Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
439/13.1TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE FACTO
RECURSO
ÓNUS
GRAVAÇÃO
REJEIÇÃO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ERRO NA DECLARAÇÃO
ERRO VÍCIO
Data do Acordão: 01/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 640 CPC, 247, 251 CC
Sumário: 1. A não indicação, com exatidão, das passagens da gravação onde se encontrem os depoimentos, implica a imediata rejeição do recurso da decisão sobre a matéria de facto, não sendo tal vício passível de despacho de aperfeiçoamento – artº 640º nº2 al. a).

2. Porque a lei exige que os meios probatórios invocados pelo recorrente, não apenas sugiram, mas antes imponham, decisão diversa, a alteração pretendida não pode advir da sua subjetiva convicção sobre a prova, antes exigindo uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica e logica do acervo probatório produzido que claramente aponte no sentido oposto ao decidido.

3. No erro na declaração (erro obstáculo) – artº 247º do CC –forma-se, sem erro, uma certa vontade, mas, por lapso, declara-se outra; Já no erro vício (sobre o objeto) – artº 251º - há conformidade entre a vontade real e a que foi declarada: mas a vontade real formou-se em consequência do erro.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

M (…), intentou contra I (…) – COMPANHIA DE SEGUROS, S. A. – cuja denominação social foi entretanto alterada para F (…) – COMPANHIA DE SEGUROS S.A, ação declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário.

Peticionou:

A condenação da ré a pagar-lhe quantia não inferior a €20.684,79, a título de indemnização por danos patrimoniais.

Alegou:

No dia 1 de Abril de 2012, pelas 17:45 horas, quando circulava na Rua Nova, 3060-286 Covões, Cantanhede, sentido Aveiro-Figueira da Foz, deflagrou um incêndio no veículo de matrícula ( ...) DC, marca Ford, modelo Transit, da sua propriedade, tendo sido chamados os Bombeiros Voluntários de Cantanhede ao local e as autoridades policiais, não se tendo contudo evitado que o incêndio se propagasse ao resto da sua viatura e originasse a sua perda total.

 Na viatura eram transportados bens de uma familiar, que a viatura se encontrava coberta por seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório junto da ré e que o incêndio que deflagrou na sua viatura não é da sua responsabilidade.

Após o acidente, foi dado conhecimento do mesmo à ré, a qual colocou à disposição da autora uma viatura de substituição, tendo a ré procedido à peritagem da viatura sinistrada e tendo sido proposto por esta o pagamento do valor de €10.000,00, ficando o salvado na posse da autora, sendo que, por carta de 11.04.2012, a ré considerou concluída a regularização do sinistro e, por carta de 03.07.2012, a ré recuou na posição anteriormente declarada, considerando que as circunstâncias que envolveram a participação não permitem enquadrar as mesma nas coberturas da apólice, assim encerrando o processo.

Desde o dia da devolução da viatura de substituição, viu-se privada da possibilidade de adquirir outra viatura em substituição da sinistrada, reclamando, também, uma indemnização pela privação do uso da viatura por um período de 180 dias, até à propositura da acção, acrescida de €100,00, a título de despesas do processo e ainda de €1.000,00, referente ao valor da carga transportada na viatura.

A ré contestou.

Disse que o capital seguro não corresponde ao valor real do veículo em causa nos autos; desconhece se, à data do incêndio, o veículo pertencia ou não à autora.

Admite ter remetido as cartas constantes da petição inicial, tendo-o feito no pressuposto de que se tratava de um incêndio súbito, fortuito e independente da vontade da segurada, tendo posteriormente alterado tal entendimento por duvidar das circunstâncias em que o evento ocorreu, já que a autora terá ligações a um comerciante de automóveis, de nome (…), o qual estará relacionado com outros eventos em que terão ocorrido incêndios noutras viaturas.

No caso de se considerar que houve um incêndio fortuito, nunca a autora poderá receber mais do que o valor real do seu veículo, sob pena de enriquecimento sem causa, estando em causa um caso manifesto de sobresseguro.

Não tem aplicação, no caso dos autos, o artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 291/2007.

A atender-se ao valor a título de paralisação, nunca o mesmo poderá ser calculado com base nos valores diários pretendidos pela autora, assim como a autora não deverá ser indemnizada pela destruição das mobílias transportadas, já que tais “danos” estão excluídos da cobertura da apólice.

Respondeu a autora.

Disse que o veículo em causa nos autos lhe foi vendido.

A conduta da ré é abusiva, quanto ao que considera ser o “valor real do veículo”, já que a mesma reconheceu indemnizar a quantia de €10.000,00;.

A ré atua em manifesto abuso de direito, já que aceitou segurar o veículo da autora pelo valor de €10.500,00, para receber um prémio equivalente àquele valor, vindo agora referir que o mesmo apenas vale €5.500,00.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de direito invocados, julgo a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condeno a ré F (…) – Companhia de Seguros, S. A. a pagar à autora a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até integral pagamento, absolvendo a ré do demais peticionado pela autora.»

3.

Inconformada recorreu a ré.

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – Improcedência da ação por nulidade da declaração da ré que pôs à disposição da autora  a quantia de 10.000,00€ e/ou existência de sobresseguro.

5.

Apreciando.

5.1.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

Ademais, urge atentar que:

«impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.»

Na verdade:

«A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis…mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República…Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente, aplicável ao recurso de apelação que agora nos interessa:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b), – exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.» - Ac. do STJ de 01.10.2015, p. 6626/09.0TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt.

Assim, estatui, adrede, o artº 640º do CPC:

“1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

Perante o estatuído neste preceito tem-se entendido, por um lado, que:

«A exacta indicação das passagens da gravação…não se identifica com a mera indicação do local, no suporte de registo áudio disponibilizado ao Tribunal de recurso, onde começa e termina cada um dos depoimentos em causa…Daí que ao recorrente…seja mister indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravado o depoimento que pretende utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens, desse depoimento, em que se funda o seu recurso.» - Ac. da RC de 17-12-2014, p.nº 6213/08.0TBLRA.C1 in dgsi pt.

Na verdade:

«…quando os meios de prova invocados como fundamento no erro na apreciação da prova tenham sido gravados, e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à indicação das passagens da gravação em que se funda; não sendo possível, por força dos meios técnicos utilizados para a gravação, a identificação precisa e separada dos depoimentos, o recorrente deve proceder à transcrição dos depoimentos em que se funda (685-B nºs 2 e 4 do CPC)…

De duas, uma: ou o sistema técnico utilizado para o registo da prova pessoal produzida na audiência permite a identificação precisa e separada dos depoimentos ou não; no primeiro caso incumbia à recorrente a indicação das passagens do registo sonoro em que fundamenta a impugnação da matéria de facto; no segundo, competia-lhe proceder à respectiva transcrição.» - Ac. da RC de 06.11.2012, p. 169487/08.3YIPRT-A.C1.

Finalmente:

«. No âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações.» - Acs. do STJ 15.09.2011, p. 455/07.2TBCCH.E1.S1 e de  de 09.02.2012, 1858/06.5TBMFR.L1.S1, aquele citando  Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, pg. 157, nota 333.

Por outro lado, como dimana do já supra referido, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua subjetiva convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ele efetivar uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica, logica e racional, de todo o acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.

Tudo, aliás, para se poder cumprir a exigência de o recorrente transmitir à parte contrária os seus argumentos, concretos e devidamente delimitados, de sorte a que esta possa exercer cabalmente o contraditório – cfr. neste sentido, os Acs. da RC de  29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 16.06.2015, p. nº48/11.0TBTND.C2, ainda inédito; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

5.1.3.

No caso vertente,  a recorrente não cumpre  com suficiência algumas das aludidas exigências formais.

Na verdade, e vistas as suas alegações, verifica-se que nelas, nem nas conclusões, nem sequer, no corpo alegatório, ela  indicou, de todo em todo, isto é, quer o início e o fim dos depoimentos na sua totalidade, nem, muito menos, a parte dos depoimentos em que se fundamenta para se insurgir contra o decidido.

Limitando-se a fazer observações sobre certos passos dos depoimentos das testemunhas sem o situar, quer nas gravações, quer nas transcrições.

Tanto basta, como se viu, para o liminar indeferimento do recurso, neste particular conspeto.

5.1.4.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda e tal questão pudesse ser apreciada, conclui-se que o recorrente não poderia obter aqui ganho de causa.

Perscrutemos.

5.1.4.1.

Quanto ao ponto 1 dos factos provados.

Foi provado:

1) No dia 1 de Abril de 2012, em hora não concretamente apurada, mas no período da tarde, quando a autora circulava na Rua Nova, 3060-286 Covões, Cantanhede, no sentido Aveiro-Figueira da Foz, deflagrou um incêndio na viatura de matrícula ( ...) DC, Ford Transit, de sua propriedade.

A recorrente pretende que se dê como provado o seguinte teor:

“No dia 1 de Abril, 2012, cerca das 18h30m, encontrava-se parada na Rua Nova, 3060-286 Covões, Cantanhede, no sentido Aveiro-Figueira da Foz, a viatura de matrícula ( ...) DC, ardida.”

A julgadora fundamentou-se nos documentos juntos aos autos – fls. 11, 62 e 315 e no depoimento da testemunha (…).

Já a recorrente pretende fazer crer que tal testemunha não estaria no local e que foi indicada posteriormente, em conluio com a autora e (…), e, assim, desvalorizando o seu depoimento. Parecendo até insinuar que o incendio não foi natural ou fortuito, mas provocado.

Mas não há prova bastante para confirmar estas suspeitas.

 Há que convir que muitos incêndios estão, parece que algo estranhamente, associados a veículos vendidos ou propriedade de familiares ou pessoas das relações do Isaías.

Mas a gravidade das insinuações impunha uma convicção firme, ou suficientemente firme, nesse sentido, com base em factos adrede e diretamente invocados.

Esta concreta  e inequívoca alegação factual e sua prova inexistiram.

E o ónus das mesmas impendia sobre a recorrente.

Ademais, a diferente redação pretendida pela insurgente revelar-se-ia  irrelevante ou inócua para a defesa da sua tese.

Certo é que quando os bombeiros chegaram a viatura já estava parada.

Mas encontrando-se numa estrada pública é suposto que tenha circulado até ao local onde se imobilizou.

E, repete-se, a prova produzida quanto à natureza ilícita do incendio não foi consecutida.

Não basta ter razão.

È ainda necessário prová-la, para além da dúvida razoável.

5.1.4.2.

No que tange ao valor do veículo.

Certo é que ele foi vendido ao Isaías por 4.200,00 euros.

E que nos sites atinentes vale cerca de 5.500,00 euros.

Mas é também certo que foi segurado pela ré por 10.500,00 euros.

A ré é uma empresa credenciada no mercado e supostamente conhecedora do valor dos veículos.

Se aceitou fazer o seguro por tal valor é porque considerou que ele corresponderia ao daquele específico automóvel, com as suas caraterísticas próprias.

E este tinha essas caraterísticas, como seja um gerador de refrigeração para transporte de produtos alimentares ou farmacêuticos, como disse a testemunha G ( ...) , perito averiguador de sinistros automóveis.

Ademais, esta  testemunha, e tal como mencionado na decisão,  referiu que o valor seguro aceite por uma seguradora se rege por tabelas na sua posse.

Se a ré aceitou o valor constante no contrato é porque entendeu que o estado do veículo corresponderia ao mesmo.

Finalmente, é óbvio que tal valor acarretou um prémio para a segurada superior ao que derivaria de um valor inferior.

È assim incongruente e inadmissível que tenha aceitado tal montante para efeitos de recebimento do prémio e se queira escapulir à sua responsabilidade em função do mesmo.

Comungamos a seguinte jurisprudência:

«As seguradoras não podem, sob pena de abuso de direito (art. 334 do CC) na modalidade do venire contra factum proprium, opor aos tomadores o valor real depois do sinistro ter ocorrido para evitarem sobre indemnizações, se antes de celebrarem o contrato nada fizeram para o apurar, como o que evitaria celebrar o contrato com sobresseguro (e com os inerentes sobreprémios), apesar de o poderem ter feito com facilidade, se tivessem actuado com um mínimo de diligência que a boa fé lhes impunha (art. 227 do CC).» -  Ac. da RL de  18.04.2013, p. 2212/09.2TBACB.L1-2 in dgsi.pt.

Se a ré mal andou, sibi imputet.

5.1.5.

Decorrentemente, os factos a considerar são os provados na 1ª instância, a saber:

1) No dia 1 de Abril de 2012, em hora não concretamente apurada, mas no período da tarde, quando a autora circulava na Rua Nova, 3060-286 Covões, Cantanhede, no sentido Aveiro-Figueira da Foz, deflagrou um incêndio na viatura de matrícula ( ...) DC, Ford Transit, de sua propriedade.

2) A autora e a ré, por declarações tituladas pela apólice n.º ( ...) , assumindo, respectivamente, a qualidade de tomadora e de segurador, declararam celebrar contrato de seguro, nos termos constantes de fls. 14 a 15 e 69 a 119 dos autos, com inicio em 10.02.2012 e termo em 09.01.2013, renovável anualmente, em que a ré declarou assumir a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo ligeiro misto com a matrícula ( ...) DC.

3) Pela apólice referida em 2), as partes acordaram várias coberturas facultativas, de entre as quais a cobertura por “Incêndio, Raio ou Explosão”, sem qualquer franquia adicional, até ao limite de capital de €10.500,00.

4) A autora deu conhecimento à ré do incêndio referido em 1), a qual colocou à disposição da autora uma viatura de substituição.

5) Por comunicação datada de 10 de Abril de 2012, a ré informou a autora do seguinte:

“(…) Na sequência do contacto telefónico com V. Exa. e no seguimento da peritagem efectuada ao veículo acima indicado, concluíram os nossos serviços técnicos (G ( ...) , S. A.), que face aos danos estimados em  €18638,56, e de acordo com as garantias contratualmente estabelecidas, se impõe a respectiva regularização como perda total.

Neste contexto, colocamos à disposição de V. Exa. o montante de €10.000,00, ficando o salvado na posse do proprietário.

Esclarecemos ainda que a melhor proposta para aquisição do salvado foi de €500,00, e apresentada por (…).

Deverão ainda proceder à entrega da viatura de substituição até 13/04/2012, em conformidade com o disposto nas condições particulares da apólice em causa.”.

6) Por comunicação datada de 11 de Abril de 2012, a ré informou a autora do seguinte:

“(…) Nesta data damos por concluída a regularização do sinistro em referência.

Esperamos que o nosso serviço tenha correspondido às suas expectativas.

Considerando a perda total do veículo seguro, deixa de existir o objecto do contrato, pelo que anularemos a sua apólice que fica sem efeito desde a data do sinistro, nos termos das respectivas condições gerais. (…)”.

7) Por comunicação datada de 3 de Julho de 2012, a ré informou a autora do seguinte:

“(…) Concluída a instrução do nosso processo, consideramos que as circunstâncias que envolveram a ocorrência participada, não nos permitem enquadrar a mesma numa das coberturas da apólice acima identificada.

Neste contexto, informamos que vamos encerrar de imediato o nosso processo sem proceder à regularização dos danos reclamados, sendo-lhe sempre possível, caso assim o entenda, recorrer à via judicial (…).”.

8) O veículo referido em 1) transportava um terno de sofás e uma máquina de lavar roupa, pertencentes a uma familiar.

9) A autora participou à ré um incêndio ocorrido no dia 15 de Julho de 2009 na viatura de marca BMW, modelo 3200, com a matrícula ( ...) FJ, segurada na ré pela apólice n.º ( ...) .

10) No dia 11 de Fevereiro de 2012, pelas 21h15, na localidade de Tabuaço, ocorreu um embate frontal entre o veículo de matrícula ( ...) GX, conduzido pela autora e segurado na ré, e o veículo de matrícula ( ...) QO, conduzido por (…), segurado pela Companhia de Seguros “A ( ...) ”, tendo-se incendiado o veículo QO.

11) Tanto a autora como (…) têm uma ligação, não concretamente apurada, a (…)um comerciante de automóveis de Mira.

12) Resulta da cláusula 1.ª do capítulo I das Condições Gerais do Contrato de Seguro referido em 2) que sinistro consiste na “verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura de risco previsto no contrato (…)”.

13) Dispõe a cláusula 2.ª relativa a “Incêndio, Raio ou Explosão” da cobertura facultativa do Contrato de Seguro referido em 2) que “A presente Condição Especial garante ao Segurado, nos termos constantes das Condições Particulares, o ressarcimento dos danos causados ao veículo seguro em consequência de incêndio”.

14) Resulta da cláusula 3.ª das Condições Especiais referentes a “Incêndio, Raio ou Explosão” do Contrato de Seguro referido em 2) que se encontram excluídos do risco os danos “provocados por incêndio que tenham origem em acto ou omissão que traduza dolo, culpa grave ou negligência grosseira do Tomador do Seguro, do Segurado, do Condutor ou de pessoas que com ele coabitem (…)”.

15) Resulta da cláusula 5.ª, n.º 4, alínea b) do Contrato de Seguro referido em 2) que “Excluem-se igualmente da garantia obrigatória do seguro: Os danos  causados nos bens transportados no veículo seguro, quer se verifiquem durante o transporte quer em operações de carga e descarga”.

16) Resulta das Cláusulas Particulares do Contrato de Seguro referido em 2) o seguinte “Veículo de Substituição – Número de dias de privação de uso contratados: 30”.

5.2.

Segunda questão.

Para a validade e eficácia de um negócio jurídico mister é que a vontade dos outorgantes seja livremente formada, esclarecida  e sã, em si mesma, e por reporte ao objeto visado.

Se o não for a lei comina o negócio de nulo, anulável, ou ineficaz.

De entre os vícios da vontade, e no que para o caso interessa, consta o erro motivo ou erro vício sobre o objeto do negócio – artº 251º do CC.

Este erro distingue-se do erro na declaração (erro obstáculo) – artº 247º do CC – porque neste forma-se, sem erro, uma certa vontade, mas, por lapso, declara-se outra: a declaração negocial tem um conteúdo diferente do que foi pretendido.

Já no erro vício há conformidade entre a vontade real e a que foi declarada: somente a vontade real formou-se em consequência do erro.

A profunda semelhança entre os casos de erro na declaração e erro vício permite compreender a identidade de tratamento/cominação para ambos: a anulabilidade do negócio. – cfr. P. Lima e A. Varela CC Anotado, 2ª ed. ps. 216/218.

Por outras palavras, e quanto ao erro sobre os motivos:

«O erro-vício ou erro-motivo, que se traduz num erro na formação da vontade e do processo de decisão, existe quando ocorre uma falsa representação da realidade ou a ignorância de circunstâncias de facto ou de direito que intervieram nos motivos da declaração negocial, de modo que, se o declarante tivesse perfeito conhecimento das circunstâncias falsas ou inexactamente representadas, não teria realizado o negócio ou tê-lo-ia realizado em termos diferentes» - Ac. do STJ  de 20.05.2010, p. 3655/1998.L1.S1 in dgsi.pt, como os infra referidos.

Para que este erro releve importa:

- que o mesmo se mostre determinante/essencial - essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro – para a formação da vontade e emissão da correspondente declaração negocial;

- que o declaratário conheça ou devesse conhecer essa essencialidade.

Sendo que o ónus da prova de tais requisitos impende sobre o enganado (o deceptus) – cfr.  Ac. do STJ  cit.;  de  27.05.2010, p. 237/05.6TBSRE.C1.S1; e de 15.05.2012, p. 5223/05.3TBOER.L1.S1, in dgsi.pt.

Importando ainda reter que:

« Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste…»

E que:

«A essencialidade do erro (ou do dolo) deve ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante ou do contraente enganado…» - Ac. do STJ de 20.01.2005, p. 04B4349 e P. Lima e A. Varela, ob. cit. p.218.

Por seu turno estatui o artº 132º Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril:

1 — Se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato.

No caso vertente e atento o alegado pela recorrente, mais do que o erro na declaração do artº 247º, estaríamos perante o erro sobre o objeto do negócio do artº 251º.

Vício que acarretaria a anulabilidade, e não nulidade, do negócio.

Porém, e como ressuma dos factos apurados, nenhum dos mesmos alcandora e fundamenta o pedido da recorrente.

Nem na vertente da anulabilidade, pois que nenhum facto concreto nuclear, ou circunstancial, que apontasse nesse sentido, se apurou; nem no que se reporta ao sobresseguro, pois que não conseguiu provar que aquele concreto veículo valia os montantes que alegou, sendo que o valor constante  no contrato foi  por si aceite  e, inclusive, com base nele admitiu inicialmente indemnizar a autora.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

6.

Sumariando.

I - A não indicação, com exatidão, das passagens da gravação onde se encontrem os depoimentos, implica a imediata rejeição do recurso da decisão sobre a matéria de facto, não sendo tal vício  passível de despacho de aperfeiçoamento – artº 640º nº2 al. a).

II - Porque a lei exige que os meios probatórios invocados pelo recorrente, não apenas sugiram, mas antes imponham, decisão diversa, a alteração pretendida não pode advir da sua subjetiva convicção sobre a prova, antes exigindo uma análise concreta, discriminada, objetiva, crítica e logica do acervo probatório produzido que claramente aponte no sentido oposto ao decidido.

III - No erro na declaração (erro obstáculo) – artº 247º do CC –forma-se, sem erro, uma certa vontade, mas, por lapso, declara-se outra; Já no erro vício (sobre o objeto) – artº 251º -  há conformidade entre a vontade real e a que foi declarada: mas a vontade real formou-se em consequência do erro.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2016.01.12.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos