Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
784/12.3TACVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: VÍCIOS
REENVIO TOTAL DO PROCESSO
VALIDADE DA PROVA DA DECISÃO REENVIADA
FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Data do Acordão: 01/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL DE COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 410.º, 426.º E 426.º-A DO CPP; ART. 360.º DO CP
Sumário: I - Os vícios da decisão são defeitos da matéria de facto que se revelam apenas e só na estrutura daquela e que, distorcendo o ‘facto’, seja por insuficiência de investigação, seja por contradição, seja por erro na apreciação da prova, tornam problemática e inconveniente a sua subsunção ao direito.

II - Em todo o caso, o vício existe apenas na sentença e não nos meios de prova que sustentaram a respectiva decisão de facto como resulta, claramente, da possibilidade de o reenvio ser apenas parcial.

III - Os depoimentos dos arguidos prestados na audiência de julgamento do processo comum colectivo n.º 3/10.7PBCVL não se tornaram inválidos e insusceptíveis de valoração probatória nos presentes autos, por naquele processo comum esta Relação ter ordenado o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto.

IV - Por isso, inexiste qualquer impedimento à sua valoração nos presentes autos.

V - A falsidade de testemunho tutela o bem jurídico realização da justiça enquanto função do Estado.

VI -Tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo objectivo]

- Que o agente, investido na qualidade processual de testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, preste depoimento, apresente relatório, dê informações, ou faça traduções falsos;

- Perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14.º do C. Penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Covilhã – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, dos arguidos A... e B..., ambos com os demais sinais nos autos, imputando a cada um a prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nºs 1 e 3 do C. Penal.

Por sentença de 12 de Fevereiro de 2015 foram os arguidos absolvidos da prática do imputado crime.


*

            Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                1. O Ministério Público entende que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras da razão, da lógica e da experiência, impunha que se considerasse, para além da matéria de facto dada como provada, se desse como provada toda a matéria de facto não provada pelo Tribunal a quo, que:

a. Do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, logo desconformes com o que aconteceu.

b. Pelo que, necessária e forçosamente, os arguidos, num desses momentos, narraram factos que divergem do acontecido e percepcionado por si.

c. Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestou depoimento em sede de inquérito ao ser inquirida como testemunha, ou no dia em que foi ouvido em sede de audiência de julgamento, como testemunha.

d. Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao dever de prestar declarações com verdade.

e. E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibido pela lei penal.

Porquanto:

2. O Tribunal a quo julgou improcedente, por não provada, a acusação e, consequentemente, absolveu os arguidos A... e B... , pela prática, como autores materiais, de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelos artigos 26.º e 360.º, n.º 1 do Código Penal (CP) por ter dado como não provado essa matéria.

3. Para o efeito, foi determinante a valoração efectuada pelo Tribunal a quo dos efeitos do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 1 0.12.2013 o qual julgou nulo o acórdão proferido em sede de primeira instância no âmbito do processo n.º 3/10.7PBCVL por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2 al. a) do CPP) e, e consequência, anulou o julgamento reenviando o processo para novo julgamento nos termos do artigo 426.º-A do CPP.

4. Considerando assim que este acórdão superior declarou não apenas a nulidade do acórdão, mas também a nulidade do julgamento com o reenvio consequente do processo por ter ocorrido uma nulidade insanável, a qual implica a invalidade não só do julgamento anulado, mas também dos actos que dele dependerem e aqueles que poderem afectar considerando o teor do artigo 122.º do CPP.

5. Bem como que essa nulidade com o consequente reenvio arrasta consigo toda a prova testemunhal, incluindo, assim o depoimento prestado pela arguida em audiência de julgamento.

6. Tal como as declarações prestadas pela arguida nesse processo não são inexistentes, mas não têm qualquer valor jurídico não podendo ser valoradas por qualquer forma, nomeadamente para aferir se a arguida prestou ou não, em dois momentos distintos, depoimentos contraditórios, pelo que, também com este fundamento, teria que tal materialidade ser dada como não provada.

7. E o crime de falsidade de depoimento, aqui em análise, constitui um ilícito típico de mera actividade cujo comportamento ilícito se esgota precisamente na efectivação da conduta proibida: a prestação do depoimento falso e tal declaração falsa só deve ser considerada tipicamente relevante quando for processualmente valorável.

8. Entendendo que anulado o julgamento nesse processo onde alegadamente foram proferidas as falsas declarações, tais depoimentos não são valoráveis com a consequente inexistência de termo de comparação (outro depoimento) para aferir da sua coerência e conformidade.

9. O Tribunal a quo não deu como provada a materialidade vertida nesta sede porque, em síntese, declarado nulo o julgamento e por arrastamento o depoimento da arguida, este não pode ser valorado; e, por outro lado, anulado o julgamento, o depoimento não reveste qualquer relevância processual no processo e, nessa medida, não é tipicamente relevante.

Quanto à matéria de facto:

10. Em primeiro lugar, afigura-se-nos necessário considerar a data da prática do crime imputado aos arguidos.

11. Para responder a esta questão, importa considerar, no nosso entender, os dois momentos relevantes: aquele em que os arguidos prestam declarações na PSP da Covilhã e o outro posterior em que os mesmos são ouvidos como testemunhas na audiência de julgamento nesse processo n.º 3/10.7PBCVL.

12. Ora, é neste segundo momento em que o crime se considera praticado na medida em que nesta ocasião se constata a contradição entre os depoimentos prestados pelos arguidos na fase de inquérito e na fase de julgamento sendo os arguidos devidamente advertidos dessa falsidade ao que ambos mantêm as contradições inconciliáveis nos seus depoimentos.

                13. Destarte, cumpre esclarecer que o crime pelo qual os arguidos foram julgados foi cometido antes do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 10.12.2013 já que os aqui arguidos depuseram nesse processo n.º 3/10.7PBCVL como testemunhas a 30.04.2010 e 31.05.2010 na fase de inquérito e em 14.09.2012 na fase de julgamento.

14. Releva para o tratamento do caso em apreço considerar que o Tribunal da Relação de Coimbra julgou nulo o acórdão por falta de fundamentação e não por ter considerado que se verificou qualquer nulidade insanável nos termos do artigo 119.º do CPP com os efeitos previstos no artigo 122.º deste diploma legal ou vícios na prestação dos depoimentos das testemunhas aqui arguidos.

15. Assim, esta prova aí produzida que deu origem a estes autos não se encontra de modo algum afectada.

16. Consequentemente, o julgamento foi então anulado já que para fundamentar o acórdão aí proferido é necessária a realização de novo julgamento atenta a insuficiência da fundamentação para o acórdão que foi aí proferido em 1ª instância.

17. Entendemos que as decisões proferidas nesse processo apenas serão relevantes na eventualidade de colocarem em crise esses dois depoimentos dos arguidos nas duas fases processuais em que foram ouvidos como testemunhas, sendo agora indiferentes para a apreciação deste crime decisões de nulidade que afectam o arguido desse processo ou outros sujeitos processuais do mesmo.

18. As decisões posteriormente proferidas nesse processo que não digam respeito a estes arguidos não relevam na medida em que não constituem, além do mais, decisão prejudicial nos termos do artigo 7.º do CPP.

19. Esta é a única interpretação in casu compatível com a obediência ao princípio da suficiência do processo penal e respeito pelo objecto do processo.

                20. Consideramos, ainda, que, mesmo que o arguido desse processo fosse aí absolvido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o crime já estaria cometido pelos aqui arguidos quando tal decisão fosse proferida.

21. Importa considerar o esclarecimento que presta Paulo Pinto de Albuquerque: "A declaração pode ser oral, por gestos ou por escrito. É irrelevante a natureza, a fase e o resultado do processo em que é feita a declaração e a circunstância de a declaração ser a favor ou contra o réu ou arguido" (in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 934 nota 6).

22. Tal acórdão não afecta as declarações já anteriormente prestadas nesse processo porquanto se trata de um meio de prova validam ente produzido em termos processuais penais.

23. A doutrina esclarece a este propósito que as declarações das testemunhas não poderão ser consideradas típicas se forem prestadas por uma entidade incompetente, ou em violação de formalidades essenciais e exista uma proibição de valoração da declaração como utilização de um método proibido de prova ainda que neste último caso não de uma forma tão pacífica (in Comentário Conimbricense, do Código Penal, parte especial, Tomo III, Coimbra Editora 2001, pág. 470 a 473).

24. A este propósito aqui esclarece Medina Seiça: "A violação dos dispositivos processuais relativos à prestação da declaração que impliquem, endo-processualmente, a proibição da valoração, tem como consequência a negação da tipicidade do depoimento não conforme à verdade. O mesmo é dizer que uma declaração falsa só é tipicamente relevante quando for processualmente valorável", E acrescenta "Note-se, porém, que a impossibilidade de valoração tem de fundar-se numa violação processual que respeite à própria declaração probatória (…) Outro tipo de violações, ainda que determinem a nulidade de todo o processo como a irregular composição do Tribunal, ou o emprego de forma especial fora dos casos previstos, ou a violação de disposições sobre a presença obrigatória do arguido, não excluem a tipicidade.

25. Em segundo lugar, atentemos para a circunstância de a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo e a sua motivação padecer de uma contradição evidente já que a  nulidade do acórdão e consequentemente do julgamento realizado no processo 3/10.7PBCVL, com o consequente reenvio, arrasta consigo toda a prova testemunhal, incluindo, assim o depoimento prestado pelos aqui arguidos em audiência de julgamento.

26. Contudo, apesar desta consideração, o Tribunal a quo faz constar na matéria de facto provada tais depoimentos prestados na audiência de julgamento nesse processo na qualidade de testemunha pelos aqui arguidos.

27. O Tribunal a quo, ao dar como provados os depoimentos prestados pelos arguidos na fase de inquérito e na fase de julgamento, considera a existência de contradições.

28. Estas contradições manifestam-se na circunstância dos arguidos na fase de inquérito nesse processo terem declarado que:

a. A... : (…) verifiquei que o Sr. C... , marido de D... , saiu do café, dirigiu-se à esplanada, deixando o seu copo de bebida e de mãos vazias abordou aquele indivíduo na iminência de lhe pedir a máquina fotográfica para ver as fotos, esse mesmo indivíduo não lhe facultou a máquina dizendo que não era dele; no seguimento o Sr. C... tocou num dos braços do indivíduo que tirava as fotografias, originou-se uma confusão e verifiquei que o indivíduo que tinha tirado as fotos caía de costas do espaço da esplanada para via pública.

b. B... : A dado momento verifiquei que um indivíduo de sexo masculino da esplanada do café tirava-nos fotografias; momentos depois o Snr. C... ao aperceber-se que já estava a passar a mais, saiu do balcão e dirigiu-se à esplanada; Verifiquei que gestual mente, movimentando um dos braços, o Snr. C... pedia a máquina ao indivíduo e mais tarde chamou-o à parte; entretanto o indivíduo que tinha a máquina desferiu uma cabeçada na zona do sobrolho esquerdo do Sr. C... , de seguida o Snr. C... ripostou, afastando-o do seguinte modo: com o braço flectido e num movimento de dentro para fora tocou no corpo do indivíduo da máquina fotográfica no momento em que este se encontrava a cerca de três metros de costas para o gradeamento da esplanada; do resultado desse toque o indivíduo de costas foi andando para trás de forma desequilibrada, batendo nas grades da mesma tendo ainda tentado segurar-se com ambas as mãos.

29. E na fase de julgamento declarou:

a. A... : (…) estava tudo calmo, estavam a falar uns com os outros. Em que estava aquele de pé, um senhor e o C... , Em que há um gesto de uma cabeçada em que o C... levanta para se proteger, para proteger a cara. Aí nos entretantos vejo um senhor a recuar vi-o a bater na grade … caiu o senhor;" Perguntado se nesse período de tempo ouviu falar numa máquina fotográfica responder não, não ouvi.

b. B... : quando perguntada pela conversa mantida entre o C... e o Assistente G... , referiu: "era uma conversa amigável entre eles … Quando vejo o Snr. G... a dar uma cabeçada no C... , e o C... a defender-se, levantando o braço esquerdo. Vejo o Snr. G... a vir ao atrás, atrás muito lentamente, muito lentamente com os braços no ar. Embate com a anca na grade, ele trazia uma garrafa na mão, deixa-a cair. Embate com a anca na grade, ele tenta-se segurar na grade mas desequilibra-se e caiu para parte de baixo. Perguntada sobre a distância declarou que G... estava a cerca de 8/ 9 metros.

30. Estas declarações considera-as o Tribunal a quo como provadas.

31. Portanto, enquanto na fase de inquérito o arguido A... declarou que C... tocou num dos braços do indivíduo que tirava fotografias referindo-se ao facto de este não lhe ter facultado a máquina, já em audiência de julgamento diz que não ouviu falar na máquina fotográfica, refere-se a uma cabeçada de G... a C... que não referiu em inquérito e não declarou nesta fase ao toque de C... num dos braços de G... como relatou em inquérito.

32. Já no que diz respeito à arguida B... , em inquérito declarou que na sequência da cabeada de G... a C... este ripostou afastando-o com o braço flectido num movimento de dentro para fora tocou no corpo do indivíduo da máquina fotográfica quando se encontrava a cerca de três metros de costas para o gradeamento da esplanada, enquanto que em julgamento apenas diz que G... deu uma cabeçada no C... e este defendeu-se levantando o braço esquerdo sem que tenha tocado no corpo do mesmo e a distância referida por esta arguida em inquérito (3 metros) e julgamento (8/9 metros) que G... recuou é muito diferente e incompatível.

33. Saliente-se (que não nos encontramos perante depoimentos meramente divergentes em aspectos circunstanciais, o que por vezes se verifica em virtude de, quando uma pessoa tem reproduzir mais do que uma vez o mesmo acontecimento, frequentemente não o fazer da mesma maneira, mesmo quando esteja a depor com total sinceridade.

34. Diferentemente, os ora arguidos, quando prestaram depoimento na fase de inquérito do processo nº 3/10.7PBCVL narraram determinados factos em inquérito e, ao serem inquiridos em audiência, narraram outros em contradição o que aconteceu com outras testemunhas também do arguido.

35. Precisamente, estes factos são da maior importância para apurar a responsabilidade de C... na queda do indivíduo a quem foi pedir a máquina fotográfica, o que aconteceu com outras testemunhas a corroborar em julgamento esta versão dos factos apresentada pelo arguido.

36. Evidenciamos, novamente, que o Tribunal a quo considerou como provadas tais declarações prestadas pelos arguidos nas duas fases desse processo nas quais são evidentes as contradições.

37. Assim sendo, constatamos insuficiência na motivação para dar como não provados os factos referidos.

38. Considerando que os arguidos foram, no processo n.º 3/10.7PBCYL, advertidos das suas contradições inconciliáveis entre si constando dos autos o depoimento prestado pelos arguidos em fase de inquérito o Tribunal a quo nunca poderia ter dado como não provado que:

a. Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestou depoimento em sede de inquérito ao ser inquirida como testemunha, ou no dia em que foi ouvido em sede de audiência de julgamento, como testemunha.

b. Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre, voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao dever de prestar declarações com verdade.

c. E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibidos pela lei penal.

39. Por último, o Tribunal a quo considera que a declaração falsa só deve ser considerada tipicamente relevante quando for processualmente valorável e, anulado o julgamento, considera que tal depoimento não é valorável com a consequente inexistência de termo de comparação.

40. Para além da contradição já apontada, importa considerar o teor do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra nesse processo n.º 3/10.7PBCVL.

41. Aí consta, como resulta de fls. 321 v.º destes autos que foram valorados tais depoimentos em sede de 1.ª instância considerando aí o teor do depoimento dos aqui arguidos e as contradições dessas declarações já que o Tribunal fez constar nesse acórdão, ao referir-se a essas declarações e de outras testemunhas que também revelaram incoerências entre os seus depoimentos prestados na fase de inquérito e na fase de julgamento, que: "o depoimento destas testemunhas foi, notoriamente, ensaiado e revelou-se incoerente e contraditório sendo, ainda, certo que estes eram amigos do arguidos e manifestaram, todo um interesse em que não houvesse lugar a uma condenação. Por outro lado, os fundamentos que alegaram para não responderem com veracidade perante a PSP chegaram a raiar o grotesco: a Ester referiu que ficava nervosa perante a PSP (o que trazia como consequência mentir a esta entidade) e a Rute que, como estava grávida e nervosa, não queria envolver-se em processos judiciais" (cfr. fls. 324 v.º),

42. Portanto, ao contrário do que refere o Tribunal a quo, os depoimentos dos aqui arguidos foram valorados colocando em causa a realização da justiça.

43. Nestas condições, parece-nos da lógica mais elementar que quando alguém afirma, numa ocasião, uma coisa e, noutra ocasião, o contrário dessa coisa, está necessariamente a faltar à verdade numa das vezes, mesmo que não se saiba qual das duas afirmações é a verdadeira e tal contradição foi valorada pelo Tribunal.

44. Concludentemente, entendemos que a matéria de facto dada como não provada deve ser dada como provada alterando-se a matéria de facto provada, no sentido de se acrescentar:

a. Do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, logo desconformes com o que aconteceu.

b. Pelo que, necessária e forçosamente, os arguidos, num desses momentos, narraram factos que divergem do acontecido e percepcionado por si.

c. Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestou depoimento em sede de inquérito ao ser inquirida como testemunha, ou no dia em que foi ouvido em sede de audiência de julgamento, como testemunha.

d. Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao deter de prestar declarações com verdade.

e. E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibido pela lei penal.

45. Entendemos que o Tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova, nomeadamente ao valorar as declarações dos arguidos, pois das declarações dos arguidos, conjugadas com as regras da lógica c da experiência comum, outra deveria ter sido a conclusão do Tribunal a quo considerando como provados os factos integradores dos elementos objectivo e subjectivo que constam da matéria de facto não provada face às contradições evidentes que deu como provadas e à circunstância dos aqui arguidos terem sido aí advertidos das contradições nas suas declarações enquanto testemunhas dando uma explicação.

Da consequente discordância relativamente ao direito aplicado pelo Tribunal a quo

46. Com o crime de falsidade de depoimento p. e p. artigo 360.º, n.º 1 do CP, o legislador protege o bem jurídico da realização da justiça a qual se realizará tanto mais quanto as testemunhas falarem com verdade ao deporem nessa qualidade.

47. Este crime é de perigo abstracto relativamente à lesão desse bem jurídico que tutela e de mera actividade quanto à consumação do ataque ao objecto da acção.

48. Considerando já o caso em apreço, objectivamente este crime exige a prestação de um depoimento falso e, subjectivamente, exige-se dolo em qualquer uma das suas modalidades.

49. Subscrevemos a orientação jurisprudencial maioritária ao considerar que O facto de não ter sido possível apurar em qual dos dois momentos temporais o recorrente faltou à verdade, se quando foi inquirido durante o inquérito, se quando foi ouvido em julgamento, quando é certo que os dois depoimentos por ele prestados são contraditórios e absolutamente inconciliáveis e, por isso, um deles é necessariamente falso, não obsta a que se considere preenchido o tipo legal de crime em questão, tal como o vem entendendo a jurisprudência que pensamos ser maioritária conforme considera o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.03.2013, processo n.º 169/10.6TAALJ.Pl.

50. Tendo em conta matéria de facto dada como provada entendemos que se encontram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de que os arguidos vêm acusados por terem presta do depoimentos divergentes, em dois momentos distintos, perante a PSP da Covilhã na fase de inquérito e o Juiz no extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã na fase de julgamento.

51. Concluímos, pois, que a decisão de facto e de direito do Tribunal a quo deve ser modificada nos termos do artigo 431.º. alínea a) do CPP, condenando-se cada um dos arguidos pela prática, na forma dolosa, como autor material e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelos artigos 26.º e 360.º, n.º 1 ambos do Código Penal numa pena de multa atendendo a que os arguidos não têm antecedentes criminais.

52. Pelo supra exposto, o Tribunal a quo, ao não condenar os arguidos pela prática, dolosa, como autores materiais e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelos artigos 26.º e 360.º, n.º 1 ambos do Código Penal, incorreu em dois vícios.

53. Erro notório na apreciação da prova ao considerar que não existem duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, bem como efeitos do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no processo n.º 3/10.7PBCVL para além do legalmente admissível.

54. Erro de direito por ter violado o disposto nos artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1ambos do Código Penal ao não condenar cada um dos arguidos pela prática do crime de falsidade de testemunho atendendo a que a sua conduta preenche os elementos objectivos e subjectivos do mesmo.

55. Ternos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, fundamentado nos termos do artigo 410.º, n.º 1 do CPP, considerando toda a prova produzida em audiência de julgamento, e, em consequência, ser revogada a decisão proferida em 1.ª instância.

56. Sendo modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada, acrescentando-se os seguintes factos provados:

a. Do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, logo desconformes com o que aconteceu.

b. Pelo que, necessária e forçosamente, os arguidos, num desses momentos, narraram factos que divergem do acontecido e percepcionado por si.

c. Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestou depoimento em sede de inquérito ao ser inquirida como testemunha, ou no dia em que foi ouvido em sede de audiência de julgamento, como testemunha.

d. Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao deter de prestar declarações com verdade.

e. E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibido pela lei penal.

57. Condenando-se os arguidos A... e B... pela prática, dolosa, como autores materiais e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelos artigos 26.º e 360.º, n.º 1 ambos do CP numa pena de multa atendendo a que os arguidos não têm antecedentes criminais.

Certa de que, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso a arguida, alegando não existir contradição entre a decisão de facto e a motivação, não existirem declarações prestadas perante tribunal quando o julgamento foi anulado e ordenado o reenvio, não serem valoráveis as declarações prestadas enquanto testemunha na audiência anulada, não ter sido feita a comunicação da alteração dos factos descritos na acusação pois que nesta as falsas declarações foram prestadas na audiência de julgamento, não existirem elementos que sustentem o dolo pois várias razões podem justificar a divergência nas declarações prestadas, e concluiu pela improcedência do recurso.

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Respondeu também ao recurso o arguido, afirmando a bondade da fundamentação e a inexistência de vícios da sentença e concluiu pelo não provimento do recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a motivação do recurso, afirmando que as declarações dos arguidos não padeciam de nulidade, que existe erro notório na apreciação da prova e que, com a modificação da decisão de facto, devem os arguidos ser condenados, e concluiu pelo provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, foi decidido comunicar aos arguidos uma alteração não substancial de factos.

Feita a comunicação, respondeu a arguida B... , pronunciando-se no sentido de a alteração comunicada ser antes uma alteração substancial dos factos.


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            Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada recorrente – que de tão extensas, dificilmente cumprem a função que lhes é assinalada na norma supra citada –, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A invalidade da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento do processo nº 3/10.7PBVVL, face ao reenvio decretado pela Relação, e a consequente impossibilidade da sua valoração para efeitos do preenchimento do tipo do crime de falsidade de testemunho;

- A contradição insanável da fundamentação;

- O erro notório na apreciação da prova e a modificabilidade da decisão de facto;

- O preenchimento do tipo do crime de falsidade de testemunho e suas consequências.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

           

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

                1. Pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã correu termos o processo comum colectivo nº 3/10.7 PBCVL, em que foi arguido C... ;

2. Nesses autos, foram imputados ao arguido C... factos que terão ocorrido na madrugada do dia 4 para o dia 5 de Janeiro de 2010;

3. A investigação desses factos, na fase de inquérito, esteve a cargo da P.S.P. da Covilhã;

4. Entre as variadas diligências de inquérito, procedeu a P.S.P. à inquirição dos agora arguidos A... e B... , na qualidade de testemunhas, em 30/04/2010 e 31/05/2010, respectivamente, por alegadamente se encontrarem presentes no local em que os factos terão ocorrido, mais concretamente no estabelecimento de café/bar denominado " (...) ", sito na Rua (...) , nesta cidade da Covilhã;

5. Nessa data, muito próxima, ainda, dos acontecimentos, de forma clara, precisa, livre e voluntária, e prescindindo da presença de Advogado, os ora arguidos declararam, entre outras coisas, o seguinte:

A) TESTEMUNHA A... :

I) Na esplanada do referido café encontrava-se um indivíduo do sexo masculino …;

II) A dado momento verifiquei que esse indivíduo do sexo masculino fotografava a minha amiga D... , que por sinal manifestava-se incomodada;

III) De seguida também verifiquei que o Sr. C... , marido da D... , saiu do café, dirigiu-se à esplanada, deixando o seu copo de bebida no balcão e de mãos vazias abordou aquele indivíduo;

IV) Na iminência de lhe pedir a máquina fotográfica para ver as fotos;

V) Esse mesmo indivíduo não lhe facultou a máquina, dizendo que não era dele;

VI) No seguimento … o Sr. C... tocou num dos braços do indivíduo que tirava as fotografias, … originou-se uma confusão, … e verifiquei que o indivíduo que tinha tirado as fotos caía de costas do espaço da esplanada para a via publica;


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B) TESTEMUNHA B...

I) A dado momento verifiquei que um indivíduo do sexo masculino … da esplanada do café tirava-nos fotografias;

II) Momentos depois o Sr. C... ao aperceber-se que já estava a passar a mais, saiu do balcão e dirigiu-se à esplanada;

III) Verifiquei que gestualmente, movimentando um dos braços, o Sr. C... pedia a máquina ao indivíduo e mais tarde chamou-o à parte;

IV) Entretanto o indivíduo que tinha a máquina deferiu uma cabeçada na zona do sobrolho esquerdo do Sr. C... , de seguida o Sr. C... ripostou, afastando-o do seguinte modo: com o braço flectido e num movimento de dentro para fora tocou no corpo do indivíduo da máquina fotográfica, no momento que este se encontrava a cerca de três metros de costas para o gradeamento da esplanada;

V) Do resultado desse toque o indivíduo de costas foi andando para trás de forma desequilibrada, batendo nas grades da mesma, tendo ainda tentado segurar-se com ambas as mãos;


*

6. Entretanto o processo referido em 1. observou a sua normal tramitação, tendo chegado à fase de julgamento, para a qual foram convocados os ora arguidos para deporem na qualidade de testemunhas, depois de terem sido indicadas para o efeito;

7. No dia 14 de Setembro de 2012, numa das várias sessões de julgamento que ocorreram no referido processo, e depois de o Mmo. Juiz presidia à audiência de julgamento, sobre os factos constantes da acusação, o ora arguido A... , a instâncias do Ex.mo Senhor Procurador, já declarou o seguinte:

A) … ”estava tudo calmo, estavam a falar uns com os outros. Em que estava aquele de pé, um senhor e o C... . Em que há um gesto de uma cabeçada, em que o C... levanta para se proteger, para proteger a cara. Aí nos entretantos vejo um senhor a recuar … vi-o a bater na grade … caiu o senhor;

B) Perguntado que espaço é que esse senhor foi a cambalear, respondeu "aí uns 10 passos, ou 11";

C) Perguntado se nesse período de tempo ouviu falar numa máquina fotográfica, respondeu "não, não ouvi";


*

8. Advertido pelo Mmo. Juiz de Direito para as verificadas contradições manteve o A... na íntegra o seu depoimento;

*

9. No dia 19 de Setembro de 2012, numa das várias sessões de julgamento que ocorreram no referido processo, e depois de prestar juramento legal, perante o Mmo. Juiz que presidia à audiência de julgamento, sobre os factos constantes da acusação, a ora arguida B... , a instâncias do Senhor Procurador, já declarou o seguinte:

A) Afirmou que duas amigas foram lá fora fumar um cigarro, a Rute e a D... , e que quando vinham para dentro ":foram interpeladas pelo Sr. G... , que eu não conhecia. Que lhes fechou a porta, da parte de dentro ia a sair um senhor … Fechou-lhes a porta, quando elas queriam entrar para dentro do bar …;

B) Quando perguntada pela conversa mantida entre o C... e o assistente G... , referiu "era uma conversa amigável entre eles … Quando vejo o Sr. G... a dar uma cabeçada no C... , e o C... a defender-se, levantando o braço esquerdo. Vejo o Sr. G... a vir ao atrás, atrás muito lentamente, muito lentamente com os braços no ar. Embate com a anca na grade, ele trazia uma garrafa na mão, deixa-a cair. Embate com a anca na grade, ele tenta-se segurar na grade, mas desequilibra-se e cai para a parte de baixo";

C) Perguntada sobre a distância a que se encontravam aquando da referida conversa até à grade, declarou que estes estavam debaixo do toldo da esplanada, a uma distância de cerca de 8/9 metros da grade, onde acabou por embater antes de cair;

10. Mesmo depois de advertida pelo Mmo. Juiz de Direito para as verificadas contradições de depoimentos, a ora arguida B... manteve na íntegra o seu depoimento;


***

11. O Acórdão proferido nos autos de processo comum colectivo n.º 3/10.7PBCVL foi julgado nulo, por acórdão do TRC datado de 10/12/2013.

12. Mais se decidiu no acórdão referido em f) “ … anular o julgamento, reenviando o processo para novo julgamento (no caso a incidir sobre a totalidade do objecto do processo) …”

13. A arguida B... sofre de epilepsia;

14. É tida por pessoa séria no meio onde vive;

14. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

a) Do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, logo desconformes com o que aconteceu.

b) Pelo que, necessária e forçosamente, os arguidos, num desses momentos, narraram factos que divergem do acontecido e percepcionado por si.

c) Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestou depoimento em sede de inquérito ao ser inquirido como testemunha, ou no dia em que foi ouvido em sede de audiência de julgamento, como testemunha.

d) Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram ao dever de prestar declarações com verdade.

e) E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibidos pela lei penal.

(…)”.

C) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

Os factos dados como provados colhem a sua demonstração no teor do depoimento do sr.agente da PSP H... que tomou as declarações aos arguidos em sede de inquérito e teor certidão das declarações juntas aos autos extraídas do processo n.º 3/10.7PBCVL (fls. 1 a 333) e auto de transcrição das declarações dos arguidos prestadas em julgamento.

Face ao teor do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 302, deu-se como provada a anulação do julgamento.

Mais se valoraram as declarações das testemunhas E... e F... sobre a situação pessoal doa arguida e, ainda, CRC, s de fls. 360 e 361;


*

A restante factualidade foi dada como não provada, na ponderação do facto do venerando T.R. Coimbra ter declarado não só nulidade do acórdão mas também a nulidade do julgamento com o consequente reenvio do processo.

A decisão de reenvio traduz-se no ajuizar de verificação de nulidade insanável (e só estas dão lugar ao reenvio) o que implica a invalidade não só o acto anulado (julgamento), mas também dos actos que dele dependerem e aquelas que poderem afectar (cfr. art.º 122 do C. Processo Penal) ou seja, “A declaração de nulidade sanável ou insanável tem o efeito da invalidade de todos os efeitos substantivos, processuais e materiais do acto nulo.” Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C. Processo Penal, anotação ao art.º 122).

Assim entendendo, a nulidade do julgamento e consequente reenvio arrasta consigo toda a prova testemunhal, incluindo, assim os depoimentos prestados pelos arguidos em audiência de julgamento.

Ora, é certo que as declarações não são inexistentes, elas existem no processo, mas não têm qualquer valor jurídico, não podem ser valoradas por qualquer forma, nomeadamente para aferir se os arguidos prestaram ou não, em dois momentos distintos, depoimentos contraditórios, pelo que, também com este fundamento, teria que tal materialidade ser dada como não provada.

Há, ainda, que outra razão, de ordem material.

É imputado ao arguido um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal.

O bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito ora em causa é o interesse do Estado na realização ou administração da justiça, ou seja, “o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão” (vide A. Medina de Seiça, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, pág. 453 e 460). Trata-se de um crime de perigo abstracto, no sentido de que, para o seu preenchimento, desnecessário se torna que a declaração falsa prejudique, efectivamente, o esclarecimento da verdade, suporte da decisão, ou que, em concreto, o tenha colocado em perigo. Para além do mais, o crime em análise reveste, igualmente, a natureza de ilícito típico de mera actividade, pois que o comportamento ilícito se esgota precisamente na efectivação da conduta proibida – a prestação do depoimento falso. A acção típica, para efeitos de preenchimento do ilícito ora em causa, consiste na prestação de declaração falsa.

Todavia, tal declaração falsa só dever ser considerada tipicamente relevante quando for processualmente valorável.

Ora, anulado o julgamento temos que tais depoimentos não são valoráveis com a consequente inexistência de termo de comparação (outro depoimento) para aferir da sua coerência e conformidade, no entendimento jurisprudencial vertido na acusação de que (citando entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo: 195/09.8T3AVR.C1 Nº convencional: JTRC, datado de 18-05-2011,) em que se escreveu, citando, “ … é irrelevante para a verificação do tipo a circunstância de se não ter apurado em qual das ocasiões o ora recorrente faltou à verdade, se quando prestou declarações em inquérito, se quando prestou depoimento em audiência. O requisito material ou objectivo que condiciona a verificação do tipo legal previsto no art. 360º, nº 1, do Código Penal, na vertente do depoimento testemunhal, é a prestação de depoimento falso, elemento que está indesmentivelmente comprovado, já que tendo o recorrente prestado declarações díspares naquelas duas ocasiões, não restam dúvidas de que num dos depoimentos faltou à verdade …”

Pelo exposto não se deu como provada a materialidade vertida nesta sede porque, em síntese, declarado nulo o julgamento e por arrastamento os depoimentos dos arguidos, este não podem ser valorados; e, por outro lado, anulado o julgamento os depoimento dos arguidos não reveste qualquer relevância processual no processo e, nessa medida, não são tipicamente relevantes.

(…).

D) E a seguinte fundamentação de direito:

“ (…).

É imputado a cada um dos arguidos um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal.

Dispõe a referida norma, no seu n.º 1, que “Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de...

A acção típica, para efeitos de preenchimento do ilícito ora em causa, consiste na prestação de declaração falsa, que, na versão da acusação se traduziu, em o arguido ter prestado depoimentos divergentes, em dois momentos distintos.

Da análise da materialidade dada como provada colhe-se que não é susceptível de preencher o tipo de ilícito imputado a cada um dos pelo que há que os absolver, o que se decide.

(…).


*

Da invalidade da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento de processo reenviado para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto, para efeitos do preenchimento do tipo do crime de falsidade de testemunho que tem por objecto depoimentos prestados naquela audiência

1. A questão a decidir resulta das divergentes opiniões sobre a valoração de depoimentos de testemunhas produzidos em audiência de julgamento em processo em que o tribunal superior veio a ordenar o reenvio quanto à totalidade do seu objecto, para efeitos do preenchimento do tipo do crime de falsidade de testemunho em processo que tem por objecto tais depoimentos.

Na sentença recorrida, brevitatis causa, entendeu-se que a decisão de reenvio traduz a verificação de nulidade insanável, determinante da invalidade do julgamento e de todos os actos dele dependentes designadamente, da prova testemunhal nele produzida, tornando inválidos e por isso, insusceptíveis de valoração, no processo que tem por objecto a eventual prestação de falsa declarações, os depoimentos de testemunhas que naquele julgamento tenham, eventualmente, faltado à verdade. E a esta posição aderiram, como seria expectável, os arguidos.

Diferente é o entendimento da Digna Magistrada recorrente para quem, e em síntese, o crime imputado aos arguidos se consuma no momento em que estes prestam declarações na audiência de julgamento e portanto, em momento muito anterior ao da decisão do tribunal superior que determinou o reenvio total e como esta decisão não reconheceu a existência de qualquer nulidade insanável ou vício atinente à prestação dos depoimentos designadamente, uma qualquer proibição de prova, mantém-se a plena validade dos mesmos, para o referido efeito, porque produzidos de acordo com as regras do processo penal. 

Vejamos a quem, em nosso entender, assiste razão.

2. Os aqui arguidos depuseram como testemunhas, num primeiro momento, na fase do inquérito, e num segundo momento, na fase do julgamento, do processo comum colectivo nº 3/10.7PBCVL do então, 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da Covilhã. Por acórdão desta Relação de 10 de Dezembro de 2013, proferido em recurso interposto do acórdão condenatório proferido, foi julgada verificada a nulidade do acórdão por falta de fundamentação e julgado verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, por via deste, ordenado o reenvio do processo para novo julgamento, quanto à totalidade do seu objecto.

Assim, tendo entendido a Relação que no acórdão concorriam, uma nulidade da sentença e um vício da decisão, porque o âmbito dos efeitos legais deste último é mais vasto do que o da nulidade, determinou o reenvio que, como se sabe, significa, dada a impossibilidade de corrigir o vício através da renovação da prova, o regresso dos autos à origem isto é, à 1ª instância, para que, através de novo julgamento, seja proferida uma nova decisão de facto, abrangendo todo o objecto do processo, que proceda à eliminação da deficiência que afectava a primitiva decisão de facto e permita a adequada aplicação do direito.

Ainda que todos possam constituir fundamento de recurso, vícios da decisão e nulidades, sanáveis ou insanáveis, não se confundem (cfr. art. 410º, nºs 2 e 3 do C. Processo Penal), sendo diferentes as respectivas consequências. Os primeiros, não sendo possível o seu suprimento, dão origem ao reenvio, as segundas, dão origem à anulação do acto nulo e dos subsequentes.

Os vícios da decisão são defeitos da matéria de facto que se revelam apenas e só na estrutura daquela e que, distorcendo o ‘facto’, seja por insuficiência de investigação, seja por contradição, seja por erro na apreciação da prova, tornam problemática e inconveniente a sua subsunção ao direito. Em todo o caso, o vício existe apenas na sentença e não nos meios de prova que sustentaram a respectiva decisão de facto como resulta, claramente, da possibilidade de o reenvio ser apenas parcial.

Por outro lado, é discutível a afirmação da Digna Magistrada do Ministério Público de que o crime de falsidade de testemunho imputado aos arguidos se consumou no momento em que estes, como testemunhas, depuseram na audiência de julgamento [do processo comum colectivo nº 3/10.7PBCVL portanto, no dia 14 de Setembro de 2012, para o arguido e no dia 19 de Setembro de 2012, para a arguida]. Com efeito, a não coincidência entre dois depoimentos da mesma testemunha apenas evidencia a contradição existente e portanto, que um deles não tem correspondência com a verdade sendo, por isso, depoimento falso, mas não diz, por si só, a qual deles falta aquela correspondência. Não obstante, o que, em todo o caso, temos por seguro é que os dois depoimentos não coincidentes de cada testemunha, ora arguido, foram prestados em momento anterior ao da elaboração do acórdão condenatório.

No que especificamente respeita aos depoimentos prestados na audiência de julgamento, devendo entender-se que uma declaração falsa só é tipicamente relevante quando for processualmente valorável no processo onde foi produzida (Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 472), não há notícia, nem a sentença recorrida o refere, de qualquer violação de regras processuais determinativa da proibição de valoração dos depoimentos ali prestados pelos ora arguidos os quais, ali foram valorados e, de alguma forma, contribuíram para o suporte da decisão de facto proferida no acórdão. Por outro lado, outro tipo de invalidades processuais designadamente, nulidades insanáveis, mesmo que possam determinar a nulidade de todo o processo, não excluem a tipicidade da declaração falsa, porque integrada em prova testemunhal validamente produzida (cfr. aut. e ob. cit., pág. 473). 

Em conclusão, os depoimentos dos arguidos prestados na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 3/10.7PBCVL não se tornaram inválidos e insusceptíveis de valoração probatória nos presentes autos, por naquele processo comum esta Relação ter ordenado o reenvio do processo para novo julgamento quanto à totalidade do seu objecto. Por isso, inexiste qualquer impedimento à sua valoração nos presentes autos.


*


            Da contradição insanável da fundamentação

            3. Ainda na sequência da anterior questão, alega a Digna Magistrada recorrente – conclusões 25 e 26 – existir contradição entre a matéria de facto provada e motivação de facto pois se, como desta consta, a nulidade do julgamento e reenvio do processo determinou a invalidade da prova testemunhal, certo é que os depoimentos das testemunhas prestados naquele julgamento, constam como provados, na sentença recorrida.

            Vejamos.

           

Nos pontos 7 e 9 dos factos provados da sentença constam segmentos dos depoimentos prestados na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 3/10.7PBCVL pelos ora arguidos. Por seu turno, da motivação de facto, supra transcrita, consta, além do mais o que segue: «Assim entendendo, a nulidade do julgamento e consequente reenvio arrasta consigo toda a prova testemunhal, incluindo, assim os depoimentos prestados pelos arguidos em audiência de Julgamento. Ora, é certo que as declarações não são inexistentes, elas existem no processo, mas não têm qualquer valor jurídico, não podem ser valoradas por qualquer forma, nomeadamente para aferir se os arguidos prestaram ou não, em dois momentos distintos, depoimentos contraditórios, pelo que, também com este fundamento, teria que tal materialidade ser dada como não provada. (…). Pelo exposto, não se deu como provada a materialidade vertida nesta sede, em síntese, declarado nulo o julgamento e por arrastamento os depoimentos dos arguidos, estes não podem ser valorados; e, por outro lado, anulado o julgamento os depoimentos dos arguidos não revestem qualquer relevância processual no processo e, nessa medida, não são tipicamente relevantes.».     

Apesar de alguma falta de clareza na exposição, parece evidente que se as declarações dos arguidos não têm, como se afirma na motivação de facto, qualquer valor jurídico e por isso, não podem ser valoradas para o fim apontado, então não deveriam constar do elenco dos factos provados precisamente porque tal significa a sua valoração como factos integrantes do objecto do processo. E assim, pareceria existir efectivamente a apontada contradição, subsumível ao vício previsto na alínea b), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.  

Sucede que, tendo-se entendido nada obstar à valoração probatória nos presentes autos, dos depoimentos dos arguidos prestados na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 3/10.7PBCVL, fica sanado o vício em referência.


*

Do erro notório na apreciação da prova e da modificabilidade da decisão de facto

4. Alega a Digna Magistrada recorrente – conclusões 27, 30, 33, 36, 38, 45, 53 e 56 – que o tribunal a quo cometeu erro notório na apreciação da prova pois, tendo feito constar dos factos provados as declarações prestadas pelos arguidos, enquanto testemunhas no processo nº 3/10.7PBCVL, no inquérito e na audiência de julgamento, dadas as contradições existentes entre elas em aspectos que não são meramente circunstanciais e a advertência que lhes foi feita, relativa a tais contradições, não poderiam ter sido considerados não provados os factos vertidos nas alíneas a) a e) dos factos não provados da sentença, tendo assim incorrido em erro notório na apreciação da prova na sequência do que, deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto, passando aqueles factos não provados a constar da enumeração dos factos provados da sentença.    

Os factos sindicados têm o seguinte teor [feita a correcção de sintaxe da al. c), face à falta de concordância verificada na redacção primitiva]:

            a) Do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, logo desconformes com o que aconteceu;

b) Pelo que, necessária e forçosamente, os arguidos, num desses momentos, narraram factos que divergem do acontecido e percepcionado por si;

c) Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestaram depoimento em sede de inquérito ao serem inquiridos como testemunha, ou no dia em que foram ouvidos em sede de audiência de julgamento, como testemunhas;

d) Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao dever de prestar declarações com verdade;

e) E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibido pela lei penal.

Vejamos então.

Resulta da motivação de facto da sentença que a decisão proferida sobre a matéria de facto, na parte em que teve por objecto os factos não provados, se ficou a dever ao entendimento de não poderem ser valorados os depoimentos prestados pelas testemunhas e aqui arguidos, face à anulação do julgamento e consequente reenvio do processo. Já dissemos, porém, que nada obsta à valoração probatória nestes autos, dos depoimentos dos arguidos prestados na audiência de julgamento do processo comum colectivo nº 3/10.7PBCVL.

Pois bem. Entre os vícios da decisão, previstos no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal, conta-se o erro notório na apreciação da prova. Como os demais vícios, o erro notório respeita à estrutura interna da decisão penal por isso que, nos termos da lei, a sua demonstração deve resultar do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, Verbo, pág. 341). Dito de outra forma, o erro notório traduz um vício de raciocínio na apreciação da prova, que se revela aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 74).

i) O facto que consta da alínea a) dos factos não provados tem correspondência, com a ressalva de alguma diferença na adjectivação e a desnecessidade do que é repetitivo, com os arts. 8º e 11º da acusação.

Os factos que constam dos arts. 8º e 11º da acusação realçam o que, na perspectiva do Digno Magistrado do Ministério Público, existe de contraditório nas duas diferentes declarações prestadas por cada um dos arguidos, sendo certo que a totalidade dos segmentos de tais declarações, tidos por relevantes, constam dos arts. 5º e 6º da peça acusatória, e constam, integralmente, dos pontos 5, 7 e 9 dos factos provados.

Eliminada que foi, porém, a validade do motivo determinante da consideração como não provado do facto em questão, é evidente que ele, não obstante o que tem de conclusivo, deverá passar a constar dos factos provados, excepção feita ao seu segmento final, sob pena de contradição, desde que, bem entendido, se considere verificada a existência de versões incompatíveis.

O processo comum colectivo nº 3/10.7PBCVL tem por objecto, brevitatis causa, uma discussão, que teve origem em fotografias que o aí, ofendido G... tirava à namorada do aí arguido C... , seguida de confronto físico, entre os dois, no decurso do qual o arguido deu um empurrão ao ofendido, fazendo com que este caísse da varanda da esplanada onde se encontravam, de uma altura de seis metros, tendo sofrido lesões graves. O aí arguido veio a ser condenado, pela prática de um crime p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 144º, a), b) e c), do C. Penal, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na respectiva execução, tendo esta Relação, conforme já referido, anulado o julgamento e reenviado o processo.    

O arguido A... prestou, como testemunha, depoimento no referido processo comum, tendo declarado, no contexto supra sintetizado que:

Na fase de inquérito

- Um indivíduo fotografou a D... , mulher do C... , que ficou incomodada, o C... foi à esplanada e abordou o indivíduo para lhe pedir a máquina para ver as fotografias, o indivíduo não lhe facultou a máquina, dizendo que não era dele, o C... tocou num dos braços do indivíduo, originou-se uma confusão e viu que o indivíduo caía da esplanada para a via pública; 

Na fase de julgamento

- Estavam calmos, a falar uns com os outros, o C... e um senhor, há um gesto de uma cabeçada, o C... levanta para proteger a cara [mais adiante (fls. 90 a 91 da transcrição), precisou que o gesto da cabeçada foi feito pelo ofendido contra o arguido, e que este levantou a mão para se proteger, podendo aqui ter havido algum contacto], entretanto, vê o senhor a recuar, a bater na grade e a cair, o senhor cambaleou uns dez a onze passos, nesse período não ouviu falar de máquina fotográfica [mais adiante (fls. 92 da transcrição) afirmou que ouvia depois falar na máquina fotográfica].

É inquestionável que os depoimentos da testemunha e aqui arguido, A... divergiram quanto a ter [no inquérito] ou não [no julgamento], ouvido falar da máquina fotográfica, sendo certo que esta ou, talvez melhor dito, a utilização dela feita pelo ofendido, foram a causa da relatada abordagem do arguido C... ao ofendido.

Diferentemente se coloca a questão quanto ‘ao gesto de cabeçada’, relatado no julgamento mas não mencionado no inquérito. Com efeito, aqui, o facto afirmado no segundo momento, não havia sido negado no primeiro momento, pelo que não pode existir contradição. O que sucede é que, não se ignorando que a ‘verdadeira’ ocorrência do facto afirmado poderia, eventualmente, ‘justificar’ conduta subsequente do arguido, a sua relevância típica passaria sempre pela efectiva demonstração da falsidade da afirmação.

A arguida B... prestou, como testemunha, depoimento no referido processo comum, tendo declarado, no contexto supra sintetizado que:

Na fase de inquérito

- Um indivíduo estava a fotografá-los, o C... foi à esplanada e pediu a máquina ao indivíduo e depois, chamou-o à parte, o indivíduo desferiu uma cabeçada no sobrolho esquerdo do C... e este empurrou-o com o braço, quando o indivíduo se encontrava de costas para o gradeamento da esplanada, a três metros deste, o indivíduo andou para trás, desequilibrado, bateu nas grades e ainda tentou segurar-se;     

Na fase de julgamento

- A conversa entre o C... e o ofendido era amigável, a dada altura o ofendido deu uma cabeçada no C... e este defendeu-se, levantando o braço esquerdo, o ofendido veio para trás muito lentamente, oito a nove metros, embateu com a anca na grade, tentou segurar-se, desequilibrou-se e caiu para a parte de baixo.   

É igualmente inquestionável que os depoimentos da testemunha e aqui arguida, B... divergiram ao ter afirmado [no inquérito] a distância de três metros do ofendido ao gradeamento quando se afasta do C... , e ao ter afirmado [no julgamento] para a mesma distância, oito a nove metros.

Em suma, os dois depoimentos da testemunha e ora arguido são incompatíveis no que respeita a ter ou não ouvido falar da máquina fotográfica, e os dois depoimentos da testemunha e ora arguida são incompatíveis no que respeita à distância a que o ofendido se encontrava do gradeamento da esplanada.  

Assim, deve ser eliminada a alínea a) dos factos não provados e deve ser aditado o facto 10-A aos factos provados, com a seguinte redacção:

- Do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões incompatíveis sobre a mesma realidade.

ii) O facto que consta da alínea b) dos factos não provados mais não é do que a conclusão lógica dos factos vertidos nos arts. 5º, 6º, 8º e 9º da acusação e portanto, a conclusão lógica dos pontos 5, 7, 9 e 10-A dos factos provados pelo que, com o desaparecimento do supra referido obstáculo determinante da decisão do tribunal a quo, evidente se torna que terá que passar a constar dos factos provados, com a designação 10-B e consequente eliminação dos factos não provados.   

iii) O facto que consta das alíneas c) a e) dos factos não provados respeitam, como a sua leitura indica, ao elemento subjectivo do crime imputado aos arguidos, ao dolo, portanto. Ora, o dolo – o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade – é um facto subjectivo, isto é, um facto da vida interior do agente, insusceptível de directa apreensão por terceiro. Consequentemente, a sua demonstração probatória – não existindo confissão – não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. A prova do dolo terá então que ser feita por inferência, devendo resultar da conjugação da prova de factos objectivos – com particular destaque para os que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.

In casu, tendo ficado demonstrada a existência de contradições – versando os aspectos identificados em i) que antecede – entre os depoimentos prestados por cada um dos ora arguidos no referido processo comum colectivo, estando provado que o Mmo. Juiz que presidiu ao julgamento do dito processo comum colectivo advertiu ambos os arguidos da existência de tais contradições e tendo os arguidos mantido o que tinham prestado no julgamento – pontos 8 e 10 dos factos provados – as regras da lógica e da razoabilidade, na ausência de outros elementos de sentido contrário, impõem a conclusão de que, num dos dois momentos – depoimento em inquérito e depoimento em julgamento – faltaram à verdade, o que quiseram, sabendo que estavam obrigados a observá-la nas declarações prestadas. Na verdade, embora se afirme no art. 13º da acusação que os arguidos prestaram declarações que sabiam não corresponder à verdade na audiência de julgamento – seguindo a mesma linha de raciocínio, teríamos que prestaram declarações conformes com a verdade no inquérito – deve reconhecer-se que, face aos factos objectivos provados, não existe regra de normalidade que sustente o facto acusado.

Portanto, ainda que deva reconhecer-se que o facto levado à alínea c) dos factos não provados excede, em parte, o teor do art. 13º da acusação, cumprido que foi o art. 424º, nº 3 do C. Processo Penal, nada obsta à sua consideração. Na verdade, contrariamente ao pretendido pela arguida, a alteração factual comunicada respeita a uma forma diferente de cometimento do mesmo crime, pelo que é a mesma uma alteração não substancial dos factos.   

Assim, devem ser eliminadas as alíneas c), d) e e) dos factos não provados.

E devem ser aditados os factos 10-C, 10-D e 10-E aos factos provados, com a seguinte redacção:

- [10-C]Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestaram depoimento em sede de inquérito ao serem inquiridos como testemunha, ou no dia em que foram ouvidos em sede de audiência de julgamento, como testemunhas;

- [10-D]Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao dever de prestar declarações com verdade;

- [10-E]E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibido pela lei penal.


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Do preenchimento do tipo do crime de falsidade de testemunho e suas consequências

5. Fixados definitivamente os factos, atentemos agora no pretendido preenchimento – conclusões 46 a 52 e 57 – do tipo do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 do C. Penal.

A falsidade de testemunho, que tutela o bem jurídico realização da justiça enquanto função do Estado, tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo objectivo]

- Que o agente, investido na qualidade processual de testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, preste depoimento, apresente relatório, dê informações, ou faça traduções falsos;

- Perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.

Estamos perante um crime de perigo abstracto, pois não é necessário que a declaração falsa influencie, de forma efectiva, o esclarecimento da verdade, nem sequer que, em concreto, tenha criado esse risco – e de mera actividade pois, para além da conduta típica traduzida na prestação de declaração falsa, a lei não exige a verificação de qualquer outro resultado (cfr. Medina de Seiça, ob. cit., pág. 462). A declaração – entendendo-se por esta, toda a comunicação pelo declarante com base no seu conhecimento sobre determinado facto – falsa – porque desconforme com o acontecimento real que refere – só é tipicamente relevante quando o agente se encontra sujeito ao dever processual de verdade e de completude (Medina de Seiça, ob. cit., pág. 466) mas não tem que ser essencial para a conformação probatória dos fundamentos da decisão para que o tipo fique preenchido.

Nos termos do nº 3 do art. 360º do C. Penal, o tipo base é qualificado, se o agente tiver prestado juramento e tiver sido advertido das consequências da prestação de declaração falsa.

Assim, estando provado que cada um dos arguidos, na qualidade de testemunha de um processo comum colectivo, prestou depoimento sobre o mesmo facto, no inquérito e no julgamento, relatando circunstâncias incompatíveis e por isso, tornando insusceptível a ocorrência das duas versões, é evidente que ou num, ou noutro momento processual, prestaram declaração falsa, que, no primeiro momento foi recebida por funcionário competente para o efeito, e no segundo momento foi recebida por um Magistrado Judicial e por isso, por um tribunal pelo que, preenchido se mostra o tipo objectivo.

E estando provado que cada um dos arguidos agiu voluntariamente, querendo faltar à verdade num dos dois momentos processuais, sabendo que a sua conduta era proibida pela lei penal, preenchido está o tipo subjectivo.

Por outro lado, não se tendo apurado em qual dos dois momentos processuais cada um dos arguidos, faltando ao dever de verdade, prestou declaração falsa, afastada fica a qualificação do crime, pelo nº 3 do art. 360º do C. Penal.

Em conclusão, praticou cada um dos arguidos, em autoria material, um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 do C. Penal.

6. Cumpre agora fixar as consequências do cometimento do crime.

Dispõe o art. 40º, nº 1 do C. Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por sua vez, estabelece o nº 2 do mesmo artigo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. Assim, prevenção e culpa constituem os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, reflectindo o primeiro a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo o segundo, dirigido ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.

A medida da pena resultará então da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

A determinação da pena, em sentido amplo, passa, frequentemente, pela operação de escolha da pena, o que sucede, como é o caso dos autos, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade, encontrando-se o critério de escolha da pena fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.  

Considerando, por um lado, que os arguidos não tem antecedentes criminais, e por outro, que o processo onde foram produzidas as falsas declarações foi reenviado, cremos que a opção por pena não privativa da liberdade assegura adequada e suficientemente as exigências de prevenção requeridas.

Escolhida a pena, há que determinar a sua medida concreta. Para tanto, o tribunal deve atendera todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras, haverá então que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

É mediano o grau de ilicitude e não foram graves as suas consequências, considerando, além do mais, o desfecho do processo comum colectivo.

Os arguidos agiram com dolo intenso.

São elevadas as exigências de prevenção geral dada a frequência com que no quotidiano dos tribunais surgem questões idênticas. Não se fazem notar as exigências de prevenção especial ainda que os arguidos não tenham sinalizado a interiorização do desvalor da conduta.

Militam a favor dos arguidos a inexistência de antecedentes criminais.

Tudo ponderado, atenta a moldura penal aplicável – 60 dias a 360 dias de multa – julga-se adequada e plenamente suportada pela culpa dos arguidos, a pena de 150 dias de multa, para cada um.

7. O critério de determinação do quantitativo diário da multa encontra-se fixado no art. 47º, nº 2 do C. Penal. De acordo com o preceito, há que atender, para o efeito, à situação económica e financeira do condenado e aos seus encargos pessoais.

O tribunal a quo não levou aos factos provados qualquer elemento com relevância para a aplicação do referido critério e do Relatório da sentença em crise colhe-se apenas que o arguido é casado e empregado de balcão e que a arguida é solteira e cabeleireira.

Passou pois a existir – face ao que antecede – insuficiência da matéria de facto provada para a decisão a proferir sobre a fixação do quantitativo diário da multa, vício que a Relação não pode suprir, o que implica, quanto a este aspecto, que seja determinado o reenvio do processo a fim de que a 1ª instância, realizadas as necessárias diligências de prova, profira decisão fixando aquele quantitativo.       


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III. DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, decidem:

            A) Modificar a decisão de facto, eliminando as alíneas a), b), c), d) e e) dos factos não provados e aditando à matéria de facto provada os factos 10-A, 10-B, 10-C, 10-D e 10-E, com a seguinte redacção:

- [10-A] Do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões incompatíveis sobre a mesma realidade.

- [10-B] Pelo que, necessária e forçosamente, os arguidos, num desses momentos, narraram factos que divergem do acontecido e percepcionado por si.

- [10-C]Os arguidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestaram depoimento em sede de inquérito ao serem inquiridos como testemunha, ou no dia em que foram ouvidos em sede de audiência de julgamento, como testemunhas;

- [10-D]Os arguidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao dever de prestar declarações com verdade;

- [10-E]E tinham pela consciência que os seus comportamentos eram ilícitos e proibido pela lei penal.


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            B) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu os arguidos A... e B... da prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 do C. Penal.

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C) Condenar o arguido A... , pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 do C. Penal – resultante da convolação do acusado crime de falsidade de testemunho qualificado – na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa.

D) Condenar a arguida B... pela prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 do C. Penal – resultante da convolação do acusado crime de falsidade de testemunho qualificado –, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa.


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E) Reenviar o processo para novo julgamento relativamente à questão supra identificada da fixação do quantitativo diário da pena de multa.

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Recurso sem tributação.

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Coimbra, 27 de Janeiro de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Orlando Gonçalves – adjunto)