Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
949/18.4T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ANULAÇÃO
ERRO VÍCIO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PREÇO
CONFISSÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DE PROVA
RESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 03/31/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.247, 251, 289, 290, 349, 363, 369, 371, 372, 376, 393, 394, 879 CC, 607 CPC
Sumário: 1. Quando houver determinado circunstancialismo, por exemplo um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória inserta numa escritura pública de compra e venda, ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração (confessória), por exemplo, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço ou que o preço real foi diferente do aí declarado.

2. Tal princípio de prova pode ser corporizado pelo contrato-promessa celebrado entre as partes e que infirmava a veracidade da declaração inserta na escritura pública relativamente ao montante da totalidade do “preço”, apresentando-se, então, a prova testemunhal ou o recurso a presunções judiciais como complemento dessa prova indiciária.

3. O erro-vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio, de tal forma que se o declarante estivesse esclarecido acerca dessa circunstância não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou.

4. O erro-vício constituirá motivo de anulabilidade quando seja essencial, por haver determinado a própria celebração do negócio (levou o errante a concluir o negócio, ´em si mesmo` e não apenas nos termos em que foi concluído).

5. Anulada a compra e venda, as obrigações recíprocas de restituição que incumbem às partes por força da anulação do negócio devem ser cumpridas em simultâneo (art.ºs 289º e 290º do CC).

6. Sob pena de se transmutar um contrato de compra e venda anulado num contrato de arrendamento, ao nível da respetiva eficácia, sem fundamento legal e ao arrepio da vontade das partes, sendo possível a restituição em espécie, não deve ser ponderado o benefício que a A. obteve com a utilização do imóvel a restituir, tanto mais que, não lesando por qualquer forma o direito dos Réus, ficou, durante o mesmo período temporal, também desprovida do preço correspondente.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. F (…) instaurou a presente açcão declarativa comum contra A (…) e B (…) pedindo a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, em 11.5.2017, e consequente condenação dos Réus à devolução do preço de € 59 500 e pagamento da quantia de € 2 695 (indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais).

Alegou, em síntese: adquiriu aos Réus a fracção urbana aludida no art.º 9º da petição inicial (p. i.) pelo preço de € 59 500, tendo os vendedores declarado encontrar-se a mesma livre de ónus e encargos; após a venda, teve conhecimento que corria termos na Câmara Municipal de (…) um processo administrativo contra os Réus, por construção de uma parte dessa fracção sem licenciamento; tais obras não são passíveis de licenciamento, impondo-se a sua demolição, que irá abranger cerca de metade da sua área, deixando-a sem qualquer utilidade para a A.; caso conhecesse a existência de tal processo administrativo, não teria adquirido a fracção, tendo agido com erro relativamente ao objecto do negócio; o dito negócio causou-lhe danos patrimoniais (pagamento do preço da fracção, despesas da escritura e imposto de selo) e não patrimoniais.

Os Réus contestaram e reconvieram, alegando, nomeadamente: o prédio em questão fora constituído em propriedade horizontal; venderam a fracção D e executaram obras na fracção B, que licenciaram; quando decidiram vender a fracção B, o proprietário da fracção D apresentou uma queixa na Câmara Municipal, imputando-lhes a realização de obras não licenciadas; não esconderam à A. o que se passava relativamente à fracção quando esta manifestou interesse na sua aquisição, dando-lhe a conhecer que estava em curso um processo na  CM(...), tendo sido a A. quem insistiu na aquisição; atendendo ao facto de estar pendente no Município de (…) a queixa apresentada pelo proprietário da fracção D, reduziram o preço para € 40 000; já haviam vendido a fracção quando foram notificados da intenção de demolição, desconhecendo, até então, se as obras eram ou não passíveis de licenciamento; colaboraram com a A., com ela tendo desenvolvido várias diligências, com vista a obter uma solução que impedisse a demolição; caso venha a ser anulado o contrato de compra e venda, a A. deverá liquidar o montante de € 350 por cada mês que ocupou a fracção e os juros até integral pagamento.

Concluíram pela improcedência da acção e, caso assim não suceda, que a A. deverá ser condenada a pagar-lhes, a título de “indemnização”, a quantia de € 350 por cada mês desde a ocupação da fracção até à sua entrega aos Réus/Reconvintes, e os respectivos juros moratórios. Pediram ainda a condenação da A. como litigante de má fé, em multa e indemnização a seu favor.

A A. replicou concluindo como na p. i. e pela improcedência do pedido reconvencional.

 Foi proferido despacho saneador que firmou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

 Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 22.8.2019, julgou a acção procedente e improcedente a reconvenção, e, em consequência: declarou anulado o negócio (contrato de compra e venda de imóvel) celebrado em 11.5.2017, mencionado no ponto 10 dos factos provados, condenando os Réus a restituírem à A. o preço por esta pago, no valor de € 59 500 (cinquenta e nove mil e quinhentos euros) e a pagarem à A. a quantia indemnizatória de € 2 320 (dois mil trezentos e vinte euros), acrescida do valor, a liquidar ulteriormente, relativo às despesas por aquela suportadas com a celebração do mesmo contrato; absolveu a A./reconvinda do pedido reconvencional.

Inconformados, os Réus apelaram formulando as seguintes conclusões:

(…)

            A A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa reapreciar: a) impugnação da decisão relativa à matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito, cuja modificação depende, sobretudo, da eventual alteração da decisão de facto.       


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1. A A., no início do ano de 2017, começou a procurar casa para habitação própria permanente, com o intuito de proceder à sua aquisição, para aí viver com sua mãe.

2. Mas o imóvel a adquirir não podia ser localizado em pisos superiores, devendo, no essencial, ser uma superfície plana, atentas as limitações de locomoção da sua mãe.

3. Dado que se aproximava a data de cessação de um contrato de arrendamento da sua mãe, que não o pretendia renovar, e o facto de ainda não ter encontrado um imóvel com as condições pretendidas, uma senhora sua conhecida informou-lhe que os réus estariam a vender um imóvel e que poderia agendar uma visita para ver se lhe agradaria, pelo que a A. entrou em contacto telefónico com os Réus e agendou com os mesmos uma visita ao imóvel.

4.  Nessa visita foi-lhe mostrado um apartamento situado no rés-do-chão, com superfície plana, uma área razoável, composto por dois quartos, dois wc, uma cozinha, garagem de grandes dimensões, sala de jantar e sala de estar.

5. Foi igualmente dito pelos Réus que o pequeno canteiro sito na frente esquerda da porta de entrada do imóvel pertencia à fracção, podendo usar o mesmo.

6. A A., após a visita e os esclarecimentos prestados, considerou que o imóvel continha as características pretendidas e por esse motivo, após negociações, acordou com os Réus, os trâmites em que seria efetuada a compra e venda.

7. Nesse desenvolvimento, em 27.4.2017, entre a A., na qualidade de promitente compradora, e os Réus, na qualidade de promitentes vendedores e proprietários do imóvel referido em 4., foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda relativamente à fracção autónoma designada pela letra “B”, destinada a habitação, correspondente ao rés-do-chão direito, com uma garagem e arrumos, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua  (...), n.º 152, Bairro da  (...), (…), da União de Freguesias de (…) , descrito na CRP de (…) sob o n.º 1162 e inscrito na matriz predial de (…) sob o art.º  2462, tendo os Réus sido representados na celebração do referido contrato pela sua filha, G (…) , com procuração com poderes para o efeito.

8. Do referido contrato consta que o preço global de venda seria de € 59 500 (cinquenta e nove mil e quinhentos euros), liquidando a título de sinal o valor de € 19 500 (dezanove mil e quinhentos euros) e o remanescente de € 40 0000 (quarenta mil euros) aquando da realização de escritura pública de compra e venda.

9. Desde essa data, a A. tomou posse do bem, por forma a realizar as mudanças e deixar o apartamento arrendado onde habitava a sua mãe, até ao final do mês de abril de 2017, passando assim a usá-lo, fruí-lo e habitá-lo normalmente.

10. Posteriormente, em 11.5.2017, mediante escritura pública denominada de compra e venda, os Réus declararam vender à segunda outorgante (A.) a fracção autónoma identificada em 4. e 7. “pelo preço de quarenta mil euros, que já receberam”.

11. Mais declararam que o “imóvel é vendido livre de ónus ou encargos”, tendo sido exibido, além da licença de utilização, o certificado energético SCE147463025.

12. Em 10.02.1978, no Cartório Notarial de (…)(livro B-24, fls. 78) foi constituída a propriedade horizontal do prédio em 4 fracções, designadamente de “A” a “D”, tendo o Réu ficado proprietário das fracções “B” e “D”: a) - Fracção “B”: r/c direito com garagem e arrumos com a área de 68 m2 coberta (imóvel em causa nos presentes autos); e b) - Fracção “D”: 2º andar com quatro quartos, dois wc e uma cozinha e parte comum.

13. Na referida escritura menciona-se que é comum o logradouro, a entrada para o 1º e 2º andar pela via pública e canalizações.

14. Da memória descritiva integrante do processo de obra datado de 12.7.2005, com o n.º 09.437/2005, consta o seguinte: “A obra que se pretende realizar terá 4,15 m de frente e 3,60 m de profundidade e alinha a sua construção pelo limite de terreno encostado ao muro. A altura será de 2,70 m com pé direito livre de 2,40 m com cobertura plana. O interior tem um compartimento sendo para garagem. A área de construção será de 15 m2”;

15. Em 05.12.2005 foi diferida a construção, devendo no prazo máximo de um ano requerer a emissão de alvará, sendo que foi emitido o alvará de obras de construção n.º 552/2006, o qual continha os seguintes parâmetros: - “Tipo de construção: anexos. Área de construção: 12 m2; Volume de construção: 42 m3; Cércea: 2,80 m; N.º de divisões de fogo: 1; Uso a que se destina a edificação: garagem; Prazo para conclusão das obras: 29/11/2006”.

16. Tal obra foi executada pela empresa A (…), titular do NIPC (… ) tendo como responsável a técnica C (…), inscrita no sindicato de arquitetura com o n.º (…)

17. Após a conclusão das obras, não foi solicitada nova licença de utilização da fracção ou alteração da já existente de modo a incluir a nova área.

18. Da certidão matricial consta que a fracção tem uma área bruta privativa de 47 m2 e dependente de 16,50 m2, numa área global de 52,80 m2.

19.  O certificado energético emitido em 04.5.2017, elaborado pelo técnico J (…), alude a uma área útil de pavimento do imóvel de 131,76 m2.

20. Pouco tempo após a celebração da escritura de compra e venda, o vizinho do 1º andar dizia que a A. não podia usar o canteiro na frente de habitação, pois não lhe pertencia.

21. Criando-se mau ambiente entre vizinhos.

22. Então os Réus continuavam a assegurar-lhe que as condições transmitidas aquando da venda se mantinham inalteradas.

23. Pelo que a A. continuou a fazer a sua vida normalmente e a usufruir das utilidades da fracção.

24. Em meados do mês de Novembro de 2017, a A. teve conhecimento, por parte da sua vizinha do 1º andar, da existência de um processo administrativo a correr termos na Câmara Municipal de (…) o qual envolvia o imóvel que havia adquirido aos réus.

25. Nessa ocasião, solicitou a sua consulta junto da  CM(...), tendo então constatado, aquando da consulta de tal processo no Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da CM de(…) , ao qual foi atribuído o n.º 51-69/2016, que:

- Em 13.6.2016, o Sr. C (…), proprietário da fração, correspondente ao 1º andar do prédio sito na Rua  (...) (…), vizinho da A., solicitou a fiscalização das obras efetuadas pelos Réus, no logradouro comum, designadamente uma cozinha e garagem, pois “violam o seu direito de propriedade” - correspondendo a obras realizadas na fracção identificada em 7.;

- Após várias notificações, o Réu, em 23.02.2017, respondeu a informar que as obras estariam licenciadas através do processo de obra n.º 09.437/2005, sem, no entanto, juntar prova do alegado;

- Após averiguações, os técnicos da  CM(...) concluíram que de facto houve um processo de obra para a construção de uma garagem, no entanto a construção efectivamente existente no local ocupou mais metros do que o que era permitido, que foram rotuladas de ilegais, pelo que, em 13.6.2017 e 02.10.2017 foi notificado o Réu da intenção de demolição das obras ilegais;

- Atenta a falta de resposta por parte do Réu, que se limitou a informar que o imóvel já não era sua pertença, sem, no entanto, juntar qualquer documentação comprovativa, a  CM(...) voltou a notificar o mesmo em 19.01.2018, no sentido de que teria trinta dias para demolir sob pena de ser determinada a execução dos trabalhos com recurso a posse administrativa do imóvel e imputação dos custos ao Réu.

26. Ao constatar tal situação camarária, a A. ficou preocupada e revoltada.

27. No sentido de obter melhor esclarecimento do que é invocado no processo administrativo da  CM(...), e por forma a apurar uma eventual solução da situação, foi igualmente consultado o processo de obra n.º 09.437/2005 e a escritura de constituição de propriedade horizontal do imóvel.

28. Aquando da visita inicial ao imóvel, das negociações de compra e venda, nenhum dos elementos referidos em 12. a 16. foi mencionado ou dito por parte dos Réus.

29. Fazendo com que a A. acreditasse que a licença que foi junta aquando do contrato de compra e venda fosse relativamente a toda a área da fracção existente no local.

30. A A. estava crente que o imóvel compreendia toda a área incluída dentro das paredes do mesmo, tal como lhe fora transmitido pelos Réus aquando da visita.

31. E ainda uma pequena área de canteiro que se encontra imediatamente na frente esquerda da porta de entrada do imóvel.

32. Mas que a A. ficou a saber, posteriormente, que é pertença comum, uma vez que integra o logradouro do prédio.

33. A A., no momento da compra, desconhecia a existência de quaisquer obras que não fossem passíveis de licenciamento.

34. A ordem de demolição das obras “ilegalmente construídas” abrange a cozinha, um wc e a garagem, ou seja, cerca de metade da área da fração que, em face de tal demolição, deixa de ter qualquer utilidade para a A..

35. Se a A. tivesse conhecimento do processo administrativo existente na  CM(...), bem como da real área do imóvel sem as referidas obras, nunca teria comprado o bem, pois nunca lhe interessaria a aquisição nesses termos.

36. Aquando da compra e venda os Réus, já sabedores do processo administrativo e eventuais consequências, ocultaram essa informação.

37. A A., com a celebração da escritura de compra e venda, teve um gasto cuja grandeza não foi possível apurar, e com a liquidação do imposto de selo despendeu € 320 (trezentos e vinte euros).

38. Desde que teve conhecimento do conteúdo do processo administrativo da  CM(...), a A. anda em sobressalto quanto à eminência de destruição das obras ilegais.

39. E ficou triste com o facto de se ver envolvida nesta situação e revoltada pelo facto de os Réus terem ocultado informação importante relativamente ao negócio.

40. A que acresce o facto de ter despendido poupanças para aquisição do imóvel.

41. Os Réus e M (…) e mulher G (…) eram donos e legítimos possuidores, em comum e partes iguais, de um prédio urbano destinado a habitação, composto de rés-do-chão, primeiro e segundo andar e logradouro, sito na  (...), freguesia de (…) concelho de (…).

42. Em 1978, os Réus e o M (…) e mulher constituíram unidades distintas, independentes e isoladas entre si, e dividiram o referido prédio em quatro fracções autónomas, designadas pelas letras “A, B, C e D”, constituindo uma propriedade horizontal.

43. Sendo que aos Réus ficaram a pertencer as fracções B e D, ou seja rés-do chão direito e segundo andar e ao M (…) e mulher as fracções A e C, ou seja rés-do-chão esquerdo e primeiro andar.

44. Mais definiram “que é comum apenas, além do logradouro, a estrutura geral do prédio, a entrada para o primeiro e segundo andar, pela via pública, bem como as canalizações e esgotos e independentes as entradas para as frações «A» e «B», também pela via pública”.

45. Os Réus em 1998 venderam a fracção D, correspondente ao segundo andar.

46. Na entrada para o rés-do-chão direito, à frente, sempre existiu um canteiro.

47. Com o passar dos anos, os Réus foram tendo necessidade de adaptar a sua fracção e fizeram obras.

48. Com vista à legalização das obras até então efectuadas, os Réus procuraram técnico a quem confiaram os trabalhos de legalização, sendo que assinaram os documentos que lhes eram pedidos para esse efeito.

49. Em 2005, deu entrada no Município de (…) um pedido de Licenciamento de alterações ao projeto, que foi aprovado.

50. Em 2006, deu entrada no Município de (…) um pedido de Licenciamento de construção de anexo, o qual foi igualmente aprovado.

51. Os Réus decidiram vender a fracção B e colocaram-na à venda pelo preço de € 70 000.

52. O proprietário da fracção D - 2º andar – C (…) apresentou a queixa referida em 25.

53. Aquando da visita da A à fracção, os Réus exibiram e entregaram à A. documentos e plantas que tinham referentes ao imóvel, nomeadamente caderneta predial do prédio e descrição do mesmo, e onde constam a composição e áreas da fracção.

54. A A. manifestou urgência em comprar a fracção, já que tinha que entregar o imóvel arrendado e não tinha onde alojar a mãe e os seus bens.

55. Na sequência da celebração do contrato-promessa, em 27.4.2017, a A. mudou pertences seus para a fracção em causa.

56. A filha dos Réus ((…)) acompanhou a A. e com ela compareceu em reuniões, com o mandatário dos Réus e com os outros proprietários.

57. Os Réus contactaram os demais proprietários das outras duas frações, com quem reuniram já por diversas vezes no intuito de encontrarem solução que servisse os interesses de todos os demais envolvidos.

58. Factos de que a A. também tem conhecimento.

59. A fracção em causa é mais espaçosa que a anterior.

60. Os Réus tiveram de arrendar uma garagem para arrumar todos os seus pertences na sequência da venda que fizeram à A..

61. E de pagar renda mensal na quantia de € 100.

62. A A., para viver em imóvel com características equivalentes às da fracção em apreço, teria que despender uma renda mensal de valor que em concreto não foi possível apurar.

63. Os Réus poderiam ter colocado o imóvel no mercado de arrendamento, obtendo renda mensal de valor que em concreto não foi possível apurar.

2. E deu como nãos provados os factos constantes dos seguintes temas de prova: 3º (parcialmente), 21º (parcialmente), 25º, 26º (parcialmente), 27º, 34º, 35º, 36º (parcialmente), 37º, 39º, 40º (parcialmente), 42º, 44º (parcialmente), 45º, 46º (parcialmente), 47º a 51º, 52º (parcialmente), 53º (parcialmente), 54º a 57º, 59º, 60º (parcialmente), 65º (parcialmente) e 66º (parcialmente).

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

a) Os Réus insurgem-se contra a decisão sobre a matéria de facto, invocando, sobretudo, a prova pessoal (produzida em audiência de julgamento) e documental, e, ainda, a matéria já assente (nomeadamente sob os n.ºs 4 a 11, 19, 44, 46, 51 e 53 a 58), pugnando para que se dê como provada a factualidade mencionada nas “conclusões 1ª, 6ª e 7ª”, ponto I., supra, e como não provada a referida na “conclusão 14ª”, ponto I., supra, cientes que daí poderia resultar diverso enquadramento normativo susceptível de determinar a improcedência da acção.

Assim, não obstante o menor cumprimento das exigências previstas no art.º 640º, n.º 2, alínea a) do CPC (que, num entendimento mais estrito, poderia porventura levar à rejeição parcial do recurso…), antolha-se fundamental saber se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade em causa.

b) Esta Relação procedeu à audição da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental junta aos autos.

c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[1], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que reanalise, designadamente, a credibilidade das testemunhas e verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

E na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[2], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

d) Partindo da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e tendo em atenção o objecto do recurso, destacamos os seguintes excertos:

«Convicção do Tribunal quanto à factualidade apurada:

(…) Foi ponderada a prova documental existente nos autos, designadamente: (…)/ - licença para habitação de fls. 20 v; - auto de vistoria de fls. 21 e ss; - certificado energético de fls. 23; - certidão de registo predial e matricial, relativas à fração em causa (fls. 27 v e ss); - fotografias de fls. 29 e ss, relativas à fração adquirida pela autora; - elementos documentais remetidos pela Câmara Municipal de (…) constantes de fls. 151 e ss.

Tal documentação comprova a constituição da propriedade horizontal relativamente ao prédio onde se encontra integrada a fração em causa nos autos. Salienta-se que da constituição da propriedade horizontal, designadamente da descrição das frações constante de fls. 157, e da escritura de fls. 323 e ss, não foi possível concluir que o canteiro imediatamente adjacente à fração da autora (fração B/rés do chão direito) integre tal fração, afigurando-se, ao invés, na falta de qualquer outra disposição expressa, que constitui uma parte comum do prédio.

Tal documentação compreende ainda o processo de licenciamento das obras ali executadas pelos réus, (...) mencionado nos factos provados, e que terá corrido termos no ano de 2005 (fls. 166 e ss). É ainda inequívoco que aos réus foi concedido o pretendido licenciamento de obras que, contudo, não “legalizaram” todas as obras ali executadas como se analisará de seguida.[3]

A Câmara remeteu ainda a informação dos serviços técnicos municipais n.º 448/2018, de 14/6 e despacho de 15/6/2018 (fls. 238). A consulta de tal documentação evidencia que o processo administrativo instaurado a requerimento de C (…) (proprietário de uma das frações do prédio em discussão nos autos), como reação a obras efetuadas no logradouro do prédio, encontra-se suspensa, até à decisão dos presentes autos, por solicitação da autora (fls. 244 e ss).

Tal processo administrativo tem por objeto a aferição da legalidade/ilegalidade de obras executadas pelos réus na fração que venderam à a autora, assim como a construção de uma churrasqueira pelo requerente C (…) na varanda da sua fração.

Com relevo para a decisão do litígio em causa nos autos verifica-se que, formalmente, foi a autora notificada do despacho de 27/4/2018 da intenção de demolição de obras (fls. 264 e ss).

Do expediente analisado resulta que a ordem de demolição das obras executadas na fração adquirida pela autora foi formalizada depois da sua aquisição.

No entanto, o processo administrativo que culminou com tal ordem é manifestamente anterior à aquisição pela autora. Só assim se compreende a decisão de 26/10/2017, em que se determina a notificação do anterior para que proceda à identificação do atual proprietário da fração “para diligências com vista à continuidade da demolição” - fls. 289.

Em 23 de fevereiro de 2017, o réu, ainda na qualidade de proprietário da fração, em resposta a ofício da Câmara de 27/1/2017, solicita informação sobre a forma como deve proceder, para obter a aprovação das obras (fls. 312).

Aliás, já em janeiro daquele mesmo ano, o réu tinha sido notificado para “apresentar elementos que visem a legalização das obras, sob pena de atuação municipal” (fls. 314). Assim como anteriormente fora notificado de que o processo de licenciamento de obras por si apresentado (de uma garagem, com a área de 12 m2) não abrangia a construção que, consequentemente, poderia ser considerada clandestina, determinando a consequente atuação municipal (fls. 319 e ss), notificação essa ordenada por despacho de 7/7/2016.

Tal prova documental evidencia que na data em que foi formalizada a venda da fração, os réus tinham pleno conhecimento da existência de processo administrativo que poderia culminar com a demolição das obras efetuadas em benefício da fração que venderam à autora./

Foi ponderada a inspeção judicial, que permitiu observar a fração em causa e constatar a existência de obras de ampliação, nos termos documentados na respetiva ata e fotografias à mesma anexas./

Ao depoimento de parte produzido pela autora (…), não foi conferida relevância, por não ter configurado qualquer declaração confessória.

As suas declarações de parte, atento o seu óbvio interesse na causa foram ponderadas na medida em que mereceram corroboração em meios de prova objetivos e seguros.

A propósito deste meio de prova, não poderá deixar de se salientar que a autora explicou, de forma racional e coerente, todas as vicissitudes inerentes à aquisição da fração em causa e a ulterior constatação de que a mesma incluía obras não licenciadas, o que culminou com a ordem de demolição mencionada nos factos provados. Tais declarações, no essencial, revelaram-se corroboradas em elementos de prova objetivos e seguros, designadamente na prova documental e na prova testemunhal que de seguida se analisará.

Assim, a declarante referiu que procurava adquirir casa, com alguma urgência, pois fora vendida a casa onde a mãe habitava, e a mesma teria que ser desocupada. O preço acordado e por si liquidado foi de € 59 500 e a declarante apenas ocupou a casa em 11.5.2007. Pagou de sinal a quantia de € 19 500. Foi-lhe sempre referido que o canteiro integrava a sua fração. Em novembro de 2017, depois de ter sido alertada pelos vizinhos para a existência de uma queixa junto da Câmara Municipal de (…) por realização de obras ilegais na fração que adquiriu, dirigiu-se a tal entidade, consultou o processo camarário. Nessa altura verificou que as obras não poderiam ser licenciadas e que se impunha a sua demolição, que incidirá sobre a cozinha, a garagem, um WC, implicando, na realidade, a supressão de metade da casa. Esta situação, para a qual nunca tinha sido alertada antes da compra da casa sobressaltou-a de forma significativa. /

Foram também ponderados os depoimentos testemunhais produzidos por:

- A (…), amiga da autora, que mora próxima do local e que a alertou de que a fração em causa estava à venda. Produziu um depoimento extremamente lúcido e convincente, evidenciando conhecimento direto da matéria controvertida por ter acompanhado a autora ao longo de todo o processo que antecedeu ao negócio e ainda em fase subsequente. Assim, referiu que a autora manifestou urgência na aquisição da casa, porquanto a que a mãe habitava fora vendida. Logo após a celebração do contrato promessa a autora guardou na fração em causa alguns pertences (…). A depoente esteve sempre presente nas visitas que a autora fez à fração, antes da celebração do negócio, assim como no momento em que foi celebrado o contrato promessa (…) e, posteriormente, o contrato prometido. Nessas ocasiões, os réus não estavam presentes, estando representados pela filha (…), que lhes telefonou para comparecerem e assinarem a escritura definitiva. A depoente aludiu a duas visitas à fração, a primeira das quais na sua presença, da autora e da filha dos réus e a segunda com as mesmas intervenientes e já com um representante de uma imobiliária ((…)). Em nenhuma dessas ocasiões a autora foi alertada para a existência de quaisquer problemas quanto ao licenciamento de obras da fração. Para a promessa de venda estava acordado o pagamento do sinal de € 20 000, mas a filha dos réus aceitou reduzir tal valor para € 19 500. A depoente, que acompanhou a autora mas ficou no exterior, viu depois um papel que comprovava o pagamento desse montante. No contrato definitivo foi pago o remanescente do preço, de € 40 000. Ambos os pagamentos foram feitos em dinheiro.

Apenas uns meses depois da celebração do contrato definitivo, a autora, alertada pelo vizinho que lhe terá dito que “a casa ia abaixo”, teve conhecimento do processo camarário mencionado nos factos provados e procedeu à sua consulta. Nessa diligência, a depoente acompanhou-a e recorda-se que na Câmara disseram à autora que ela deveria ter-se informado antes da compra. A existência de qualquer problema com o licenciamento das obras era absolutamente desconhecido da autora que nunca teria comprado a habitação se soubesse de tal situação que a tem transtornado de forma séria;

(…)

- A (…), funcionário da Câmara Municipal de (…), exercendo funções na Divisão do Urbanismo. Prestou um depoimento lúcido, ponderado e credível, manifestando equidistância relativamente aos interesses de ambas as partes. Assim, referiu que as obras de ampliação da fração adquirida pela autora não se encontram licenciadas. Houve um processo de fiscalização da Câmara que se iniciou em 2016, com uma queixa que foi então apresentada. No decurso desse processo, constatou-se que embora tivesse havido um processo de licenciamento de obras para aquela fração (para uma área de 15 m2) no ano de 2005, na realidade, a obra ali efetivamente implantada tem 90 m2, pelo que está ilegal. Em rigor, o depoente declarou não poder afirmar se tais obras poderão ou não ainda vir a ser licenciadas, tanto mais que faltou o primeiro pressuposto necessário para o efeito, que é o consenso de todos os moradores. Ao longo do seu depoimento, o depoente analisou de forma pormenorizada todo o processo camarário que se encontra junto aos autos, referindo que os argumentos que o réu aí apresentou, quando ainda era proprietário, não superaram a ilegalidade detetada relativamente à execução das obras não licenciadas. Do seu depoimento resultou ainda que a autora só após a compra teve conhecimento da situação, pois ali se deslocou, após tal negócio, tendo-se mostrado surpreendida, logo manifestando que nunca teria adquirido a casa se soubesse da existência de processo administrativo por obras ilegais. Muito antes da comparência da autora, a filha dos réus ((…)) ali se havia deslocado para reuniões por causa da falta de licenciamento das obras e nunca manifestou que estava a diligenciar no sentido de vender a casa;

- C (…), agente técnica de arquitetura, amiga dos réus, que efetuou alterações ao projeto inicial da respetiva habitação em 2006. A sua intervenção no processo de licenciamento visou licenciar obras que tinham sido executadas no R/C e logrou legalizar 15 m2 de garagem que, relativamente à obra que já estava construída, era o “legalizável”. Do seu depoimento foi possível extrair que, na parte remanescente, a obra não foi legalizada;

- P (…), engenheira civil que trabalha na Câmara Municipal de (…), exercendo funções na Divisão do Urbanismo. Prestou um depoimento isento e credível, referindo que se deslocou ao local com a testemunha (…) na sequência de uma queixa que foi apresentada em 2016, por obras ilegais, constatando que as obras corresponderam a uma ampliação que uniu a fração com o anexo, que extravasava os 15 m2 licenciados. As obras mantêm-se por licenciar desde 2016. A propósito da possibilidade de licenciamento da obra, referiu que a mesma mostra-se implantada no logradouro comum, pelo que exigiria o acordo de todos os proprietários. Ora, um deles ((…) opõe-se a tal obra. Se inexistisse tal oposição, para compatibilizar as obras com as regras urbanísticas, provavelmente seria necessário alterar as obras e demolir uma parte;

(…)

- G (…), filha dos réus, que negociou a venda da fração em causa. Prestou um depoimento contido e que se revelou contraditório com a globalidade da prova produzida. Assim, referiu que logo num primeiro contacto com a autora a informou que havia um “processo de demolição” pendente na Câmara, na sequência de uma queixa apresentada por um vizinho. As obras em questão estão executadas há cerca de 20 anos e apenas com o acordo de todos os proprietários poderá ser equacionada a questão do seu licenciamento. A propósito do preço prestou um depoimento confuso referindo que foram pagos € 19 500 de sinal mas que depois a autora recusou pagar o remanescente do preço (€ 40 000) por causa da eventual demolição das obras. Mais referiu que o canteiro em discussão nos autos pertence àquela fração;

- C (…), que trabalha na imobiliária “F (…), a quem os réus haviam entregue a mediação no negócio em causa. Prestou um depoimento pouco isento, referindo que esteve presente na primeira visita da autora à fração, negando que aí estivesse presente a testemunha (…) e referindo que a autora foi exaustivamente advertida e informada da existência de processo camarário e da probabilidade de demolição das obras. Nessa ocasião, a filha dos réus transmitiu à autora que, com vista ao licenciamento da obra, a autora teria provavelmente que prescindir da garagem (que seria demolida) e aceitou naturalmente esse facto. Ora, a prova produzida evidenciou que a garagem era essencial para a autora, da mesma necessitando para armazenar bens, o que, aliás resultou do facto de ter sido a primeira parte da casa que lhe foi cedida J (…) M (…), comissionista na imobiliária F (…) que acompanhou a anterior testemunha, a autora e a filha dos réus numa visita à fração. (…) a filha dos réus quando entregou a casa na imobiliária aludiu a um conjunto de obras não licenciadas, referindo que estavam a tentar resolver a questão. Porém, o negócio acabou por não ser feito através da imobiliária (…). Efetivamente a ser verdade que o depoente levou à fração a autora, mediando a aquisição que veio a ser feita, não se percebe porque motivo tal angariação não foi tomada em consideração. Na realidade, (…) que lhe de a conhecer que aquela casa se encontrava à venda;

- J (…), sobrinho dos réus que esteve no escritório do respetivo mandatário, numa reunião, com vista à alteração da Propriedade Horizontal do edifício em causa. Referiu que há mais de 20 anos que os réus possuem a habitação no estado em que se encontra atualmente;

- C (…), proprietário de uma fração no prédio em questão, que adquiriu aos réus em janeiro de 2005. Confirmou a celebração de contactos com vista à alteração da propriedade horizontal, que exigiria um acordo de todos os proprietários. Não foi possível obter acordo visto que num logradouro de 600 m2 o depoente não aceitou ficar apenas com 30 m2. O depoente fez queixa por força das obras ali executadas. Foi a esposa do depoente que chamou a atenção da autora para o facto de as obras estarem ilegais, facto por si presenciado. Só nessa ocasião é que a autora, que já tinha comprado a fração, teve conhecimento da situação e começou a chorar. A tal propósito referiu ainda que a esposa referiu expressamente à autora que as obras da sua fração se encontravam “em ordem de demolição” na Câmara;

- M (…), irmão do réu, que depôs sobre a construção originária do edifício, bem com sobre a constituição da Propriedade Horizontal. Mais referiu que há muitos anos o irmão ali executou as obras em causa;

- G (…), casada com a anterior testemunha. Relatou que o marido e o irmão construíram o edifício em causa que depois submeteram a propriedade horizontal. O cunhado ali realizou obras, convertendo a garagem numa habitação, não tendo pedido autorização à depoente e marido, dado que tais obras foram executadas na sua parte do edifício. Teve conhecimento que o vizinho (…)apresentou uma queixa relativa à execução de tais obras; (…)/

No que se reporta ao valor do negócio de compra e venda, ficou apurado que o mesmo se cifrou em € 59 500, conforme exarado no contrato promessa, que foi pago em duas prestações: uma de € 19 500 no momento em que foi subscrito tal acordo, e outra de € 40 000 no momento em que foi celebrado o contrato definitivo. Efetivamente, tal facto resultou quer do teor do próprio contrato promessa, quer das declarações de parte e do depoimento da testemunha (…). Resultou, pois, infirmada a tese dos réus, nos termos da qual o preço se cifrou em € 40 000, na sequência de exigência da autora ao constatar, antes da escritura relativa ao negócio definitivo, que as obras na fração não se encontravam licenciadas. Ora, conforme se analisará de seguida, a autora não teve esse conhecimento previamente à celebração do contrato definitivo, desde logo falecendo o argumento invocado para a redução do preço.

Porém, constando do título definitivo de compra e venda que o preço do negócio era de € 40 000, suscita-se nos autos a questão da força probatória plena inerente aos documentos autênticos. Ou seja, haverá que questionar se o declarado pelos outorgantes quanto ao preço se mostra abrangido pela força probatória plena dos documentos autênticos.

A tal propósito, refere o artigo 371º, n.º 1, CC: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora (…)”. Acresce que, relativamente a factos plenamente provados por documento ou por outro meio com força probatória plena não é admitida a prova por testemunhas - cf. artigo 393º, n.º 2, CC. Certo é que tal proibição de prova testemunhal respeita apenas a factos cobertos pela força probatória plena autêntica do documento - neste sentido, Teixeira de Sousa (As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, 246).

Ora, sendo autênticos os documentos “(…) exarados com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública”, como resulta do disposto no artigo 363º, n.º 2, CC, o título de compra e venda no qual ficou exarada a declaração de pagamento de determinado preço constitui inequivocamente um documento autêntico.

Porém, o valor da prova plena apenas abrange a declaração que foi atestada pelo notário ou pelo oficial público, não abrangendo o facto de o vendedor ter recebido efetivamente o preço. Assim, o valor de prova plena limita-se às declarações “visus et aiditus enunciadas pela entidade documentadora, mas não à sua veracidade ou autenticidade (porque tal não pode o documentador certificar com os seus sentidos)” nada impedindo “a admissibilidade da prova testemunhal para infirmar o que se encontra atestado nos documentos autênticos, sem necessidade de arguição da sua falsidade” - Teixeira de Sousa (Ob cit., pág. 246).

Conclui-se, pois, que a força probatória dos documentos autênticos abrange apenas os factos que nele são referidos como praticados pelo documentador, cuja elisão apenas por via de arguição da falsidade do documento pode ser obtida - cf. artigo 372º, nº 1, CC.

Ora, o pagamento de preço diverso do mencionado na escritura ou no título de compra e venda, por se tratar de facto que não foi objeto da perceção direta do notário ou do oficial público, pode, à partida, ser objeto de prova testemunhal. E certo é que a autora logrou provar que tal pagamento ocorreu no valor de € 59 500 e não de € 40 000.

Tal prova decorre do teor do próprio contrato promessa celebrado entre as partes, e que esteve na génese do contrato definitivo de compra e venda, constituindo a diferença entre o valor constante do contrato promessa e o valor declarado na escritura o montante que foi pago a título de sinal (€ 19 500). Esse valor de € 59 500 foi, além disso, corroborado quer pelas declarações de parte da autora, quer pelo depoimento testemunhal já analisado.

Ainda a tal propósito, haverá que ter presente que constituindo o pagamento de montante diverso uma convenção contrária ao conteúdo de documento autêntico, o regime consagrado no artigo 394º, CC estabelece a inadmissibilidade legal da prova por testemunhas de tal convenção.

Contudo, tal proibição não opera no caso presente por duas ordens de razões.

Por um lado, o efetivo recebimento do preço (de € 40 000 ou € 59 500), como supra referido, não se encontra abrangido pela força probatória plena inerente aos documentos autênticos. Por outro lado, a fixação e o pagamento de preço diverso do mencionado no título de compra e venda resulta da conjugação do que foi alegado e da análise do contrato promessa. Tal documento constitui um princípio de prova (que sempre afastaria a proibição da prova testemunhal - Vaz Serra RLJ, ano 103º, pág. 13; Mota Pinto e Pinto Monteiro, Parecer CJ Ano X, T III, pág. 11 e ss) evidenciando ser diverso o valor fixado para a venda.

Relativamente à questão da ocultação pelos réus do processo administrativo por falta de licenciamento das obras e da possibilidade da demolição até ao momento, teve-se presente que a prova produzida no seu todo deve ser analisada sobre o prisma das regras gerais da experiência comum, o que é permitido pela norma do artigo 607º, n.º 4, parte final do CPC. E como decorre do artigo 349º do CC: “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. Podendo ser legais ou judiciais (naturais, simples ou de experiência), estas são as que assentam no mero raciocínio do julgador. Ora, as presunções judiciais consistem em “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência” - Vaz Serra (RLJ, ano 109, pág. 352) - reconduzindo-se a ilações que o julgador retira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, segundo as regras de normalidade, de experiência de vida, da lógica e do conhecimento.

Assim, é sabido que na análise e interpretação dos comportamentos humanos existem feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos - são as referidas regras da experiência da vida e das coisas, os juízos correntes de probabilidades, e os princípios da lógica.

Com base em tais coordenadas, concluiu-se ser manifesto que nenhum comprador de uma fração com a dimensão da que está em causa nos autos aceitaria o risco de a ver demolida em cerca de metade. Consequentemente, a autora desconhecia a possibilidade de demolição daquela fração.

Na realidade, tal negócio acabou por corporizar um plano congeminado pelos réus para se desfazerem de um imóvel que lhes suscitava graves questões jurídicas, sendo previsível a sua parcial demolição. Aproveitando a relativa urgência da autora, os réus transferiram para a sua esfera jurídica o risco decorrente da falta de licenciamento das obras, sabendo, como é manifesto, que nenhum comprador, pelo menos sem um motivo plausível, aceitaria realizar semelhante negócio com a perspetiva de uma tão grave desvalorização do bem que se preparava para adquirir. Certo é que, como já referido a propósito da análise da prova documental, toda a tramitação do processo camarário evidencia, de forma segura, que no momento da venda, os réus eram sabedores da forte probabilidade de ordem de demolição das obras, que se veio a concretizar./

Convicção do Tribunal quanto à factualidade não apurada

A factualidade não apurada resultou da ausência de prova que permitisse sustentar a sua verificação.

Salienta-se que não foi possível apurar se as obras em questão são ainda licenciáveis, sabendo-se que já foi proferida decisão ordenando a sua demolição. E, na realidade tal licenciamento, como referiram os funcionários da Câmara de (…) que prestaram depoimento na qualidade de testemunhas (…)envolverá, em princípio, alterações e demolição de uma parte da obra, carecendo ainda do acordo de todos os proprietários, o qual manifestamente não existe por parte do proprietário C (…), como resultou do seu depoimento testemunhal. Os seja, embora a demolição de uma obra apenas possa ser concebida como ultima ratio como referiram os funcionários camarários ouvidos na qualidade de testemunhas, não pode afirmar-se, em face do desenvolvimento do processo camarário e da decisão aí tomada, que a mesma não se virá a concretizar, sendo ao invés, de concluir que, pelo menos em parte sempre as obras terão que ser demolidas.

Assim, em face de todas essas condicionantes concluiu-se que o licenciamento das obras constitui, no momento presente em que já foi ordenada a demolição da obra, facto meramente especulativo que, por esse motivo, não foi considerado assente.»

e) Ouvida a prova pessoal, com especial destaque para a invocada nas alegações de recurso, vejamos, pois, o que de mais relevante foi dito:

A (…) (fls. 331):

Acompanhou a A., “sempre”, “a todo o lado”, menos ao Senhor Advogado; “ela fez negócio rápido (…), ela já tinha as coisas delas guardadas na minha garagem (…), depois é que quando (…) deu a entrada daquela casa é que levou as da mãe para a garagem”. A filha dos Réus acompanhou-as na vista à casa. “(…) contrataram o preço, ela pediu 65 000 e (…) a F (…) (A.) ofereceu-lhe 60 000, então acertaram tudo para ir fazer a promessa de compra e venda. (…) O pagamento foi em dinheiro (…), ela levava 20 000 mas depois quando chegou lá, ela disse, (…) ´não tira nenhum para a documentação?`, e ela tirou-lhe 500 euros, (…) foi 19 500. (…) Na promessa de compra e venda (…) saí fora do carro e fiquei nas escadas, (…). (…) quando desceu ela (A.) mostrou-me o papel que ela tinha, assinou o papel consoante ela tinha dado 19 500 euros. (…) trazia o papel, e esse papel a dona G (…) (filha dos Réus) queria que ela jogasse fora e eu é que disse, ´Não, deixa ir, então tu vais rasgar um documento que tu tens?! Qual é a prova que tu tens que deste o dinheiro?` Jogasse  (…) o papel fora, que aquele papel não podia aparecer em lugar nenhum. Aquilo fez-me espécie, eu disse assim, ´Então, mas toda a pessoa que compra, eu também já comprei casa eu sei, guarda os documentos para a gente, não é`, …”. A escritura foi pouco tempo depois, “foi logo”, “foi pouco tempo”; “Na escritura foi € 40 000 em dinheiro. Já saímos lá de noite, a contar o dinheiro. (…) ela já estava na casa uns meses, (…)  estava lá tranquila e depois veio o de cima, o do 2º andar (…), acho que é o sr. C (…) (…) disse que ´aquilo ia abaixo` e ela disse assim, ´veja só agora é que ele vem dizer que aquilo ia abaixo, ia abaixo porquê?` (…). Eu disse assim, ´olha o melhor lugar que tu tens que ir, se é a Câmara que quer derrubar, é ir à Câmara`. Acompanhei, está aí o técnico (…), foi ele que nos atendeu e a engenheira Nelas. (...) que o que a gente estava a fazer agora que tinha feito antes de o fazer, então, mas a gente não sabia… Eu para mim quando a pessoa se põe a vender uma coisa é porque tá legal né, é dela.” Depois a A. “agiu, começou a agir”, “não sabia…” “comprou o rés-do-chão por causa da mãe, e agora acontece isto!” “a confusão já estava há muitos anos e a gente não sabia!” e a A., se soubesse, “nunca” quereria adquirir a fracção e “do jeito que eu ajudei a comprar, também ajudava a dizer que não!

A (…) (fls. 331):

(…) no processo consta uma adaptação, portanto, era uma fracção de garagem e arrumos, posteriormente foi adaptada a garagem, arrumos, cozinha e uma instalação sanitária. (…) O que está em causa é a ampliação a nível do rés-do-chão dessa fracção para o logradouro, para um logradouro comum, comum das quatro fracções, (…) que está ilegal.” O “processo de queixa” surgiu em Abril/2016.

Confrontado com os documentos dos autos (entre os quais, os de fls. 309 e 311, cuja “informação” subscreveu), referiu, nomeadamente, que “(…) reporta-se ao edifício que está licenciado de 15 m2; a parte ilegal é um edifício que engloba, que contornou este edifício, e tem cerca de 90 m2”, sendo que um desses documentos respeita à notificação “da intenção da Câmara de proceder à ordem de demolição”.

A possibilidade de licenciar “foi sempre negada” por implicar a conjugação de vários elementos (o Alvará, o PDM, etc.) e uma “legitimidade” e obtenção de “consensos” que nunca existiram.

O Réu “não trouxe nada ao processo que o legalizasse”, pelo que foi proferida a “ordem de demolição”. “A qualquer momento é sempre possível entregar um projeto com vista à reposição da legalidade da obra em questão. (…) ´o último ratio` é sempre a demolição. (…) quando há uma tentativa de licenciamento a Câmara tem forçosamente que parar a demolição e analisar os elementos que são entregues com vista à reposição da legalidade urbanística. Isso ainda não foi feito.”

A A. deslocou-se à  CM(...) “depois da compra”, “(…) ela foi ter comigo à Câmara com outra senhora que indicou-lhe, (…) está lá fora, (…) Dona A (…)(…); foram depois da compra; (a A.) ficou um bocadinho surpreendida e ficou logo com a intenção de sabendo desses factos não teria comprado... por isso é que eu tenho quase certeza que foi depois da compra”.

A filha dos Réus reunira, na  CM(...), inclusive, com o depoente, na tentativa de resolver a situação. A área de 15 m2 da garagem “está devidamente licenciado, (…); (…) essa ampliação ilegal foi da fracção B até à garagem; (…)”.

            - P (…) (fls. 331 verso):

Interveio na situação dos autos juntamente com a testemunha (…), na sequência de uma “queixa”. Verificaram que o “anexo” em causa teve obras de ampliação além dos “15 m2 licenciados”;(…) em 2005 houve a construção de um anexo de 15 m2 que (…) foi licenciado, (…) uma garagem que estava (…) no final da fracção (…); “aquela ampliação está construída numa zona comum”; o Réu “teria de apresentar um projecto de legalização” mas só fez uma “exposição…”.

G (…) (fls. 332):

“(…) queriam ir ver a casa e, entretanto, quando cheguei, estava lá a Sr.ª (A.) com o C (…), (…) até era meu conhecido desde o liceu (…) foram ver a casa (…), foi mostrada a casa toda. (…) A Sr.ª mostrou logo interesse, aliás, ela tinha dito que tinha muita pressa de comprar uma casa porque (…) tinham vendido a casa da mãe, ela não tinha onde pôr os pertences (…), e mostrou logo interesse na casa porque era um rés-do-chão, porque ficava próximo da cidade e uma vez que a mãe também já tinha uma certa idade (…). Eu na altura até disse que, queríamos vender e que queríamos fazer obras porque havia uma parte que não estava, segundo informação da Câmara, não estava completamente bem e que esse processo estava-se a dar na Câmara. (…) ela voltou à casa várias vezes, já a telefonar-me (…) e a querer ver a casa novamente, chegou a levar uma amiga, e depois uma outra Sr.ª já sem esse Sr. (…) (…). Na altura tínhamos posto 70 000. Depois, (…) acabámos por acordar nos 60 000, mas depois entretanto ela deu os 19 500 de entrada … (em dinheiro, e a depoente “até teve dificuldade em contar...”). E, depois, como soube de todo o processo da Câmara não aceitava que fosse o valor que falámos e tentou por todas as formas que rebaixássemos o valor. (…) O valor global depois de ter rebaixado passou para 40 000. Era os 59 500 (…), a senhora não queria pagar o valor que acordámos porque disse que podia ter, sofrer a demolição da casa e perdia; (…) o vizinho de cima fez-lhe crer (à A.) que aquele espaço (o dito “canteiro) seria dele (“queixa” “apresentada pelo vizinho do 3º Andar”, que comprou aos pais uma “fracção” desse mesmo prédio; foi ele que fez a queixa” apresentada na  CM(...))” mas “aquela parte pertence à parte da frente.” A A. “(…) tinha receio que fosse demolido e eu fiz tudo o que podia para tentar legalizar”. “(…) disse (à A.) que estava disponível para resolver a situação e podia contar comigo para o que fosse preciso, (…) nunca parei de contactar com ela e ela comigo para resolvermos a situação”.

A A. foi informada “quando foi visitar a casa, (…) na altura estava o Sr. (…)s, (…) ao serviço da D.ª (…). (…) não ficaram muito preocupados com isso (a “queixa” apresentada na  CM(...)); (…) na altura ainda não tinha o percurso de demolição, na altura falavam que não era legal (…) e que poderia ser demolido… (…) Até ao momento ainda não foi demolido e estamos a tentar, e continuo disposta a resolver a situação (…). (…) eu fui à Câmara (…), falei com o Sr. (…) …e disse-lhe exatamente isso. (…) Não sei a data mas sei dessa carta, fui eu que a redigi, (…) em (…) Abril/Maio. (…) Nós continuámos sempre a tratar, nunca (…) parámos de tentar resolver. (…) todas as cartas que foram enviadas tentámos resolver, tentámos (…) dar a resposta à queixa que fez o Sr. (…) tentando legalizar o espaço que dizem (…). Disseram que não estava legalizado, (…) mas (…) sempre (…) me mostrei (…) disponível, com a D.ª (…)mesmo (…).

C (…) (fls. 332 verso):

Levou à fracção a A. e esta tomou conhecimento do estado do prédio e das obras aí realizadas, assim, nomeadamente, (…) a D.(…) (filha dos Réus, anterior testemunha) começou por apresentar o imóvel, (…) que aquilo era um prédio que tinha sido feito pelo pai e pelo tio, (…) e quando a D.ª (…) se casou o pai tinha transformado o rés-do-chão, que era a garagem anteriormente, numa habitação, tinha legalizado aquilo como habitação. Mais tarde, como ficou sem garagem fez a garagem na parte lateral do imóvel, (…) o pai nunca quis arrendar aquilo e transformou aquilo num salão de festas, (…) e depois (…)  foi tapando, aquilo foi fazendo uma cobertura entre o apartamento e a garagem (…). Na altura a D.ª (…) pergunta se aquilo é legal e a D.ª (…) disse-lhe que não, que aquilo tinha sido feito ilegalmente e que estava feito assim há muitos anos e que, provavelmente, ficaria muitos mais anos se não tivesse havido um desentendimento entre os condóminos e que estavam a tratar de tudo, que tinham um advogado inclusivamente metido no assunto para tratar de resolver toda a legalização da situação… (…) era uma coisa que se via perfeitamente que (…) não era legal. (…) havia um advogado, (…) uma série de reuniões e (…) era uma coisa que ia ser tratada em breve. (…) havia um desentendimento entre condóminos (…)”.

            C (…) (fls. 332 verso/333; proprietário da fracção do 2º andar do referido prédio, adquirida em Janeiro/2005):

            Sabe apenas que a A. “comprou” uma fracção do prédio. Foi-lhe apresentada “uma proposta” mas “não aceitou” porque, do logradouro em causa, ficaria com 30 a 40 m2 e “teria de dar logradouro a todos!”; “(…) fiz a minha queixa sensivelmente há quatro anos...”; “(…) fomos apanhados de surpresa quando a Sr.ª  (A.) chega ao pé da minha mulher e diz para termos atenção, que estava ali a cadela e que caíram lá umas coisas… e foi aí que eu soube que a casa já tinha sido vendida, e foi aí que a minha mulher chamou a atenção da D.ª (…)que aquilo estava tudo ilegal (!), depois a Sr.ª ficou em pânico e ficou ali a chorar… e nem queria acreditar, até a mãe da D.ª Fernanda dizia que nós é que estávamos a mentir…”; “(…) antes de ser vendido foi apresentada a mim uma proposta para eu comprar…”. Assistiu à referida conversa, “(…) foi por causa da cadela, estava a cair qualquer coisa, (…) e quando nós estávamos a passar a D.ª (…) é que veio ter com a minha esposa … (…) e estava chateada, (…) até eu ficaria, (…) eu já não sei descrever bem mas eu sei que a minha mulher se virou para ela e que disse que aquilo que não era tudo dela, para ter atenção, foi aí que soubemos que ela tinha comprado, (…) já estava em ordem de demolição na Câmara. (…) “.

G (…) (fls. 333; reside no prédio da fracção em apreço):

O mencionado “canteiro” “era do 2º andar da minha cunhada (Ré), (…) sim do meu cunhado e da minha cunhada.” Quanto ao mais (rés-do-chão, etc., e áreas correspondentes…) “eu agora não sei, não posso dizer nada (…)”.

f) Relativamente à prova documental, apenas podemos corroborar a descrita ponderação da Mm.ª Juíza a quo, inclusive quanto aos invocados princípios e normas de direito probatório material, principalmente, no tocante às limitações à apresentação de prova testemunhal ou ao uso de presunções judiciais (art.ºs 351 e 393º, n.º 2 do CC).

Na verdade, não suscitando quaisquer dúvidas o que decorre dos documentos juntos aos autos, cujo teor foi desde logo suficientemente plasmado na matéria tida como assente (cf., nomeadamente, os documentos de fls. 16 verso, 18 verso, 20 verso, 21, 23, 154, 164, 237 e seguintes, 245, 285, 294, 299, 301/309, 311, 319 e 328), também nenhuma dúvida suscita o seguinte entendimento:

- Um documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador e prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador - os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art.º 371º, n.º 1, 1ª parte, do CC).

- Uma escritura pública de compra e venda pertence indiscutivelmente à categoria dos documentos autênticos (art.º 369º do CC).

- O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade - o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.

- Se é de afirmar a prova plena da declaração do vendedor de já haver recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável e que o art.º 352º do CC qualifica como confissão (confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 355º, n.ºs 1 e 4, e 358º, n.º 2 do CC), contudo, pode demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

- Em resultado dessa força probatória plena, o facto confessado ter-se-ia, em princípio, de considerar como provado, sem poderem ser admitidas outras provas para isso contrariar (designadamente, a prova testemunhal - art.º 393º, n.º 2 - e, consequentemente, o funcionamento das presunções judiciais - art.º 351º, n.º 1, do CC), sem prejuízo, porém, de se poder demonstrar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade (v. g., simulação) que inquinaram a declaração “confessória” (art.ºs 372º, n.º 1 e 359º do CC); tal força probatória plena pode ser ilidida mediante a alegação de falsidade ou da existência de falta ou vícios da vontade.

- A jurisprudência dos tribunais superiores, com base no defendido pelo Prof. Vaz Serra, tem entendido, maioritariamente, que, fora dos casos acima referidos, quando houver determinado circunstancialismo, por exemplo um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração (confessória), ou seja, por exemplo, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço ou que o preço real foi diferente do aí declarado.

- Tal como nos documentos autênticos, fixada a força probatória formal dos documentos particulares, segue-se a determinação da sua força probatória material, que se encontra fixada no art.º 376°, n.° 1, do CC, ao estabelecer que, reconhecido que o documento procede da pessoa a quem é atribuído, que é genuíno, fica determinado que as declarações dele constantes se consideram provadas na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos que regulam a prova por confissão.[4]

g) Existia, pois, um princípio de prova documental (o documento de fls. 16 verso, cujo conteúdo foi levado, v. g., ao ponto II. 1. 8., supra) que infirmava a veracidade da declaração inserta na escritura pública dita em II. 1. 10., supra, relativa ao montante da totalidade do “preço” (que tornava verosímil a inveracidade da declaração…), servindo, então, a prova testemunhal ou o recurso a presunções judiciais como complemento dessa prova indiciária; ficou assim legitimada a apresentação e valoração da prova testemunhal, e esta permitiu confirmar a inveracidade, ou seja, afirmar que, contra o declarado na escritura, o preço da compra e venda foi de € 59 500 e não € 40 000.

4. Tendo em atenção o objecto do litígio e o que decorre da mencionada prova documental e pessoal, conclui-se, pois, que a factualidade indicada em II. 1. e 2., supra, respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, e importa, tão-somente, desfazer a incongruência/discrepância entre o ponto II. 1. 9., in fine, e o ponto II. 2. (quanto à menção do facto não provado 54 dos temas da prova, já incluído na factualidade provada sob aquele ponto), e acrescentar, ao facto II. 1. 37., supra, o que ficara aceite na contestação e se vê reafirmado nas “alegações de recurso” (cf., sobretudo, os art.ºs 75º da p. i. e 57º da contestação e fls. 379 verso).

Daí:

- Suprime-se, do ponto II. 2., supra, a alusão ao tema da prova enunciado sob o n.º 54 (fls. 68 verso);

- O ponto II. 1. 37. dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

II. 1. 37. - A A., com a celebração da escritura de compra e venda, teve um gasto/custo de € 375 (trezentos e setenta e cinco euros) e liquidou imposto de selo no montante € 320 (trezentos e vinte euros).

Procedendo, nestes termos, parcialmente, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e não determinando a factualidade assente qualquer outra rectificação - e, muito menos, a pretendida modificação! -, sempre se dirá que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[5], a Mm.ª Juíza a quo não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou (e que a levou a conferir especial relevância aos depoimentos das testemunhas (…), e não a dando - e bem -, principalmente, aos depoimentos das duas primeiras testemunhas apresentadas pelos Réus, indiciando-se, claramente, que se “distanciaram” da verdade…), pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[6]

A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

5. O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do art.º 247º (art.º 251º do CC).

Quando, em virtude do erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro (art.º 247º do CC).

Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art.º 289º, n.º 1 do CC).

As obrigações recíprocas de restituição que incumbem às partes por força da nulidade ou anulação do negócio devem ser cumpridas simultaneamente, sendo extensivas ao caso, na parte aplicável, as normas relativas à excepção de não cumprimento do contrato (art.º 290º do CC).

6. O erro-vício traduz-se, assim, numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio, de tal forma que se o declarante estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade - não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou; se conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu.[7]

            O erro-vício constituirá motivo de anulabilidade quando seja essencial, ou seja, o erro determinou a própria celebração do negócio (de tal sorte que sem o erro teria desistido ´em absoluto` de contratar; levou o errante a concluir o negócio, ´em si mesmo` e não apenas nos termos em que foi concluído)[8]; acresce, para tal, que o erro deve ser próprio, ou seja, quando versa sobre outro elemento que não a existência de qualquer requisito legal de validade do negócio/sobre uma circunstância que não seja a verificação de qualquer elemento legal da validade do negócio.[9]

7. No caso em análise, dúvidas não restam que a A. desconhecia que, por falta de licenciamento das obras na fracção adquirida, se encontrava pendente processo administrativo na  CM(...), agora suspenso (nos termos da “informação” prestada pela testemunha/técnico (…) de 14.6.2018, e subsequente informação e despacho, conforme documento de fls. 244), cujo consequente e previsível desfecho envolverá a demolição (e a perda) de parte significativa do imóvel adquirido. Mais se apurou que se conhecesse tal realidade, a A. não teria celebrado o negócio (cf., nomeadamente, II. 1. 4., 22., 24., 25., 28. a 30. e 33. a 36., supra).

 A referida omissão de informação dos Réus quanto à situação da ilegalidade da obra que haviam executado na fracção e respetivas consequências, incidiu sobre o objecto do negócio, porquanto a fracção não possuía as condições pressupostas para a pretendida vinculação contratual.

Daí, a anulabilidade do negócio, vício que determina a restituição pelos Réus do preço pago (€ 59 500) (cf. os art.ºs 289º, n.º 1 e 879º, alínea c), do CC).

8. Relativamente ao pedido de condenação no montante gasto com o negócio pela A., e do imposto de selo, trata-se de despesas/custos que a A. não teria suportado caso não tivesse celebrado o negócio em causa - indemnização que incide sobre o interesse contratual negativo.

Como vimos, ficou demonstrado que a A. despendeu a alegada importância de € 695 (€ 375 + € 320 - cf. II. 1. 37. e II. 4., supra), nada havendo a liquidar (art.º 609º, n.º 2 do CC), quantia (indemnizatória) a reembolsar, à custa dos Réus, e apenas a estes caberá providenciar pela eventual recuperação do imposto de selo (pago ao Estado), se e quando tal desiderato se mostrar viável…

9. Os Réus conformaram-se com a compensação atribuída à A. por danos não patrimoniais.

10. Finalmente, relativamente ao pedido reconvencional, devendo a A. restituir aos Réus o imóvel objecto da anulada compra e venda (cf. os art.ºs 289º, n.º 1; 290º e 879º, alínea b) do CC), nada será de objectar à argumentação da Mm.ª Juíza a quo sobre a pretensão indemnizatória formulada pelos Réus, na medida em que «não equivale à restituição de tudo o que foi prestado, em consequência da anulação do negócio, nos termos do disposto no art.º 289º, n.º 1, CC» - “ao vendedor cabe restituir o preço recebido e, pois ao comprador cabe entregar o bem”; “tal recíproca restituição (do bem e do preço) concretiza o efeito retroativo da anulação do negócio”.

«Consequentemente, sendo possível a restituição em espécie, não deve ser ponderado para o efeito o benefício que a A. obteve com a utilização mensal da casa, tanto mais que ficou - durante o mesmo período temporal - também desprovida do preço correspondente, e não lesou por qualquer forma o direito dos Réus[10].

Assim, com base no regime da anulação do negócio, os Réus não têm direito à pretendida quantia mensal relativa ao valor de utilização da fração. Nem se concebe que o pudessem ter, pois a sua pretensão transmutaria um contrato de compra e venda anulado num contrato de arrendamento, ao nível da respetiva eficácia, sem qualquer fundamento legal, e ao arrepio da vontade da parte adquirente./ Acresce que não podendo imputar-se à A. a comissão de qualquer facto ilícito e culposo, também não beneficia de fundamento legal qualquer pretensão indemnizatória contra ela deduzida com base na responsabilidade contratual./ Improcedente se revela, pois, a reconvenção deduzida.»

11. Naturalmente, as obrigações recíprocas de restituição que incumbem às partes por força da anulação do negócio devem ser cumpridas em simultâneo (art.º 290º do CC).[11]

12. Procedendo parcialmente as “conclusões” da alegação de recurso, contudo, daí não resulta qualquer ganho para os Réus, porquanto apenas se evita a (desnecessária) “liquidação” das despesas com a realização da escritura (cf. II. 8., supra).


*

III. Pelo exposto, na parcial procedência da apelação (revogando/alterando parcialmente a sentença recorrida):

            a) - Altera-se a decisão de facto como se indica em II. 4, supra;

            b) - Condena-se os Réus a pagar à A. a indemnização de € 375 (trezentos e setenta e cinco euros) por despesas com a celebração da escritura de compra e venda;

c) - No mais mantém-se o decidido em 1ª instância, com o esclarecimento dito em II. 11., supra.

Custas pelos Réus/apelantes.


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31.3.2020

Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral


[1] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[2]Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[3] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[4] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 17.6.2003-processo 03A1565 (assim sumariado: “arguida simulação pelos simuladores, entende-se admissível prova testemunhal se os factos a provar surgem, com alguma verosimilhança, em provas escritas”) e 17.12.2015-processo 940/10.9TVPRT.P1.S1 e da RC de 09.01.2018-processo 8470/15.6T8CBR.C1, publicados no “site” da dgsi, o segundo também publicado na CJ-STJ, II, 112.
[5] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[6] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[7] Vide, designadamente, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4ª reimpressão, Almedina, 1974, pág. 233; C. A. da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, pág. 386 e 4ª edição (2ª reimpressão), pág. 504 e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 234.
[8] Vide, sobretudo, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, cit., pág. 237.
[9] Vide Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, cit., pág. 239 e C. A. da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, pág. 389 e 4ª edição (2ª reimpressão), pág. 509.
[10] Rectifica-se lapso manifesto da Mm.ª Juíza a quo.

[11] Veja-se, a propósito, o acórdão da RG de 19.01.2017-processo 1168/13.1TBFAF.G1 (onde se concluiu: «Na acção em que o autor pede que seja anulado um contrato de compra e venda e o réu condenado na restituição do preço recebido, não há nulidade (nem erro) da sentença que julgue procedentes tais pedidos pelo facto de o tribunal, oficiosamente, não condenar também o autor na restituição da coisa vendida. Esta impor-se-á face ao regime dos art.ºs 289º e 290º do Código Civil.»), publicado no “site da dgsi.