b) Por editais, se o arguido não tiver defensor nomeado ou advogado constituído e não for possível a sua notificação mediante contacto pessoal, via postal registada ou simples, nos termos previstos na alínea anterior;

c) Por notificação mediante via postal simples ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil;

d) Por notificação mediante via postal simples sempre que o inquérito não correr contra pessoa determinada.”

Só se estes procedimentos se revelarem ineficazes é que o processo prossegue para a fase do julgamento, conforme resulta do disposto no artº 283, nº 5 do C.P.P.

Remetidos os autos à distribuição e recebida a acusação, entre Setembro de 2020 e ../../2020, o Tribunal desdobrou-se em despachos com vista à obtenção do paradeiro da arguida e notificação da acusação e do despacho que designou data para julgamento nos termos e para os efeitos do disposto no artº 313, nº2 e 3 do C.P.P. (na redacção do D.L. 320-C/2000 de 20/12).

Dispunha este preceito, no seu nº2 que “O despacho, acompanhado da cópia da acusação ou da pronúncia, é notificado ao Ministério Público, bem como ao arguido e seu defensor, ao assistente, às partes civis e aos seus representantes, pelo menos, 30 dias antes da data fixada para a audiência.”

O nº3 deste preceito remetia expressamente para o disposto no artº 113, nºs 1, al. a) e b) deste diploma legal.

Por sua vez, o artº 113 nº1 nas suas alíneas a) e b), prevê a notificação por contacto pessoal e por via postal registada do arguido.

Neste último caso, a notificação terá de obedecer às seguintes regras, definidas nos seus nº6 e 7:

“(…) o rosto do sobrescrito ou do aviso deve indicar, com precisão, a natureza da correspondência, a identificação do tribunal ou do serviço remetente e as normas de procedimento referidas no número seguinte.

7 - Se:

a) O destinatário se recusar a assinar, o agente dos serviços postais entrega a carta ou o aviso e lavra nota do incidente, valendo o acto como notificação;

b) O destinatário se recusar a receber a carta ou o aviso, o agente dos serviços postais lavra nota do incidente, valendo o acto como notificação;

c) O destinatário não for encontrado, a carta ou o aviso são entregues a pessoa que com ele habite ou a pessoa indicada pelo destinatário que com ele trabalhe, fazendo os serviços postais menção do facto com identificação da pessoa que recebeu a carta ou o aviso;

d) Não for possível, pela ausência de pessoa ou por outro qualquer motivo, proceder nos termos das alíneas anteriores, os serviços postais cumprem o disposto nos respectivos regulamentos, mas sempre que deixem aviso indicarão expressamente a natureza da correspondência e a identificação do tribunal ou do serviço remetente.”

A redacção deste artigo, poder-nos-ia levar a considerar que foi indevidamente omitida a notificação por via postal registada prevista neste preceito legal (error in procedendo), sabido que a notificação da acusação ao arguido ou a notificação do despacho que designa data para audiência na ausência do arguido, interrompe o prazo de prescrição em curso (artº 121, nº1 b) e d) do Código Penal (C.P.)).

Ocorre que, como é jurisprudência uniforme[10], em caso de arguido residente no estrangeiro - e a arguida tinha residência no estrangeiro - não é possível o cumprimento das formalidades exigidas pelos nºs 6 e 7 do artº 113 do C.P.P. como condição de validade desta notificação, por se não poder impor aos serviços postais estrangeiros as formalidades exigidas no nosso ordenamento jurídico. Daqui decorre que quer a notificação da acusação a arguido residente no estrangeiro (a realizar pelo M.P. nos termos do artº 283 do C.P.P.), quer a notificação posterior do despacho que designa a audiência de julgamento (artº 113 nº1 al. a) ex. vi artº 313 nº2 e 3 do C.P.P. na redacção do D.L. nº 320-C/2000 de 15/12), na sequência da sua remessa para julgamento, só poderia ser feita por carta rogatória a remeter às justiças de França, ou por contacto pessoal com a arguida neste país.

Notificação por carta rogatória que manifestamente não foi feita. No entanto, a omissão de notificação por carta rogatória não foi invocada como causa adequada da prescrição do procedimento criminal, nem foi alegado qualquer facto do qual decorresse que esta seria ainda possível no curto espaço de tempo de que o tribunal dispunha para a notificação após o recebimento da acusação particular e seu acompanhamento pelo Ministério Público.

A tese do A., incide antes na ausência de notificação da arguida em território nacional. Ocorre, no entanto, que a arguida não tinha residência em território nacional, nem residência conhecida neste país, sendo afinal as suas estadias, em casa de outras pessoas, esporádicas e incertas e sujeitas sempre à condicionante de em eventual deslocação a este país, ser encontrada e validamente notificada.

Ora, conforme considerou o tribunal recorrido, o A. não indicou qualquer omissão ou violação concreta imputável a qualquer agente ou titular de órgão de administração da justiça nas tentativas de notificar neste país a arguida. Da certidão junta pela GNR resulta que esta efectivamente se deslocou à morada indicada pelo ofendido e que nela não encontrou a arguida, nem esta se deslocou ao posto da GNR apesar de solicitação para esse efeito, nem em bom rigor foram indicados os dias em que esta esteve em Portugal (se efectivamente esteve), nem a sua concreta morada, nem qualquer facto que permita concluir que existiu uma actuação deficiente quer dos serviços do M.P. quer dos OPC`s, quer posteriormente dos funcionários adstrictos à secção de processos do Tribunal onde este foi distribuído, quer do magistrado judicial.

É certo que se poderia considerar a existência de um error in procedendo pela ausência de notificação da requerida por carta rogatória e pelo indevido envio dos autos para julgamento, sem que se efectuasse a notificação, por carta rogatória, da arguida da acusação[11]. No entanto, essa é questão que não é colocada à nossa apreciação e que para o caso que importa - a prescrição do procedimento criminal - é irrelevante, pois que em momento algum do seu articulado o A. invoca essa omissão ou que esta foi causa adequada da prescrição do procedimento criminal (apesar de ser notório a mora no cumprimento destas cartas e a situação de pandemia vivida em 2020).

Resta a questão da declaração de contumácia. Também aqui labora o A. em manifesto erro.

A declaração de contumácia só pode ocorrer como assinala o Ac. do TRL de 04/11/2010[12]quando se regista a não comparência à audiência, por não ser possível a notificação do arguido que não prestou termo de identidade e residência, o que pressupõe a prévia e exigível marcação da mesma. Sendo, pois, pressuposto para a declaração de contumácia a prévia marcação de uma efectiva data para a audiência de julgamento, a omissão dessa diligência, sem a qual tal declaração não poderá ocorrer, como resulta do disposto no nº 1 do artº 335 do C.P.Penal , constitui uma nulidade.

Recorde-se que o artº 335 nº1 do C.P.P. (também na redacção do D.L. 320-C/2000 de 15/12) dispõe que “Fora dos casos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo anterior, se, depois de realizadas as diligências necessárias à notificação a que se refere o n.º 2 e a primeira parte do n.º 3 do artigo 313.º, não for possível notificar o arguido do despacho que designa o dia para a audiência, ou executar a detenção ou a prisão preventiva referidas no n.º 2 do artigo 116.º e no artigo 254.º, ou consequentes a uma evasão, o arguido é notificado por editais para se apresentar em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.”

Ora os autos foram recebidos em juízo, em 15 de Setembro e proferido despacho a designar data para julgamento em 16 de Setembro. Se, na realidade, em relação a arguido residente no estrangeiro a notificação deveria ter sido feita por carta rogatória e que só após frustrada a notificação se poderia proceder à sua notificação por editais para se apresentar em juízo sob pena de ser declarado contumaz, não se vê, nem o A. o alega, que houvesse tempo para a prática de todos estes actos antes do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, ou que a irregularidade cometida (com vista precisamente a evitar essa prescrição), fosse culposa e causa adequada dos danos invocados.

A prescrição do procedimento criminal não determina automaticamente a responsabilização do Estado. É necessário que sejam alegados e provados os pressupostos previstos no artº 483 do C.C.: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre este facto ilícito e culposo e os danos. O ónus de alegação (nos termos do artº 5, nº1 do C.P.C.) e prova (nos termos previstos no artº 342, nº1 do C.C) destes factos, incumbe ao A. (artº 487 do C.C.)

Ora, o A. não indicou qualquer acto concreto praticado ou omitido por qualquer titular dos órgãos da administração da justiça, seus funcionários ou agentes, nem a ilicitude destes actos ou omissões, nem a culpa, ainda que leve, dos seus autores, nem o nexo de causalidade com os supostos danos.

Por outro lado se, conforme assinala EMÍDIO COSTA/RICARDO COSTA[13] a responsabilidade do Estado “existe também que não exista culpa de algum titular de órgão, funcionário ou agente ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão geradora dos danos, desde que estes possam ser atribuídos a um anormal funcionamento do serviço (…) aqui, a responsabilidade assenta em culpa mas do próprio Estado, já que este tem obrigação de fazer com que os serviços que presta sejam atempados e de qualidade”, ou nos dizeres de FERNANDES CADILHA[14]culpa do serviço”, não foi alegado qualquer facto que permita considerar que existiu um funcionamento anormal da administração da justiça, quando “atendendo às circunstâncias e aos padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço, uma actuaçao susceptível de evitar os danos produzidos.” (artº 7, nº4, da Lei 67/2007).

Nestes termos, concorda-se com a decisão recorrida que considerou não terem sido invocados, nem decorrer da actuação processual revelada nos pontos de facto assentes, quer acto ou omissão culposa, quer um deficiente funcionamento da administração da justiça que permitisse a responsabilização do Estado, nos termos previstos no artº 12 da Lei nº 67/2007.

Há que ter ainda em conta que os prazos curtos de prescrição se prendem com a natureza do crime que demanda queixa e acusação particular e que não é exigível que o Estado aloque todos os seus recursos a um único processo, ou coloque agentes das forças de segurança adstritos apenas a notificações de arguidos residentes no estrangeiro, sem se saber sequer as datas em que estes se deslocam a Portugal, ou sequer se se deslocam (face às restrições da pandemia de 2020).

Impõe-se assim a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, não havendo quaisquer outros factos ainda controvertidos, úteis à decisão, uma vez que os únicos factos controvertidos são os respeitantes aos alegados danos sofridos pelo A., ora recorrente, a apreciar apenas se se verificassem os pressupostos da ilicitude e da culpa, que se não verificam.


*


DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela A. e confirmar a decisão recorrida que julgou improcedente a acção.
*
 
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido (artº 527 nº1 do C.P.C.).


Coimbra 09/04/24



[1] ABRANTES GERALDES, Op. Cit., p. 87.

Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.

[2] Sobre este direito na Jurisprudência do TEDH, vide MARRANA, Rui, “O Direito a um Processo Equitativo no Quadro dos Direitos Fundamentais: Regime e Jurisprudência Recente”, Revista Lusíada, nº2, 2010, págs. 131 e segs., disponível online no sítio http://revistas.lis.ulusiada.pt/index.php/ldp/article/view/2023.
[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3ª edição revista, 1993, págs.162/163.
[4] E.g. o acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/2000, publicado no DR, II série, de 7 de Novembro de 2000.
[5] MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, 2017, pág. 321.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, “A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito processual civil”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2008, pág. 72.

[7] SANTOS, Maria Amália, “O direito constitucionalmente garantido dos cidadãos à tutela jurisdicional efectiva” Revista Julgar Online, Novembro de 2019, pág. 3, disponível no sítio http://julgar.pt.
[8] CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, Coimbra Editora, 2ª edição, págs. 236, 237.
[9] Ob. Cit, pág. 242.
[10] A título de mero exemplo vide os Acs. desta Relação de 30/06/2021, proferido no Proc. nº 343/15.9JALRA-A.C1, de que foi relator José Jacob; de 13/12/2023, proferido no proc. nº 58/17.3GAMGL.C1, de que foi relatora Cristina Branco, o Ac. do TRG de 03/03/2014, proferido no proc. nº 23/12.7TAVCT.G1, de que foi relator Fernando Monterroso, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[11] Situação tratada no Ac. do TRE de 13/09/2022, proferido no proc. nº 64/20.0PBEVR.E1, de que foi relator Gomes de Sousa; em sentido oposto vide o Ac. também do TRE de 25/05/2023 proferido no proc. nº 286/18.4IDSTB-A.E1 de que foi relator Carlos de Campos Lobo, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[12] Proferido no proc. nº 1482/08.8PJLSB-A.L1-9, de que foi relator Francisco Caramelo, disponível in www.dgsi.pt
[13] COSTA, Emídio José e COSTA, Ricardo José Amaral, Da Responsabilidade Civil do Estado e dos Magistrados por danos da função jurisdicional, Quid Juris 2010, pág. 154.
[14] Ob. cit., pág. 243.