Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1259/03.7TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PARTICIPAÇÃO ECONÓMICA EM NEGÓCIO
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 377º CP
Sumário: Preenche o crime de participação económica em negócio o funcionário que, no exercício das suas funções públicas, ao invés de atuar como zelador do interesse público que lhe está confiado, abusa dos poderes conferidos pela titularidade do cargo com finalidade lucrativa para si ou para terceiro.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

1.
Nos presentes autos o Ministério Público acusou os arguidos A..., B..., C..., D..., E..., F..., G..., H... e I... da prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de participação económica em negócio, em concurso aparente com um crime de administração danosa, previsto e punível pelos art. 26º, 28º, nº 1, 65º a 68º, 377º, nº 1, 386º, nº 2, e 235º, nº 1, do Código Penal
Acusou, ainda, A..., B..., C... da prática, em co-autoria, concurso real e na forma consumada, de um crime de administração danosa, dos art. 26º, 30º, nº 1, 65º a 68º e 235º, nº 1, do Código Penal.

2.
Todos os arguidos requereram a abertura de instrução, pedido que foi deferido.

3.
O Estado Português intentou uma ação contra o W..., SA, que corre termos no juízo de grande instância cível da comarca do Baixo Vouga com o nº 282/04.9TBAVR, pedindo a condenação desta a cumprir o contrato celebrado em 25-3-1999, contrato este que, devido aos termos em que foi celebrado, deu origem à acusação acima referida.

4.
Encerrada a instrução foi proferido despacho julgando improcedentes todas as nulidades imputadas à acusação, que haviam sido suscitadas nos requerimentos de abertura de instrução, e determinando a suspensão dos autos até que fosse proferida decisão nesta ação ordinária nº 282/04.9TBAVR, por se ter entendido que a decisão nesta proferida condicionaria a conclusão a extrair neste processo crime «ao nível da existência do dano patrimonial» (sic).

5.
Em 29-10-2010 foi proferida sentença nesta ação, julgando-a improcedente e absolvendo a ré do pedido. Mais foi julgada parcialmente procedente a reconvenção e condenado o reconvindo a «reconhecer que no contrato celebrado entre Y... e a ré, a 25.3.99, as cláusulas quarta, nº 2, e quinta incluíam apenas a obrigação de a ré esta manter o WW... aberto pelo período em que estivesse licenciado pelas autoridades competentes, de modo provisório ou definitivo, abrangendo a cláusula quinta apenas esse período; a reconhecer a redução do preço da venda de ações em € 94.343,19 e no que se apurar em liquidação posterior quando aos factos descritos supra em 44, condenando-se o A. A pagar à ré esses mesmos valores».
No ponto 44 consta o seguinte: «o encerramento do WW..., de 07/06/99 a 21/06/99, causou à “Z...”, como custos de inatividade, correspondentes aos montantes de custos fixos deduzido à margem bruta de vendas, no período em que o X... esteve encerrado, custos de deslocação e remunerações adicionais, montantes não determinados».

6.
Junta a certidão da decisão proferida no processo 282/04.9TBAVR a este processo crime foi declarada finda a suspensão da instância, designado novo dia para realização do debate instrutório e proferida a seguinte decisão instrutória, pronunciando os arguidos A..., B... e C... da prática, em co-autoria material, de um crime de administração danosa, previsto e punível pelos art. 26º, 30º, nº 1, 65º a 68º e 235º, nº 1, do Código Penal:
«Na sequência da decisão proferida a fls. 3094 e ss. foi junta aos autos a sentença proferida no âmbito da acção ordinária n.º 282/04.9TBAVR – cfr. 3115 e ss. -, em que o Estado Português, na qualidade de sucessor da extinta “Y..., S.A.”, peticionava o cumprimento do contrato celebrado, no prazo de 30 dias e, em caso de impossibilidade, o cumprimento da cláusula penal, correspondente a metade do valor das acções alienadas.
A ré contestou, alegando o incumprimento por parte do A. das obrigações assumidas no contrato, o que determinou o encerramento do WW... e lhe causou prejuízos, cujo ressarcimento reclama em sede de reconvenção.
O tribunal, julgando improcedente a pretensão do Estado, deferiu parcialmente a reconvenção, condenando o autor a indemnizar a ré-reconvinte.
A sentença ainda não se mostra transitada em julgado.
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Procedeu-se à realização de novo debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo M.P. e arguidos.
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O âmbito da instrução:
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art. 308.º, n.º 1, do cód. proc. penal).
Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art. 283.º, n.º 1 ex vi do art. 308.º, n.º 2, ambos do cód. proc. penal).
A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: - “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”.
A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art. 308.º do cód. proc. penal.
Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar “alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento”.
Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de “julgamento antecipado” nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público ou do assistente de acusar. Nessa verificação deverá no entanto o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.
Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica a apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, mas apenas se julga da verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.
*
Importa agora aquilatar da existência de indícios que suportem a narrativa da decisão final de inquérito, assim se fazendo o controlo jurisdicional da decisão de arquivar/acusar e que é pressuposto e fim da instrução.

Do Crime de Participação Económica em Negócio
Dispõe o artigo 377.º, n.º 1 do Código Processo Penal que “O funcionário que, com intenção de obter, para si ou para terceiro, participação económica ilícita, lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe cumpre, em razão da sua função, administrar, fiscalizar, defender ou realizar, é punido com pena de prisão até 5 anos”. Trata-se de um tipo penal que tem em vista, em primeira linha, aquelas situações em que o funcionário tem poderes públicos de representação em negócio e age por forma a obter parte de tal transacção, do mesmo passo que prejudica os interesses que representa. Ou seja, ao invés de pura e simplesmente se apoderar de bens que lhe foram confiados, ou de abusar do uso de outros que lhe eram acessíveis, sempre por via das suas funções, acaba aqui por alcançar um direito subjectivo que lhe não é devido, à custa dos interesses que devia cuidar.
A participação tem em vista a obtenção de determinada posição ou vantagem por efeito, indevido, de negócio efectuado no exercício do cargo.
Imputa-se aos arguidos a lesão dos interesses do Estados no âmbito da privatização da Z..., por se considerar que a concretização da venda não respeitou o valor de avaliação referência estabelecido nas bases de acordo entre a Y... e a Sociedade W…, onde aquela acordava vender e esta acordava comprar a posição accionista detida no capital da Z... (91,43% do capital – correspondente a 551.139 acções) pelo preço de Esc. 280.000.000$00. Acordo este a que o SEMAQA – que exercia a tutela – deu a sua aprovação.
Sendo que este contrato continha uma cláusula que obrigava a adquirente a manter operacionais e activos os X... de Aveiro e Viseu durante cinco anos.
Estabelecendo-se uma cláusula penal, em caso de incumprimento, em montante equivalente a 50% do valor global da alienação das acções.
Ora, entende-se na acusação que alteração no contrato de compra e venda definitivo do valor das acções, de 280.000.000$00 para Esc.: 143.075.684$00 teve implicações directas no valor da cláusula penal, que primeiro era de Esc.: 140.000.000$00 e depois passou para Esc.: 71.537.842$00 e que, nesta diminuição se traduz o prejuízo patrimonial do Estado.
Se bem vemos, sem razão.
Pressupondo os elementos típicos do ilícito imputado aos arguidos e na consequência da nossa intelecção constante da decisão de fls. 3094 e ss. [ Despacho que determinou suspender a instância penal até ser junta a sentença proferida na ação ordinária nº 282/04.9TBAVR.] – que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais -, somos de parecer que o teor da decisão proferida no âmbito da acção ordinária n.º 282/04.9TBAVR, que julga improcedente a pretensão indemnizatória do Estado pelo encerramento do WW... pela adquirente Sociedade W..., traduz indiciariamente a inexistência de um prejuízo real e efectivo para o Estado em decorrência do negócio de alienação da Z... a particulares.
Se perder de vista que o encerramento do WW... ocorreu antes de completado o prazo de cinco anos estabelecido contratualmente, o que parece já ser possível inferir é que esse incumprimento é imputável a conduta culposa do próprio Estado. Que, como pode ler-se na sentença proferida no âmbito da acção cível, surge já condenado a indemnizar os prejuízos a que deu causa.
Compulsando, todos os depoimentos recolhidos nos autos, parece ser incontroverso que o que fundamentalmente ficou estabelecido na base de acordo negocial para a alienação da Z..., e que foi expressamente sancionado pela Secretário de Estado que detinha a tutela – cfr. fls. 320 e ss. -, foi o valor do preço da privatização da Z.... Havendo, quanto a este, perfeita correspondência entre as bases de acordo e o contrato definitivo; donde não ser possível afirmar uma lesão efectiva dos interesses patrimoniais do Estado.
Veja-se que o valor alcançado pelos arguidos e consagrado nas bases de acordo, representantes da Y..., transcendeu o limite mínimo estipulado pelo SEMAQA e por este foi, posteriormente, sancionado.
Isto mesmo se extrai das declarações dos arguidos e os depoimentos das testemunhas que com maior ou menor proximidade intervieram no processo, revelando um conhecimento directo.
Ressuma, portanto, de todo o acervo probatório coligido nos autos, com primordial importância do conteúdo da sentença proferida no âmbito da acção ordinária n.º 282/04.9TBAVR, que o negócio de privatização da Z... concretizado com intervenção directa dos arguidos, não determinou uma lesão efectiva dos interesses do Estado.
Naufragando a demonstração indiciária deste pressuposto, e trazendo à colação o princípio in dubio pro reo - em obediência ao qual a dúvida sobre a veracidade de tal facto tem de ser valorada em favor do arguido -, não se nos afigura possível de imputar aos arguidos a autoria do crime de participação económica em negócio tipificado no n.º 1, do art. 377.º, do cód. penal.
Em consonância, não sendo exequível um juízo de prognose favorável à condenação dos arguidos por este crime, outra decisão não se nos antolha que não seja a sua não pronúncia.

Do crime de administração danosa
Dispõe o n.º 1 do artigo 235.º, do cód. penal que “Quem, infringindo intencionalmente normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional, provocar dano patrimonial importante em unidade económica do sector público ou cooperativo, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”, acrescentando-se no n.º 2, que “A punição não tem lugar se o dano se verificar contra a expectativa fundada do agente”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é o património de pessoa colectiva do sector público ou cooperativo (neste sentido, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Univ. Católica Editora, pp. 644, e Manuel da Costa Andrade, em anotação ao artigo 235.º, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, II, Coimbra Editora, pp. 774).
O crime de administração danosa é um crime de dano, quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos; e de resultado, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.
O tipo objectivo corresponde à conduta típica do crime de infidelidade, isto é, à provocação de um dano patrimonial importante em unidade económica do sector público ou cooperativo, com infracção das normas de controlo ou de regras económicas de gestão racional.
O agente do crime é uma pessoa obrigada à observância das normas de controlo ou de regras económicas de gestão racional numa unidade económica do sector público ou cooperativo, isto é, uma pessoa com o cargo de “gestor” de uma unidade económica do sector público ou cooperativo.
Portanto, o crime de administração danosa é um crime específico impróprio, sendo a ilicitude do crime de base (infidelidade) agravada em função da qualidade do agente.
A unidade económica é todo o serviço ou empresa com função comercial ou produtiva.
A observância de normas de controlo e das regras económicas de gestão racional implica, para além do cumprimento da due diligence do gestor criterioso e prudente, o respeito pelos preceitos da ordem civil, administrativa e fiscal e, obviamente também, da ordem criminal, cuja violação implica não apenas a responsabilidade do agente como a responsabilidade da pessoa gerida e, portanto, em nenhuma circunstância correspondem a uma gestão criteriosa e prudente.
O dano patrimonial inclui os danos emergentes e os lucros cessantes.
A “importância” mede-se por referência ao conceito legal de “valor elevado”, tal como sucede com o crime geral de infidelidade.
O tipo pode ser cometido por omissão independentemente do artigo 10.º, uma vez que o próprio crime de administração danosa é um crime de dever.
O tipo subjectivo só admite o dolo directo, como resulta da exigência da infracção “intencional” das normas de controlo ou de regras económicas de gestão racional. Neste sentido, se tem vindo a afastar do tipo incriminador o dolo eventual e necessário (cfr. ac. STJ de 11.02.1998, proc. n.º 97P1191, ..., cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt).
Exige-se a verificação da actuação dolosa não só relativamente aos factos mas também em relação às consequências (neste exacto sentido, cfr. ac. RC 10.03.2004, proc. n.º 4116/03, Serafim Alexandre, disponível em www.dgsi.pt.).
Neste sentido, o Decreto-Lei n.º48/95, de 15.03, referia no seu preâmbulo que “Daí que não seja punível o acto decisório que, pelo jogo combinado de circunstâncias aleatórias, provoca prejuízos, mas só aquelas condutas intencionais que levam à produção de resultados desastrosos. Conceber de modo diferente seria nefasto e obstaria a que essas pessoas de melhores e reconhecidos méritos
receassem assumir lugares de chefia naqueles sectores da vida económica nacional”.

Fica assim claro que a intenção do legislador foi e é que tais crimes têm uma natureza essencialmente dolosa, não só quanto aos actos praticados, em si mesmos, mas também quanto às suas consequências. Ponderou-se e assumiu-se o chamado “risco calculado”.
A verificação da “expectativa fundada” do agente fica impune.
Só é fundada a expectativa do agente quando o dano tenha resultado de causas aleatórias imprevisíveis pelo gestor criterioso e prudente, pelo que é admissível a assunção do risco normal nos negócios.
O acordo (expresso) de todos os cooperantes ou dos órgãos de direcção mandatados para o efeito afasta a tipicidade da conduta do agente. Nas unidades do sector público, o acordo compete, de igual modo, aos órgãos de administração respectivos, salvo em relação a bens públicos indisponíveis (como bens pertencentes ao património cultural).
A comparticipação rege-se pelas regras do artigo 28.º. A qualidade do agente é comunicável aos comparticipantes que a não possuam. O citado preceito legal aplica-se sempre que duas pessoas tomem parte directa na execução ou facto por acordo ou juntamente. Mas se uma pessoa participar na execução do facto com outra (tomar parte directa na execução por acordo com outro) mas lhe faltar uma determinada qualidade para poder ser plenamente autor do crime específico, o artigo 28.º do Código Penal estende-lhe essa característica que assim se lhe “pega”, “contagia”, do seu comparticipante (cfr. ac. STJ de 11.02.1998, proc. n.º 97P1191, ..., cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt).
O crime de administração danosa é uma forma especial do crime de infidelidade.
O regime da reparação integral ou parcial do artigo 206.º é analogicamente aplicável, à imagem do que sucede no crime geral de infidelidade.
A recensão dos autos – maxime o contrato de alienação da Z... e os depoimentos de ... e ... - indicia de forma inexorável que as indemnizações aos administradores ... e ... – computadas em € 158.503,30 – pagas pela Y..., foram indevidamente assumidas porquanto: percorrendo as cláusulas do contrato de cessão de acções e créditos celebrado, não se infere que estes dois administradores seriam destituídos dos respectivos cargos, sendo o abandono dos mesmos uma opção pessoal insusceptível de dar lugar a qualquer indemnização; que, mesmo a julgar-se devida, sempre deveria ser paga pela Z... - in casu os seus adquirentes.
Daqui decorre que a assunção pela Y... deste pagamento, sem fundamento contratual devido, traduziu uma violação expressa da due diligence por parte dos administradores da Y..., ora arguidos, e consubstanciou um dano emergente correspondente à diminuição do património da empresa.
Os próprios arguidos, aquando da sua audição, não expendem argumentação plausível, convincente da sua actuação diligente e criteriosa na tomada de decisão do pagamento das indemnizações.
Por outra banda a testemunha ..., membro dos órgão sociais da Y..., nomeadamente do conselho fiscal, na qualidade de ROC – e inquirido em sede de instrução – corroborou a versão defensional vertida no rai dos arguidos, asseverando que sempre considerou as indemnizações como uma contrapartida da realização da venda das acções da Z.... Contudo, face à não explicação dos pressupostos lógicos desta conclusão, de cariz demasiado genérico, não se nos afigura proficiência a este depoimento para desacreditar o sentido probatório dos demais. Em suma, as testemunhas sustentaram e corroboraram a versão trazida pela assistente, sendo essa, aliás, a única versão constante dos autos, cuja veracidade não se mostra abalada por qualquer outro elemento probatório.
Assim sendo, entende o tribunal que os elementos probatórios do inquérito são suficientes para que forme a convicção, ainda que indiciariamente, de que os factos descritos na acusação, terão efectivamente decorrido tal como aí estão descritos.
Donde se conclui, ser muito provável a futura condenação dos arguidos A..., B... e C..., como co-autores, na forma consumada, do crime de administração danosa, nos termos imputados pelo Ministério Público, pelo que ao abrigo do estatuído no art. 308.º, n.º 1, do cód. proc. penal, se impõe a sua pronúncia.
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Decisão
Nestes termos, e procedendo à avaliação de todo o complexo probatório angariado no processo e aderindo parcialmente às razões de facto e de direito enunciadas nos requerimentos de abertura de instrução, que aqui se dão por reproduzidas nos termos e para os efeitos do estatuído no art. 307.º, n.º 1, do cód. proc. penal, decide-se:
- Não pronunciar os arguidos A..., B..., C..., D..., E…, F..., G..., H... e I..., pelo crime de participação económica em negócio, p. e p. pelo art. 377.º, n.º 1, do cód. penal; e
- Pronunciar os arguidos A..., B... e C..., melhor identificados a fls. 891 e ss., para julgamento perante tribunal colectivo, porquanto:
“Através do Decreto Lei n.º 213-B/92, publicado no Diário da República de 12.10.1992, o Estado Português/Ministério da Agricultura criou, entre outras empresas, a sociedade anónima com a designação de “Z...-, SA” (art°(s) 1°), seguidamente designada apenas por ‘Z...”, referindo-se no preâmbulo do diploma que “Tendo em consideração que tanto o Programa do Governo como as Grandes Opções do Plano consagram as privatizações como uma das medidas da dinamização da economia entendeu-se por bem constituir empresas de âmbito regional, para as quais se transfere a propriedade de várias instalações detidas pelo IROMA” [... 1 “Tendo em conta os objectivos enunciados, o processo de transferência para o sector privado das unidades de abate do IROMA deverá incentivar a participação dos produtores pecuários e dos actuais utentes dos X... públicos no capital social dessas sociedades, visando um melhor equilíbrio do mercado no quadro da concorrência acrescida a que estará sujeito com o aproximar do final do período transitório de adesão à política agrícola comum”.
Assim, para além da criação da empresa, foi para ela transferida, do Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas (IROMA), instituto público, a propriedade dos seguintes bens, no valor global de 490 000 000$00 (cerca de € 2.450.000) a título de realização em espécie de todo o capital da nova sociedade, integralmente detido por esse Instituto:
O Ministério Público recorreu da decisão de não pronunciar os arguidos A..., B..., C..., D..., E…, F..., G..., H... e I... pela prática de um crime de participação económica em negócio, do art. 377º, nº 1, do Código Penal, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«1. A alienação, para sua privatização, de um lote de 551.139 acções, representativas do capital social da Z..., pelo preço global de 143.075.684$00 (ou seja a 259$60/acção, e ceder créditos que detinha sobre esta, no montante de 557.130.128$00 (2.878.712,94 €) pelo preço de 136.924.316$00 (682.975,60 €), perfazendo o valor global de Esc. 280.000.000$00 (1.396.634.10 €), em reduzindo o valor do capital para metade do aprovado pelo Membro do Governo, representante do accionista Estado, constitui imediato e directo prejuízo para este.
2. Não se esgotando no efeito colateral de diminuição da cláusula penal aplicável em caso de eventual e futuro incumprimento de obrigações contratuais.
3. E configura o crime de participação económica em negócio, p. e p. pelo art. 377º nº 1 do Código Penal.
4. Sendo suficientes os indícios quando os elementos probatórios existentes possibilitam efectuar, em julgamento, a demonstração, para além de qualquer dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados na acusação.
5. Decidindo em contrário, a douta decisão instrutória violou por erro de interpretação o disposto nos artigos 377º do Código Penal e 308º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal.
6. Pelo que a douta decisão instrutória deverá ser revogada e substituída por outra que pronuncie todos os arguidos nos termos da acusação deduzida».

8.
Os arguidos H..., I..., D..., A..., B..., F..., E... e G... responderam, pugnando pela manutenção do decidido.

O Sr. P.G.A. junto desta relação pronunciou-se pelo provimento do recurso.

Na sequência do cumprimento do disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P. os arguidos F..., E..., G... e A... responderam.

9.
Entretanto foi junta aos autos certidão do acórdão proferido por esta relação, no âmbito do recurso interposto pelo Estado da sentença proferida no processo 282/04.9TBAVR, e onde se decidiu a ampliação da base instrutória, a reabertura da fase da instrução do processo, a anulação parcial do julgamento e a anulação total da sentença recorrida.

10.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
*
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Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à decisão de não pronuncia pela prática de um crime de participação económica em negócio.
*

À prolação da decisão há que considerar o seguinte:
- Pelo D.L. nº 213-A/92, de 12/10, foi criada a PEC, SA.
- No mesmo diploma foi estabelecida a transferência para esta entidade de todas as participações que o IROMA detinha, nomeadamente, na Z....
- A Z... detinha o X... de Coimbra, o X... de Aveiro e o WW....
- Em 1995 a Z…, SA., constituiu uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS), que adotou a designação de Y..., que tinha por objeto a gestão de participações sociais de outras sociedades, podendo adquirir, alienar ou deter ações e quotas de outras sociedades.
- O seu capital era representado por ações totalmente subscritas pela …, realizado em espécie correspondendo às suas participações nas sociedades Z..., …….., e por entradas em dinheiro.
- Competia à assembleia geral, para além do mais, autorizar a aquisição e alienação de imóveis e participações sociais.
- Com a Resolução 105/96 o Conselho de Ministros confirmou a decisão de privatização das empresas …………………………………...
- Com vista à privatização da Z... procedeu-se à avaliação desta sociedade, tendo o estudo, realizado em 1998 com tal objetivo, concluído que o valor era de 526.000.000$00.
- Esta avaliação foi remetida pela Z... ao Secretário de Estado da Produção Agro-Alimentar.
- No início de 1998, durante o processo de privatização, o conselho de administração da Z... elaborou um memorando onde afirmou, para além do mais, que era indispensável manter os X... de Aveiro e Viseu a funcionar e que a privatização deveria ser feita globalmente, através da alienação conjunta das ações detidas pela … e não X... a X....
- Em meados de 1998 o conselho de administração da Z... elaborou outro memorando, enviado ao conselho de administração da Y..., que, por sua vez, o remeteu ao Secretário de Estado da Produção Agro-Alimentar, onde reafirmava que a privatização deveria ser feita globalmente, através da alienação conjunta das ações detidas pela Y... e não X... a X....
- A venda foi levada a cabo por negociação particular.
- Mostraram-se interessadas na compra da Z... as empresas …………………………………..
- Devido à intenção de alienação da Z... a empresa “W...” foi criada para se candidatar à compra.
- Em reunião de 27-10-1998 o conselho de administração da Y... analisou o processo de privatização da Z..., tendo elaborado um documento com a posição da empresa sobre o processo de privatização, onde se dizia, para além do mais:
. necessidade de privatizar com respeito pelos interesses da região, ressaltando a constituição de uma empresa – “W... -, que correspondia a tais anseios, porque agregava todos os interesses do setor na região;
. o valor da alienação do capital social detido pela Y... na Z... seria de 205.160.000$00 ou 438.987.000$00, conforme a avaliação fosse feita na ótica do rendimento ou na ótica do valor patrimonial.
- O memorando finalizava com as seguintes propostas:
. a venda da Z... devia ser feita pela totalidade das ações detidas pela Y...;
. a venda devia ser feita por negociação particular à empresa “W...”, ou a outra com estatuto equivalente, tendo por base o valor mínimo de negociação de 245.000.000$00.
- Este memorando foi remetido ao Secretário de Estado.
- Com a compra de ações detidas pelos pequenos acionistas a Y... ficou detentora de 91,43% do capital social da Z..., sendo esta a parte do capital social a privatizar.
- Por despacho de 29-12-1998 o Secretário de Estado da Modernização Agrícola e da Qualidade Alimentar aprovou a proposta de privatização da Z..., aprovada pelo conselho de administração da Y..., nomeadamente nos seguintes termos:
. que a alienação fosse pela totalidade das ações e direitos acessórios, em detrimento da venda unidade a unidade;
. quanto ao valor mínimo, ele deveria ter como referência em valor base para a empresa não inferior a 275.000.000$00;
. que o conselho de administração da Y... lhe apresentasse uma proposta acompanhada de parecer do revisor oficial de contas da empresa alienante sob as condições mínimas a respeitar na negociação particular e sobre a composição da comissão negociadora.
- Nesse dia 29-12-1998 foi constituída a empresa “W..., SA”.
- Os arguidos E..., F..., G..., H... e I... intervieram na constituição desta sociedade.
- O arguido E... foi quadro superior da … e na altura era vereador da …., passou a integrar o conselho de administração da sociedade até ao segundo semestre de 1999 e, depois, foi nomeado ……………….. . - O arguido F... integrou o conselho geral da Z... até 1996, em representação do setor comercial de Aveiro e em 1996 passou a integrar a mesa da assembleia geral, onde esteve até à privatização, passando depois a desempenhar funções de vogal do conselho de administração da sociedade “W...”.
- O arguido G... está ligado ao setor da produção de carnes, era um dos responsáveis pela empresa … , e passou a integrar o conselho de administração da sociedade “W...”.
- O arguido H... está ligado há muitos anos à produção de leite e carne e passou a integrar o conselho de administração da sociedade “W...”.
- O arguido I... está ligado há muitos anos à produção de leite e carne e passou a integrar o conselho de administração da sociedade “W...”.
- O conselho de administração da Y..., constituído pelos arguidos A..., D..., B... e C..., aprovou o documento consagrando as condições mínimas a respeitar na venda por negociação particular da Z....
- A informação com a “proposta de condições mínimas a respeitar na negociação particular relativa à venda da participação da Y..., SA, no capital da Z..., SA”, datada de 12-2-1999, foi remetido à apreciação do Secretário de Estado, juntamente com o parecer do fiscal único da Y....
- Desta informação consta, além do mais, o seguinte:
. o valor mínimo da alienação deverá ter como referência o despacho do Sr. Secretário de Estado da Modernização Agrícola e da Qualidade Alimentar, de 29-12-1998, ou seja 275.000.000$00;
. o contrato de venda deverá consignar as seguintes obrigações para a adquirente:
. prestar serviço de abate aos agentes económicos das regiões;
. manter abertos, operacionais e ativos os X... de Aveiro e Viseu, durante pelo menos 5 anos;
. assunção de todas as posições contratuais de que a Z... era parte;
. o não cumprimento das obrigações determinaria a obrigação de pagar à Y..., a título de cláusula penal, o equivalente a 50% do valor global da alienação das ações.
- No parecer elaborado pelo fiscal único da Y..., datado de 12-2-1999, consta o seguinte:
. a Y... detém, pelo menos, 91,39% do capital social da Z... e é detentora de prestações suplementares de 577.130.128$00;
. o capital próprio em 31-12-1997 ascendia a 451.900.329$00;
. a situação líquida em 31-12-1998 rondaria os 468.000.000$00, o que permitia que o negócio se fizesse por negociação particular.
. o relatório de avaliação da Z..., datado de 30-6-1998, aponta para valores de avaliação que variam entre os 205.160.000$00 e 438.987.000$00, consoante o critério adotado seja o do rendimento ou o do valor patrimonial;
. o valor mínimo proposto, de 275.000.000$00, situa-se ligeiramente abaixo da média aritmética – 322073,5 contos – dos limites mínimo e máximo do intervalo dos referidos valores de avaliação apurados;
. atendendo que a entidade adquirente fica obrigada a manter a exploração dos X... que a Z... detem por um período de, pelo menos, 5 anos, assim como a manutenção dos respetivos contratos de trabalho, será a avaliação na ótica do rendimento a que maior peso terá na decisão de compra, pelo que se afigura razoável o valor de 275.000.000$00;
. termina o relatório dizendo que «face ao exposto, a proposta das condições mínimas apresentadas pelo Conselho de Administração da Y... para a alienação da participação social na Z... merece o meu acordo».
- Neste parecer nada foi dito sobre a alienação e o valor a atribuir às prestações suplementares que a Y... detinha na Z..., na ordem dos 577.130.128$00, porque não foi solicitado o seu parecer sobre estas questões.
- As condições mínimas foram aprovadas pelo Sr. Secretário de Estado da Modernização Agrícola e da Qualidade Alimentar por despacho de 24-2-1999.
- Na sequência do despacho de 29-12-1998 do Secretário de Estado da Modernização Agrícola e da Qualidade Alimentar foi criada a “Comissão Negociadora”, integrada, na parte da Y..., pelos arguidos A... e B... e, ainda, por … , e da parte do conselho de administração da adquirente pelos arguidos E..., F..., G..., H... e I....
- Esta comissão estabeleceu as “bases do acordo a celebrar com a sociedade X... das Beiras, SA, da venda, a esta, da posição acionista detida pela Y... na Z..., que eram, nomeadamente:
. preço de aquisição pela posição acionista de 91,43% do capital, correspondente a 551.139 ações, 280.000.000$00;
. a adquirente ficava obrigada a prestar serviços de abate aos agentes económicos das regiões em que situavam as unidades de abate sempre que estas solicitassem, mediante a prática de preços concorrentes de mercado;
. a adquirente obrigava-se a manter abertos, operacionais e ativos os X... de Aveiro e Viseu de forma a garantir a continuidade da prestação de serviços de abate de gado, pelo menos durante 5 anos a contar da data da celebração do contrato de venda das ações, com respeito pelos requisitos impostos pela lei;
. a adquirente obrigava-se a assumir de todas as posições contratuais de que a Z... era parte;
. em caso de incumprimento por parte da compradora, das obrigações referidas, esta constituía-se na obrigação de pagar à Y..., ou a quem lhe sucedesse, a título de cláusula penal, um valor equivalente a 50% do valor global de aquisição das ações.
- O conselho de administração da X... das Beiras disse aceitar as condições mas relativamente à obrigação de manter abertos, pelo menos por 5 anos, os X... de Aveiro e Viseu solicitou que fosse consagrada a possibilidade de constituição de uma unidade industrial de prestação de serviços de abate que substituísse aqueles X..., de modo que em qualquer caso sempre ficaria assegurada a continuidade do serviço.
- Sobre o pagamento, ficou estabelecido que a compradora pagaria 20% do peço aquando da assinatura do contrato promessa, a ser assinado até 18-3-1999, e o restante na data da celebração do contrato de compra e venda.
- Por despacho de 12-3-1999 o Secretário de Estado da Modernização Agrícola e da Qualidade Alimentar aprovou as bases do acordo.
- Em 15-3-1999 o conselho de administração da Y... informou o secretário de Estado que a empresa com quem iria celebrar o contrato de compra e venda das ações seria a “W..., SA” e não “X... das Beiras, SA”, por ainda não estar concluído o processo de alteração da denominação social, informando que as restantes bases do acordo se mantinham.
- Na assembleia geral da Y... de 16-3-1999 foi aprovada a alienação, nos seguintes termos:
. venda do lote das 551.139 ações pelo preço unitário de 259$60, no total de 143.075.684$00;
. cedência, para todos os efeitos legais e sem restrições, dos créditos detidos sobre a Z..., no montante de 557.130.128$00;
. esta cessão seria feita pelo preço de 136.924.316$00.
- Em 18-3-1999 foi celebrado contrato promessa de compra e venda de ações e de cessão de créditos entre a Y..., SA, e a W..., SA, nos seguintes termos:
. a primeira outorgante promete vender à segunda, e esta promete comprar, um lote de 551.139 ações, todas com o valor nominal de 1.000$00, emitidas pela Z..., pelo preço unitário de 259$00 por ação, no total de 143.075.684$00;
. a primeira outorgante promete ceder à segunda, e esta promete aceitar, os créditos que detem sobre a Z..., no valor de 577.130.128$00, resultantes da concessão de suprimentos, efetuada a título de prestações suplementares (que a seguir identifica);
. a cessão de créditos prometida é feita pelo valor de 136.924.316$00;
. a segunda outorgante obriga-se a prestar serviços de abate aos agentes económicos da região em que se situam as unidades de abate propriedade da Z..., sempre que solicitado, por preços concorrentes de mercado;
. manter abertos, operacionais e activos os X... de Aveiro e Viseu, garantindo a continuidade dos abates, por 5 anos a contar da data da celebração do contrato;
. na eventualidade de pretender constituir uma unidade industrial de abate que substituísse um ou ambos os X..., esta pretensão seria previamente submetida à apreciação da Y... ou da entidade que lhe sucedesse, para que esta ajuizasse sobre se a continuidade da prestação de serviços de abate ficaria devidamente salvaguardada;
. garantir o cumprimento do protocolo celebrado entre a Z... e a câmara municipal de Coimbra sobre a venda dos prédios propriedade do X... de Coimbra;
. assumir todas as posições contratuais de que a Z... era parte;
. do contrato de compra e venda prometido constará uma cláusula penal que determinará que o não cumprimento por parte da segunda outorgante das obrigações assumidas a constituirá no dever de pagar à primeira um montante equivalente a 50% do valor global da alienação.
- O contrato definitivo foi feito com base nestes valores.
- Depois deste contrato foi feita vistoria ao WW... em 1-6-1999, tendo os técnicos decidido que ele não reunia as condições para se manter.
- Em 16-6-1999 foi efetuada nova vistoria, tendo os técnicos concluído, de novo, que as instalações não reuniam as condições legais.
- Estes técnicos propuseram que fosse concedida autorização provisória de funcionamento, por 12 meses, condicionada à adpção de algumas medidas urgentes.
- Tendo a proposta sido aprovada, foi feita nova vistoria em 9-10-2002 na sequência da qual os técnicos concluiram, mais uma vez, que as instalações não cumpriam os requisitos técnicos impostos por lei, pelo que não podia ser aprovada para produção sanitária de carnes.
- A sociedade nunca realizou as obras exigidas nas vistorias.
- O WW... foi encerrado em Junho de 2003.
- Em início de Setembro de 2000 iniciou a construção do novo X... de Aveiro.
- O antigo X... de Aveiro também foi encerrado em 7-7-2003.
- Os responsáveis da Z... e da W... nunca submeteram a decisão da construção do novo X... de Aveiro à apreciação da Y....
- Depois da venda da participação social da Y... na Z... à sociedade W... os arguidos E..., F..., G..., H...e I... prescindiram de ... e ..., que integravam o conselho de administração da Z..., antes do final do mandato e sem justa causa para o facto.
- Os arguidos A…, B... e C… deliberaram, em 30-3-1999, que as indemnizações seriam pagas pela Y..., tendo esta pago a ... 13.118.506$00 e a ... 31.777.059$00.

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DECISÃO

Conforme dissemos, o que se discute no presente recurso é a existência, ou não, de indícios da prática de um crime de participação económica em negócio, imputado pelo Ministério Público aos arguidos e afastado pela decisão instrutória.

Dispõe o nº 1 do art. 377º do Código Penal, cuja epígrafe é “participação económica em negócio”, que «o funcionário que, com intenção de obter, para si ou para terceiro, participação económica ilícita, lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe cumpre, em razão da sua função, administrar, fiscalizar, defender ou realizar, é punido com pena de prisão até 5 anos».
Este tipo legal dirige-se aos casos de infidelidade do agente ao cargo que exerce. O funcionário, no exercício das suas funções públicas, ao invés de atuar como zelador dos interesses que lhe estão confiados, abusa dos poderes conferidos pela titularidade do cargo com finalidade lucrativa para si ou para terceiro: não obstante o agente agir no exercício da sua função, função esta norteada pela satisfação do interesse público, o que sucede é que ele, naquela atuação, satisfaz um interesse patrimonial privado, que colide com o interesse que a sua função visa e que, fatalmente, o vem a prejudicar. Nesta tensão o lesado é o interesse público.
O agente do crime tem que ser funcionário, tem que lhe caber o controlo, a defesa, a realização do interesse público, no caso a sua atuação tem que ser motivada pela satisfação do interesse patrimonial privado, próprio ou de outrem, e tem que resultar o nexo entre a função – pública -, do agente e a vantagem patrimonial alcançada ou visada Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo III, 2001, pág.723 e segs..
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No caso o que está em causa é o negócio de venda da posição acionista detida pela Y... na Z....

Tal como resulta da matéria assente a negociação desenvolveu-se ao longo de determinado período de tempo e no seu termo as partes acordaram em determinados pontos, dos quais salientamos os seguintes:
- o preço da venda da posição, correspondente a 91,43% do capital - 551.139 ações -, era de 280.000.000$00;
- o adquirente assumiu o cumprimento determinadas obrigações;
- em caso de incumprimento das obrigações assumidas pela compradora esta constituía-se na obrigação de pagar à vendedora, ou a quem lhe sucedesse, a título de cláusula penal, um valor equivalente a 50% do valor global de aquisição das ações.
Este foi o acordo gisado entre as partes e foi o acordo que a vendedora submeteu à apreciação do Secretário de Estado da Modernização Agrícola e da Qualidade Alimentar, que o aprovou por despacho de 12-3-1999.

No entanto - surpreendentemente, diríamos -, logo em 16-3-1999 a assembleia geral da Y... de 16-3-1999 aprovou a alienação, fixando o preço da venda da posição, correspondente aos mesmos 91,43% do capital e às mesmas 551.139 ações, em 143.075.684$00.
A cláusula penal responsabilizando a compradora pelo incumprimento das obrigações assumidas manteve-se, tal como se manteve o valor da indemnização em 50% do valor global da aquisição. Mas, é obvio, como o valor da aquisição foi reduzido nos termos indicados, a mesmo redução sofreu a cláusula penal, que estava fixada em percentagem do valor final.
Esta alteração ficou plasmada no contrato promessa celebrado dois dias depois, em 18-3-1999 e foi, finalmente, assumida no contrato definitivo celebrado.

O despacho recorrido decidiu pela não pronúncia quanto ao crime de participação económica em negócio essencialmente porque na ação ordinária que corre termos com o nº 282/04.9TBAVR o pedido de indemnização deduzido pelo Estado foi, numa primeira vez, julgado improcedente e, ao invés, foi este condenado a pagar os prejuízos causados à sociedade W....
Este argumento não se pode manter já que aquela sentença foi anulada e determinada a repetição do julgamento.

Mas mesmo que assim não tivesse acontecido, mesmo que aquela decisão se mantivesse, parece-nos que nem por isso a assimilação feita na decisão recorrida seria a mais correta.

O que se discute neste nosso processo é a redução drástica e não explicada dos valores do contrato de venda da participação da Y... na Z... à W..., relativamente aos valores que sempre estiveram presentes durante toda a fase negocial.
Ora, na ação cível não é nada disto que está em discussão. Nesta o que o Estado/Z..., reclama da W... é a indemnização devida pelos prejuízos resultantes do incumprimento das obrigações decorrentes do contrato. Relativamente ao contra-pedido da W..., este deriva do facto de esta defender que o incumprimento se deveu a culpa da vendedora. Por isto pede a redução do preço do negócio.

Portanto, conforme se vê, o objecto da discussão num processo e no outro é completamente diferente: neste nosso processo está em causa a alteração do valor do negócio celebrado, relativamente ao valor que, repete-se, sempre esteve presente durante as negociações; na ação o que está em causa é o incumprimento do contrato celebrado.
São questões totalmente independentes, sendo que a decisão de uma não se impõe na outra. Ou seja, a sorte da ação não decide o desfecho deste processo.

Sobre a não obrigação da consulta à tutela quanto aos termos do negócio – que alguns arguidos referem -, diremos que é, também, completamente irrelevante. Apurar se a Y... era, ou não, obrigada a consultar a tutela sobre os termos do negócio e, portanto, se era ou não obrigada a consultá-la quando decidiu introduzir alterações ao acordado, também não interessa ao caso, pois que não é ao nível da obrigação de consulta que a questão está aqui colocada.
O que o Ministério Público imputou aos arguidos não foi uma falta funcional, decorrente da omissão de consulta obrigatória.
Nada disso.
O que se discute é a alteração de preços do negócio feita de forma abrupta, literalmente de um dia para o outro – vejam-se as datas -, radical – vejam-se os valores em causa -, e não explicada. Traduzindo, o que se discute é saber porque é que o “dono” decidiu fixar em metade o valor do bem que estava a vender, isto depois do comprador ter aceitado pagar o dobro.
O que aqui se discute – repetimos -, é saber dos motivos que levaram o vendedor a vender por X aquilo que estava acordado com o comprador ser vendido por X + Y. O que está em causa é perceber porque é que o vendedor aceitou, no negócio final, desvalorizar enormemente o bem que estava a vender, quando esse bem já tinha sido previamente avaliado por montante muito superior e quando os contratantes tinham acordado neste valor superior.
Desvalorização esta, aliás, que foi decidida pelo vendedor, de moto próprio.
Se os valores inicialmente encontrados, que foram transpostos para as bases do acordo, foram aceites pelos contratantes, havia que saber porque é que esses mesmos valores foram tão substancialmente reduzidos, isto sem que qualquer contrapartida fosse avançada pelo comprador, no sentido de reequilibrar o negócio.
Por esta mesma razão é irrelevante discutir-se o relevo jurídico das “bases do acordo”, ou seja, discutir se o mesmo tinha ou não caráter vinculativo.

Esta explicação faltou e continua a faltar. Não se tratava de valores condicionais, não eram valores sujeito a negociação: eram os valores finais do negócio.
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A instrução visa, diz o nº 1 do art. 286º do C.P.P., a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o Inquérito em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.

É uma fase processual, facultativa, destinada a sindicar a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito ou deduzir acusação.

Nos termos do nº 1 do art. 308º do C.P.P. «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
Nos termos do art. 283º, nº 2, aplicável por via do art. 308º, nº 2, ambos do C.P.P., consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar «uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Não obstante a lei não definir o que sejam “indícios suficientes”, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado. Aliás, a referência que o art. 308º, nº 1, do C.P.P. faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia, conjugada com a noção de “indícios suficientes” do art. 283º, nº 2, inculca essa ideia da suficiência de um juízo de probabilidade Acórdão da Relação de Coimbra de 31-3-1993, CJ 1993, tomo II, pág. 66..
Mas esta probabilidade tem que ser objetiva e tem que ser mais positiva que negativa, ou seja, para além das provas recolhidas indiciarem a prática, pelo agente, do crime, a convição formada tem que ser mais no sentido de o agente ter cometido o crime imputado do que de não o ter cometido. A alta probabilidade de condenação futura tem, pois, que resultar dos indícios do processo.

No entanto, e porque o despacho de pronúncia não é uma sentença condenatória, as provas recolhidas não têm que impor a condenação: elas têm, “apenas”, que impor a continuação do processo até ao julgamento.
«Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido» Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2000, pág. 179..

O processo indicia a prática de um crime de participação económica em negócio e estes indícios são suficientemente fortes impondo, por isso mesmo, a continuação do processo até julgamento.

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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na procedência do recurso revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que pronuncie os arguidos pela prática de um crime de participação económica em negócio, do art. 277º do Código Penal.

Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.



Coimbra, 2012-03-07