Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | CRISTINA NEVES | ||
| Descritores: | TRANSAÇÃO ALIENAÇÃO DE IMÓVEL PODERES PARA O ATO RATIFICAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO LOCAL CÍVEL – JUIZ 1 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | ANULADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 256.º, 258.º 262.º, 268.º, 1161.º E 1248.º DO CÓDIGO CIVIL ARTIGO 44.º, N. 1, 283.º, N.º 3 E 284.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL | ||
| Sumário: | I- Resulta do disposto no artº 283, nº3, do C.P.C. que é lícito às partes em qualquer estado do processo transigir sobre o objecto da causa, mediante a celebração de um negócio jurídico de direito privado, que as partes fazem valer no processo, com vista à resolução de um litígio, mediante recíprocas concessões (artº 1248, nº1, do C.C.).
II-Estas recíprocas concessões “podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.” (artº 1248, nº2 do C.C.). III- Nestes termos, é admissível que com vista à resolução do litígio que opunha as partes – direito à servidão de passagem e restituição da posse dessa servidão - as partes acordem na alienação do prédio encravado aos proprietários do prédio serviente. IV- No entanto, sendo o negócio celebrado por representante dos proprietários, é necessário que este tenha poderes para aquele acto (de promessa de alienação de imóvel) ou, não os tendo, o acto seja ratificado pelos titulares do direito, seus representados, uma vez que os poderes forenses especiais não abrangem a prática de actos não expressamente contidos no objecto do processo. V- Não sendo o acto praticado pelo mandatário forense sem poderes, ratificado pelos seus representados, é ineficaz perante estes (artº 268, nº1 do C.C.). (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | ***
Recorrentes: AA e BB Recorridos: CC DD Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves Juízes Desembargadores Adjuntos: Emília Botelho Vaz Francisco Costeira da Rocha * Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
RELATÓRIO AA e marido BB, vieram interpor providência cautelar para restituição provisória da posse contra CC e mulher DD, peticionando que fosse “ordenada a restituição aos Requerentes, da posse da servidão de passagem identificada de 6.º a 17.º da PI, bem como condenar-se os requeridos a absterem-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o acesso dos requerentes, a pé e de carro (trator e maquinas) ao seu prédio referido em 1.º da mesma PI, através da mesma faixa de terreno identificada de 6.º a 17.º, para tal, condenando-se ainda os requeridos a retirarem do leito da servidão as pedras e troncos de madeira a que aludem os artigos 25.º e 26.º da P. I, de forma a deixarem livre a referida passagem.” Juntou procuração com poderes especiais nos seguintes termos: * Deduzida oposição pelos requeridos e prosseguindo os autos, procedeu-se à designação da diligência de inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, para 08/09/2025, no decurso da qual os seus Ilustres Mandatários, com procuração com poderes especiais, vieram apresentar a seguinte: “TRANSAÇÃO -1.º - Os requerentes AA e BB, obrigam-se a vender o prédio urbano, terreno para construção identificado no artigo 1º da petição inicial, correspondendo à parcela de terreno para construção urbana com a área de 1677,98 m2, descrita na conservatória do registo predial sob a descrição n.º ...41 da freguesia ..., ..., e inscrição matricial sob o artigo 4388 da respetiva freguesia e concelho. -2.º - Tal venda será efetuada pelo preço de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros). -3.º - A escritura pública ou documento particular equivalente será outorgado num prazo máximo de 30 dias, cabendo o seu agendamento aos requeridos mediante interpelação via "email" ao mandatário dos requerentes. -4.º - Mediante a presente transação os requeridos desistem da presente oposição, e os requeridos desistem do direito da ação principal, concluindo as partes que a transação supra consubstancia uma condição de impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, nada mais tendo as partes a reclamar entre si, seja a que título for. -5.º- Com o presente acordo os requerentes também desistem de todos os procedimentos criminais em curso quanto aos factos relacionados com os presentes autos, designadamente o processo de inquérito nº 450/25...., e outros que possam estar distribuídos ou a distribuir. -6.º- Custas, em partes iguais, com dispensa recíproca das custas de parte.” * De seguida, foi proferida a seguinte sentença: “SENTENÇA = No presente procedimento cautelar especificado, de Restituição Provisória de Posse, em que são requerentes, AA e BB, e são requeridos CC e DD, todos devidamente representados pelos seus Ilustre Mandatários, com procuração com poderes especiais a fls. 25 verso e na ref. 51607497, encontrando-se presente o requerido CC, vieram estes transigir nos termos acima exarados. – A referida transação corporiza o acordo a que chegaram as partes sobre o todo o objeto da lide. - Pelo exposto, de harmonia com o disposto no art. 1248.º do Código Civil e, n.º 2 do art. 283.º, 284.º, n.º 1 do art. 289.º, 290.º, todos do Código de Processo Civil, homologo por sentença a transação constante dos autos e, em consequência, condeno as partes a cumpri-la nos precisos termos dela constantes. - Em consequência, julgo extinta a instância, ao abrigo do disposto na al d) do art. 277.º do Código de Processo Civil, e em consequência, dou sem efeito a presente audiência final designada para o dia de hoje. – Custas em conformidade com o acordado, nos termos do n.º 2 do art. 537.º do Código de Processo Civil.” * Com data de 12/09/2023, o Ilustre mandatário dos Requerentes veio aos autos informar que os seus representados manifestaram ser contrários aos termos da designada transacção, pretendendo a sua anulação. Juntou substabelecimento a favor de outra Advogada. * Por sua vez, a requerente veio por requerimento aos autos, datado de 13/09/25, requerer a anulação da “obrigação de venda” por não ter dado autorização para o negócio, nem o pretender, nem tal ter sido acordado com o seu mandatário. * Em 24/09/2025 vieram os requerentes interpor recurso da sentença homologatória, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem: “1. A transação dos autos é ineficaz porque foram excedidos os poderes conferidos ao Senhor Advogado pela procuração que foi outorgada; 2. A Recorrente AA não esteve presente nem consentiu na celebração da transação, pelo que a mesma sempre seria anulável por faltar aquele consentimento; 3. O Tribunal recorrido violou na sua decisão o preceituado nos artigos 268.º do Código Civil, 48.º do Código de Processo Civil, 236º e 238º do Código Civil, 1682-A/1/a) do Código Civil e 289.º do Código Civil. Nestes termos e nos demais de Direito, Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser anulada a decisão recorrida que homologou a transação judicial celebrada em 08/09/2025, e ser determinado o prosseguimento dos autos, com a continuação da apreciação da lide.”
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QUESTÕES A DECIDIR Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2] Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apreciar: ***
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A matéria de facto a considerar é a referida no relatório.
*** FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Insurgem-se os recorrentes contra a decisão que homologou a transacção, invocando que o Advogado não tinha poderes para vincular os requerentes à venda do imóvel aos requeridos, nem a requerente deu o seu consentimento à venda, pelo que a transacção sempre seria anulável. Decorre do disposto no artº 283, nº3, do C.P.C. que é lícito às partes em qualquer estado do processo transigir sobre o objecto da causa, mediante a celebração de um negócio jurídico de direito privado, que as partes fazem valer no processo, com vista à resolução de um litígio, mediante recíprocas concessões (artº 1248 nº1 do C.C.). Se em regra as recíprocas concessões se contêm no objecto do processo e no direito controvertido, o nº2 do artº 1248 do C.C., explicita que estas recíprocas “concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.” Por assim ser, dispõe o artº 284 do C.C. que a transacção modifica o pedido ou faz cessar a causa nos precisos termos em que se efectue. É assim admissível que com vista à resolução do litígio que opunha as partes – direito à servidão de passagem e restituição da posse dessa servidão - as partes acordem na alienação do prédio encravado aos proprietários do prédio serviente. Condição sine qua nom é que, sendo o negócio celebrado por representante dos proprietários, aquele tenha poderes para o acto ou, não os tendo, este venha a ser objecto de ratificação pelos titulares do direito, os representados. No caso em apreço, o negócio foi celebrado por Advogado munido de procuração emitida pelos requerentes, dela constando poderes especiais para transigir e desistir, receber quantias e dar quitações. De acordo com o texto desta procuração, detinha o Ilustre Advogado poderes conferidos pelos mandantes para transigir sobre o objecto do processo. Questão diversa é se nestes poderes se incluíam os poderes necessários para, em nome dos requerentes, seus representados, acordar na promessa de transmissão do imóvel encravado aos requeridos. Ora, conforme resulta do disposto no artº 262, nº1, do C.C., a procuração é um negócio jurídico pelo qual alguém confere a outrem poderes de representação e que pode ou não coexistir com o mandato. Com efeito, a doutrina e a jurisprudência estabelecem uma distinção entre representação e mandato. Elemento verdadeiramente característico do mandato é a obrigação de o mandatário realizar o(s) acto(s) jurídico(s) objecto do mandato por conta do mandante e sujeito aos deveres elencados no artº 1161 do C.C.. Já na representação voluntária, quando a procuração não está associada a um contrato de mandato, o representante não está vinculado à prática de qualquer acto, embora se encontre habilitado a praticá-los. Nesse caso, actua perante terceiros em nome do representado e os efeitos jurídicos dos negócios por aquele realizados, nos limites dos seus poderes, produzem-se, conforme resulta do artº 256 do C.C., na esfera jurídica do representado. A propósito desta distinção, refere Januário da Costa Gomes[3], que “pode haver mandato sem representação” e “representação sem mandato” mesmo na representação voluntária, defendendo que o “conferimento de poderes representativos não é necessariamente cumulativo com o contrato de mandato, processando-se autonomamente através da procuração” que para este autor constitui a fonte natural da atribuição destes poderes representativos. No entanto, como ensina Menezes Cordeiro[4] “a lei pressupõe que, sob a procuração, exista uma relação entre o representante e o representado, em cujos termos os poderes devam ser exercidos: veja-se a tal propósito, o artigo 265.º/1. Teoricamente, poderíamos assistir a uma atribuição puramente abstracta de poderes de representação; todavia, tal “procuração pura” não daria, ao procurador, qualquer título para se imiscuir nos negócios do representado. A efectiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe, pois, um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio-base.” Nestes termos, conforme se refere no Ac. do STJ de 13/05/2021[5] “A procuração é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa confere a outra poderes de representação, isto é, para, em nome dela, concluir um ou mais negócios jurídicos (art. 262º, nº 1; o mandato, diversamente, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (art. 1157º) (…) A procuração é, pois, o acto pelo qual alguém confere a outrem poderes de representação, tendo por consequência que, se o procurador celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram dados esses poderes, o negócio produz os seus efeitos em relação ao representado (…) O mandato é independente da procuração, podendo ser com representação (arts. 1178º e segs.) ou sem ela (arts. 1180º e segs.) (…) A procuração, salvo disposição legal em contrário, tem de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (art. 262º, nº 2), ao passo que o mandato não está sujeito a forma especial, podendo, por isso, ser concluído livremente, nos termos gerais (CC, art. 219º)”. No entanto, não sendo essencial à existência do mandato a outorga de procuração, esta é, no entanto, o meio adequado ao exercício do mandato. No mandato judicial ou forense, resulta do disposto no artº 43 do C.P.C. que este pode ser conferido por: “a) Por instrumento público ou por documento particular, nos termos do Código do Notariado e da legislação especial; b) Por declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo.” Por sua vez, o artº 44, nº1 do C.C. dispõe que: “1 - O mandato atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os atos e termos do processo principal e respetivos incidentes, mesmo perante os tribunais superiores, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais por parte do mandante.” Quer isto dizer que o mandato forense é um mandato com representação, em que o mandatário é também o representante do mandante, praticando os actos jurídicos em seu nome e em sua representação. Se estes actos se contiverem no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos, o negócio jurídico celebrado pelo mandatário com representação, produz os seus efeitos em relação ao representado, de acordo com o disposto no artº 258, do C.C.. Conforme se refere o Acórdão do TRL de 30/11/2006[6] “Para que da representação resulte a inserção directa e imediata do acto na esfera jurídica do representado, é necessário que o representante aja em nome do representado e o acto caiba nos poderes conferidos ao primeiro pelo segundo.” Se não se incluir no âmbito dos poderes conferidos pelo representado ao seu representante, o negócio é ineficaz em relação àquele, se não for por ele ratificado (cfr. resulta do disposto no artº 268, n.º 1, do C.C.). Volvendo ao Acórdão do TRL acima citado, “(a) falta de poderes de representação a que este normativo se reporta é susceptível de derivar quer da inexistência de procuração válida quer do facto de o representante exceder os poderes dela constantes.” Nestes termos, a ineficácia do negócio só é afastada se for ratificado pelo representado, a qual terá de revestir a forma exigida para a procuração, no caso em apreço forma escrita. Justifica-se esta possibilidade conferida pela lei de ratificação de actos celebrados pelo representante sem poderes, na medida em que, conforme refere Ana Prata[7], casos há em que “o representado se encontra, por qualquer causa, impossibilitado de se ocupar diretamente do negócio e de constituir procurador para o efeito (…).”, sendo no entanto, do seu interesse a manutenção do negócio. Neste caso o risco da ineficácia do negócio corre por conta da outra parte que com o representante sem poderes celebrou o negócio e que se não certificou da existência ou suficiência destes poderes. Ora, volvendo ao caso em apreço, os poderes forenses conferidos ao Advogado eram apenas os referentes à desistência e transacção, ao recebimento de quantias e a dar quitação desse recebimento. Estes poderes para desistir e transigir referidos neste instrumento referem-se apenas ao direito controvertido em discussão no processo, mas não incluem outros direitos não contidos no objecto do processo. Como bem se fez consignar no Acórdão do TRE de 27/03/2014[8] “os poderes gerais e especiais atribuídos ao mandante são poderes forenses, para agir em Juízo, que não incluem poderes de representação extrajudicial, que não tenham a ver com a condução e resolução da lide, como a prática de actos extrajudiciais em nome do mandante para que sejam exigidos poderes de representação específicos (…)”. Nestes termos, detendo o Ilustre Mandatário poderes especiais para transigir sobre o objecto do litígio, o negócio contido na transacção, que consubstancia uma promessa de alienação de imóvel propriedade dos requerentes aos requeridos, extravasa esse objecto, pelo que, não se mostra contido nos poderes forenses especiais conferidos ao mandatário. Assim sendo, é este negócio ineficaz em relação ao representado, não produzindo qualquer efeito na sua esfera jurídica, porque não ratificado pelos representados[9]. Com efeito, a representada veio por requerimento aos autos comunicar a não ratificação do acto, requerendo pelo contrário a anulação da “decisão de venda do terreno” por não ter dado o seu acordo, nem tal ter sido conversado com o mandatário judicial, posição que ambos os representados reafirmam em sede de recurso. Nestes termos, porque o acto é ineficaz perante os representados e a nulidade se não mostra suprida, procede a apelação, anulando-se a sentença que homologou a transacção, com o consequente prosseguimento dos autos. ***
DECISÃO *** Custas pelos recorridos por terem decaído no recurso (artº 527 nº1 do C.P.C.). Coimbra 20/11/25
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